Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
33/21.3T8PNH.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: SIMULAÇÃO DE CONTRATO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DOAÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
VALIDADE
NEGÓCIO FORMAL
VONTADE REAL DOS DECLARANTES
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – O negócio ou negócios simulados são sempre nulos (art.º 240.º n.º2 do CCiv), mas, caso contenham um “negócio dissimulado”, então é válido este negócio dissimulado, sem prejuízo do disposto no art.º 241.º n.º2 do CCiv.

II – No âmbito do disposto no art.º 241.º n.º2 do CCiv, a jurisprudência do S.T.J. tem seguido a doutrina segundo a qual a validade do negócio dissimulado depende apenas do preenchimento, pela forma adoptada no negócio simulado, das razões justificativas da forma para o negócio dissimulado, nos termos dos art.ºs 219.º e 220.º do CCiv.

III – Se é certo que as declarações de doar não constam de qualquer dos negócios de compra e venda impugnados, também não seria expectável que isso alguma vez pudesse acontecer, posto que o negócio apenas é dissimulado por não revelar as verdadeiras declarações de doar e não pode existir, por definição, escritura de compra e venda que declare ser o negócio gratuito.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

AA propôs a presente acção com processo declarativo e forma comum contra BB e mulher CC e DD, formulando pedido no sentido da declaração de ineficácia em relação ao Autor, dos negócios jurídicos mencionados, devendo ainda ser ordenado ao terceiro Réu, a restituição do referido bem, de modo que o autor o possa relacionar na relação de bens por óbitos dos seus pais, com as devidas consequências legais.

Alegou ser herdeiro legitimário na herança aberta por óbito de EE e de FF, seus pais, tendo, na qualidade de cabeça de casal, sido conhecedor de que os seus paisjá não eram proprietários da sua casa de morada de família, prédio urbano, constituído por rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, sito na Rua ... n.º 20, na freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial urbana número ...95, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...84, por o terem vendido, em nua propriedade, pelo valor de € 38.500,00, a seus vizinhos, aqui 1º e 2ª RR., em 23 de Julho de 2013, reservando para si o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo, conforme consta da respectiva escritura pública de compra e venda.

A nua propriedade foi vendida, em 22 de Janeiro de 2019, ao 3º R., por contrato de compra e venda, pelo valor de € 35.000,00, sendo certo ter inexistido qualquer pagamento.

As mencionadas compras e vendas, ficcionadas, tiveram como único fim evitar que o imóvel integrasse a herança dos pais do aqui A., em prejuízo patrimonial dos herdeiros, entre outros, o aqui A.

Concluiu pelo direito à restituição do bem aqui em causa à massa hereditária, na medida do seu interesse, e de o relacionar na respetiva relação de bens, sendo o 3º R. obrigado à sua restituição ao acervo patrimonial da herança.

Os dois primeiros Réus alegaram que a transmissão da nua propriedade do prédio em causa foi feita como meio de pagamento de uma dívida dos pais do Autor para com eles, tendo-o vendido ao terceiro Réu em 2.06.2015 e respectiva escritura sido celebrada em 22.01.2019, sendo válidos os negócios.

Para além do mais, pediram a condenação do Autor como litigante de má fé.

O 3.º Réu sustentou a validade das duas transmissões efectuadas, bem como a ausência da verificação dos requisitos da impugnação pauliana.


As Decisões Judiciais

Julgada a acção em 1.ª instância, foi decidido declarar nulos os negócios celebrados, no dia 23 de Julho de 2013, entre os primeiros réus BB e CC e EE e FF e o negócio celebrado entres os primeiros réus BB e CC o segundo réu DD e que titulou a transmissão da propriedade do prédio urbano, constituído por rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, sito na Rua ... n.º 20, na freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial urbana número ...95, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...84, com o valor patrimonial tributável de € 39.777,59 (trinta e nove mil, setecentos e setenta e sete euros e cinquenta e nove cêntimos), primeiro para os réus BB e CC e depois destes para o Réu DD.

Consequentemente, mais foi determinada a restituição pelo 3.º réu DD do referido bem, de modo que o Autor o possa relacionar na relação de bens por óbitos dos seus pais.

Foi absolvido o Autor do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Em face dos recursos de apelação dos 1.º e 2.º RR., por um lado, e do 3.º R., por outro lado, a Relação revogou a sentença, e absolveu os RR. do pedido.


Inconformado, recorre agora de revista o Autor, para o efeito apresentando as seguintes conclusões de alegação:

1ª - A compra e venda de 23.07.2013 dos pais do A. e avós do 3º Réu foi negócio simulado, não correspondendo nem a compra e venda nem a doação, pois a vontade das partes não foi doar, nem receber por doação.

2ª - O primeiro e segunda Réus defenderam primeiramente uma compra e venda e mais tarde duma dação em pagamento.

3ª - Não havia dívida, não houve preço, não houve tradição da coisa.

4ª - Nunca estes Réus estiveram convencidos de que fossem donos do que quer que fosse.

5ª - Apenas “tiveram” em seu nome a nua propriedade de um imóvel para o esconderem de modo que, à morte dos “falsos” vendedores, não pudesse fazer parte do acervo hereditário.

6ª - Não há venda, não há doação, apenas ficção, pelo que bem andou o Tribunal de 1ª instância.

7ª - O Acórdão recorrido transformou este negócio ficcionando em doação, quando os 1ºs RR. nunca quiseram receber o prédio por doação, nem os vendedores o quiseram doar a estes.

8ª - Este acto é nulo – simulação absoluta – porque não quiseram celebrar negócio algum e é fraudulenta porque quiseram enganar alguém e prejudicar outrem.

9ª - Não existiu, pois, negócio dissimulado – doação – mas apenas uma falsa aparência para o exterior com o fim de prejudicar terceiros.

10ª - O segundo negócio – compra e venda de 22/01/2019 é nulo, mas poderia o dissimulado ser válido, pois não houve preço.

11ª - Porém, se o primeiro negócio é nulo por simulação absoluta, o

segundo negócio não pode deixar de ser nulo.

12ª - O vício já vem de trás, pelo que, ao haver nulidade do primeiro negócio, o segundo leva com ele “o pecado original” – até porque o terceiro Réu nem invocou ser terceiro de boa-fé – sendo também nulo.

13ª - Ao ser nulo o primeiro negócio jurídico por simulação absoluta, o segundo é nulo também, mesmo que houvesse simulação relativa neste último.

14ª - A consequência é o regresso à herança por morte de EE e FF do prédio objecto da acção.

15ª - Os RR. agiram de má-fé não só nos negócios jurídicos em causa, mas também ao longo dos autos, mentindo descaradamente, inventando factos, omitindo outros do seu conhecimento directo, pelo que deverão ser condenados por má-fé a favor do Autor, em valor a considerar por equidade, mas que comporte as despesas e honorários mínimos neste processo.

16ª - Violou ou mal interpretou o Tribunal “a quo” os artigos 240º, 241º e 877º do Código Civil.

Termos em que deverá proceder o presente recurso e, por via disso: a) Ser revogado o douto Acórdão recorrido; b) Considerarem-se nulos os negócios impugnados por simulação absoluta do primeiro; c) Ordenar-se o regresso à herança do bem em causa; d) Condenar-se os RR. por má-fé em valor a encontrar por equidade.


Por contra-alegações, o 3.º Réu pugna pela improcedência do recurso.


Factos Apurados

1. O Autor é herdeiro legitimário na herança aberta por óbito de EE, falecido em ... de janeiro de 2021, e de FF, falecida em ... de janeiro de 2021.

2. O Autor é filho de EE e FF.

3. Pretende o Autor proceder ao inventário por óbito daqueles falecidos, sendo cabeça-de-casal nesse inventário, porquanto é o descendente mais velho, competindo-lhe apresentar a relação de bens dos falecidos.

4. Em cumprimento das obrigações junto da Autoridade Tributária, na sequência daqueles óbitos, procedeu, em 01 de fevereiro de 2021, à participação dos mesmos e apresentou o aqui Autor as correspondentes relações de bens.

5. Os seus pais, EE e FF, já não eram proprietários, entre outros, do prédio urbano, constituído por rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, sito na Rua ... n.º 20, na freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial urbana número ...95, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...84, com o valor patrimonial tributável de € 39.777,59 por terem vendido, a nua propriedade do mesmo aos seus vizinhos, aqui 1º e 2º Réus., BB e CC, em 23/07/2013, por meio de escritura pública de compra e venda, sendo o preço de 38.500,00 €.

6. Reservando para si o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo.

7. Nua propriedade que estes 1º e 2º Réus, BB e CC, em 22 de janeiro de 2019, venderam ao 3º R., DD, neto de EE e FF, por contrato de compra e venda por via de documento particular autenticado pelo valor de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), declarando os Réus que aquele valor havia sido pago em 02 de junho de 2015, pelo 3º Réu aos 1º e 2ª Réus.

8. Daqueles documentos não consta o meio de pagamento utilizado.

9. A intenção das partes outorgantes dos negócios referidos nos pontos 5 a 7, foi a de, satisfazendo a vontade dos falecidos pais do Autor, transmitir gratuitamente o imóvel transacionado para o património do terceiro Réu, sem que essa transmissão pudesse vir a ser reduzida, por inoficiosidade, evitando, assim, que aquele imóvel integrasse a herança daqueles, em prejuízo patrimonial dos herdeiros, designadamente do aqui Autor.

10. Essa transmissão seria efetuada através de uma primeira transmissão gratuita para o património dos dois primeiros Réus da nua propriedade desse imóvel, com reserva do usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo a favor dos pais do Autor e com a obrigação daqueles retransmitirem gratuitamente esse direito para o terceiro Réu.

11. Os falecidos EE e FF não tinham a sua casa de morada de família no prédio do nº 20 da Rua ..., mas sim no nº 18 da mesma.

12. Em 2.06.2015 os Réus outorgaram um contrato-promessa de compra e venda relativo ao negócio referido em 7, que se encontra junto aos autos a fls. 394 e 395.

13. O 3º réu tomou logo posse do prédio e pretende efectuar obras no prédio que adquiriu de modo a poder colocá-lo no mercado de arrendamento, tirando daí algum rendimento.

14. O Autor, não falava, nem se relacionava, com os seus pais, irmão e 3.º réu, seu sobrinho, há várias décadas.

15. O Autor e a testemunha GG, uns dias após o óbito de EE, deslocaram-se ao domicílio dos réus AA e CC, e uma vez ali disseram ao Réu AA que eles tinham participado num “negócio fraudulento”, tendo este respondido que que a realização do negócio referido nos pontos 5. e 6. tinha visado compensar uns empréstimos que aqueles Réus haviam feito a EE.


Conhecendo:



I


Recordando a temática factual do processo, o direito de propriedade sobre determinado prédio urbano foi transferido da esfera jurídica dos (já falecidos) pais do Autor e avós do 3.º Réu para os 1.º e 2.ºs RR., tendo estes assumido a obrigação de transferir a propriedade do prédio para o 3.º Réu.

Uma interposição real e não fictícia de pessoas (os 1.º e 2.ºs RR.), posto que não está em causa que os intermediários tenham intervindo como verdadeiros outorgantes – intervieram apenas como mediadores necessários, num global mandato sem representação (art.ºs 1180.º e 1181.º do CCiv), que permite entender como uma unidade os dois negócios de compra e venda impugnados, aparentemente distintos.

Analisadas as decisões das instâncias, verifica-se que a sentença ponderou efectivamente que, “por detrás do negócio simulado”, se vislumbrasse “uma doação do imóvel ao réu DD, pelos seus avós EE e FF”, mas concluiu que também esta doação, “por falta de forma, seria igualmente nula” – ou seja, quedou-se a sentença por constatar a nulidade, por simulação, dos dois negócios de compra e venda invocados, nos termos do art.º 240.º n.ºs 1 e 2 do CPCiv, constatando ser o Autor um “terceiro interessado” na declaração de nulidade dos negócios simulados.

Já a decisão recorrida, para além de confirmar os argumentos expendidos em 1.ª instância quanto à confirmação da declaração de simulação dos negócios, entendeu decisivamente como segue:

“Quando um negócio simulado de compra e venda de um imóvel, outorgado por escritura pública, esconde a doação desse imóvel, deve considerar-se que as razões que exigem que este contrato gratuito seja realizado através de escritura pública - art.º 947º, n.º 1, do C. Civil -, se mostram satisfeitas pelo formalismo seguido no negócio aparente, uma vez que nos dois tipos negociais a razão para tal formalismo reside na especial importância do bem transacionado – um imóvel – que é comum a ambos os negócios e não na gratuitidade da alienação - as doações de bens móveis já não estão sujeitas a tal formalismo -, estando asseguradas as finalidades de precaver as partes contra uma eventual precipitação ou ligeireza e de assegurar a prova da transmissão de um bem imóvel.”

“Devem, pois, contrariamente ao decidido pela sentença recorrida, serem considerados válidos os negócios de doação dissimulados pelos contratos de compra e venda referidos nos pontos 5. a 7. da matéria de facto provada, independentemente de poder haver lugar, no processo de inventário para partilha dos bens das heranças de EE e FF, a uma redução por inoficiosidade da doação daquele imóvel, nos termos do art.º 2169º e seguintes do C. Civil.”

“Não sendo nulos os negócios de doação dissimulados, não pode a acção interposta ser julgada procedente.”



II


A revista imputa a esta declaração de simulação relativa, e à extracção dos respectivos efeitos no processo, por via da consagração dos efeitos de uma verdadeira doação dos avós ao neto, uma ficção – ninguém quis celebrar negócio algum, nem o neto é “terceiro de boa fé”.

Não é isso porém, salvo o devido respeito, que se extrai directamente dos factos provados – veja-se o facto 9.º, como resultante da apreciação na Relação, e, aliás, veja-se também a sentença, que apenas afastou a doação, como vimos atrás, pela “falta de forma”.

Existirá, no caso, essa “falta de forma”?

Na verdade, o negócio ou negócios simulados são sempre nulos (art.º 240.º n.º2 do CCiv), mas, caso contenham, como é factual, um “negócio dissimulado”, então é válido este negócio dissimulado.

Mas logo acrescenta o art.º 241.º n.º2 do CCiv que, “se o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.

É aqui, como já dilucidado no acórdão recorrido, que podem divergir os entendimentos.

De um lado, e podemos dizer do lado da sentença e do lado da revista, estão os partidários da nulidade formal do negócio dissimulado, sublinhando razões de ordem pública ligadas à devida ponderação e reflexão das partes, à certeza quanto ao negócio e à segurança da prova. Trata-se de um negócio celebrado “contra a lei” – art.º 294.º do CCiv.

Na verdade, o negócio dissimulado não transparece, não é perceptível por ninguém, sobretudo não é perceptível pelo enganado.

E assim, como cita o acórdão recorrido e salientava Beleza dos Santos (A Simulação, vol.I, n.º66), “se só existe a forma devida no acto aparente e dele não constam os elementos essenciais do acto dissimulado, nos termos em que para eles se exige essa forma, esse acto é nulo”.

Esta foi a posição seguida no Assento do S.T.J. de 27/3/52, que fixou que – “anulados os contratos de compra e venda de bens imóveis e de cessão onerosa de créditos hipotecários que dissimulavam doações, não podem estas considerar-se válidas”.

E assim, não chega que se tenham observado, no negócio simulado, as formalidades exigidas para o negócio aparente – haverá apenas um negócio latente válido, “se as partes fizeram constar as declarações que integram o seu núcleo essencial de uma contradeclaração (escrito de reserva ou de ressalva), com os requisitos formais exigidos para esse negócio” (C.A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, pg. 368).

Deve destacar-se, na doutrina recente, a posição de Heinrich Hörster (in Cadernos de Direito Privado, 19.º, pg. 24), quando escreve:

“Em primeiro lugar, pode dizer-se que é desrespeitada a própria sistematização do Código Civil, no que toca ao regime da simulação.
De facto, a lei regula o negócio simulado, quase como num “circuito fechado”, quanto aos seus pressupostos, à sua nulidade e aos legitimados para a invocar, e consagra ainda, como única excepção, expressamente ressalvada, a inoponibilidade da nulidade contra terceiros de boa fé.”

“Posto isso, o Código Civil só podia ter tratado os negócios dissimulados como o fez: à parte, ao abrigo da simulação, como negócios diferentes, e autonomamente.”

“Assim, não se compreende como é lógica e legalmente possível aproveitar um negócio nulo, que foi celebrado para não valer e ao qual ninguém – nem as partes, nem a lei – nunca quis atribuir efeitos, para um negócio diferente, pondo-lhe uma forma em cima, sem que haja disposição legal expressa que permita tal simulacro.”

“Por isso, aplicar a forma do negócio simulado ao dissimulado é contrário à lei!”

“Ou, para ser mais drástico, o manto da mentira não pode servir para cobrir a verdade.”



III


Esta posição não é dominante na jurisprudência do S.T.J., que tem seguido a doutrina segundo a qual a validade do negócio dissimulado depende do preenchimento, pela forma adoptada no negócio simulado, das razões justificativas da forma para o negócio dissimulado – consoante Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, 1983, pg.189, Rui de Alarcão, Simulação, Anteprojecto para o Novo Código Civil, Bol.84/305 ou Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, art.º 241.º; na jurisprudência do S.T.J., veja-se, por todos, o Ac. de 7/2/2002 Col.I/77, rel. Neves Ribeiro.

Decisivo é o entendimento da analogia entre a vontade dos simuladores no negócio dissimulado e a declaração que se entende valer nos negócios formais – se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se lhe não opuserem (art.º 238.º n.º2 do CCiv); quer a compra e venda de imóveis, tanto como a doação de imóveis devem ser celebradas por escritura pública – art.ºs 875.º e 947.º do CCiv.

Por outro lado, se é certo que as declarações de doar não constam de qualquer dos negócios impugnados, também não seria expectável que isso alguma vez pudesse acontecer, posto que o negócio apenas é “dissimulado” por não revelar as verdadeiras declarações de doar (assim, Oliveira Ascensão, Teoria Geral, II, 1983, pg. 226) – não pode existir, por definição, escritura de compra e venda que declare ser o negócio gratuito.

O que está em causa é apenas a formalização escrita e autêntica da vontade de doar, a ponderação das partes sobre o alcance do conteúdo negocial e a prova deste, nos termos dos art.ºs 219.º e 220.º do CCiv.

Como se exprime, de forma veemente, o Ac.S.T.J. citado:

“Não nos parece que em nome de uma lógica formal seja consciencioso fechar os olhos à realidade que o processo revela, nem a evidência pode ser negada, só porque um exercício de lógica normativa conduz ao sacrifício da substância, em homenagem à cegueira da forma, numa situação concreta em que a justificação legal da sua exigência está perfeitamente alcançada”.

Não vemos razão para divergir da jurisprudência maioritária.

No mesmo sentido, também A. Barreto Menezes Cordeiro, Da Simulação no Direito Civil, 3.ª ed., 2021 (“solução preconizada – artigo 238.º”), pgs. 133 a 135.

A eventual liberalidade inoficiosa será redutível, nos termos do art.º 2169.º do CCiv e no competente processo de inventário.


Em suma:

I – O negócio ou negócios simulados são sempre nulos (art.º 240.º n.º2 do CCiv), mas, caso contenham um “negócio dissimulado”, então é válido este negócio dissimulado, sem prejuízo do disposto no art.º 241.º n.º2 do CCiv.

II – No âmbito do disposto no art.º 241.º n.º2 do CCiv, a jurisprudência do S.T.J. tem seguido a doutrina segundo a qual a validade do negócio dissimulado depende apenas do preenchimento, pela forma adoptada no negócio simulado, das razões justificativas da forma para o negócio dissimulado, nos termos dos art.ºs 219.º e 220.º do CCiv.

III – Se é certo que as declarações de doar não constam de qualquer dos negócios de compra e venda impugnados, também não seria expectável que isso alguma vez pudesse acontecer, posto que o negócio apenas é dissimulado por não revelar as verdadeiras declarações de doar e não pode existir, por definição, escritura de compra e venda que declare ser o negócio gratuito.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelo Recorrente.

                              

S.T.J., 19/01/2023


Vieira e Cunha (Relator)

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique Cabral Ferreira