Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | PAULO SÁ | ||
Descritores: | ACÇÃO EXECUTIVA VEÍCULO AUTOMÓVEL RESERVA DE PROPRIEDADE PENHORA SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA REGISTO AUTOMÓVEL CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO | ||
Nº do Documento: | SJ200810090039651 | ||
Data do Acordão: | 10/09/2008 | ||
Votação: | MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Decisão: | UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Sumário : | «A acção executiva na qual se penhorou um veículo automóvel, sobre o qual incide registo de reserva de propriedade a favor do exequente, não pode prosseguir para as fases de concurso de credores e da venda, sem que este promova e comprove a inscrição, no registo automóvel, da extinção da referida reserva.» | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Plenário das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça: I. – Banco M... S.A. instaurou, em Janeiro de 2001, na 1.ª Vara Cível de Lisboa, acção executiva contra AA, para cobrança coerciva da quantia de 3.696.973$00, acrescida de juros vincendos e encargos, referentes a mútuo para aquisição de veículo automóvel, indicando à penhora, entre outros bens, o veículo objecto do contrato. Penhorado este e constatando que sobre esse veículo incidia reserva de propriedade a favor do exequente, o juiz a quo convidou-o a fazer prova da renúncia a tal reserva, convite que o mesmo não aceitou (não obstante afirmar expressamente essa renúncia), pelo que foi decretada a suspensão da execução quanto a esse bem, até se mostrar cancelado o registo da reserva de propriedade. Inconformado, agravou o exequente concluindo, em síntese, pela falta de fundamento da decretada suspensão, tendo a Relação de Lisboa confirmado a decisão da 1.ª instância. De novo inconformado, o exequente interpôs da referida decisão novo recurso de agravo, nos termos dos artigos 754.º, n.º 2, 762.º n.º 3 e 732.º-A e 732.º-B do Código de Processo Civil. O agravante conclui, em síntese, as suas alegações do seguinte modo: 1. Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula ...-...-HS, penhora que foi ordenada pelo Juiz em 1.ª instância, e que foi devidamente registada. 2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que, para efeitos da execução prosseguir, é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva. 3. O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da execução, pois de acordo com o disposto nos artigos 824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam. 4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve agir-se de acordo com o que se prescreve no artigo 119.º do Código do Registo Predial, caso a penhora tenha sido realizada. 5. Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da divida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre o qual a mesma incide – o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo; tendo a exequente renunciado ao “domínio” sobre o bem – pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia à recorrida; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119.º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que o acórdão recorrido, ao sancionar o decidido em 1.ª instância, errou e decidiu incorrectamente. 6. Caso, assim, não se entendesse, sempre se dirá, que deveria o exequente titular da reserva de propriedade – ter sido notificado nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 1, do Código do Registo Predial. 7. O acórdão recorrido, ao confirmar o decidido em 1.ª instância violou, pois, e erradamente interpretou e aplicou o disposto no artigo 888.º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, alínea b) e 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, os artigos 7.º e 119.º do Código do Registo Predial e 408.º, 409.º, n.º 1, 601.º e 879.º, alínea a), todos do Código Civil. 8. Impõe-se pois, a procedência do presente recurso e a substituição do acórdão recorrido por outro que reconheça e decida que o facto de existir registo de reserva de propriedade em favor do exequente em autos de execução em que o veiculo foi penhorado e a penhora registada, para efeitos da execução prosseguir não é necessário que o exequente proceda ao cancelamento do mesmo, aliás, a ordenar sempre posteriormente, nos termos do artigo 888.º do Código de Processo Civil, desta forma se UNIFORMIZANDO JURISPRUDÊNCIA. Não houve contralegações. O Senhor Presidente deste Tribunal determinou o julgamento alargado do recurso e o Ministério Público foi de parecer que o conflito fosse resolvido no sentido de que: “Verificando-se que sobre veículo automóvel que fora penhorado incide registo de reserva de propriedade a favor do próprio exequente, a acção executiva não pode prosseguir sem que previamente tal averbamento se mostre cancelado, designadamente através de renúncia do exequente ao direito registado”. Por entender indispensável ao esclarecimento das questões em debate, o Relator notificou o recorrente para apresentar certidão da petição inicial e dos documentos que a acompanharam, da decisão que constitui título executivo, bem como do documento que serviu de base ao registo de reserva de propriedade. Dos documentos apresentados, para além de se ter esclarecido qual a matéria de facto fixada pelas instâncias, constatou-se que, no requerimento-declaração para registo de propriedade, a T... assina como vendedora do veículo e que, no contrato de mútuo, se identifica o veículo financiado e o respectivo fornecedor (não referido como vendedor) não se referindo aí, no campo das garantias, a reserva de propriedade. Cabe apreciar e decidir. II. Fundamentação De Facto II.A. A factualidade relevante é a alegada na petição inicial e provada documentalmente, uma vez que a ré não contestou. Em síntese: – O A. Banco M..., tinha anteriormente a designação de T... – Financiamento de Aquisições a Crédito, S.A. e era uma sociedade financeira para aquisições a crédito, tendo por objecto exclusivo o exercício das actividades referidas nos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 206/95, de 14 de Agosto; – No exercício da sua actividade comercial e com destino à aquisição do um veículo automóvel concedeu à R. crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, no montante de 2.000.000$00; – Nos termos do aludido contrato o empréstimo vencia juros à taxa nominal de 16,99% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros respectivos, bem como o prémio do seguro de vida, serem pagos, em 60 prestações, mensais e sucessivas, no valor de 50.840$00, vencendo-se a primeira em 10 de Novembro de 1999 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes; – A importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga, conforme ordem irrevogável logo dada pela referida R. para o seu Banco, por transferência bancária a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações; – A falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações; – Em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 20,99%; – Das prestações referidas, a R. não pagou a 7.ª e seguintes, vencida a primeira em 10 de Maio de 2000, vencendo-se então todas. II.B. De Direito II.B.1. Atento o teor da decisão recorrida e das conclusões do recorrente apenas está em questão saber se: Verificando-se que sobre veículo automóvel que fora penhorado incide registo de reserva de propriedade a favor do próprio exequente, pode a execução prosseguir, para as fases de concurso de credores e venda, sem que este, previamente, inscreva no registo a extinção da referida reserva? II.B.2. A resposta à questão colocada pressupõe os seguintes patamares de análise: 1. Contradição de acórdãos sobre as mesmas questões fundamentais de direito; 2. Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre as questões; 3. Apreciação crítica das teses em confronto na sua aplicação ao caso concreto. II.B.3. A primeira questão a resolver nos recursos ampliados para efeitos de uniformização de jurisprudência é a de saber se existe ou não oposição entre a decisão recorrida e o acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito. Ocorre a identidade da questão, se à aplicação normativa está subjacente uma situação de facto substancialmente idêntica. No caso vertente está em discussão se a execução pode prosseguir em bem com registo de reserva de propriedade a favor do exequente, sem que este inscreva no registo a extinção do direito registado. O conflito terá que se colocar entre a decisão proferida nestes autos e o acórdão invocado como fundamento. O acórdão invocado como fundamento é o proferido em 17 de Maio de 2007, no processo n.º 3450/2007, da 6.ª Secção, do Tribunal da Relação de Lisboa, no qual se decidiu não haver fundamento para impor ao exequente, a favor do qual se encontra registada a reserva de propriedade sobre um veículo, que renuncie ao direito registado nem para a suspensão da execução, enquanto tal renúncia não ocorrer, considerando-se haver lugar ao cancelamento oficioso desse registo. Tanto basta que para que estejam reunidos os pressupostos para a uniformização de jurisprudência pretendida, sendo certo que a delimitação de uniformização deve pautar-se pelos próprios limites da divergência que são estes: vinculação ou não do exequente ao cancelamento do registo da reserva de propriedade, inscrita a seu favor sobre o bem designado à penhora. Adite-se ainda que, também neste tribunal, se verifica a divergência jurisprudencial apontada. Assim, no sentido do acórdão recorrido, se pronunciaram os acs. de 12.01.99, Proc. 1111/98-2.ª (Rel., Cons. SIMÕES FREIRE); de 27.05.04, Proc. 1865/04-2.ª (Rel., Cons. MOITINHO DE ALMEIDA); de 13.01.05, Proc. 3754/04-2.ª (Rel., Cons. ABÍLIO VASCONCELOS); de 12.05.05, Proc. 993/05-7.ª (Rel., Cons. ARAÚJO BARROS); de 10.01.06, Proc. 3188/05-6.ª (Rel. Cons. RIBEIRO DE ALMEIDA); de 14.02.06, Proc. 4209/05-1.ª (Rel., Cons. ALVES VELHO) e Proc. 3449/05-1.ª (do aqui relator); de 20.04.06, Proc. 4376/05-2.ª (Rel., Cons. NORONHA DO NASCIMENTO); de 18.05.06, Proc. 880/06-6.ª (Rel., Cons. JOÃO CAMILO) e de 12.07.07, Proc. 234/07-1.ª (Rel., Cons. MOREIRA ALVES). Em sentido contrário, registam-se os acs. de 10.04.97, Proc. 102/97-2.ª (Rel. Cons. COSTA SOARES); de 2.11.04, Proc. 1765/04-6.ª (Rel., Cons. SOUSA LEITE); de 17.03.05, Proc. 317/05-7.ª (Rel., Cons. FERREIRA DE SOUSA); de 15.12.05, Proc. 2661/05-2.ª (Rel., Cons. LOUREIRO DA FONSECA); de 2.02.06, Proc. 3932/05-2.ª (Rel., Cons. BETTENCOURT DE FARIA); de 30.03.06, Proc. 645/06-2ª (Rel., Cons. FERREIRA DE SOUSA); de 26.04.07, Proc. 2532/06- 2.ª (Rel., Cons. RODRIGUES DOS SANTOS) e de 13.09.07, Proc. 2547/07-7.ª (Rel., Cons. FERREIRA DE SOUSA); veja-se, ainda, voto de vencido no acima citado ac. de 12.07.07 (Cons. SEBASTIÃO PÓVOAS). II.B.4. Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre a questão. II.B.4.1 Estabelece o art. 409.º do Código Civil (doravante, C.C.) sob a epigrafe “Reserva de propriedade”: “1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. 2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros" O referido artigo 409.º constitui excepção ao anterior artigo 408.º, que consagra a regra de que a transferência da propriedade se opera por mero efeito do contrato – mas ambos se reportam aos contratos reais ou com eficácia real, de que resultam não apenas efeitos obrigacionais mas também efeitos reais – constituição ou transferência do domínio (cf. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 5.ª edição, Coimbra, 1991, p. 226), pelo que é inequívoco que "a função económica da reserva de propriedade é a de garantir o crédito do vendedor pelo preço da compra.” “A reserva de propriedade substitui o direito de penhor sem posse do vendedor, inadmissível em face do nosso Código Civil (arts. 669.º e 677.º). Com a reserva de propriedade visa o vendedor precaver-se de uma eventual inexecução do contrato ou insolvência por parte do comprador, caso em que o vendedor deseja obter a restituição da coisa, fazendo valer os seus direitos quer em face do comprador, quer de terceiros, credores do comprador, ou que por ele tenham sido investidos em direitos sobre a coisa. Consegue-o convencionando que a titularidade do direito de propriedade permaneça na sua esfera jurídica até ao integral pagamento do preço" (LUÍS LIMA PINHEIRO, A Cláusula de Reserva de Propriedade, Coimbra, 1988, p. 23 e 24). A reserva tem, pois, essencialmente, uma função de garantia do direito primeiro do credor que é a manutenção da solvabilidade do património do seu devedor, mas assegurando a este a plena fruição, ou disposição material da coisa (PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, nota 5 ao artigo 934.º; OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Reais, 1983, pp. 483-484 e VAZ SERRA, “Penhor – Penhor de coisas”, BMJ n.º 58, pp. 17 e ss.). Para além de garantir o pagamento do preço, a reserva de propriedade garante também a devolução da coisa, caso o crédito não possa ser cobrado. Mas o adquirente, apesar da reserva, detém a coisa em nome próprio e não a título precário e não a recebe para a guardar e posteriormente restituir (ALMEIDA E COSTA, RLJ, ano 1985, p. 86, em anotação ao acórdão de 24 de Janeiro de 1985) Naturalmente adere-se à posição de ANA MARIA PERALTA (A posição jurídica do comprador na compra e venda com reserva de propriedade, 1990, p. 77) ao declarar que “o gozo da coisa pelo comprador durante o tempo que medeia entre a celebração do contrato e o pagamento completo do preço é um elemento típico essencial da compra e venda com reserva acompanhada da tradição da coisa. Não se fundando na propriedade que ainda não detém, o gozo do comprador deriva da sua posse em nome próprio, resultante da entrega do bem em execução do contrato.” E que “ao vendedor continua a pertencer a posse nos termos do direito de propriedade, direito de que ainda é titular”. Do que acima se disse e também do que directamente decorre da lei (artigo 409.º, n.º 1, de C.C., citado) a cláusula de reserva de propriedade tem de ser convencionada apenas no âmbito de um contrato de alienação e não em qualquer outro, pois que é sua característica essencial suspender os efeitos translativos inerentes a tais contratos. Por isso mesmo, também o art. 5.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 54/75 (Registo de Propriedade Automóvel) em perfeita consonância com o direito substantivo, dispõe que está sujeita a registo “[a] reserva de propriedade estipulada em contrato de alienação de veículos automóveis”. Concordantemente o art. 46.º do Regulamento do Registo de Automóveis, na redacção introduzida pelo artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 178-A/2005, de 28 de Outubro, que aprovou o projecto do Documento Único Automóvel e procedeu à transposição de directivas comunitárias na matéria, estabelece que «[a] reserva de propriedade estipulada nos contratos de alienação de veículos constitui menção especial do registo de propriedade». Como observa FERNANDO GRAVATO MORAIS (Cadernos de Direito Privado n.º 6, pp. 49-53), “não restam dúvidas que literalmente (...) só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda é lícita a estipulação” sendo certo que “[a] finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão-só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre um objecto que não produziu nem forneceu – apenas em razão do fraccionamento das prestações.” No mesmo sentido se pronuncia ANA MARIA PERALTA que sustenta que “… não pode, desde logo, deixar de se estranhar que a cláusula de reserva de propriedade se encontre registada a favor da exequente, não vendedora mas apenas financiadora da aquisição feita pelos executados, consequentemente associada a um contrato de mútuo que tão só traduz a transferência para o mutuário do montante pecuniário a ele entregue, e desse modo, até certo ponto incompatível com a norma do artigo 409.º, n.º 1, do C.Civil, sede principal da reserva de propriedade, que prevê apenas a sua inserção, em benefício do alienante de qualquer contrato de alienação (A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, Coimbra, 1990, p. 2.) A interpretação actualista do Decreto-Lei n.º 54/75, por forma a estender ao financiador, com reserva de propriedade, os direitos do vendedor no contrato de compra e venda, foi claramente afastada no acórdão deste STJ de 2.10.07 (proc. 07A2680, Rel., Cons. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt), onde se pode ler que “a interpretação actualista (…) tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se dela resultar um desfecho que se compagine com o sistema jurídico enquanto unidade e o resultado interpretativo não afrontar o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito.” II.B.4.2. Não se desconhece que tem vindo a ser aceite a possibilidade de ocorrer sub-rogação voluntária, seja do credor, seja do devedor, a favor do financiador, em situações como a dos presentes autos (artigos 589.º e 591.º do C.C.), como acontece no Parecer publicado no Boletim dos Registos e do Notariado n.º 5/2001, de Maio de 2001, citado no acórdão de 12 de Julho de 2007, deste Tribunal, que abaixo se transcreve: “... 1) O financiamento por uma instituição de crédito da aquisição de um veículo automóvel, contratada sob condição de reserva de propriedade, poderá dar origem a uma situação que se reconduz à figura legal da sub-rogação voluntária, nas modalidades de sub-rogação pelo credor (artigo 589.º do Código Civil) ou de sub-rogação pelo devedor, em consequência de empréstimo que lhe tenha sido efectuado (artigo 591.º do mesmo Código). Assim, a lei civil permite que, por actos celebrados simultaneamente, com intervenção de todos os interessados: 1.º) o vendedor aliene o veículo ao comprador, estipulando-se a reserva de propriedade a favor do primeiro até integral pagamento do preço; 2.º) O comprador celebre um contrato de mútuo com uma instituição de crédito, para financiamento do preço de aquisição, procedendo aquela à liquidação do preço junto do vendedor ou, em alternativa, sendo tal pagamento efectuado directamente pela instituição de crédito junto do vendedor, substituindo-se ao comprador; 3.º) Em consequência, o devedor sub-rogue expressamente a instituição de crédito nos direitos do vendedor, com o assentimento e a declaração de transmissão da propriedade reservada a favor daquela, por parte do vendedor (na 1.ª hipótese referida no número anterior); ou o vendedor sub-rogue expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-lhe a propriedade reservada com conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador (na 2.ª hipótese referida no mesmo número).” II.B.4.3. Parece adequado à discussão da questão em apreço passar em análise o que a doutrina vem sustentando sobre a natureza da reserva de propriedade. Tradicionalmente (com raras excepções, de que é exemplo LUÍS CUNHA GONÇALVES – Dos Contratos em Especial, Lisboa, 1953, p. 260 – que considerava o negócio sujeito a condição resolutiva) a reserva de propriedade era encarada como uma condição suspensiva do negócio de alienação, mantendo-se a propriedade na titularidade do alienante até integral pagamento do preço (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, p. 376; VAZ SERRA, in RLJ, Ano 112.º, p. 235; ALMEIDA COSTA, obra citada, p. 232; ARMANDO BRAGA, Contrato de Compra e Venda, Porto, 1990, p. 69; Acórdãos do. STJ de 22 de Fevereiro de 1983, BMJ n.º 324, p. 578 (relator Santos Silveira) e de 01 de Fevereiro de 1995, BMJ n.º 444, p. 609 (relator Sousa Inês). É bem verdade que diversas tentativas foram ensaiadas no intuito de, por forma mais consentânea com as suas características, qualificar a natureza da reserva de propriedade, sem que, todavia, qualquer delas tenha passado a prevalecer sobre a qualificação tradicional. Seguindo LUÍS LIMA PINHEIRO (obra citada, pp. 93 a 120) houve quem a considerasse um direito real de garantia do vendedor, na medida em que reveste a natureza de uma garantia real do crédito e, assim, uma hipoteca mobiliária pelo preço em dívida – WIEACKER; ou que o vendedor fica investido na titularidade de um direito de penhor com pacto comissório – BLOMEYER); ou ainda que, "nos seus termos substanciais, o pacto de reserva de propriedade é uma cláusula de garantia que confere ao vendedor o poder de reivindicar o bem no caso de resolução do contrato por incumprimento do comprador" (BIANCA), ou também que constitui uma cláusula específica, cláusula acessória atípica, devendo a indagação do regime aplicável partir do seu conteúdo e sentido próprios, sem passar pelo filtro da condição suspensiva e nalguns pontos até em contradição com o regime que desta resultaria (RAUL VENTURA e GAMA ROSE), ou finalmente que "na sequência do reconhecimento ao comprador de um direito real de expectativa e da posse em nome próprio, tanto o alienante como o adquirente detêm um pedaço da propriedade. Tratar-se-ia de uma transferência gradual do direito do vendedor para o comprador: a partilha de propriedade defendida por RAISER)”. De todo o modo, é de novo LUÍS PINHEIRO (obra citada, p. 115) a fazer a síntese e a concluir que “o pacto de reserva de propriedade, enquanto cláusula socialmente típica, com a configuração normativa que lhe cabe no ordenamento português, é uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva do efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade erga omnes da resolução.” E continua: “A condição suspensiva subordina a transferência do direito de propriedade, não obsta porém à transmissão da posse, que se opera com a tradição da coisa. Enquanto o adquirente detém o conjunto de poderes de gozo e disposição que correspondem ao conteúdo do direito de propriedade, a propriedade reservada do alienante consiste apenas na titularidade «abstracta» do direito de propriedade. O «direito de expectativa» do comprador, revela-se assim não só um direito real de aquisição da propriedade ou mesmo como um direito de gozo nos termos do direito de propriedade.” II.B.4.4. Efeitos da natureza da reserva de propriedade O Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, que regula os contratos de crédito ao consumo e procede à transposição das competentes directivas comunitárias, ao prever, no artigo 6.º, n.º 3, alínea f), relativamente a contratos de crédito que tenham por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante o pagamento em prestações, «o acordo sobre reserva de propriedade», não redimensiona o respectivo conceito legal, tal como vem balizado no art. 409.º do C.C.: «Tal disposição reporta-se apenas a situações em que o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade, por efeito de reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no art. 2.º» (aresto de 12.07.07, citado, transcrevendo acórdão da Relação de Lisboa, de 14.12.04). Dispõe o artigo 824.º, n.º 2, do C.C., que, na venda em execução, “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo. E o artigo 888.º do Código de Processo Civil (doravante, C.P.C.) determina que, após a venda e o pagamento do preço, se promova oficiosamente o cancelamento dos direitos reais que caducam nos termos do n.º 2 do art. 824.º do C.C. Atento o que atrás se disse sobre a natureza da reserva, tal direito não se inclui nos direitos de garantia. Direitos de garantia são aqueles que conferem o poder de, pelo valor da coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, o respectivo beneficiário obter, com preferência sobre todos os outros, o pagamento de uma dívida de que é titular activo (cf. Direitos Reais, segundo as prelecções do PROF. DR. MOTA PINTO – ÁLVARO MOREIRA e CARLOS FRAGA). São, direitos reais de garantia, como tal previstos taxativamente na lei substantiva, apenas o penhor, a hipoteca, os privilégios creditórios especiais, o direito de retenção e a consignação de rendimentos. Outros direitos reais de garantia resultam da lei processual civil (o direito que decorre do arresto depois de convertido em penhora e no processo de execução o direito real derivado da penhora) ou de legislação autónoma (o penhor financeiro e a alienação fiduciária em garantia, instituídos pelo Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio). Não é, porém, atribuída tal natureza à reserva de propriedade. A reserva de propriedade, na medida em que suspende a transferência de um direito real de gozo, aproxima-se, na sua natureza, de um direito real de gozo (ANA MARIA PERALTA, na obra citada, a pp. 165 e 166, considera como tal, a expectativa do comprador, sujeito a reserva de propriedade). Apesar da sua função de garantia de cumprimento de uma obrigação pecuniária, não assume a reserva de propriedade a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional, além do mais, por não fazer parte do respectivo elenco típico (artigo. 1306.º, n.º 1, do C.C.). A exclusão da reserva de propriedade da caracterização dos direitos de garantia implica, não poder ser a mesma cancelada oficiosamente, nos termos das normas referidas. Mesmo reconhecendo-se à reserva de propriedade uma natureza próxima dos direitos reais de gozo, tal não permitiria sustentar, decorrentemente, uma posição contrária. Desde logo por, como já se referiu, a reserva de propriedade não pode ser aditada ao elenco dos direitos reais. E por esse fundamento e pela natureza excepcional das normas relativas à estrutura dos direitos reais, estas não podem ser-lhe aplicadas por analogia (artigo 11.º do C.C.). Finalmente, por não ser um direito de garantia e por se tratar de um direito com registo anterior ao da penhora não decorre a caducidade do respectivo registo, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do C.C. Não há razões, para chamar à colação o disposto no artigo 119.º do Código de Registo Predial (doravante CRegP), quando não se coloca qualquer dúvida sobre o titular do direito e quando não existe qualquer registo provisório, nomeadamente de penhora ou arresto. E pode colocar-se a questão do prosseguimento da execução, entrando-se na fase da venda executiva, na subsistência de um registo definitivo de reserva de propriedade? Como se disse no acórdão deste STJ de 14.2.2006, acima referido, “[r]egistada definitivamente a reserva de propriedade, tem de presumir-se que o direito existe e que pertence ao titular inscrito, não podendo os factos comprovados pelo registo ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo – artigos 70.º e 8.º, n.º 1 do C.R.P. e 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, 12/2.” Há quem defenda, contudo, que o titular da reserva pode renunciar tacitamente ao referido direito. Tal decorreria, desde logo, para alguns defensores desta tese, da exigência do cumprimento do contrato, através da propositura da acção executiva. Claramente contra este entendimento se pronuncia ANA MARIA PERALTA (obra citada, p.p. 93 e 94), que igualmente refere como defensores do mesmo entendimento RAÚL VENTURA, ANTUNES VARELA e LOPO XAVIER. A cláusula de reserva de propriedade suspende o efeito translativo da propriedade, até à verificação do cumprimento pelo comprador. O incumprimento definitivo, exigível para se recorrer à via executiva, não extingue o contrato e a exigência de cumprimento, mesmo coerciva, não corresponde ainda ao cumprimento. A extinção da reserva só se verifica, pois, quando se obtém o cumprimento do contrato. A renúncia é uma figura jurídica distinta que resulta de uma declaração unilateral do contraente, contrária ao convencionado pelas partes (transferência da propriedade, mediante pagamento do preço) e, consequentemente, contrária ao princípio da boa fé contratual. O mesmo se diga, isto é que não pode valer como renúncia, o pedido de penhora do bem sobre o qual incide a reserva. De acordo como o que supra se disse sobre a renúncia, a nomeação do bem à penhora pelo exequente não pode constituir renúncia, pois da penhora não resulta o cumprimento da obrigação do comprador, antes tem como objecto garantir, no âmbito do processo executivo, o pagamento coercivo. A jurisprudência maioritária vai neste sentido, pois a natureza de condição suspensiva dos efeitos reais do contrato da reserva impede a transmissão da propriedade, enquanto se não verificar o cumprimento integral da obrigação. Ora, a constituição da reserva de propriedade é, aqui, de registo obrigatório, porque se trata de móveis sujeitos a registo: artigo 409.º, n.º 2, do C.C., artigo 5.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do DL n.º 45/75, de 24 de Fevereiro, e artigo 94.º, alínea a) do CRegP (o Decreto-Lei n.º 45/75 foi sucessivamente alterado por diversos diplomas posteriores, o último dos quais o recentíssimo Decreto-Lei n.º 178-A/05, de 28 de Outubro, mas não nos preceitos aqui referidos). E também a extinção do direito terá obrigatoriamente que ser levada ao registo, como resulta quer do princípio da equivalência das formas, quer da própria lei: artigo 5.º, n.º 1, alínea g) e n.º 2 do mesmo Decreto-Lei n.º 54/75 e dos artigos 2.º, n.º 1, alínea x) e 101.º, n.º 2, alínea f) do CRegP. A cláusula de reserva está sujeita a registo, pois só através do registo é oponível a terceiros. Daí que, para que os respectivos efeitos se extingam é necessário sempre o cancelamento do respectivo registo, não bastando para tal a mera declaração de que se renuncia à reserva. Como se sustentou no acórdão deste Tribunal de 14 de Fevereiro de 2006 (processo n.º 3449/05) “[s]e o bem pudesse ir à praça com registo de reserva de propriedade a favor do exequente, apesar de este já ter renunciado ao seu direito de reserva seriam prejudicados os terceiros: estes, conhecedores do registo de reserva, não iriam à praça, ou licitariam muito por baixo, por pensarem que o bem posto em praça se encontrava onerado com reserva de propriedade, podendo o exequente licitar nele por preço inferior ao valor real e indo depois exigir o restante do seu crédito em outros bens do devedor; seria prejudicado o exequente e prejudicados os terceiros e o executado.” O registo definitivo da penhora gera, de resto, uma contradição jurídica, por força da presunção de que o bem é propriedade do exequente (artigo 7.º do CRegP), sendo o executado, na realidade, seu mero detentor e impossibilita a verificação do princípio geral de que pelas obrigações só respondem os bens do devedor (artigo 601.º do C.C.). Diga-se ainda e, finalmente, que a manutenção dos dois registos em simultâneo gera incoerência, pois, no decorrer da execução, mantém-se na esfera do exequente a faculdade de, a todo o tempo, exigir a restituição do bem através da resolução do contrato. II.B.6. É chegado o momento de concluir, tomando por base as premissas anteriores. Em primeiro lugar, dir-se-ia que, no caso dos autos não se estaria perante qualquer contrato de alienação. O que o banco recorrente teria contratado com o executado teria sido um contrato de mútuo; daí que não pudesse reservar para si a propriedade do veículo adquirido pelo executado/comprador a um terceiro vendedor, já que, nunca tendo tido a propriedade do bem em causa, não se veria como pudesse reservá-la. É verdade que o artigo 6.º, n.º 3, alínea f), do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/9, determina que o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de seus serviços mediante pagamento em prestações deve indicar, além do mais “o acordo sobre a reserva de propriedade”, como se disse. Porém, tal crédito ao consumo tanto pode ser concedido pelo próprio vendedor da coisa como por terceiro (cf. artigos 2.º e 12.º). Daí que, como refere ABRANTES GERALDES, no acórdão da Relação de Lisboa de 14.12.2004, processo 9857/2004-7 “[t]al disposição reporta-se apenas a situações em que, o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade, por efeito de reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no artigo 2.º (diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante). Não pode essa norma ter aplicação a situações previstas no artigo 12.º de tal diploma, em que o crédito é concedido por terceiro para financiar o pagamento de bem adquirido ao vendedor”. No caso concreto, em que o financiador aparece como vendedor do veículo nada impede a aplicação desses normativos, sendo certo que o contrato de mútuo não contraria este facto, uma vez que neste se identificam, nas condições específicas, o veículo financiado e o seu fornecedor (e não vendedor). Se assim se não entendesse, teria que se dar por não resultante do processo executivo a ligação ou coligação entre o contrato de mútuo ou de financiamento e o contrato de compra e venda, a que se refere o citado artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 359/91. E, relativamente à hipótese de sub-rogação, ela não se poderia equacionar no caso concreto, já que isso implicaria a prévia estipulação da cláusula de reserva a favor do vendedor/proprietário (como é o apropriado) e a sua posterior transmissão para o mutuante/financiador, por via de sub-rogação, o que não se verificaria, pois o registo da reserva aparece directamente efectuado em benefício do financiador. Acontece até que o que resulta da declaração de venda para registo de propriedade, está flagrantemente em colisão com o que diz o recorrente, que sustenta que não tem, nem nunca teve, na sua titularidade, o direito de propriedade sobre o bem em causa, razão pela qual nunca poderia reservar para si algo que nunca foi seu. Aliás do contrato de mútuo/financiamento não consta qualquer cláusula de reserva, pelo que a mesma só resulta da citada declaração de venda. Consequentemente, face aos factos ora disponíveis, estão reunidos os pressupostos legais para que o exequente pudesse beneficiar da cláusula de reserva de propriedade, que assim se apresenta como legal e incontroversa. Se assim não fosse, isto é, na falta de elementos sobre a origem da reserva da propriedade num contrato de compra e venda e, atento o que se disse supra, teríamos de concluir pela ilegalidade e nulidade da cláusula. As consequências a retirar desta outra situação seriam, no entanto, processualmente inexistentes, porquanto, se é certo que a nulidade substantiva do acto acarreta a nulidade do seu registo, a verdade é que tal nulidade só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado (art. 17.º de CRegP) e, por outro lado, o princípio da instância (art. 41.º da CRegP) veda a intervenção do tribunal no sentido de, oficiosamente, encetar qualquer diligência, em substituição das partes, com vista à alteração ou cancelamento do registo. Em breve síntese: – O registo da reserva a favor da recorrente existe e tem carácter definitivo, ao mesmo tempo que está igualmente registada definitivamente a penhora do veículo em causa, o que nunca deveria ter ocorrido, face ao prévio registo definitivo da reserva. – O caso dos autos também não se integra na previsão do n.º 1 do artigo 119.º do CRegP, pois, como vem referido, foi desde logo lavrado registo definitivo da penhora. – Também o mecanismo, regulado nesse número e nos seguintes, não se lhe adequa, pois o mesmo “apenas se justifica relativamente a discrepâncias entre a titularidade do bem e o respectivo registo, quando respeitem a pessoas diversas do exequente e não, como ocorre no caso concreto, com relação a situações em que ele próprio surge como titular inscrito, nas quais existe conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre o bem penhorado” (ac. de 12.05.05, citado). – Inaplicáveis são também, atento o entendimento maioritariamente sufragado sobre a natureza da reserva, as normas do n.º 2 do artigo 824.º do C.C., 888.º do C.P.C. e 101.º, n.º 5 do CRegP (redacção do Decreto-Lei n.º 533/99, de 11 de Dezembro). Do que se disse atrás sobre a natureza do direito de reserva e do facto de o mesmo não padecer de qualquer vício, teremos de concluir pela impossibilidade do seu cancelamento oficioso. Além disso, a posição do recorrente de recusa em cancelar o registo da reserva, sem embargo de ter declarado expressamente que renunciava à reserva de propriedade que incide sobre o veículo penhorado é contraditória e patentemente o é, porquanto não desconhece o recorrente o valor do registo e dos efeitos dele decorrentes. Portanto, nas circunstâncias de facto dos autos, o executado não adquiriu ainda a propriedade do veículo penhorado. Tem apenas, quanto a ele, uma expectativa de aquisição, a qual pode ser penhorada, nos termos do artigo 860.º-A, n.º 1 do C.P.C., mas a penhora não incide sobre o bem em causa. Tal penhora só passa a incidir sobre o próprio bem, quando se consumar a aquisição, e ela só pode ter lugar se a exequente cancelar o registo da reserva. Só então o veículo passa a integrar o património do executado e pode, como tal, responder pelas suas dívidas – artigos 601.º de C.C. e 821.º do C.P.C. A lei, como tem sido sinalizado pela jurisprudência e doutrina, facultava ao exequente, enquanto dador de crédito, diversos meios para fazer face ao incumprimento do devedor, desde logo o recurso a determinada garantia real – a hipoteca do próprio veículo automóvel. Cabe-lhe, sem dúvida, a ele decidir e para tanto, empreendedoramente, buscar os meios que entenda escolher, seja em termos de custos, de agilização, de melhor potenciação da titularização das dívidas, seja de outros vectores de variável complexidade. Optou o exequente pelo papel de alienante contratualmente dotado da prerrogativa concedida pelo artigo 409.º do C.C. [e art. 6.º, n.º 3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91]. Assim sendo, e demonstrado já que não pode o Tribunal, oficiosamente, ordenar o cancelamento da inscrição registral referente à reserva, ficaríamos colocados perante a situação da sua subsistência mesmo após a venda, o que se nos afigura inadmissível e prejudicial para o adquirente, que, se mais não fosse, teria de custear o encargo do cancelamento, sem qualquer justificação. Foi o recorrente que criou toda esta insólita situação, competindo-lhe o encargo de a resolver. É, de resto, ao exequente que compete impulsionar o processo, daí que, não sendo caso de ordenar, oficiosamente, o cancelamento do registo, impende sobre o exequente o ónus de regularizar o registo, eliminando dele a reserva de propriedade, sob pena de a execução permanecer suspensa, no que se refere ao veículo penhorado, como se ordenou, sem merecer censura. III. – Pelo exposto, acordam em negar o agravo, mantendo, consequentemente, a integralidade da decisão recorrida, com condenação do recorrente nas custas e uniformiza-se a jurisprudência nos termos seguintes: “A acção executiva na qual se penhorou um veículo automóvel, sobre o qual incide registo de reserva de propriedade a favor do exequente, não pode prosseguir para as fases de concurso de credores e da venda, sem que este promova e comprove a inscrição, no registo automóvel, da extinção da referida reserva”. Lisboa, 9 de Outubro de 2008 Paulo Sá (Relator) Duarte Soares Azevedo Ramos Silva Salazar (vencido conforme declaração de voto do Ex.mo Cons. Sebastião Povoas) Moreira Alves Salvador da Costa (com a declaração de voto que junto) Ferreira de Sousa (conforme declaração a final) Santos Bernardino (conforme declaração que junto) Nuno Cameira Alves Velho Ribeiro Luís Pires da Rosa (vencido de acordo com a declaração que junto) Bettencourt de Faria (vencido conforme declaração que junto) Sousa Leite (junto declaração) Salreta Pereira (vencido conforme declaração) Custódio Montes Pereira da Silva (vencido consoante declaração de voto que junto) Rodrigues dos Santos (vencido conforme declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Salreta Pereia) João Bernardo (junto declaração de voto) Urbano Dias (junto declaração de voto de vencido) João Camilo Mota Miranda Alberto Sobrinho Oliveira Rocha (conforme declaração a final) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Oliveira Vasconcelos (vencido conforme declaração junta) Fonseca Ramos Mário Cruz Cardoso de Albuquerque (vencido conforme o voto do Conselheiro Silva Salazar) Garcia Calejo Serra Baptista (vencido de acordo com o voto do Conselheiro Bettencourt) Mário Mendes Lázaro Faria Noronha Nascimento (Presidente) DECLARAÇÃO DE VOTO Fui vencido pelas razões que passo a expor 1 - O “thema decidendum” reconduz-se a uma única questão, que é saber se penhorado em execução um bem com reserva de propriedade inscrito a favor do exequente, deve este, ainda que renunciando àquele direito real, proceder ao cancelamento do respectivo registo como condição de prosseguimento da lide executiva. Não farei um longo exercício de exegese acerca da reserva de propriedade, bastando-me um simples apelo à disciplina o artigo 409º do CC, que dispõe nos contratos de alienação ser “lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento” (nº1), sendo que (nº2) “tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiro.” A figura surgiu como excepção ao princípio geral do efeito translativo da propriedade que é a imediata consequência do contrato (nº1 do artigo 408º CC) se este tiver natureza, ou acarretar, efeitos reais. Na óptica do Dr. Luís Lima Pinheiro, o condicionar a translação da propriedade à verificação de um evento futuro, sendo a sua função económica “garantir o crédito do vendedor pelo preço da compra”, substituindo o, legalmente inadmissível, penhor sem posse do vendedor, (in “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, 1988, 21/23). Nuclearmente, tem uma função de garantia do direito primeiro do credor que é a manutenção da solvabilidade do património do seu devedor, mas assegurando a este a plena fruição, ou disposição material da coisa. (cf., a propósito, os Profs. P. de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, II, 1981, nota 5 ao artigo 934º; Prof. Oliveira Ascensão – “Direito Civil – Reais”, 1983, 483/84 e Prof. Vaz Serra, “Penhor – Penhor de coisas”, BMJ, 58, 17 ss). Certo, porém, que a reserva de propriedade, em regra, não garante apenas o pagamento do preço, mas também, a devolução da coisa caso o crédito não possa ser cobrado. Mas o adquirente detém a coisa em nome próprio e a título não precário, (como, v.g, e inversamente na locação) não a recebendo para que a guarde e, ulteriormente, restitua (como o depositário). (cf. a propósito, o Prof. Almeida e Costa, ao anotar o Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 1985 – RLJ 1985/86). Assim, concorda-se com a Dr.ª Ana Maria Peralta (apud “A posição jurídica do comprador na compra e venda com reserva de propriedade”, 1990, 77) ao declarar que “o gozo da coisa pelo comprador durante o tempo que medeia entre a celebração do contrato e o pagamento completo do preço é um elemento típico essencial da compra e venda com reserva acompanhada da tradição da coisa. Não se fundando na propriedade que ainda não detém, o gozo do comprador deriva da sua posse em nome próprio, resultante da entrega do bem em execução do contrato.” (…) “ao vendedor continua a pertencer a posse nos termos do direito de propriedade, direito de que ainda é titular”. 2 -Aqui chegados, não se duvidará que, tendo a reserva o escopo de garantir o pagamento do preço, o vendedor será titular de um direito real de garantia. E se tal não é incontroverso na doutrina tradicional (cf. Prof. Menezes Cordeiro – “Direitos Reais, II, 858 e Prof. Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 145 e 263 ss) sê-lo-á claramente “in casu”. Isto, mau grado no mais acolhido entendimento, os únicos direitos reais de gozo serem o usufruto, o uso e habitação, a enfiteuse, o direito de superfície e as servidões prediais – Prof. Mota Pinto in “Direitos Reais”, 1970, 134). Só que, não há aqui uma reserva de propriedade clássica ou em sentido próprio, mau grado as partes assim tivessem nominado o direito. O recorrente não foi o vendedor, nunca tendo tido a propriedade do bem. Reservar, significa manter (guardar para si) e ninguém pode manter o que nunca teve. Ademais, e salvo situações de excepção – que, aqui, não se perfilam – a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato de compra e venda (nº1 artigo 408º CC). Daí que o comprador adquira a propriedade por força do contrato, se nesse momento, o vendedor, e apenas este, não declarar reservá-la. O que se passa no caso vertente é que o mutuante – o recorrente – o é da quantia que o comprador prestará a título de preço. Mas não se mencionou no contrato que obteve, como garantia, o bem alienado, ou se nominou qualquer garantia de “reserva de propriedade”, como tal. Surge depois um registo desse direito. É o que resulta do contrato junto na acção declarativa onde o exequente outorga como mutuante, o executado como mutuário, destinando-se a quantia entregue ao pagamento do preço de um veículo automóvel vendido por um terceiro ao mutuário. O vendedor não é parte neste negócio. Não há pois uma reserva de propriedade em sentido próprio, e nos termos laborados pela doutrina, mas sim uma nova figura que, embora com o mesmo “nomen juris” prefigura uma diferente modalidade que, como adiante melhor se dirá, tem a natureza primeira de garantia de crédito. Obtida, que foi, a sentença condenatória, o recorrente requereu a sua execução e nomeou à penhora, entre outros bens, “o veiculo automóvel ...-...-HS que pode ser encontrado junto à residência da executada AA a quem pertence.” Foram penhorados bens móveis, 1/6 do vencimento da executada e o veículo automóvel . Esta penhora foi registada definitivamente mas a Conservatória de Registo de Automóveis de Lisboa certificou a existência de um registo de reserva de propriedade a favor do exequente com a mesma data – 23 de Novembro de 2000. O contrato de crédito concedido pelo exequente, se sujeito à disciplina do Decreto-lei nº 359/91, de 21 de Setembro – regime do crédito ao consumo – poderia conter um “acordo sobre a reserva de propriedade” (artigo 6º nº3, alínea f)). Assim se afastou o regime geral antes descrito por se entender que, com a evolução da vida negocial, deve facilitar-se o comércio e reconhecer as novas realidades contratuais. O acordo de reserva deveria constar do contrato (citado artigo 6º do DL nº 359/91) o que não aconteceu e, por isso, determinaria a sua inexigibilidade (artigo 7º nº3). Mas por ser questão que transcende o âmbito do recurso, só se aborda para melhor compreensão do instituto. Por outro lado, a reserva de propriedade em favor do mutuante mais não é, nos seus objectivos e formulação, do que uma figura próxima da hipoteca tendo indubitavelmente, como já se disse, a natureza de direito real de garantia. As entidades financiadoras raramente recorrem a hipoteca e preferem a reserva de propriedade, possivelmente pela “sua onerosidade” (cf. Dr. Fernando de Gravato Morais – “Reserva de Propriedade a Favor do Financiador” – in “Cadernos de Direito Privado”, 6 – 2004, 52; Prof. Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 1978, 315). Adere-se à definição do Prof. Mota Pinto (ob. cit. 135): “Os direitos reais de garantia são direitos que conferem o poder de, pelo valor de uma coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, um individuo obter com preferência sobre todos os outros credores, o pagamento de uma divida de que é titular activo.” Indubitavelmente que é o que se passa com a nova modalidade de “propriedade reservada” a favor do mutuante não vendedor já que, nestes casos, e ao contrário de outros de reserva de propriedade clássica, não é conferido o poder de utilizar total ou parcialmente a coisa. Há assim, no caso vertente, uma colocação do direito real ao exclusivo do pagamento, ou da satisfação do interesse do credor, sendo, por isso e essencialmente, acessório do crédito. Finalmente, o próprio recorrente afirmou ser o veiculo pertença do recorrido, assim desvalorizando a reserva de propriedade em sentido estrito, não tendo, outrossim, optado pela medida cautelar a que se referem os artigos 16º nº1 e 18º nº1 do DL nº 54/75 de 12 de Fevereiro, e até renunciando expressamente à sua reserva (renúncia que. no futuro, e sob pena de notória má fé ,e até abuso de direito, o impediria de a invocar). 2-2 Isto posto, e limitando-nos apenas ao âmbito do recurso. Nada impede a penhora do bem alienado, se é propriedade do executado, por o exequente, ao nomeá-lo à penhora (e até referindo pertencer ao demandado) ter renunciado ao domínio que reservara. O facto de estar registada uma reserva, aqui atípica, não pode impedir o prosseguimento da execução por, como se viu, se tratar de um direito real de garantia e ser de ponderar o disposto nos artigos 824º do CC e 888º do CPC, quanto à determinação oficiosa do cancelamento de todos os registos. E nem se invoque o artigo 119º do Código do Registo Predial, só aplicável no caso de registo provisório da penhora – o que não acontece - e que só indubitavelmente aconteceria se a reserva estivesse registada a favor de um terceiro que não o exequente. Nem se apele para os artigos 7º e 8º nº1 do Código do Registo Predial e 29º do DL nº 54/75 de 12 de Fevereiro já que aqui a nomeação é do próprio titular do direito inscrito. Genericamente, e em apoio do exposto, o Prof. Vasco da Gama Lobo Xavier – Revista de Direito e Estudos Sociais”, 1974, 216 ss; Dr.ª Ana Maria Peralta, ob. cit. 116 e Prof. Miguel Teixeira de Sousa, “Acção Executiva Singular”, 391. Daí que o recurso tenha todas as condições para proceder. No eventualmente omisso, valem as razões do douto voto de vencido lavrado no aresto recorrido e os argumentos do acórdão fundamento. Assim, estando a propriedade do bem penhorado reservado a favor do exequente, e não se tratando de reserva clássica mas mera reserva garantia, e este declara prescindir dessa reserva, o que equivale a prescindir de garantia, a execução pode prosseguir. 3 –Em consequência, formularia o seguinte segmento uniformizador: Constando do registo a reserva de propriedade de um bem penhorado a favor do exequente, não tendo sido este o vendedor do bem, e declarando expressamente renunciar à reserva, a execução pode prosseguir quanto àquele bem, por a reserva atípica ser uma mera garantia do crédito, sendo aplicáveis os artigos 824º CC e 888º CPC quanto à determinação oficiosa do cancelamento dos registos. Sebastião Póvoas DECLARAÇÃO DE VOTO Concordo com a decisão do acórdão, designadamente com a súmula jurisprudencial de uniformização que foi inferida, mas com base em motivação de facto e de direito mais abrangente, desenvolvendo minimamente os seguintes pontos: - a sucessão de leis no tempo; - os factos; - a posição do recorrente e a contradição jurisprudencial; - a estabilidade do despacho determinativo da penhora; - a estrutura jurídica da cláusula de reserva da propriedade; - a dúvida sobre a titularidade do direito objecto da penhora; - a venda e oficiosidade do cancelamento da inscrição da reserva da propriedade; - a hipótese da extinção da reserva de propriedade por renúncia; - o prévio cancelamento no registo da reserva de propriedade ao concurso de credores e à venda e o interesse de terceiros I – A sucessão de leis no tempo Considerando que a acção executiva em causa foi intentada no dia 19 de Janeiro de 2001, é-lhe aplicável a versão do Código de Processo Civil anterior à que resultou do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (artigo 21º, nº 1). No que concerne ao recurso, dada a data da referida acção, é aplicável o regime anterior ao que foi implementado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (artigos 11º, nº 1, e 12º, nº 1). No atinente ao direito substantivo registal, considerando a data do registo da reserva de propriedade, é aplicável o regime do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, sem as alterações decorrentes dos Decretos-Leis nºs 178-A/2005, de 28 de Outubro, e 20/2008, de 31 de Janeiro (artigo 12º, nº 1, do Código Civil). Finalmente, quanto às normas do Código do Registo Predial, pelo mesmo motivo da data da inscrição no registo automóvel da reserva de propriedade, são aplicáveis ao caso as anteriores às que decorreram da alteração implementada pelos Decretos-Leis nºs 38/2003, de 8 de Março, 194/2003, de 23 de Agosto, e 116/2008, de 4 de Julho, que inseriram alterações ao referido Código (artigo 12º, nº 1, do Código Civil). II - Os factos 1. Justificação da consideração dos factos revelados pelo processo Estamos perante um recurso de agravo, interposto de um despacho proferido no âmbito de uma acção executiva, em que, por isso mesmo, não houve decisão sobre a matéria de facto, nem tão pouco o elenco dos que, embora de cariz processual, relevam para a decisão em causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. A lei não proíbe que este Tribunal se baseie na realidade da dinâmica substantiva e processual que consta do processo, incluindo aquela que nos é revelada pelos documentos que, a instância do relator, foram juntos pelo recorrente na fase da instância do recurso. Impunha-se, assim, que no acórdão sob análise, se elencassem todos os factos, de cariz processual e substantivo, relevantes para a ampla discussão da questão essencial de direito em causa. 2. O quadro de facto relevante O quadro de facto resultante do processo que releva na decisão do recurso é o seguinte, segundo a sua ordem lógica e cronológica: 1. Representantes de T...-Financiamento de Aquisições a Crédito, SA declararam, no dia 20 de Dezembro de 1999, por escrito consubstanciado em instrumento de procuração, dirigido a vários advogados, conferir aquela a cada um todos os poderes em direito necessários para qualquer um deles, por si só, a representar em qualquer tribunal ou juízo e aí alegar e defender todos os seus direitos, e, ainda, os poderes especiais e necessários para, em nome dela, qualquer um deles, por si só, desistir ou transigir em qualquer pleito judicial, nos termos e condições que entendesse, e para a representar e em seu nome deliberar e votar em qualquer assembleia de credores ou em qualquer processo de falência, de concordata ou de recuperação de empresa, bem como os poderes necessários para, em nome dela, receber todas e quaisquer importâncias ou quantias que lhe sejam devidas, passando para o efeito os competentes recibos, e, ainda, que podiam substabelecer, uma ou mais vezes, os poderes constantes da procuração. 2. Estão inscritas no registo automóvel, desde 23 de Novembro de 1999, a aquisição por AA, por compra a T...-Financiamento de Aquisições a Crédito SA, do direito de propriedade sobre o veículo automóvel com a matrícula nº ...-...-HS, e a reserva de propriedade a favor da última, a que sucedeu o Banco M..., SA. 3. O Banco M..., SA intentou, no dia 19 de Janeiro de 2001, contra AA, acção declarativa de condenação com processo ordinário pedindo a sua condenação a pagar-lhe 2 745 360$ juros e o valor do imposto do selo, a qual terminou por sentença proferido no dia 27 de Novembro de 2001, por via da qual a ré foi condenada a pagar ao autor a quantia de 3 162 408$, juros e imposto de selo. 4. O Banco M..., SA intentou, no dia 7 de Dezembro de 2001, contra AA, acção executiva para pagamento da referida quantia, e juros, indicando para penhora, além do mais, o veículo automóvel com a matrícula nº ...-...-HS, a qual foi ordenada por despacho proferido no dia 19 de Dezembro de 2001, e requerida a sua apreensão, que ocorreu no dia 23 de Outubro de 2002, com entrega do mesmo à executada como fiel depositária. 5. O registo da referida penhora ocorreu no dia 30 de Dezembro de 2002, o exequente juntou a certidão de ónus e encargos no dia 11 de Fevereiro de 2003,e a Juíza proferiu, no dia 21 de Fevereiro de 2005, o seguinte despacho: “de forma a evitar a prática de actos inúteis, convido a exequente para, em dez dias, juntar certidão da conservatória do registo automóvel actualizada da qual resulte o levantamento da reserva de propriedade existente a seu favor relativamente ao veículo penhorado à ordem dos autos. 6. O exequente, na sequência do convite mencionado sob 4, expressou, no dia 28 de Fevereiro de 2005, o seguinte: …”deixar expresso nos autos que não aceita o convite que lhe é feito, não obstante confirmar nos autos, como o faz, que renuncia à reserva de propriedade que em seu favor se encontra registada sobre o veículo automóvel que penhorado foi nos autos, veículo que efectivamente é pertença da executada, sendo aliás desnecessário, na esteira do que recentemente foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 2 de Novembro de 2004 -, proceder-se ao cancelamento do referido registo para efeitos de prosseguimento da execução com referência a tal veículo, pelo que assim requer de novo a V. Ex.ª se digne ordenar, com referência ao veículo automóvel em causa, o cumprimento do disposto no artigo 864º do Código de Processo Civil, na sequência do que foi requerido a folhas 41, a 11 de Fevereiro de 2003. 7. A Juíza proferiu, no dia 16 de Março de 2005 despacho no sentido de que, atendendo a que a propriedade sobre o veículo penhorado se encontra inscrita a favor do exequente, que não acedeu ao convite efectuado para que procedesse à junção do registo do cancelamento daquele direito real de gozo, a venda de tal bem não se poderá efectuar. Com efeito, enquanto não se mostrar ultrapassada tal omissão, não pode tribunal proceder à venda do bem de terceiro, uma vez que o referido direito se não enquadra na previsão do artigo 824º, nº 2, do Código Civil, pelo que, até que se mostre efectuado o cancelamento do indicado registo, suspendo os termos da acção executiva relativamente à venda do veículo, de harmonia com o disposto nos artigos 276º, nº 1, alínea c), 279º, nº 1, e 466º, nº 1, do Código de Processo Civil. III - A posição do recorrente e a contradição jurisprudencial Comecemos por uma breve referência à posição do recorrente no confronto do acórdão recorrido. Entende o recorrente, por um lado, ter a reserva de propriedade sido constituída como garantia, haver optado pelo pagamento coercivo da dívida em vez da resolução do contrato e pelo aproveitamento daquela da reserva, e ter renunciado ao domínio ao afirmar que o veículo pertencia a recorrida. E, por outro, que, face ao disposto nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, o registo da reserva de propriedade a seu favor não impede o prosseguimento da execução, porque o tribunal, aquando da venda do veículo automóvel, ordena o cancelamento de todos os registos. Finalmente, expressou que, se assim não fosse entendido, como titular da reserva de propriedade, deveria ter sido notificado nos termos do nº 1 do artigo 119º do Código do Registo Predial. Continuemos, ora, com a verificação da contradição jurisprudencial decorrente do acórdão fundamento e do acórdão recorrido. O acórdão fundamento versou sobre um despacho proferido no tribunal da primeira instância, em que, sob o fundamento de sobre o veículo automóvel penhorado incidir reserva de propriedade a favor do exequente, foi ordenado que os autos aguardassem que o exequente juntasse certidão comprovativa do cancelamento do registo de reserva de propriedade a seu favor, por a execução, quanto a esse bem, não poder prosseguir para a fase da venda, por esta depender desse cancelamento. Nele, por um lado, transcreveu-se parte de anterior acórdão da Relação no sentido de o exequente ter renunciado tacitamente à reserva de propriedade, por ter nomeado à penhora o veículo automóvel, de o direito derivado do registo de reserva de propriedade ter perdido qualquer interesse para o seu titular e de que ficara ilidida a presunção. E, por outro, considerou-se que, em rigor, estruturalmente, a reserva de propriedade não constituía um verdadeiro direito real de garantia, mas que funcionalmente valia como tal, e, consequentemente, não se via razão para que o mesmo não fosse oficiosamente mandado cancelar com vista a que o bem fosse transmitido livre daquela limitação, com base no que foi revogado o mencionado despacho. O acórdão recorrido, por seu turno, confirmou o despacho proferido pelo juiz da primeira instância que, sob o fundamento de sobre o veículo automóvel penhorado incidir reserva de propriedade a favor do exequente, e de este não ter acedido ao convite para cancelar o registo daquela reserva, suspendeu a instância quanto à venda do veículo, acrescentando não poder ser realizada, por virtude de a situação não se enquadrar na previsão do artigo 824º, nº 2, do Código Civil. Certo é que se ignora, em relação ao acórdão fundamento, porque dele isso não decorre, se a reserva de propriedade relativa ao veículo automóvel penhorado estava inscrita na titularidade do exequente com base em contrato de compra e venda ou de mútuo. Todavia, independentemente disso, estamos perante similar situação de facto, porque em ambas as acções executivas para pagamento de quantia certa o exequente nomeou à penhora um veículo automóvel do executado, em relação ao qual era titular de reserva de propriedade e de penhora definitivamente registadas, aquela antes desta, e nelas afirmou incidentalmente a renúncia àquela cláusula de reserva de domínio. Perante este quadro de facto e de direito, a conclusão é no sentido de que se verifica a contradição de acórdãos, no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito, justificativa, por isso, da pretendida uniformização. IV – A estabilidade do despacho determinativo da penhora Uma palavra sobre a estabilidade do despacho determinativo da penhora do veículo automóvel em causa. Estamos perante um despacho determinativo da penhora, de estrutura simplificada, parcialmente incidente sobre um veículo automóvel, naturalmente proferido ao abrigo do disposto nos artigos 821º, nº 1, 838º, nº 1 e 925º do Código de Processo Civil. Não tem expressa fundamentação, em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 158º daquele diploma, certo que na altura da sua prolação, a questão da admissibilidade da penhora não era controvertida nem dúvida se suscitava acerca dela. Com efeito, o tribunal ignorava que sobre o referido veículo automóvel estava registada uma cláusula de reserva de propriedade na titularidade do exequente, certo que, no caso contrário, não o teria, porventura, proferido, porque só podia ser penhorada a respectiva expectativa real de aquisição por banda da executada (artigo 860º-A do Código de Processo Civil). O referido despacho, em razão da sua natureza, porque se não destinou a prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre o exequente e a executada, nem incidiu sobre matéria confiada ao prudente arbítrio do juiz, é insusceptível de ser qualificado como de mero expediente ou proferido no uso legal de um poder discricionário (artigo 156º, nº 4, do Código de Processo Civil). Proferido o despacho determinativo da penhora em causa, que foi efectivada e levada ao registo automóvel, apesar de ilegal, esgotou-se o poder jurisdicional sobre a matéria daquela penhora e, consequentemente, para ordenar o respectivo levantamento (artigos 466º, nº 1, e 666º, nº 1, do Código de Processo Civil). V – A estrutura jurídica da reserva de propriedade Uma breve referência à estrutura da reserva de propriedade, segundo a doutrina, a jurisprudência e a lei. Muitas são as decisões dos tribunais e vários têm sido os autores que se têm pronunciado sobre esta matéria, embora poucos destes últimos se tenham referido à problemática que está em análise neste acórdão. Têm versado sobre o tema em geral, por exemplo, LUIS CUNHA GONÇALVES, “Dos Contratos em Especial”, Lisboa, 1953; VASCO DA GAMA LOBO XAVER, “Venda a prestações: algumas notas sobre os artigos 934º e 935º do Código Civil”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXI, 1974, página 216; RAUL VENTURA, “O Contrato de Compra e Venda No Código Civil”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, 1983, página 614; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, Volume I, Coimbra, 1987, página 376; VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 112º, página 235; ARMANDO BRAGA, “Contrato de Compra e Venda”, Porto 1990, página 69; ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, Coimbra, 1991, página 226, e Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 118º, pagina 338; LUIS LIMA PINHEIRO, “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, Coimbra, 1988, página 23, e “A posição jurídica do comprador na compra e venda com reserva de propriedade”, Coimbra, 1990, página 77; FERNANDO GRAVATO MORAIS, “Reserva de propriedade a favor do financiador”, Cadernos de Direito Privado, nº 6, Abril/Junho de 2004, página 43; ANA MARIA PERALTA, “A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade”, Coimbra, 1990, página 2; OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil - Reais”, 1983, página 483; LUÍS MANUEL TELLES DE MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, Volume III, página 63, e “Garantias Das Obrigações”, página 266; MENEZES CORDEIRO, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 56, página 320; RUI PINTO DUARTE, “Alguns aspectos jurídicos dos contratos não bancários de aquisição de bens”, Revista da Banca, nº 22, página 24; ISABEL MENÉRES CAMPOS, “Algumas reflexões em torno da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador”, Estudos em Comemoração do 10º Aniversário de Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Coimbra, 2003, página 649; e GABRIELA FIGUEIREDO DIAS, “Reserva de Propriedade”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, volume III, “Direito das Obrigações”, páginas 27 a 451. A jurisprudência tem seguido essencialmente as posições da doutrina sobre esta matéria. Assim, embora em quadro de motivação não idêntica, constata-se a existência de oito acórdãos essencialmente no sentido do acórdão recorrido e outros oito no sentido do acórdão fundamento. Um dos pontos que ultimamente mais tem sido discutido na doutrina e na jurisprudência é o de saber da validade ou não da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante no âmbito da coligação dos contratos de compra e venda e de mútuo, designadamente no âmbito do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro. No caso em análise, todavia, não se coloca essa questão, visto que a cláusula de reserva de propriedade registada a favor da antecessora do recorrente foi-o na qualidade da vendedora do veículo automóvel, e não temos, nesta sede de questionar, por não ser objecto do recurso, o conteúdo e sentido de tais declarações negociais. Abstraímos, por isso, dessa problemática, e passamos a centrar-nos na natureza jurídica da referida cláusula, a partir da interpretação da lei. A regra é no sentido de que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre, em regra, por mero efeito do contrato (artigo 408º, nº 1, do Código Civil). A lei traça, porém, uma excepção à referida regra, na medida em que prescreve ser lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento (artigo 409º, nº 1, do Código Civil). Alguns negócios jurídicos admitem condições, ou seja, a subordinação a um acontecimento futuro e incerto, a produção dos seus efeitos – condição suspensiva - ou a sua resolução – condição resolutiva - a que se reporta o artigo 270º do Código Civil. A cláusula de reserva de propriedade, porque condiciona a transmissão do direito de propriedade à verificação do facto futuro e incerto de pagamento convencionado em contrapartida por parte do comprador, configura-se como condição suspensiva. Dada a estrutura que é própria de tal cláusula, na pendência da condição que ela envolve, o vendedor continua a ser o titular do direito de propriedade da coisa objecto mediato do contrato, enquanto o comprador goza de uma expectativa jurídica de aquisição do direito de propriedade sobre ela. Dir-se-á que os efeitos do contrato de compra e venda no que concerne à transmissão da propriedade da coisa ficam suspensos da ocorrência da mencionada condição. Assim, a transmissão do direito de propriedade por via do contrato de compra e venda sob reserva dela a favor do vendedor fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto, o pagamento do preço, ou seja, o efeito translativo do contrato de compra e venda fica subordinado a uma condição suspensiva. Ocorrendo o referido futuro condicionante que motivou a cláusula de reserva de propriedade, transmite-se o direito de propriedade sobre o objecto mediato do contrato para o comprador, independentemente de outra conduta das partes, com efeitos retroactivos à data da conclusão do contrato (artigos 276º, 408º, nº 1, e 879º, alínea a), do Código Civil). Dir-se-á, em síntese, que a reserva de propriedade, na medida em que suspende a transferência de um direito real de gozo, serve funcionalmente esse desiderato, e aproxima-se, na sua natureza, esse direito. Embora tenha uma função económica de garantia de cumprimento de uma correlativa obrigação pecuniária, não assume a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional, além do mais, por não fazer parte do respectivo elenco típico (artigo 1306º, nº 1, do Código Civil). VI - A dúvida sobre a titularidade do direito objecto de penhora Façamos agora uma breve referência à argumentação subsidiária do recorrente a propósito da dúvida sobre a titularidade do direito de propriedade do veículo automóvel objecto de penhora. Alegou o recorrente, por um lado, que a dúvida sobre a propriedade dos bens objecto de penhora implica a notificação do titular inscrito para expressar se lhe pertencem. E, por outro, que tal regra da lei do registo não é aplicável à situação de reserva de propriedade, mas se fosse considerado não ter àquela renunciado, e, consequentemente, não dever o tribunal ordenar o cancelamento do seu registo, devia ter sido notificado para se pronunciar sobre essa matéria. Se houver registo provisório de penhora de bens inscritos a favor de pessoa diversa do executado, deve o juiz ordenar a citação do titular inscrito para declarar, no prazo de 10 dias, se o prédio ou o direito lhe pertence (artigo 119º, nº 1, do Código do Registo Predial). Se o citado declarar que os bens lhe pertencem ou não fizer nenhuma declaração, será expedida certidão do facto à conservatória para conversão oficiosa do registo (artigo 119º, nº 3, do Código do Registo Predial). Todavia, não estamos no caso vertente perante um registo provisório de penhora, mas face a um registo tendencialmente definitivo, pelo que o disposto no nº 1 do artigo 119º do Código do Registo Predial não o abrange. E também o não abrange por analogia, por falta de similitude fáctica que o justifique (artigo 10º, nº 2, do Código Civil). É que a razão de ser do mencionado normativo é a de contornar a desactualização dos factos inscritos no registo, para evitar o não prosseguimento das acções executivas por virtude de os bens penhorados estarem indevidamente registados na titularidade de pessoas diversas do executado. Com base no referido normativo, por via de uma simples notificação judicial ao titular inscrito e no seu silêncio, a execução deve prosseguir como se o bem penhorado se inscrevesse efectivamente na titularidade do executado. No caso vertente, o interesse e o ónus quanto à remoção dos obstáculos à prossecução da acção executiva, conforme foi decidido pelas instâncias, é exclusivamente do recorrente. Acresce haver, na espécie, conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre o veículo automóvel penhorado, o que só por si implicaria a conclusão da inexistência de fundamento legal, por absolutamente inútil, para que se ordenasse o cumprimento do disposto no nº 1 do artigo 119º do Código do Registo Predial. Na realidade, o que está em causa é o facto de o prosseguimento da acção executiva para a fase do concurso de credores e da venda depender do cancelamento daquele direito de reserva de domínio nos serviços do registo automóvel por exclusiva diligência do recorrente. Perante este quadro, ao invés do que recorrente entende, não tinha o juiz de o notificar para se pronunciar sobre se renunciava ou não à reserva de propriedade sobre o veículo automóvel penhorado, além do mais, porque ele, através do seu advogado, declarou expressamente a referida renúncia. VII – A venda e a oficiosidade do cancelamento no registo automóvel da inscrição relativa à cláusula da reserva de propriedade Atentemos agora na subquestão da venda e da oficiosidade ou não do cancelamento no registo automóvel da inscrição relativa à cláusula da reserva de propriedade. Após o pagamento do preço devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil, e entrega-se ao adquirente uma certidão do respectivo despacho (artigo 888º do Código de Processo Civil). O nº 2 do artigo 824º do Código Civil, para o qual o artigo 888º do Código de Processo Civil remete, estabelece que os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo. Conforme acima se tentou justificar, a reserva de propriedade, por um lado, na medida em que suspende a transferência de um direito real, serve funcionalmente esse desiderato, e assume natureza próxima de um direito real de gozo. E, por outro, embora assuma uma função económica de garantia de cumprimento de uma correlativa obrigação pecuniária relativa ao pagamento do preço, não tem a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional. Com efeito, conforme já se referiu, por causa do princípio do numerus clausus, a reserva de propriedade não pode ser acrescentada ao respectivo elenco típico (artigo 1306º, nº 1, do Código Civil). Acresce que, por virtude do mencionado princípio, e a excepcionalidade das normas relativas à estrutura dos direitos reais, não podem ser aplicadas por analogia à reserva de propriedade em causa (artigo 11º do Código Civil). Porque se não trata de um direito real de garantia, não poderia estar abrangida pelo efeito de caducidade decorrente da venda do veículo automóvel em causa, a que se reporta a primeira parte do artigo 824º, nº 2, do Código Civil. Ademais, porque está, afinal, em causa o direito de propriedade do recorrente, e inscrita foi a reserva de propriedade antes do acto de penhora, certo é que, face ao que se prescreve na segunda parte do nº 2 do artigo 824º do Código Civil, não caducaria em virtude da venda. Em consequência, realizado que fosse o acto da venda do veículo automóvel penhorado, não podia o tribunal, à luz do disposto no artigo 888º do Código de Processo Civil, ordenar o cancelamento da inscrição relativa à reserva de propriedade. VIII – A hipótese da extinção da reserva de propriedade por via de renúncia Vejamos agora a subquestão relativa à extinção da reserva de propriedade por renúncia. O recorrente alegou que, tendo nomeado à penhora o veículo automóvel e reconhecido ser a executada dele proprietária, renunciou ipso facto, tacitamente, à reserva de propriedade em causa. E, depois da nomeação à penhora do veículo automóvel, afirmou expressamente no processo, após ter sido notificado para comprovar o cancelamento no registo da reserva de propriedade, que renunciava ao referido direito. Ora, se devesse concluir-se no sentido de que ocorrera a invocada renúncia tácita, certo é que a referida declaração de renúncia expressa não podia produzir qualquer efeito. Daí que se imponha uma breve referência a esta problemática, ou seja, à questão de saber se ocorreu, ou se podia ocorrer, por virtude da mencionada nomeação à penhora do veículo automóvel, a invocada renúncia tácita, ou, no caso negativo, a sua renúncia expressa. É tácita ou presumida a declaração que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem (artigo 217º, nº 1, parte final, do Código Civil). Ora, o que a nomeação do referido veículo automóvel à penhora revela é que o recorrente pretendia, por via da sua alienação, realizar coercivamente o seu direito de crédito no confronto da executada. Aliás, o sentido da referida declaração negocial tácita, que o recorrente refere, não se compatibiliza com a sua posição de recusa de cancelar no registo a mencionada cláusula. A conclusão, por isso, não pode deixar de ser no sentido de que o recorrente não produziu uma declaração tácita de renúncia à cláusula de reserva de propriedade em causa. Por outro lado, a declaração expressa do recorrente no sentido de renúncia ao referido direito de reserva de propriedade não pode relevar como tal, porque não foi proferida por quem tinha legitimidade substantiva para o efeito, ou seja, os representantes estatutários do recorrente ou da entidade a que ele sucedeu. É claro que este argumento de falta de legitimidade substantiva para a produção dos efeitos próprios da declaração de renúncia, tanto vale para a declaração de renúncia expressa, como para a própria renúncia tácita acima referida. Mas importa ainda considerar, na medida em que o recorrente não optou pela resolução do contrato de compra e venda, que a lei lhe facultava, mas pela exigência do seu cumprimento, que também estão em causa direitos da executada reservatária. Com efeito, logo que pagasse o preço do veículo automóvel, ainda que no decurso da acção executiva, a executada adquiriria, por mero efeito desse pagamento, o direito de propriedade sobre o veículo automóvel. Na realidade, a mencionada reserva de propriedade, pela sua estrutura e fim, assume natureza contratual e confere também direitos à reservatária, pelo que a sua extinção não se coaduna com a renúncia unilateral que o recorrente invoca no recurso. Em consequência, também por estas razões, não pode assumir qualquer relevo o argumento do recorrente no sentido da renúncia tácita ou expressa à reserva de propriedade em causa. IX – O prévio cancelamento no registo da reserva de propriedade ao concurso de credores e à venda e o interesse de terceiros Atentemos, por fim, na questão do cancelamento, no registo automóvel, da reserva de propriedade, prévio à prossecução da execução nas fases do concurso de credores e da venda e o interesse de terceiros. Ao registo de automóveis são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições relativas ao registo predial, na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria, enquanto compatíveis com a natureza dos veículos automóveis e as disposições contidas em lei especial (artigo 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro). O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7º do Código do Registo Predial). Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo (artigo 8º, nº 1, do Código do Registo Predial). A oponibilidade da cláusula de reserva de propriedade em relação a terceiros, desde que o objecto mediato do contrato alienação seja uma coisa imóvel ou uma coisa móvel sujeita a registo, depende da sua inscrição no registo (artigo 409º, nº 2, do Código Civil). Daí que a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis esteja sujeita a registo (artigo 5º, n 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro). Perante a referida presunção não ilidida, impõe-se considerar assente ser o recorrente titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel que, na acção executiva, foi objecto de penhora, não obstante a inscrição condicional da aquisição a favor da executada. Os terceiros, credores da executada – e do próprio recorrente - face ao registo referente ao veículo automóvel, consideram, como é natural, não poderem exercer o respectivo direito de crédito sobre ele, salvo no que concerne à expectativa da sua aquisição. Esta situação ambígua resultante da inscrição do registo automóvel de uma reserva de propriedade a favor de quem actua no processo como se ela não existisse, não se conforma com a função do registo automóvel de publicitar a situação jurídica dos veículos automóveis. Não houve renúncia por parte do recorrente à reserva do direito de propriedade sobre o veículo automóvel, nem podia havê-la no processo pela forma que ele pretende que seja. A penhora do veículo automóvel propriamente dito pelo recorrente dependia da extinção da cláusula contratual relativa à reserva do direito de propriedade em causa e, naturalmente, do obrigatório cancelamento da sua inscrição no registo automóvel, no interesse das pessoas, que pautam os seus negócios com base no registo, designadamente os referidos credores. A ilegalidade da referida penhora derivada da nomeação do veículo automóvel pelo recorrente não obstante dispor de reserva de propriedade em relação a ele, não pode justificar a continuação da execução, seja para a fase do concurso de credores, seja para a fase da venda, sem que do registo automóvel transpareça não ser o recorrente titular desse direito. Estamos perante uma anómala situação em que a penhora ilegal tem de se manter, mas com base nela não pode seguir-se para as fases do concurso de credores e de venda, que com a fase do pagamento constituem a dinâmica final da acção executiva. Por isso, a solução não pode deixar de ser no sentido da suspensão da acção executiva em relação à referida penhora até que o agravante demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa (artigos 276º, nº 1, alínea c), 279º, nº 1, e 466º, nº 1, do Código de Processo Civil). Salvador da Costa José Ferreira de Sousa - Reponderando posição anterior. Acompanho a declaração de voto do Cons. Salvador da Costa Atento o âmbito do recurso – em que se discute apenas a questão de saber se, incidindo sobre veículo automóvel, penhorado em execução, reserva de propriedade a favor do exequente, que o indicou à penhora, pode a execução prosseguir para as fases de concurso de credores e de venda sem que, previamente, o exequente inscreva no registo a extinção da reserva – e o título executivo – uma sentença, transitada em julgado, de condenação da ré, ora executada, a pagar ao autor, aqui exequente, a quantia exequenda, que representa o montante das prestações não pagas, respeitantes a um contrato de mútuo para financiamento da aquisição, pela mesma ré, do veículo em causa, figurando como vendedor o próprio financiador – voto a decisão e subscrevo a fórmula uniformizadora. A. Santos Bernardino Voto de vencido Vencido: o processo executivo é, passe o pleonasmo, um processo. Um caminho. Em direcção ao cumprimento de uma obrigação. A reserva de propriedade é algo que tem em vista – art.409º, nº1 do CCivil – exactamente assegurar o cumprimento total ou parcial de uma obrigação. E que, para isso, tem uma dupla dimensão: uma dimensão de garantia, uma dimensão resolutiva do contrato. O que faz sentido é que essa reserva se mantenha, na sua dimensão de garantia do credor, até ao momento em que a obrigação esteja cumprida ou até ao momento em que o bem reservado seja vendido, no caminho ( executivo ) aberto pelo credor, para através dele ver cumprida a obrigação ( uma vez que foi esse o caminho por que optou, postergando a dimensão resolutiva ). Então, e só então – mas então - a reserva desaparecerá ... como garantia que é ( que foi ). O que pode ser enquadrado no disposto no nº2 do art.824º do CCivil porquanto, como se disse, foi a dimensão garantia aquela que foi dinamizada pelo credor. Pires da Rosa Vencido, por entender que a reserva de propriedade tem a estrutura de um direito real de garantia, que não pode ser confundido com o próprio direito de propriedade sobre o bem a que respeita, dado não visar o disfrute dessa coisa – que o seu titular efectivamente deixou de ter – mas unicamente garantir as vantagens que o alienante pretende retirar da alienação. Assim, está sujeita ao regime dos artºs 824º do C. Civil e 888º do C. P. Civil. Bettencourt de Faria
Declaração de voto Votei favoravelmente o Acórdão Uniformizador supra, alterando assim o sustentado no Acórdão de 2004/11/02 – CJSTJ XII, III, 102 -, em consequência de ter revisto a posição anteriormente assumida, à luz do estatuído nos arts 16º, al. b) (Código do Registo Predial da Drª Isabel Mendes, 12ª edição, pág. 135), 17º, n.º 1 e 41º do Cód. Reg. Predial e no art. 888º do Cód. Proc. Civil. Sousa Leite
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