Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1508/10.5TTLSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
FASE CONCILIATÓRIA
FASE CONTENCIOSA
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL LABORAL - PROCESSO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO / CONCILIAÇÃO DAS PARTES / DESPACHO SANEADOR / FACTOS ASSENTES / MATÉRIA CONCLUSIVA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES) / RECURSOS.
Doutrina:
- Aníbal de Castro, Impugnação das Decisões Judiciais, 2.ª ed., 111.
- Rodrigues Bastos, Notas ao “Código de processo Civil”, vol. II, 3.ª Edição, 221 e 222; Vol. III, 247.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) NA VERSÃO CONFERIDA PELA LEI N.º 41/2013, DE 26 DE JUNHO: - ARTIGOS 615.º, N.º 1, AL. D), 637.º, N.º1, 640.º, N.º 1, AL. A).
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT), APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 480/99, DE 9 DE NOVEMBRO, E ALTERADO PELOS DECRETOS-LEIS N.ºS 323/2001, DE 17 DE DEZEMBRO, 38/2003, DE 8 DE MARÇO, 295/2009, DE 13 DE OUTUBRO, QUE O REPUBLICOU: - ARTIGOS 77.º, N.ºS1 E 3, 81.º, N.º 1, 111.º, 112.º, N.º 1, 113.º, 114.º, N.º 1, 131.º, Nº 1, ALS. C) E D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

-DE 07/03/1985, IN B.M.J., 347.º/477.

-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 05/04/1989, IN B.M.J. 386/446, DE 23/3/90, IN A.J., 7.º/90, 20, DE 12/12/1995, IN C.J., 1995, III/156, DE 18/6/96, C.J., 1996, II/143, DE 31/1/1991, IN B.M.J. 403.º/382.
-DE 28/1/98, IN ACÓRDÃOS DOUTRINAIS, 436, 558; DE 12/01/2000, PROCESSO N.º 129/99; DE 28/5/97, IN B.M.J. 467, 412; DE 8/02/2001 E 24/06/2003, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 14/12/2006, PROCESSO N.º 06S789, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 16/01/2008, PROCESSO N.º 1937/07, DE 16/01/2008, PROCESSO N.º 2912/07, DE 17/12/2009, PROCESSO N.º 343/05.7TTCSC, DE 13/01/2010, PROCESSO N.º 768/07.3TTLSB-C.L1.S1, DE 24/02/2010, PROCESSO N.º 1936/03.2TTLSB.S1, E DE 26/01/2017, PROCESSO N.º 599/15.7T8CLD.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT .

-*-

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-Nº 266/93, DE 30 DE MARÇO DE 1993, PROC. N.º 63/92, DISPONÍVEL EM HTTP://WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT/TC/ACORDAOS/19930266.HTML

-N.º 304/2005, PROCESSO Nº 413/2004, DE 8 DE JUNHO DE 2005 (PUBLICADO NO DR, II SÉRIE, Nº 150, DE 5.08.2005).
Sumário :
1 - Tendo o recorrente referido, no requerimento de interposição de recurso, que um dos seus fundamentos era a “omissão de pronúncia sobre o ónus da prova”, mas sem aduzir aí os fundamentos dessa nulidade, o que apenas fez na parte final do corpo das alegações dirigidas ao tribunal de recurso, a arguição não é atendível, por incumprimento do disposto no artigo 77.º, n.º 1, do CPT.

2 – Não tendo o recorrente, no recurso em que impugna a decisão sobre a matéria de facto, especificado os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem por referência aos quesitos da base instrutória nem por referência aos específicos artigos dos articulados em que os factos foram alegados, não deu cumprimento ao estabelecido no art. 640º, nº 1, al. a) do CPC, devendo o recurso ser rejeitado, nessa parte.

3 – Nos termos do disposto no art. 112º do CPT, no auto de tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público na fase conciliatória do processo devem constar os factos sobre que tenha havido acordo ou divergência e não juízos de valor, conclusões ou conceitos jurídicos, e apenas os factos em que tenha havido acordo devem ser considerados assentes no despacho saneador, nos termos do art. 131º, nº 1, al. c) do CPT.

4 – A aceitação feita na tentativa de conciliação, pelo representante da seguradora, de “que o sinistrado se deslocava no trajeto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência”, porque não constitui facto, mas matéria conclusiva, não impede que na fase contenciosa se discuta se o acidente ocorreu no trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado entre a clínica onde se deslocou para tratamento em consequência de anterior acidente de trabalho e a sua residência.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1]) ([2])

1 - RELATÓRIO

AA, residente no …, n.º … .., ..., ..., participou em 14/04/2010 um acidente de viação, atropelamento, por si sofrido em 17/04/2009 quando regressava a sua casa depois de se haver deslocado à clínica … para uma consulta médica realizada no âmbito do tratamento de lesões atinentes a um anterior acidente de trabalho, estando a responsabilidade civil, por acidentes de trabalho, transferida para a BB, S.A.

Na fase conciliatória do processo realizou-se a tentativa de conciliação a que se alude no art. 108º do C.P.T., que se gorou pelo facto de a seguradora não aceitar qualquer responsabilidade pelo alegado acidente “dado que, não obstante aceitar que o sinistrado se deslocava no trajecto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência, considera que o trajeto foi interrompido indevidamente”.

Declarada suspensa a instância nos termos do n.º 4 do art. 119º do C.P.T., o sinistrado apresentou petição contra a seguradora BB, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe:

“a) As despesas de 1.000,00 euros em transportes e comedorias.

b) Os salários correspondentes aos períodos de incapacidade temporária, no montante de € 18.323,72 (528,23 x 14) + (44,52 x 11) + (171,30 x 12) /12 /30 x 948 dias de ITA;

c) Os dias de ITA entretanto intercorrentes, até decisão final;

d) O capital de reservas matemáticas correspondente à pensão anual e vitalícia que lhe vier a ser fixada com início na data de alta ou consolidação das lesões, a apurar ainda pelo tribunal e que se computa numa incapacidade de 70% = 9.940,00 x 0,70 x 0,70 x 14,2790 (47 anos) = [€] 69.503,46;

e) Juros legais desde o acidente até à decisão final e pagamento;

f) Danos não patrimoniais a estipular, com base na equidade, e [€] 15.000,00;

g) Pensão provisória de [€] 500,00 mensais.”

Como fundamento alegou que no dia 17 de abril de 2009 sofreu um acidente quando se deslocava da clínica …., onde vinha sendo assistido em consequência de um anterior acidente de trabalho ocorrido ao serviço da sua entidade empregadora a “CC, S.A.”, para a sua residência.

Saiu da clínica cerca das 12,15h e apanhou o autocarro habitual de regresso a casa tal como o fez das demais vezes e, em determinada altura do percurso, sentiu-se indisposto e com fome, tendo decidido sair do autocarro para tomar um café e comer qualquer coisa e simultaneamente apanhar ar fresco pois a indisposição poderia ter estas causas.

Saiu numa paragem intermédia em relação ao seu destino, momento em que foi atropelado por um elétrico rápido que circulava em sentido contrário.

Depois de se restabelecer da indisposição, pretendia retomar o mesmo percurso até à sua residência.

Sofre de grave deficiência em termos de visão, quer ao longe, quer ao perto.

Sofreu gravíssimas lesões corporais e jamais poderá exercer a sua profissão habitual.

À data do acidente tinha o vencimento base de € 528,23 x 14 meses, acrescido de € 44,52 x 11 meses de subsídio de refeição e € 171,30 x 12 meses de outras remunerações, retribuição que estava integralmente transferida para a Ré seguradora.

Citada, a Ré contestou pugnando pela improcedência da ação mas aceitando a transferência para si da responsabilidade.

Alegou que no dia 17 de abril de 2009, o sinistrado, na sequência de acidente de trabalho anteriormente sofrido, deslocou-se a uma consulta médica à clínica …, que teve início pelas 11:30h e terminou pelas 12:00h.

Após ter saído da referida clínica, o sinistrado, no regresso a casa, interrompeu o seu percurso habitual. Com efeito, tendo entrado num autocarro em direção à paragem de … – em sentido inverso ao do seu percurso habitual entre a clínica … e a sua residência – apeou-se por motivo alheio aos tratamentos a que se deslocara e empreendeu a travessia da faixa de rodagem dos transportes públicos (Bus), vindo, nesse trajeto, a ser atropelado por um elétrico que, na circunstância, por ali passava.

O sinistro não se verificou no trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado entre a clínica … e a sua residência, dado esse trajeto ter sido interrompido, razão pela qual aquele acidente não pode ser caracterizado como acidente de trabalho.

Acresce que o acidente se ficou a dever, exclusivamente, a negligência grosseira do próprio sinistrado ao proceder à travessia da via. Com efeito, no local do acidente a Av…. dispunha de duas sub-faixas de rodagem, uma delas destinada ao trânsito em geral e uma outra situada entre aquela e o cominho de ferro, afeta aos transportes públicos, entre ambas existindo um passeio desnivelado em altura, com cerca de 2 metros de largura, sendo que no bordo desse passeio, do lado da faixa afeta ao trânsito em geral, encontravam-se grades metálicas de proteção em contínuo com cerca de 1,20m de altura.

A 31,15 metros para o lado Nascente em relação ao local onde o atropelamento viria a suceder, existiam, em ambas as faixas de rodagem, passadeiras destinadas à travessia de peões, local em que o trânsito de veículos e peões era regulado por semáforos.

Cerca de 30 metros antes da referida passadeira e atento o sentido Poente-Nascente existia uma paragem/abrigo de transportes coletivos urbanos.

O autocarro em que o sinistrado se fazia transportar após sair da clínica …., parou na mencionada paragem/abrigo.

O sinistrado apeou-se e ato contínuo – estando a chover e sem fazer uso de qualquer chapéu-de-chuva – dirigiu-se para a parte traseira do autocarro, com este ainda parado, iniciando em correria a travessia da faixa de rodagem do corredor de circulação “Bus” e, sem se deter nem olhar para o seu lado direito, prosseguiu a travessia.

Na altura, transitava pela sub-faixa de rodagem do corredor de circulação “Bus” e no sentido Nascente-Poente um elétrico rodando pelos carris de ferro aí existentes.

Quando o sinistrado AA saiu da traseira do autocarro e se tornou visível para o guarda-freio do elétrico, já este se encontrava a não mais de 8 metros e a uma velocidade não excedente de 20 Kms/h.

O guarda-freio ainda travou o elétrico, não tendo, no entanto, podido evitar o atropelamento do Autor.

O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP, notificado nos termos do n.º 2 do art. 1º do Decreto-Lei n.º 59/89 de 22-02, deduziu petição contra a “BB, S.A.” pedindo o reembolso das prestações pagas ao sinistrado AA em consequência do acidente ocorrido em 17 de abril de 2009, no valor de € 14.418,53.

A Ré “BB, S.A.” contestou a pretensão do Instituto da Segurança Social, IP, concluindo como na contestação que deduzira à petição formulada pelo sinistrado.

Constatando a existência de discrepância entre a remuneração alegadamente auferida pelo sinistrado e a que a sua entidade patronal havia transferido para a Ré seguradora, determinou-se, oficiosamente a intervenção no processo da entidade patronal, ou seja, da sociedade DD, S.A. ao abrigo do disposto no art. 127º do C.P.T., bem como a citação da mesma para contestar os pedidos deduzidos pelo sinistrado e pelo “ISS.IP”.

Contestou a DD, S.A., arguindo a sua ilegitimidade passiva, já que transferira toda a sua responsabilidade infortunística para a Ré seguradora e concluiu que deve ser absolvida do pedido deduzido pelo “ISS, IP”.

Entretanto a Ré seguradora apresentou requerimento de retificação dos valores de salário auferidos pelo sinistrado e que constavam da sua contestação, reconhecendo que assumira na totalidade a responsabilidade da entidade patronal deste, com base na retribuição global por ele auferida.

Na sequência deste requerimento foi a instância declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide, no que concerne à intervenção da Ré DD, S.A., e convidado o Autor a aperfeiçoar a sua petição.

Foi proferido despacho saneador, selecionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória e determinada a abertura de apenso para fixação da incapacidade do sinistrado.

O pedido incidental de fixação de pensão provisória que havia sido requerida pelo Autor foi indeferido liminarmente, por ineptidão.

O A., inconformado, interpôs recurso de apelação que foi julgado procedente tendo-se determinado a prolação de decisão apreciando o pedido de fixação de pensão provisória.

O A., após para tal convidado, apresentou petição incidental aperfeiçoada pedindo que lhe fosse concedida a pretendida pensão provisória, pretensão que, após contestação da seguradora, foi indeferida.

O Instituto de Segurança Social, IP, por sua vez, deduziu ampliação do pedido por si formulado, pedido que, apesar de contestado pela Ré, foi admitido e, como consequência, foram aditados novos quesitos à base instrutória.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova aí produzida, foi proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos contra si formulados.

Inconformado, o sinistrado interpôs recurso de apelação impugnando, para além do mais, a decisão sobre a matéria de facto.

A Relação escusou-se de apreciar o recurso no que tange à reapreciação da matéria de facto por considerar que o A. não especificou “os concretos pontos de facto” que considerava incorretamente julgados, não tendo cumprido o ónus imposto pelo art. 640º, nº 1, al. a) do CPC, e porque “o Autor/apelante fundou a pretensão de alteração da sentença recorrida na impugnação de matéria de facto por si apresentada… e que foi rejeitada”, foi proferida a seguinte deliberação:

«Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente confirmando a sentença recorrida.

Custas a cargo do Autor/apelante, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficie nos presentes autos.»

É desta deliberação que vem interposto, pelo sinistrado, a presente revista.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumprido o disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, o Exmº Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido do não conhecimento da invocada nulidade do acórdão e da procedência parcial da revista com revogação do acórdão «substituindo-o por outro que ordene a remessa dos autos ao Tribunal a quo, a fim de reapreciar a matéria de facto impugnada e, sequencialmente, apreciar a matéria de direito».

Notificadas, as partes não responderam.

Formulou o recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([3]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

”A) Para se dar cumprimento ao estabelecido no artigo 640, nº 1 a) do CPC basta que o recorrente refira com precisão, objectividade e concisão os concretos pontos de facto que quer ver alterados, não sendo necessário que tal matéria da facto seja previamente titulada com a expressão "concretos pontos de facto", pois o objectivo legal não é ater-se a fórmulas sacramentais, antes o de submeter ao tribunal da Relação a matéria de facto, em concreto, que quer ver alterada, explicitando os meios probatórios e a decisão que deve ser proferida sobre a matéria de facto em recurso.

B) Cumpridos estes requisitos não há razões para rejeitar o recurso.

C) O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640°, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado.

D) Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, maxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.

E) Se a seguradora aceitou no acto de conciliação e nele ficou consignado que um determinado acidente de trabalho ocorreu no percurso normalmente utilizado e em sede de contestação disser coisa contrária, tal é irrelevante para os efeitos do artigo 131 c) do CPT, devendo tal facto der consignado como assente.

F) A sentença ou acórdão que se não tenha pronunciado sobre o pedido formulado relativo ao ónus da prova relativo ao facto impeditivo que consistiu em se ter apurado a razão da interrupção do percurso normalmente utilizado, está ferida de nulidade, que deverá ser suprida.

H) O Tribunal da 1ª Instância e, posteriormente, a Relação no recurso deveriam ter considerado decidido, face ao teor do auto de não conciliação, como matéria fáctica provada, tal como consta da 1ª conclusão de recurso, que o sinistrado se deslocava no trajecto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência.”

2 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO ADJETIVO

Os presentes autos respeitam a ação emergente de acidente de trabalho.

O sinistro ocorreu em 17.04.2009 e o recebimento em juízo da respetiva participação ocorreu em 14.04.2010.

O acórdão recorrido foi proferido em 30.11.2016.

Assim sendo, são aplicáveis:

•        O Código de Processo Civil (CPC) na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho;

•        O Código de Processo do Trabalho (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro, e alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, 38/2003, de 8 de março, 295/2009, de 13 de outubro, que o republicou;

•         A Lei n.º 100/97, de 13 de setembro;

•         O Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril.

3 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO

Face às conclusões formuladas, as questões submetidas à nossa apreciação consistem em saber:

1 – Se o acórdão enferma da nulidade de omissão de pronúncia;

2 – Se no recurso de apelação e no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto foram cabalmente cumpridos pelo recorrente os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1 al. a) do CPC;

3 – Se face à declaração do representante da ré seguradora constante no auto de conciliação “… não obstante aceitar que o sinistrado se deslocava no trajecto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência…”, deve dar-se como provado que o acidente ocorreu no trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado na sua deslocação da clínica para a sua residência.

4 – FUNDAMENTAÇÃO

4.1 – OS FACTOS

A matéria de facto julgada provada pelas instâncias é a seguinte:

“A) O Autor AA era trabalhador contratado, ao serviço, sob as ordens, direção e fiscalização da sua entidade patronal DD, SA;

B) Tendo a categoria profissional de ajudante de motorista;

C) E auferindo a retribuição anual de € 9.940,54, constituída por € 528,23 x 14 meses de remuneração base, por € 44,52 x 11 meses de subsídio de almoço, e por € 171,30 x 12 meses de outras remunerações;

D) Na data de 17/04/2009, a empresa DD, SA tinha a responsabilidade infortunística emergente de acidentes de trabalho relativamente ao Autor transferida para Ré BB, SA, através da apólice nº …;

E) No dia 16 de Março de 2009, pelas 18H00, o Autor no desempenho da sua atividade laboral ao serviço da sua entidade patronal, quando estava a carregar caixas com publicidade de turismo para uma camioneta deu um mau jeito no ombro direito, tendo sofrido luxação do ombro direito, que motivou que deixasse de trabalhar desde as 18H00 do dia 20/03/2009;

F) O sinistro referido em E) foi participado à Ré Seguradora, tendo o Autor sido assistido na Clínica … por contusão do ombro direito;

G) Tendo sido considerado em situação de ITA até 28/07/2009, data da alta;

H) O Autor reside no …, nº ….º, na ..., concelho da ...;

I) A Clínica … situa-se na Rua …, nº …, na …, em Lisboa;

J) Na sequência de assistência médica que lhe vinha sendo prestada na mesma, para se deslocar às consultas médicas à Clínica …., habitualmente, o Autor saía da sua casa, andava pelo menos cerca de 180 metros a pé para “apanhar” na Avenida da … a camioneta nº …, com destino a …;

K) Neste transporte nº … da LT Lisboa ia até ao termo da carreira, que é na Praça ….;

L) Aqui, saía, andava pelo menos cerca de 85 metros a pé e apanhava na Rua de … o autocarro … ou o elétrico … pois ambos dão acesso à Clínica;

M) Descia na paragem imediatamente a seguir ao Hospital Egas Moniz e caminhava pelo menos cerca de 150 metros até à Clínica;

N) Na sequência de assistência médica referida em J), no dia 17/04/2009, o Autor deslocou-se a consulta médica à Clínica …;

O) Tendo saído da sua casa por volta das 10horas, fez o percurso descrito em J) a M);

P) Foi-lhe fixado novo período de ITA até 28/04/2009, e, após a consulta, o Autor saiu da clínica;

Q) Tendo sido atropelado por um elétrico rápido, na Av. …., em Lisboa, logo após a ter saído de um autocarro da carris;

R) A Ré Seguradora recusou assumir qualquer responsabilidade relativamente ao atropelamento apesar da reclamação que lhe foi feita pelo irmão do Autor em 25 de Maio de 2009;

S) O Autor é beneficiário do Instituto da Segurança Social, I.P., com o nº ….;

T) O Instituto da Segurança Social, I.P. pagou ao Autor a quantia de € 13.108,13 a título de subsídio de doença relativo ao período compreendido entre 17/04/2009 e 13/02/2013 e pagou a quantia de 1.310,40€ a título de prestações compensatórias de subsídios de férias e natal nos anos de 2010 e 2011;

U) No local do atropelamento, a Av. 24 de Julho dispunha de duas sub-faixas de rodagem, uma delas destinada ao trânsito em geral; e, a outra, situada entre aquela e a linha do caminho-de-ferro, afeta aos transportes públicos (corredor de circulação Bus), existindo entre ambas um passeio desnivelado em altura, com cerca de 2 metros de largura;

V) No bordo desse passeio, do lado da faixa de rodagem afeta ao trânsito em geral, encontravam-se grades metálicas de proteção em contínuo, com cerca de 1,20 metros de altura;

W) A 35,15 metros para o lado Nascente em relação ao local onde se deu o atropelamento existiam, em ambas as referidas faixas de rodagem, passadeiras destinadas à travessia de peões;

X) No local das passadeiras o trânsito de veículos e peões era regulado por meio de semáforos e a grade de proteção supra referida mostrava-se interrompida por forma a possibilitar a passagem de peões para concluírem a travessia da Av. …;

Y) A faixa de rodagem do corredor da circulação “bus” dispunha de uma largura total de 6,50 metros, sendo igualmente dividida em duas sub-faixas de rodagem de sentidos contrários de marcha, delimitadas entre si por uma linha longitudinal contínua M1;

Z) Cerca de 30 metros antes da passadeira que ficou referida, atento o sentido Poente – Nascente, existia uma paragem/abrigo de transportes coletivos urbanos;

AA) O Autor teve consulta médica no dia 17/04/2009 na clínica … tendo saído dessa clínica a hora não concretamente apurada e tendo apanhado um autocarro;

BB) Por razões não concretamente apuradas o Autor saiu do autocarro;

CC) O Autor tem miopia e astigmatismo que lhe provocam um deficit visual que, mesmo após a correção com lentes, mantém uma incapacidade permanente de 75%;

DD) Antes do atropelamento, o Autor era portador de um quadro clínico “vertiginoso de etiologia indeterminada” e apresentava um quadro de queixas neuropsicológicas enquadradas no seu quadro de concussão pós-traumática, mas também integradas no seu quadro de deficit de atenção (hiperatividade e impulsividade);

EE) Em consequência do atropelamento, após ser assistido no local, o Autor foi transportado para o hospital de S. José, onde deu entrada por volta das 13,30, tendo ficado em tratamento nos cuidados intensivos;

FF) Onde foi operado à coluna e à bacia em 22 de Abril de 2009;

GG) Tendo depois sido transportado para o Hospital Amadora Sintra, onde deu entrada em 04-05-2009;

HH) O Autor tem vivido do subsídio de doença da segurança social e da ajuda monetária do seu irmão, que lhe tem vindo a entregar um valor mensal para tal efeito;

II) O Autor teve que suportar, nos dias de tratamentos às lesões decorrentes do atropelamento, despesas em transportes e alimentação em montante não concretamente apurado;

JJ) E quando o Autor se tornou visível para o guarda-freio do elétrico já este se aproximava do local a não mais de 8 metros;

KK) Apesar de circular a uma velocidade não excedente a 20 Km/h, e o guarda-‑freio ainda ter travado o elétrico, não lhe foi possível evitar o atropelamento;

MM) O Autor manteve a sua situação de incapacidade para o trabalho após o dia 13 de Fevereiro de 2012;

NN) E por isso o Instituto de segurança Social IP manteve quanto ao mesmo Autor processamento de subsídio de doença, durante o período de 14 de Fevereiro de 2012 e até 27 de Abril de 2012 no montante de 977,54 euros;

OO) E pagou ainda ao Autor prestações compensatórias de subsídio de Natal e subsídio de férias de 2012 no montante de 261,54 euros;

PP) Por decisão final proferida no apenso de fixação de incapacidade para o trabalho após realização de exame por junta médica requerido tanto pelo Autor como pela Ré, foi considerado definitivamente assente que o sinistrado em virtude do acidente de que foi vítima em 17/04/2009, sofreu as lesões descritas a fls. 223-224 com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual e incapacidade permanente parcial para todo e qualquer trabalho de 32% desde 17/04/2009 (data de consolidação das lesões), bem como o seguinte período de incapacidade temporária: ITA entre 17/04/2009 e 17/04/2010 (alta clínica), tudo como consta de fls. 232 desse apenso.”

4.2 - O DIREITO

Vejamos então as referidas questões que constituem o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([4]).

4.2.1 – Se o acórdão enferma da nulidade de omissão de pronúncia.

Entende o Ministério Público no seu parecer que não deve ser conhecida a invocada nulidade pelo facto de não ter sido cabalmente cumprido o formalismo estabelecido no art. 77º do CPT, já que não foi invocada no requerimento de interposição de recurso, mas apenas no corpo das alegações.

Vejamos.

Estabelece o art. 77º, nº 1 do CPT:

1 – A arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso.

Dispõe o art. 637º, nº 1, do CPC:

“1. Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto.”

E o art. 81º, nº 1 do CPT determina:

“O requerimento de interposição de recurso deve conter a alegação do recorrente, além da identificação da decisão recorrida, especificando, se for caso disso, a parte dela a que o recurso se restringe.”

Não oferece dúvidas de que o requerimento de interposição de recurso e as alegações constituem peças processuais diferentes, mesmo que constem do mesmo suporte físico.

Se dúvidas houvesse, bastaria lembrar o regime vigente em processo civil até às alterações introduzidas pelo DL 303/2007 de 24.08 em que o requerimento de interposição de recurso e as alegações eram apresentados em momentos processuais bem diferenciados.

Como claramente se estabelece no transcrito art. 77º, nº 1 do CPT, é no requerimento de interposição de recurso e não no corpo das alegações que a arguição das nulidades deve ser feita.

A ratio desta imposição legal prende-se com o facto do juiz que proferiu a decisão em causa poder “sempre suprir a nulidade antes da subida do recurso” (art. 77º, nº 3 do CPT). É por isso que deve constar no requerimento de interposição do recurso, o qual é dirigido ao juiz que proferiu a decisão (os recursos interpõem-‑se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida… art. 637º, nº 1, do CPC), enquanto que as alegações são dirigidas ao tribunal superior.

Sendo o requerimento omisso quanto a essa arguição, a sua exclusiva inclusão nas alegações não é atendível ([5]).

Tem sido entendimento uniforme desta 4ª Secção que a aludida omissão impede o tribunal superior de conhecer das nulidades invocadas.

Vejam-se, entre muitos outros, os acórdãos, desta secção de 12/01/2000 (Revista n.º 129/99), de 16/01/2008 (Recurso n.º 1937/07), de 16/01/2008 (Recurso n.º 2912/07), de 17/12/2009 (Proc. 343/05.7TTCSC), de 13/01/2010 (Proc. 768/07.3TTLSB-C.L1.S1), de 24/02/2010 (Proc. 1936/03.2TTLSB.S1) e de 26/01/2017 deste mesmo coletivo (Proc. 599/15.7T8CLD.C1.S1) (www.dgsi.pt), entre outros.

O Tribunal Constitucional pronunciando-se sobre as especialidades recursivas inerentes ao processo laboral, referiu: “é evidente que essa especialidade [do regime do direito processual laboral, face ao civil] não coarcta ou elimina, ou sequer dificulta de modo particularmente oneroso, o direito ao recurso que o CPT reconhece, não violando o art. 20º, nº 2, da Constituição, pois que, se o recorrente cumprir a obrigação que a lei lhe impõe de fazer a sua alegação de recurso no requerimento de interposição, o processo seguirá os seus termos" ([6]).

É do seguinte teor o requerimento de interposição do recurso:

“Exmo. Senhor

Juiz Desembargador

AA não se conforma com o acórdão proferido pela 4ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, razão por que dele vem intentar recurso para o S.T.J. O recurso tem como fundamentos:

a) O acórdão que rejeitou a apreciação da matéria de facto por considerar incumprido o estabelecido na alínea a) do artigo 640.º, n.º 1 do C.P.C.;

b) O facto de a fundamentação ou razões da decisão sobre o acidente no que respeita ao percurso interrompido ser diferente na 1ª e 2ª instâncias;

c) Por omissão de pronúncia sobre o ónus da prova.

Assim, requer-se a admissão do recurso e o seu envio para o S.T.J.

Apresentam-se as seguintes ALEGAÇÕES:

Senhores Juízes Conselheiros…”

Embora neste requerimento não qualifique a invocada “omissão de pronúncia sobre o ónus da prova” como nulidade nem a subsuma ao disposto no art. 615º do CPC, terá tal arguição que ser entendida como tal.

Temos assim que considerar que o requerimento de interposição de recurso refere que um dos seus fundamentos é a nulidade do acórdão, pese embora seja omisso quanto às respetivas razões, tarefa que relegou para a parte final do corpo das alegações onde a subsumiu ao art. 615º, nº 1, al. d) do CPC e, ainda assim, sem destacar a respetiva arguição e fundamentação das demais alegações de recurso.

É assim patente que o recorrente, ao omitir naquele requerimento a concretização da nulidade, não deu cumprimento ao disposto no art. 77º, nº 1 do CPT.

Mas será esta inobservância impeditiva do respetivo conhecimento por este tribunal?

O Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 304/2005, Processo nº 413/2004, de 8 de junho de 2005 (publicado no DR, II Série, nº 150, de 5.08.2005), julgou “inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3), com referência aos n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 77.º do Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de Novembro, na interpretação segundo a qual o tribunal superior não pode conhecer das nulidades da sentença que o recorrente invocou numa peça única, contendo a declaração de interposição do recurso com referência a que se apresenta arguição de nulidades da sentença e alegações e, expressa e separadamente, a concretização das nulidades e as alegações, apenas porque o recorrente inseriu tal concretização após o endereço ao tribunal superior”.

Tratou-se, todavia, de uma situação bem diferente da dos presentes autos.

Naquele caso, em que também, de forma expressa, se reafirmou a doutrina do referido acórdão n.º 266/93, «a manifestação do propósito de arguir a nulidade da sentença acompanha[va] a declaração de interposição do recurso (est[ava] contida no requerimento, stricto sensu), e quer a arguição de nulidades quer as alegações [foram] depois apresentadas (como na declaração dirigida ao juiz se protestara), na mesma peça, de modo distinto e com nominação expressa» (acórdão nº 304/2005).

No caso que ora nos ocupa, a arguição de nulidade e a respetiva fundamentação é feita, como se disse, na parte final das alegações e nelas inserida sem qualquer destaque identificativo e, assim, manifestamente apenas perante este Supremo Tribunal.

Por conseguinte e reafirmando a jurisprudência consolidada desta 4ª Secção, concluímos que, não tendo o recorrente cumprido o estabelecido no art. 77º, nº 1 do CPT, está este Supremo Tribunal impedido de conhecer da arguida nulidade.

4.2.2 – Se no recurso de apelação e no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto foram cabalmente cumpridos pelo recorrente os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1 al. a) do CPC.

Estabelece o art. 640º do CPC:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Referiu a Relação: «Ora, no caso em apreço, tendo em consideração as conclusões de recurso extraídas pelo Autor/apelante, quando confrontada a matéria de facto controvertida constante da base instrutória oportunamente organizada no processo com a decisão que sobre a mesma recaiu após audiência de discussão e julgamento, verificamos que aquele nem sequer indicou quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não dando, portanto e desde logo, cumprimento ao estabelecido na alínea a) do mencionado normativo legal.

Assim, ainda que nas conclusões de recurso e no corpo da respetiva alegação se possa, de alguma forma, considerar que o Autor/apelante deu cumprimento ao disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1, bem como ao estipulado no n.º 2 al. a) do referido preceito legal, não poderemos deixar de rejeitar o recurso quanto à impugnação de matéria de facto e isto por força do estabelecido em tal normativo.»

Nos presentes autos, em cumprimento do disposto no art. 131º, nº 1, al. d) do CPT, no despacho saneador procedeu-se à seleção da matéria de facto relevante para a decisão da causa tendo-se organizado a respetiva base instrutória.

Analisadas as alegações que o A. produziu na apelação constata-se que em parte alguma das mesmas é feita a menor referência aos “quesitos” da base instrutória que entende terem sido incorretamente julgados sendo certo que o tribunal da 1ª instância proferiu a decisão sobre a matéria de facto por referência a cada um dos “quesitos” da base instrutória.

Após transcrever parcialmente os depoimentos sublinhando as passagens que entendia relevantes e a merecerem reapreciação, o A. nas alegações limitou-‑se a consignar: “Concluindo: também pelos depoimentos do declarante e das testemunhas deve ser alterada a matéria de facto, dando-se como provado que o caminho utilizado foi o que sempre fez, ou seja, o acidente ocorreu no trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador quando regressava da clínica para a sua residência” e, mais adiante: “Concluindo: pelos depoimentos das testemunhas cuja transcrição se fez, deve ser alterada a matéria de facto sobre a interrupção do percurso, considerando antes que a interrupção deve ser considerada atendível, tendo em conta as regras da experiência, aquela pessoa, com o quadro clínico descrito [e] as demais circunstâncias do acidente, mormente ser facto que só a própria pessoa podia testemunhar, pela sua pessoalidade; trata-se, assim, de uma situação típica de prova por presunções, ou seja, concluindo os factos desconhecidos dos que conhecidos e provados”,

E nas 2ª e 5ª conclusões reproduz “ipsis verbis” as transcritas inferências.

É assim claro que o A. não especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem por referência aos concretos quesitos da base instrutória nem por referência aos concretos artigos dos articulados em que os factos foram alegados.

Face a tal, conclui-se que não merece censura a decisão da Relação de não conhecer do recurso no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

4.2.3 – Se face à declaração do representante da ré seguradora constante no auto de conciliação “… não obstante aceitar que o sinistrado se deslocava no trajecto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência…”, deve dar-se como provado que o acidente ocorreu no trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado na sua deslocação da clínica para a sua residência.

Consignou-se no “auto de conciliação”: “…pela representante da seguradora foi dito que a seguradora não aceita qualquer responsabilidade pelo alegado acidente dos autos ocorrido em 17/04/2009, dado que, não obstante aceitar que o sinistrado se deslocava no trajecto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência, considera que o trajecto foi interrompido indevidamente”.

Dispõe o art. 131º, nº 1, al. c) do CPT: “1 - Findos os articulados, o juiz profere, no prazo de 15 dias, despacho saneador destinado a:

(…)

c) Considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados;”

A questão que se coloca é a de saber se aquela declaração de aceitação de “que o sinistrado se deslocava no trajecto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência”, impede que se discuta na fase contenciosa qual o trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado e se o acidente ocorreu nesse trajeto.

O CPT aprovado pelo Decreto-Lei nº 45 497, de 30.12.1963 (CPT/63) dispunha no seu art. 108º: “Dos autos do acordo constarão, além da identificação completa das partes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente ou doença e dos fundamentos de facto que servem de pressuposto aos mesmos direitos e obrigações, por forma a habilitar o juiz com os elementos necessários à apreciação do acordo”.

E dispunha este mesmo diploma no seu art. 109º, nº 1, que “Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto serão consignados os pontos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente ou doença, da relação de causalidade entre a lesão ou doença e o acidente, do ordenado ou salário do sinistrado ou doente, da entidade responsável e do grau de incapacidade atribuído”.

O CPT aprovado pelo Decreto-Lei 272-A/81 (CPT/81) de 30 de setembro reproduziu sem alterações no seu artigo 113º, o art. 108º do CPT/63.

Já relativamente ao conteúdo dos autos na falta de acordo estabeleceu no art. 114º, nº 1: “Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto serão consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se o houve ou não acerca da existência e caracterização do acidente ou doença, da relação entre a lesão ou doença e o acidente, da retribuição do sinistrado ou doente, da entidade responsável e do grau de incapacidade atribuído”.

Prescreve o art. 111º do CPT ora em vigor: “Dos autos de acordo constam, além da identificação completa dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.”

E para o caso de falta de acordo determina o art. 112º, nº 1: “Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.”

Deste breve excurso ressalta com clareza que enquanto o CPT/63 se referia que no auto de não conciliação serão consignados os pontos sobre os quais tenha havido acordo, os diplomas seguintes passaram a referir-se aos factos sobre os quais tenha havido acordo, exigindo-se agora a concretização e consignação dos factos não se bastando com os pontos, questões ou conceitos qualificadores do acidente como de trabalho indemnizável.

Por conseguinte importa saber se “o trajeto normalmente utilizado” é facto ou se constitui matéria conclusiva como entendeu a Relação.

Referiu-se no acórdão revidendo:

«Verifica-se, portanto, que, para além de a afirmação feita pela representante da Ré seguradora no auto de tentativa de conciliação a que se alude no art. 108º do C.P.T. de que «… não obstante aceitar que o sinistrado se deslocava no trajecto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência…» se apresentar de cariz meramente conclusivo, o certo é que, face ao que o Autor havia referido nas declarações que produzira na fase conciliatória do processo – quer na participação do sinistro efetuada em 14/04/2010, quer no mencionado requerimento de 07/10/2010 – em termos do trajeto que efetuava entre a clínica … e a sua residência, quando comparado com o trajeto a que a Ré seguradora se reporta nos artigos 13º a 17º da sua contestação e que, pelos vistos considerava ser o trajeto habitualmente feito pelo sinistrado e aqui Autor entre a sua residência e a referida clínica e vice-versa, não poderemos deixar de concluir serem perfeitamente distintos um do outro, razão pela qual, ainda que se considerasse não ser de cariz meramente conclusivo a aludida afirmação da representante legal da Ré seguradora no referido auto de tentativa de conciliação, de forma alguma poderíamos concluir pela existência de acordo entre as partes quanto ao trajeto que habitualmente seria feito pelo sinistrado entre a sua residência e a clínica … mormente quanto ao trajeto de regresso à sua residência vindo desta clínica.

Não assiste, pois, razão ao Autor/apelante quando pretende que se consigne como matéria de facto provada a de que «…o sinistrado se deslocava no trajeto normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência…», dado que, frisa-se, se não trata de matéria em que se vislumbre acordo entre as partes resultante do mencionado auto de tentativa de conciliação, para além de se apresentar de cariz conclusivo.»

Cremos não oferecer dúvidas de que “facto” é um acontecimento da vida real, algo que é observável e constatável sem necessidade de trabalho dedutivo.

E sob este prisma, aquela declaração não versa sobre um facto. Efetivamente para saber se o A. se deslocava utilizando o trajeto que normalmente utilizava, era necessário saber, em primeiro lugar, qual o concreto percurso que costumava fazer, designadamente quais os transportes públicos que utilizava, por onde passavam e, sobretudo, se o faziam pelo local onde ocorreu o acidente e, em segundo lugar, se no dia do acidente o A. efetuou esse mesmo percurso.

Concordamos assim, com a posição assumida pela Relação no entendimento de que não estamos perante um facto mas perante matéria conclusiva.

Aliás o mesmo se passa com a declaração comumente consignada nos autos de (não) conciliação sobre a caracterização do acidente.

Sobre o valor deste “acordo” decidiu-se no acórdão desta secção de 14/12/2006, processo 06S789 (Vasques Dinis) (in www.dgsi.pt):

«I - O acordo ou desacordo dos interessados que deve constar do auto na tentativa de conciliação realizada perante o Ministério Público na fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho é o que incide sobre factos, e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas (arts. 111.º e 112.º do CPT).

II - A mera aceitação, na tentativa de conciliação, da qualificação de um sinistro como acidente de trabalho, não obsta a que se discuta a caracterização do acidente na fase contenciosa do processo.

III - Deve conhecer-se contenciosamente da matéria de facto alegada na contestação da acção, não obstante a declaração efectuada na fase conciliatória de que se aceitava a existência e caracterização do acidente como de trabalho, desde que na fase conciliatória as partes se não tenham pronunciado sobre os factos que na fase contenciosa vêm alegar "ex novo", susceptíveis de determinar a exclusão do âmbito reparador da lei de acidentes por se enquadrarem na hipótese do art. 8.º da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro (LAT).

(…)»

Em suma, tratando-se de matéria conclusiva, aquela declaração consignada no auto de (não) conciliação, porque não incide sobre facto, não impede que na fase contenciosa se discuta se o acidente ocorreu no trajeto normalmente utilizado.

Assim, ao contrário do pretendido, não se impunha que o tribunal considerasse provado que aquando do acidente o sinistrado se deslocava no percurso normalmente utilizado por si na viagem entre os serviços médicos da seguradora e a sua residência.

Refere finalmente o recorrente que competia à Ré provar que o A. interrompeu esse percurso e que esta interrupção ocorreu sem causa justificativa.

Dado porém que não se provou que o acidente ocorreu no trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado, mostra-se prejudicada a apreciação de tal questão.

6 - DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Não conhecer da arguida nulidade de omissão de pronúncia.

2 - Negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

3 – Condenar o recorrente nas custas da revista.

Anexa-se o sumário do acórdão.

Lisboa, 11.05.2017

Ribeiro Cardoso (Relator)

Ferreira Pinto

Chambel Mourisco

_____________________
[1] Relatório elaborado tendo por matriz o constante no acórdão recorrido.
[2] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico) em que se manteve a original.
[3] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[4] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247, ex vi dos arts. 663º, n.º 2, 608º, n.º 2 e 679º do CPC.
[5] Cfr. Acórdãos do STJ de 28/1/98, in Acórdãos Doutrinais, 436, 558; de 12/01/2000, Revista n.º 129/99; de 28/5/97, in BMJ 467, 412; de 8/02/2001 e 24/06/2003, in www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do TC nº 266/93, de 30 de Março de 1993, proc. 63/92, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19930266.html