Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
970/18.2T8PFR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
LIMITES DA CONDENAÇÃO
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
CASO JULGADO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. As regras da interpretação dos negócios jurídicos são aplicáveis à interpretação das sentenças enquanto actos jurídicos. Daí que uma sentença judicial (por via do estatuído no citado artº 295º) deve ser interpretada à luz do artº 236º, ambos do Código Civil.

II. A liquidação da sentença destina-se, tão somente, a ver concretizado o objecto da sua condenação (genérica), mas respeitando sempre (ou nunca ultrapassando) o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar. Ou seja, a liquidação tem, forçosamente, de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença, não podendo contrariar esse julgado, nomeadamente, corrigindo-o.

III. O incidente de liquidação não pode culminar na negação de um direito anteriormente firmado por sentença. Sendo que, neste domínio, a única questão em aberto é a da medida da liquidação e nunca a existência do direito respectivo.

IV. Se, mesmo após a iniciativa oficiosa, a prova produzida em tal incidente for insuficiente para fixar a quantia devida, deverá o juiz, como última ratio, recorrer à equidade a fim de se lograr fixar aquele quantitativo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO


Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de … e Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de …, intentaram ação comum contra AA e BB, CC e DD.

Pediram a condenação de todos os réus a:

A) Reconhecerem o direito de propriedade exclusiva, em comum e partes iguais, das autoras sobre a totalidade dos prédios rústicos e urbanos, melhor identificados no art. 1.º da petição, incluindo a parcela em litígio (...);

B) A entregarem às autoras a parcela de terreno com a área de 1.144 m2, melhor assinalada na referida planta (...);

C) A pagarem às autoras os prejuízos causados com a ocupação abusiva e sem título da parcela de terreno supra referida, com a área de 1.144 m2, desde a data da citação e até efetiva entrega, correspondente ao seu valor locativo e a liquidar em execução de sentença (...).


Alegaram, em síntese, serem proprietárias do prédio que identificam, que inclui a parcela em litígio, mas que os réus invocaram ser sua.


Os réus contestaram, mas não pagaram o complemento da taxa de justiça devido pelo aumento do valor da ação nem as respetivas sanções.


A fls. 123/125 foi proferido despacho no qual, e além do mais, se determinou a notificação das autoras “para se pronunciarem, querendo, sobre a eventual ineptidão do pedido formulado na a. c) por falta de causa de pedir, uma vez que a formulação de pedidos genéricos não dispensa o autor de alegar os factos que relevam a existência e extensão dos danos, apenas lhe permite que não indique a importância exata em que os avalia, e as autoras nada disseram sobre os prejuízos causados com a alegada ocupação abusiva”.


Na sequência, a 4.02.2019, as autoras, a fls. 127/134, apresentaram articulado onde ampliama matéria de facto alegada, maxime quanto ao ponto referido em terceiro lugar, referente à alínea c) do pedido[1].


Por despacho de fls. 157/161, foi fixado o valor da causa (978.000,00€) e, por “incompetência em razão do valor” os autos foram remetidos à Instância Central.


Realizada uma tentativa de conciliação que resultou frustrada (fls. 173), por despacho proferido a fls. 174/176, foi ordenado o desentranhamento da contestação e da reconvenção e foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, aperfeiçoamento esse que tinha como objeto (apenas) o pedido de reconhecimento da propriedade. As autoras corresponderam a tal convite (fls. 177/178) e juntaram documentos (fls. 184/293) e ainda replicaram (fls. 297/450). Os réus foram notificados do aperfeiçoamento e deduziram oposição, mas, por despacho de fls. 463, entendeu-se que a oposição estava sujeita ao pagamento da taxa de justiça. No entanto, à semelhança do que sucedeu com a contestação, os réus não pagaram a taxa de justiça devida nem os seus acréscimos legais e foi determinado o desentranhamento daquele articulado de oposição (fls. 470).


Na mesma ocasião (fls. 470 e ss.) ficou escrito: “porque não foi deduzida nenhuma ampliação admite-se a ampliação da causa de pedir efetuada pelas autoras a fls. 127 a 134 dos autos, nos termos do art. 264.º do CPC” e foi proferida sentença[2] com o seguinte

“Dispositivo:

Pelo exposto, julgando-se a acção totalmente procedente, decide-se:

a) Condenar todos os RR. a reconhecerem o direito de propriedade (...)

b) Condenam-se todos os RR. a entregarem às autoras a parcela de terreno (...)

c) Condenam-se todos os RR. a pagarem às autoras, os prejuízos causados com a ocupação abusiva e sem título, da parcela de terreno supra referida, com a área de 1.144 m2, desde a data da citação e até efetiva entrega, correspondente ao seu valor locativo e a liquidar em execução de sentença.

No mais peticionado, absolvem-se os réus do pedido de condenação como litigantes de má-fé”[3].


Transitada a sentença e contados os autos, vieram as autoras, por requerimento de Março de 2021, “nos termos das disposições conjugadas dos artigos 358 n.º 2, 359, n.º 1, 360, n.º 3 e 4 e 609, n.º 2, todos do C.P. Civil, deduzir o presente incidente de liquidação de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais e, pedindo a sua admissão liminar e a renovação da instância, que “os réus sejam condenados a pagarem às autoras, como reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por estas, com a conduta ilícita daqueles, a quantia total de 117.800,00€, liquidados até 5 de março de 2021”.


A fundamentar a pretensão de liquidação, dizem: por sentença, já transitada, foram os ora réus, condenados a pagarem, às ora autoras, os danos patrimoniais e não patrimoniais, causados pela sua conduta ilícita e dolosa, consubstanciada na posse abusiva e sem título da parcela de terreno, melhor identificada na petição inicial da ação declarativa, contados desde a citação e até à sua entrega real e efetiva; acontece que os réus não entregaram a dita parcela, até à data (5.03.2021), apesar das diligências feitas na pessoa do seu mandatário, e nem pagaram os danos patrimoniais e não patrimoniais causados. Os danos patrimoniais, contados desde a data da citação para a ação declarativa (19.07.2018), pelo menos quanto ao corréu AA, até à data da propositura desta liquidação de indemnização, maxime, pelo dano da privação do uso e indisponibilidade da venda do ativo “Quinta..., ...€. Na verdade, sendo o valor venal ou de mercado da “Quinta..., ...€, a imobilização forçada deste ativo, por parte das autoras, durante mais de dois anos e meio, causou-lhes, para já, maxime, até esta data, um prejuízo de 97.800,00€, correspondente à imobilização do capital investido, que deve ser remunerado à taxa de juro legal de 4% ao ano, pois a posse abusiva, por parte dos réus, impediu a venda não só do art. Rústico n.º ….96, com a área de 57.000 m2, como de toda a Quinta, que constitui uma unidade económica, sendo o seu valor de mercado muito superior à soma das suas parcelas, e só pode ser vendida ou arrendada em conjunto. Quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelas autoras no período temporal referido, nas pessoas dos titulares dos seus órgãos sociais, no exercício e por causa do exercício das suas funções, consubstanciados, maxime, em ansiedade, receio fundado em insolvência, agravamento da dificuldade e ou impossibilidade de honrar os compromissos assumidos, perante os credores e tribunal, bem como de cumprirem o seu objeto social, computa-se, como parcimoniosa, para repará-los, a quantia de 20.000,00€, sendo de 15.000,00€ a atribuir à autora Irmandade, dado o especial agravamento do dano , atenta a sua debilidade financeira e estar sob custódia judicial e de 5.000,00€ à autora Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de …. . As autoras vão instaurar execução de sentença para entrega da parcela, dado os réus não o terem feito até esta data, liquidando-se o remanescente dos danos patrimoniais causados, nestes autos e logo que a mesma seja efetuada, em ampliação do presente pedido.


Os réus deduziram oposição. Sustentam que no incidente de liquidação “não poderá ser englobada a indemnização por danos não patrimoniais por extravasar os limites da condenação proferida”, e, quanto aos danos patrimoniais, que se referem à privação do uso, nenhum prejuízo real ficou demonstrado e, além disso, as autoras não esclarecem como chegam ao valor pretendido, que só pode padecer de lapso de cálculo, conduzindo a uma quantia desproporcional, face à parcela em litígio, dessa forma sustentando a improcedência da liquidação.


Foi proferido despacho (fls. 528 e ss.) que absolveu os requeridos/réus da instância incidental, com o seguinte teor:

O Tribunal entende que o requerimento inicial/petição do incidente de liquidação padece de ineptidão parcial, no que se refere à liquidação do dano patrimonial. Na sentença, a única condenação genérica que foi decretada e que importa liquidar é a seguinte: “(...) CONDENAM-SE todos os RR. A PAGAREM ÀS AUTORAS, OS PREJUIZOS CAUSADOS COM A OCUPAÇAO ABUSIVA E SEM TÍTULO, DA PARCELA DE TERRENO SUPRA REFERIDA, COM A ÁREA DE 1.144 M2, DESDE A DATA DA CITAÇAO E ATÉ EFETIVA ENTREGA, CORRESPONDENTE AO SEU VALOR locativo e A LIQUIDAR EM EXECUÇAO DE SENTENÇA.” Ora, a liquidação da indemnização refere-se, apenas e tão só, ao valor locativo, designadamente mensal, da parcela de 1.144 m2 multiplicado pelo número de meses de ocupação, desde a data da citação para a acção declarativa e até efetiva entrega da parcela. Na verdade, estes são os limites do caso julgado material e formal da sentença proferida. A este propósito, as autoras limitam-se a concluir que tiveram um prejuízo de €97.800,00 sem que tivessem alegado os pressupostos de facto dessa conclusão enquadrados por aqueles limites, a saber: o valor locativo da parcela ou, não sendo possível o seu arrendamento parcial, o valor locativo da totalidade do prédio, alegando-se de seguida a área total do prédio e procedendo-se a uma proporção. Não interessa alegar o valor venal da Quinta, porquanto os termos do cálculo pela privação do uso já foram determinados na sentença e não poderão ser outros. Assim, conclui-se que nenhum facto relevante foi alegado para suportar a conclusão de que o prejuízo ascendeu a €97.800,00, o que se reconduz à falta de causa de pedir no que se refere à liquidação do dano patrimonial, nos termos do art. 186, n.º 2, al. a), do CPC. E, por outro lado, da oposição deduzida sequer se pode concluir que os réus interpretaram convenientemente o requerimento inicial de liquidação, não resultando daquela oposição os pressupostos de facto de qualquer outro valor indemnizatório, mas apenas os critérios abstratos que poderão conduzir à quantificação dessa indemnização. A exceção dilatória de ineptidão parcial é insanável, obsta à apreciação do mérito da liquidação no que se refere ao dano patrimonial e conduz à absolvição parcial da instância dos réus, no que se refere àquele dano patrimonial cfr. arts. 278, n.º 1, al. e), 576, n.º 2, e 577 do CPC), o que tudo se determina.

No que se refere ao dano não patrimonial reclamado, o requerimento inicial de liquidação padece, também, de um vício processual configurável como uma exceção dilatória atípica e insuprível, a saber: Não houve condenação genérica no que se refere a danos não patrimoniais, pelo que nada há a liquidar a este título. Assim, o pedido é um pedido novo e não a liquidação da sentença proferida. Deste modo, existe uma desadequação, formal e substancial, entre a causa de pedir e pedido apresentados no que se refere a danos não patrimoniais e a causa de pedir e pedido legalmente admissíveis no incidente de liquidação da sentença. O mesmo é dizer que se verifica uma desadequação, formal e substancial, da causa de pedir e do pedido apresentados pelas requerentes e a natureza do próprio incidente deduzido, tornando-o inadmissível para alcançar o fim proposto pelas requerentes e imprestável para alcançar o fim legítimo deste tipo de incidente, ou seja, dar liquidez à condenação genérica. Este vício é insuprível, porque no presente incidente não é legítimo liquidar danos novos não abrangidos pela condenação genérica. Tem natureza dilatória, obstando ao conhecimento do seu mérito, e implica a absolvição dos requeridos da instância incidental remanescente (cfr. arts. 278, n.º 1, al. e), 576, n.º 2, e 577 do CPC), o que se determina”[4].


Inconformadas, as autoras apelaram, pretendendo que fosse revogada a decisão recorrida, “ordenando-se o prosseguimento dos autos, para quantificação da indemnização devida às autoras, quer a título de danos patrimoniais quer não patrimoniais, sem prejuízo de poderem fixar, caso o entendam por bem, desde já, a indemnização por dano patrimonial, na quantia peticionada, prosseguindo os autos dos danos não patrimoniais”.


A Relação do Porto proferiu acórdão que concluiu com o seguinte

«“Dispositivo

Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação e, em conformidade, confirmando-se o decidido no que respeita aos danos não patrimoniais, convidam-se as apelantes a, no prazo de 20 dias contados da baixa dos autos à primeira instância (de que deverão ser notificadas), completarem/concretizaram a sua petição de liquidação no que respeita aos danos patrimoniais sofridos com a ocupação da parcela de terreno, alegando os factos dos quais resulte o valor locativo (correspondente à privação do uso) da aludida parcela, entre a data de citação que invocam e a data de instauração da liquidação.»[5].


De novo inconformadas, vêm as AA interpor recurso de revista (que denominam de “REVISTA EXTRAORDINÁRIA” - obviamente que se não referem a revista excepcional, dada a inexistência de dupla conforme. Pretendem, sim, é a interposição da revista normal, com sustento na invocação da ofensa do caso julgado, como se extrai da citação que fazem dos arts. “629º, nº2, al. a), in fine e artº 671º, nº2, al. a), ambos do C.P.Civil”).


Rematam as suas alegações[6] com as seguintes

«CONCLUSÕES

A) As Autoras e ora recorrentes, dão como reproduzida, por uma questão de economia e celeridade processual, tudo quanto foi alegado supra.

B) As autoras e ora recorrentes, em seu requerimento de 4 de Fevereiro de 2019, na sequência de convite do Tribunal, a folhas, 127 a 134, dos autos principais, MODIFICARAM, SIMULTÂNEAMENTE, A CAUSA DE PEDIR E PEDIDO FORMULADO, no referente ao pedido INICIAL de condenação dos Réus, formulado na alínea C) da petição inicial.

C) Por douto despacho, proferido na ação principal, datado de, 6 de Fevereiro de 2020, foi ADMITIDA a dita modificação do pedido e causa de pedir.

D) A dita modificação, simultânea, do pedido e causa de pedir, era, então, legalmente, admissível.

E) Por outro lado, tal modificação simultânea do pedido e causa de pedir, NÃO interferia no valor processual da causa.

F) A folhas 5 (CINCO), da douta sentença da primeira instância, foi admitida a modificação, simultânea, do pedido e causa de pedir, suscitada, a folhas, 127 a 134, nos termos do artigo 265 n. 6 do C.P.C., o que supria e considerava como prejudicada, a questão apontada no despacho de folhas, 123 a 125.

G) Em sede de fundamentação, da matéria de facto, da douta sentença, proferida e datada de 6 de Fevereiro de 2020, foi dito que se consideravam, PROVADOS, todos os factos elencados nos pontos, 1 a 28 (UM A VINTE E OITO), que, por brevidade, aqui se dão, por integralmente, reproduzidos.

H) Resulta, pois, da douta sentença da primeira instância, já transitada, que a factualidade, dada como provada, como causa de pedir da ação, para o caso que agora nos interessa, (pedido de condenação dos Réus, pelos prejuízos causados pela ocupação abusiva da parcela com 1.144 m2), foi a constante dos pontos, 11-12-19-20-21-22-23-24-25-26- 27 e 28.

I) Ora, como já consta das alegações de recurso, para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, nos pontos 10 a 15, bem como, é doutrina e jurisprudência, maioritária e recente, “ Não é, a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo; o caso julgado, incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.(..) Essa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada”.

J) Ou seja, resulta claro, que a factualidade constante do requerimento das autoras/recorrentes, datado de 4 de Fevereiro de 2019, ADMITIDA POR ACORDO e depois levada à fundamentação da matéria de facto da douta sentença proferida, fez parte do juízo decisório e do iter cognitivo do julgador, pelo que está coberta pelo caso julgado.

K) Caso seja de manter, o doutamente decidido, no acórdão recorrido, o que NÂO se aceita, mas se acautela, sempre o seu cumprimento, implicaria, que as autoras tivessem de reproduzir toda a factualidade já alegada no seu requerimento de 4 de Fevereiro de 2019, violando, assim, no modesto entendimento destas, o caso julgado material, anterior, já formado, para desprestigio do Tribunal e da Justiça.

L)  Ou seja, o pedido de condenação dos Réus, formulado, inicialmente, na alínea C) da petição inicial e depois, ipsis verbis, na alínea C) da douta sentença, da ação principal, já transitada, tem de ser integrado com a factualidade constante da modificação, simultânea, do pedido e causa de pedir, efetuada, por requerimento de 4 de Fevereiro de 2019, depois, ADMITIDA POR ACORDO e parte integrante da fundamentação da sentença e coberta pelo caso julgado.

M) Também, como flui do requerimento das autoras, datado de 4 de Fevereiro de 2019, máxime, artigos, 19-20-21 e 22, foi alegado um DANO NÂO PATRIMONIAL, digno de tutela jurídica, o qual, foi, do mesmo modo, ADMITIDO POR ACORDO, sendo certo que fez parte do juízo decisório e do iter cognitivo do Tribunal, pelo que tal matéria de facto, tem de haver-se, do mesmo modo, coberta pelo caso julgado, MATERIAL, IMPLÍCITO, formado pela douta sentença da primeira instância, datada de 6 de Fevereiro de 2020.

N) As autoras e ora recorrentes, NÂO estavam vinculadas, sob pena de PRECLUSÂO, a RECLAMAREM e ou RECORREREM, da douta sentença da primeira instância, nada impedindo, que o conteúdo e alcance do caso julgado, implícito, seja, agora, em sede de LIQUIDAÇAO, INCIDENTAL, trazido à colação, para julgamento, pois se trata, de uma questão de direito e de conhecimento oficioso.

O) Conclui-se, assim, salvo sempre, melhor entendimento, que se verificou, caso julgado, material, implícito, na sua vertente POSITIVA, quanto à factualidade constante do requerimento das autoras/recorrentes, datado de 4 de Fevereiro de 2019, estando, esta matéria de facto, coberta pelo caso julgado, material, formado na douta sentença, proferida, NÂO podendo a mesma ser NOVAMENTE, alegada, discutida e ou valorada por este e ou outro Tribunal, sob pena de se contradizer e ou reproduzir.

P) Mal andaram, pois, quer o douto despacho de absolvição dos Réus da Instância e acórdão recorrido, ao violarem o caso julgado, material anterior, formado pela douta sentença, datada de 6 de Fevereiro de 2020, ao NÂO valorarem a factualidade alegada pelo requerimento das autoras /recorrentes, datado de 4 de Fevereiro de 2019.

Q) O incidente suscitado, tem causa de pedir e pedido, estando em condições de prosseguir seus regulares termos, tendo a liquidação operada, fundamento legal, máxime, a coberto do requerimento datado de 4 de Fevereiro de 2019, sob pena, de, caso, assim, se NÂO entenda, de o Tribunal se ver confrontado, com uma CONTRADIÇÃO e ou REPETIÇÂO de matéria de facto, violadora do caso julgado anterior.

R) A douta decisão proferida, ao absolver os Réus/requeridos, da instância, bem como o douto acórdão recorrido, ao NÂO VALORAREM, a factualidade constante do requerimento, das, então, Autoras, datado de 4 de Fevereiro de 2019, VIOLARAM O CASO JULGADO, MATERIAL, ANTERIOR, IMPLÍCITO, formado pela douta sentença proferida e datada de 6 de Fevereiro de 2020, já transitada em julgado.

S) As autoras e ora recorrentes, deduziram o incidente de liquidação de danos, causados, pela ocupação abusiva da dita parcela de terreno, correspondentes ao seu valor LOCATIVO, no pressuposto, de que a factualidade alegada no seu requerimento de 4 de Fevereiro de 2019, estava COBERTA, pelo caso julgado, ANTERIOR, formado pela prolação da douta sentença, datado de 6 de Fevereiro de 2020, já, transitada.

T) Verifica-se, pois, in casu, a violação de caso julgado, anterior, quer por parte do Tribunal de primeira instância, quer pelo Tribunal da Relação do Porto, ao NÂO valorarem, o requerimento das autoras, datado de 4 de Fevereiro de 2019, ou melhor, IGNORANDO-O, o que urge reparar.

U) Violaram, assim, o douto despacho da primeira instância de 19 de Abril de 2021 e douto acórdão, recorrido, datado de 4 de Outubro de 2021, por erro de subsunção, o disposto nos artigos, 580 e 621, ambos do C.P.CIVIL, quanto ao conteúdo e alcance do caso julgado, MATERIAL, ANTERIOR, já formado.


Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Ex.as, doutamente, suprirão, deve o presente recurso de revista, ser ADMITIDO e a final, julgado procedente, por provado, REVOGANDO-SE, quer o douto despacho que absolveu os Réus/requeridos, da presente instância, INCIDENTAL, bem como o douto acórdão recorrido, ordenando-se, em consequência, o regular prosseguimento dos autos INCIDENTAIS, atenta, a alegada, VIOLAÇÂO DE CASO JULGADO,MATERIAL, IMPLÍCITO, ANTERIOR, formado com a prolação da douta sentença, datada de 6 de Fevereiro de 2020, já transitada em julgado, ao NÂO valorarem a factualidade constante do requerimento das Autoras e ora recorrentes, datado de 4 de Fevereiro de 2019, coberta pelo caso julgado, tudo com as legais consequências, pois, SÓ, assim, será efetuada, a costumada,

JUSTIÇA».


Não foram apresentadas contra-alegações.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


**


Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão suscitada (e a decidir) consiste em:

Saber se, quer a decisão da 1ª instância, prolatada no presente incidente de liquidação (que absolveu os RR da instância), quer o posterior acórdão da Relação que, em recurso, sobre ela incidiu, “ao não valorarem o requerimento das Autoras de 4 de fevereiro de 2019” (nas palavras das recorrentes e segundo elas), violaram o caso julgado formado pela sentença (transitada em julgado - proferida em 6 de fevereiro de 2020) onde corre o incidente de liquidação, e se deve ordenar-se o regular prosseguimento dos presentes autos incidentais.

III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. FACTOS PROVADOS


Sem embargo da demais factualidade já constante do relatório supra, é a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença que se pretende liquidar[7]:

“(...) 11 - A referida parcela de terreno, com a área de 1.144 m2, é e sempre foi parte integrante da “Quinta...”, mais propriamente é e sempre foi parte integrante do prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de .../..., concelho de ..., no ... (...)

12 - A referida parcela de terreno com área de 1.144 m2, como parte integrante da referida “Q...”, sempre foi agricultada, maxime, lavrada, semeada e colhidos os respetivos frutos civis e naturais, maxime, rendas, produtos hortícolas, como o milho, batata e feijão, pelos antepossuidores das autoras, maxime, através dos respetivos arrendatários, como o Sr. EE, já falecido, este ao longo de mais de 40 anos. (...)

19 - A parcela, com a área de 1.144 m2, de acordo com o Plano Diretor Municipal, em vigor nesta data, tem capacidade construtiva, sendo certo que o respetivo índice é de 0,8 com uma profundidade de 50 metros a contar da via pública, atual rua 21 de junho.

20 - A aptidão construtiva é de nível 3 e para qualquer fim, quer seja habitacional, industrial ou comercial, com r/c e mais dois pisos, pelo que, in casu, a área bruta de construção é de 915,20 m2.

21 - O preço médio de terreno para construção urbana, com a densidade supra referida, na freguesia de ..., é da ordem dos €30,00, o m2.

22 – As autoras estão impedidas não só de venderem a parcela em litígio, o que é essencial para prosseguirem os seus fins estatutários, como de usufruírem do rendimento do capital aí investido, o qual podia ser aplicado noutro ativo, posto a render ou em amortização de dívida.

23 - A parcela de terreno ora em litígio faz parte integrante do prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de ....., no artigo.....96 e não pode ser vendida em separado, dado não ter autonomia jurídica, fiscal e económica, o que implica que todo este terreno fique imobilizado.

24 - As autoras têm necessidade de venderem toda a propriedade denominada “Quinta...”, de que o artigo …96 faz parte integrante, para fazerem face a pagamentos inadiáveis e por isso é que a mandaram avaliar e fazer o respetivo levantamento topográfico, o que é do conhecimento dos réus.

25 – A coautora, Irmandade da Santa Casa da Misericórdia ..., tem, atualmente, um passivo elevado e foi alvo de um pedido de insolvência, por parte do credor, Ex. Sr. OO, o qual deu origem ao processo n.º 1006/16.... (...).

26 - Para evitar a eventual procedência do pedido de insolvência, a coautora, Irmandade, teve que requerer um Processo Especial de Revitalização, ao qual coube o n.º 40/17.... Juiz-…, que correu termos pela ... de ..., tendo sido aprovado por sentença homologatória, já transitada, o respetivo plano de recuperação, que ordenou a venda dos ativos imobiliários, dentre os quais a “Q...”, para pagar as dívidas reconhecidas e aprovadas aos credores, numa percentagem de 80% do produto da venda.

27 - O remanescente do terreno que compõe o artigo rústico n.º …96, é composto, em parte, pelo menos um terço, por solo urbanizável, tal qual a densidade supra referida em relação à parcela em litígio, maxime, na parte do lado nascente e que confronta com a atual rua 21 de junho.

28 - O valor venal ou de mercado, da propriedade denominada “Quinta...”, no seu conjunto, é superior à soma das partes que a compõem, dado constituir uma unidade económica, apta para turismo de habitação ou em espaço rural, pois tem área urbana já edificada e urbanizável, maxime, para habitação, área florestal e agrícola, tendo sido avaliada no âmbito do P.E.R. com o valor de mercado de 978.000,00€”.



**



III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO


Como ressalta à saciedade das alegações recursórias, as recorrentes fazem girar toda a sua “argumentação” à volta duma alegada ignorância/omissão, por banda da sentença recorrida, da factualidade que verteram no seu requerimento de 4.02.2019 (nos autos principais), factualidade que fora incluída na fundamentação de facto da sentença proferida nesse processo principal e que, como tal, (dizem as Recorrentes) faz parte ou está coberta pelo caso julgado material formado (“na sua vertente positiva, pelo menos de forma implícita”) na parte dispositiva da sentença.

Assim, rematam as Recorrentes que tal factualidade, porque alegada naquele requerimento de 4.2.2019, “não tinha nem podia ser alegada no incidente de liquidação suscitado, já que provada”, pois faz parte do juízo decisório e do iter cognitivo da sentença: como tal, não podiam as Recorrentes ter sido (como foram) absolvidas da presente instância incidental, por falta de causa de pedir (quanto ao pedido de indemnização pela ocupação abusiva da parcela de terreno com 1.144 m2 – relativamente ao decidido na al. c) do dispositivo da sentença, que aqui está em causa).


Apreciando.


Em crise está, assim, o despacho (de 19.04.2021) proferido no incidente de liquidação que, considerando que a única condenação genérica que foi decretada e que importava liquidar era a referida na al. c) do dispositivo da sentença de 6.02.2010[8], absolveu os RR da instância por ter considerado que as AA, no que se reporta ao valor locativo da parcela em causa e que importava liquidar, se limitaram a concluir que tiveram um prejuízo de €97.800,00 “sem que tivessem alegado os pressupostos de facto dessa conclusão”.

Insurgem-se as Recorrentes – tal como já haviam feito na apelação – contra esta decisão, na medida em que consideram que a factualidade pertinente e que tinham de alegar para o prosseguimento do incidente de liquidação já a tinham alegado, precisamente naquele seu requerimento de 4.02.2019, factualidade essa que, porque fora considerada na sentença, faz parte (implicitamente) do caso julgado formado pela mesma sentença.


Como é evidente, a liquidação da sentença destina-se tão somente a ver concretizado o objecto da sua condenação (genérica), mas, obviamente, sempre respeitando (ou nunca ultrapassando) o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar. Ou seja, tem, forçosamente, de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença.

Ou seja, como bem se observa no Ac. do STJ de 22.5.2014[9], “I - A liquidação (processada como incidente nos termos dos arts. 378.º do CPC em vigor quando a acção se iniciou e atualmente nos arts. 358.º e ss.) destina-se a «fixar o objeto ou a quantidade» da condenação proferida em termos genéricos, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 609.º do CPC, não podendo contrariar o que ficou julgado, nomeadamente, corrigindo-o”.


Ora, no incidente de liquidação – que deu origem aos recursos, de apelação e de revista, esta admitida com sustento no caso julgado – pretende-se, apenas e só, proceder à liquidação dos danos decorrentes da “ocupação abusiva e sem título ilícita da parcela de terreno” propriedade das recorrentes, isto é, à liquidação da parte ilíquida da condenação prolatada na sentença, que condenou os réus na indemnização correspondente.

Aliás, tal sentença, cujo segmento do dispositivo se pretende liquidar, precisa ou baliza com suficiente clareza o que está em causa: a determinação do dano, decorrente da “ocupação abusiva”, desde a data da citação e até efectiva entrega, correspondente ao seu valor locativo”.

É isto, e só isto, que importa liquidar.


Pergunta-se, então: será que (como alegam as AA/Recorrentes) o julgado nessa sentença, na parte atinente à condenação genérica (a tal al. C) do dispositivo), foi desrespeitado na decisão prolatada no incidente de liquidação? E ao ponto de se poder dizer que tal decisão violou o caso julgado formado nesse segmento (a. c)) do dispositivo?


Como ficou dito, as Autoras/Recorrentes sustentam que o caso julgado formado na sentença prolatada nos autos principais fora violado na medida em que, tendo elas alegado, no seu requerimento de 04.02.2019 apresentado nos autos principais, factos que consideram bastantes para o prosseguimento do incidente de liquidação, tais factos foram considerados na fundamentação prolatada na sentença e, como tal, não permitiam que no incidente de liquidação fossem absolvidas da instância por falta de causa de pedir (considerou-se, com efeito, na decisão recorrida, prolatada no incidente de liquidação, que nenhum facto foi alegado para suportar a conclusão de que o prejuízo ascendeu a €97.800,00, o que se reconduz à falta de causa de pedir no que se refere à liquidação do dano patrimonial” -  daí tendo absolvido os AA da instância, por ineptidão da petição inicial).


Salvo melhor opinião, não se vislumbra qualquer violação de caso julgado (do julgado formado na dita sentença condenatória em obrigação genérica, no segmento da referida al. c) do seu dispositivo - único que aqui importa, já que só ali teve lugar uma condenação genérica).


*


Numas breves considerações sobre o caso julgado, dir-se-á que, obviamente, não está aqui em causa a excepção dilatória de caso julgado, mas, sim, uma alegada autoridade do caso julgado (formado pela referida sentença no processo principal).

Como é sabido, a sentença que decida a relação material controvertida, que não seja passível de recurso ordinário ou de reclamação e tenha transitada em julgado (art. 628º do C. P. Civil), fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º do C. P. Civil para o caso julgado e a litispendência, ressalvado recurso extraordinário de revisão dos arts. 696º do C. P. Civil (art. 619º do C. P. Civil) e sem prejuízo da oposição à execução baseada em sentença transitada em julgado (art.729º do C. P. Civil).

Esta imutabilidade e indiscutibilidade da decisão transitada em julgado, como «garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, própria do Estado de Direito (cf. artigo 2.º da Constituição)»[10], manifesta-se, de acordo com a construção doutrinária e jurisprudencial do caso julgado:

a) Num efeito negativo e formal, que opera como exceção dilatória e que evita que o Tribunal julgue a ação repetida (entre os mesmos sujeitos e sobre o mesmo objeto processual) e reproduza ou contradiga a decisão anterior, nos termos dos arts. 577º/i), 578º, 580º e 581º do C. P. Civil: «Entre as mesmas partes e com o mesmo objeto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma exceção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado)»[11].

Neste caso, a decisão anterior impede o conhecimento do objecto posterior[12].

b) Num efeito positivo e material, que opera no conhecimento de mérito da causa, através da autoridade do caso julgado, quando, apesar de existir identidade de sujeitos ou via equiparada a esta, se está perante objetos processuais distintos.

«Entre as mesmas partes, mas com objetos diferenciados entre si e ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da ação mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado).[13]»


Temos, assim, que o caso julgado tem “por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior” e, na sua vertente positiva, não implicando a tríplice identidade quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, “tem o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito[14]-[15].



**


Feitas estas breves considerações gerais sobre o caso julgado e voltando ao caso sub judice, temos, antes de mais, que ver e interpretar devidamente o que foi decidido na sentença cujo segmento aqui está sob liquidação, qual o seu âmbito ou objecto preciso, pois só assim podemos aferir duma possível ofensa do aí julgado por banda da decisão prolatada no incidente de liquidação, aqui em crise.

Ora, lendo atentamente a sentença liquidanda (o seu dispositivo - al. c) - sob liquidação), facilmente se apreende, com a devida precisão, o que está em causa no incidente de liquidação, como já supra se referiu: determinar/fixar o valor indemnizatório a pagar às AA pela ocupação abusiva e sem título, pelos RR, da referida parcela “desde a data da citação e até efectiva entrega, correspondente ao seu valor locativo”.

É, apenas e só, portanto, a determinação desse valor locativo que importa determinar, como ressalta desde logo, com toda a clareza, da letra daquele dispositivo – e note-se que a letra da sentença é elemento essencial na interpretação a fazer, como refere MENEZES CORDEIRO[16] - e emerge das regras da interpretação dos negócios jurídicos (ut arts. 236º ss CC), aplicáveis à interpretação das sentenças enquanto actos jurídicos, aplicando-se-lhes o disposto no artº 295º do CC. Como refere o mesmo Autor, uma sentença judicial (precisamente por via do estatuído naquele artº 295º) deve ser interpretada à luz do artº 236º”[17]do Cód. Civil. 

Note-se que sendo, como efectivamente são, as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo, tem de se lhes aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos actos normativos – art. 9º, nº2, – tem, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer também para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial).


Não cremos, assim, que restem dúvidas quanto ao objecto e âmbito do julgado a liquidar (e ora percutido): o quantum indemnizatório correspondente ao valor locativo” da dita parcela, durante o período que a própria sentença condenatória baliza (“desde a citação até efectiva entrega”). É este, de facto, o entendimento a que nos conduz a designada teoria da impressão do destinatário (aqui aplicável, como ressalta do plasmado supra sobre a interpretação das sentenças), segundo a qual a declaração negocial deve ser entendida, não com um sentido objectivo, mas precisamente com o sentido que lhe atribuiria um declaratário razoável colocado na posição concreta do declaratário efectivo.  Toma-se, portanto, este declaratário nas condições reais em que ele se encontrava e finge-se depois ser ele uma pessoa razoável, isto é, medianamente instruída, diligente e sagaz, quer no tocante à pesquisa das circunstâncias atendíveis, quer relativamente ao critério a utilizar na apreciação dessas circunstâncias[18].

Em suma: releva aqui o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário[19].

Ora, um declaratário “normal”, colocado na posição das AA/Recorrentes, não teria, seguramente, outro entendimento do referido segmento da sentença a liquidar (do objecto e âmbito do julgado a liquidar) que não o acima referido.


Posto isto, reitera-se a pergunta: será que o decidido na sentença (na alínea c) do seu dispositivo) foi ofendido pela decisão proferida no incidente de liquidação (que absolveu os RR da instância)?


Não olvidamos que é entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado[20].

Como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[21], “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.”.


Ou seja: a interpretação da sentença não pode assentar exclusivamente na análise do sentido da parte decisória, tendo naturalmente que considerar os seus antecedentes lógicos, toda a fundamentação que a suporta, sem deixar de ter em conta outras circunstâncias relevantes, mesmo posteriores à respectiva elaboração[22].

E nesta operação deve – como ensina CASTRO MENDES[23] - atentar-se na importante regra segundo a qual «o acto jurídico se presume regular»: e como factor da regularidade (em certa medida até da validade) da sentença é a adequação da sentença ao pedido e à causa de pedir, e a adequação da sentença aos seus próprios fundamentos, daqui resulta que pedido, causa de pedir e fundamentos são importantes elementos de interpretação da sentença. Se se pode levantar dúvidas sobre se a sentença reconhece ao autor a propriedade ou só o usufruto de certa coisa, e se o pedido se referia à propriedade, deve evidentemente presumir-se que a sentença igualmente se lhe refere, pois doutro modo seria nula, por força do art. 668º, nº1, alínea d).

Como igualmente se refere na revista n.º 289/10.7TBPTB.G1.S1, de 26 de Abril de 2012[24], «Em qualquer caso, interpretar o conteúdo de uma sentença de mérito é pressuposto indispensável da determinação do âmbito do caso julgado material, naturalmente. E sabe-se que, para o efeito, não basta considerar a parte decisória, cabendo tomar na devida conta a fundamentação (“é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”, escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 715, como se recorda no acórdão de 29 de Abril de 2010, www.dgsi.pt, proc. n 102/2001.L1.S1), o contexto, os antecedentes da sentença e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1). Para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB».


*


Ora, e volvendo ao caso concreto, é certo que na acção declarativa com sentença transitada (cujos efeitos positivos se impõem, portanto, sobre o presente incidente de liquidação), em cujo dispositivo figura o segmento condenatório que ora se pretende liquidar, foram dados como provados os factos (tidos por relevantes ao mérito da causa) nela elencados, de entre os quais estão alguns alegados no requerimento das AA de 4.2.2019. E foi, precisamente, a ponderação dessa factualidade e demais fundamentação vertida na elaboração da sentença que levou ao juízo decisório, maxime ao plasmado na aludida al. c) do dispositivo.

Assim, não é correcto afirmar-se (como fazem as AA/Recorrentes) que a factualidade (obviamente, a relevante para o mérito da causa) por si alegada naquele seu requerimento de 4.2.2019 (que carrearam aos autos em ampliação da factualidade anteriormente alegada, na sequência de convite ao aperfeiçoamento da p.i., feito pelo tribunal precisamente por se estar perante a possibilidade de ocorrer ineptidão do pedido que formularam na al, c) por ausência de causa de pedir – vindo, por despacho incidente sobre esse requerimento, a ser admitida “a ampliação da causa de pedir efectuada pelas AA a fls. 127 a 134 dos autos, nos termos  do artº 264º do CPC”[25]) foi, sem mais e/ou pura e simplesmente, desconsiderada por banda do tribunal: não foi desconsiderada, quer ao prolatar a sentença, parcialmente sob liquidação (em específico, a al. c) do seu dispositivocomo, aliás, ressalta da própria fundamentação da sentença), quer ao proferir a decisão no incidente de liquidação, aqui em crise.


Donde se não entender a que título ou com que fundamento se pode vislumbrar e vingar a pretensa violação do caso julgado, pois que, na decisão prolatada no incidente de liquidação daquele dispositivo genérico da sentença, teve-se em conta a condenação nesta havida, na sua “plenitude”, nos sobreditos termos (na elaboração do juízo decisório e/ou inter cognitivo do tribunal), considerando a interpretação que lhe é e deve ser dada, aludida supra.


Já coisa bem diferenteo que mais à frente melhor se verá – , é, porém, saber se os factos que foram carreados na sentença condenatória acerca (ou para a prolação) do dispositivo ínsito na sua al. c) são, por si só, bastantes, para o prosseguimento do incidente de liquidação.

O que, diga-se, já nada tem a ver com a pretensa “violação” do caso julgado (a autoridade do caso julgado emergente da sentença).

É que, estando apenas em causa, na liquidação, determinar ou fixar o quantum indemnizatório devido com aquela ocupação abusiva da parcela - que implica a determinação do tal seu “valor locativo” - por parte dos RR, têm os AA/Requerentes (aqui Recorrentes) o ónus de carrear nesse incidente factos bastantes para o efeito.

Ora, obviamente, não basta a factualidade que alegaram na acção, até porque se o fosse evitar-se-ia este incidente de liquidação, tendo-se fixado logo na sentença aquele quantum indemnizatório (a não ser que os AA não lograssem fazer a respectiva prova – mas, então, sempre valeria a afirmação de que a liquidação não serve para sanar a incapacidade (ou o falhanço) probatória, havida na acção principal, relativamente aos factos alegados tendentes à determinação daquela indemnização).

Atente-se que «a liquidação deve fazer-se no processo de declaração; só pode relegar-se para o processo de execução em última extremidade: quando, de todo em todo, seja impossível, por falta de elementos, efectuá-la no processo declarativo. É que a liquidação implica o exercício de actividade que, pela sua natureza, pertence, não à fase executiva, mas à fase declarativa (...).

Em harmonia com este pensamento há-de aplicar-se o art. 661º [do anterior C.P.C.]. O juiz não deve proferir condenação ilíquida por espírito de comodidade ou em obediência à lei do mínimo esforço; só fará uso dela quando o processo de declaração não lhe forneça os elementos indispensáveis para emitir condenação líquida»[26].

Ou seja, cremos que só não tendo sido alegados factos na acção declarativa quanto ao valor dos peticionados danos (danos esses igualmente alegados - e provados), ou, tendo sido alegados de forma insuficiente, se torne impossível nessa acção a sua quantificação de forma a emitir um juízo de condenação líquida sobre os mesmos, é que faz sentido deixar-se essa quantificação para ulterior liquidação. Pois que, tendo sido alegados os danos e bem assim a sua exacta quantificação e só por falência da prova ali carreada sobre os mesmos é que essa quantificação não foi efectivada, não se vê por que razão se deva avançar para essa ulterior liquidação, na qual se acabará por repetir a produção de prova já feita na anterior fase declarativa.

Assim sendo, é claro que, não sendo (não tendo sido) considerados bastantes os factos alegados na acção principal, tinham as AA, requerentes da liquidação, de carrear neste incidente os factos suficientes à concretização do pedido genérico formulado e em que os RR vieram a ser condenados na sentença.

Acontece, porém (como melhor se verá), que as AA/Recorrentes não carrearam factualidade bastante para o efeito (embora, diga-se, tivessem carreado alguma factualidade relevante – daí a censura que a Relação fez à decisão prolatada no incidente de liquidação e que aqui se aceita).


*


Obviamente que – como bem se observa no acórdão – , falamos, apenas e só, dos danos patrimoniais, pois que quanto aos não patrimoniais, nunca a eles se reporta a sentença, quer em sede de facto, quer de direito (salvo nas considerações que faz sobre a natureza do dano da privação do uso, que conclui ter natureza patrimonial), ali se acrescentando ou concluindo que o dano em causa nos autos se traduz num prejuízo patrimonial que deve ser posteriormente liquidado, para rematar que “deve proceder o pedido deduzido na al. c) da petição inicial”.

Os RR não foram, de facto, condenados em danos não patrimoniais. Como tal, quanto a estes, nenhum sentido faz falar-se em eventual liquidação!


*


É claro que a factualidade alegada pelos Recorrentes (repete-se, apenas quanto a danos patrimoniais) mas que não foi considerada na sentença (por não provada, ou irrelevante para o seu mérito) não tem, nem podia ter, aqui, qualquer relevância, maxime em sede de caso julgado (afirmação esta que, diga-se em verdade, também não agrada aos recorrentes, pois parecem pretender que o alcance do caso julgado (também) seja entendido no sentido de a sentença transitada dever ou poder ser integrada por factos ou pretensões que a mesma ...não considerou!).

*


Assim, portanto, a interpretação feita na decisão do incidente de liquidação quanto ao âmbito ou objecto da sentença a liquidar – e à dimensão ou abrangência do caso julgado por ela formado ou firmado - não parece merecer censura.

Só que (repete-se, o que é coisa bem diferente), simplesmente veio ali a entender-se que os factos alegados no incidente de liquidação não eram de molde a permitir o prosseguimento do incidente e que por isso (e só por isso) se deveria absolver os RR da instância por se entender que tal situação consubstanciava o vício da falta de causa de pedir.

O que veio a ser decidido.

Mas mal.


As Recorrentes, como dito, carrearam factos vários tendentes a (na sua perspectiva) fazer prova do quantum indemnizatório do alegado prejuízo com a ocupação ilícita da parcelada terreno pelos RR, com sustento no valor locativo da parcela.

Porém, na decisão final proferida no incidente de liquidação, sob recurso, considerou-se que a factualidade alegada, no que para a liquidação importava – ou seja, para a quantificação o “valor locativo da parcela” – , foi...nenhuma: diz-se em tal decisão que não foram concretizados quaisquer factos que pudessem integrar ou preencher o alegado valor locativo da parcela[27]. E daí ter decidido absolver os RR da instância, por considerar que a petição inicial da liquidação carecia de causa petendi[28].

Como acima dissemos, não concordamos. Antes se nos afigura que razão assiste ao acórdão da Relação, ao considerar que a decisão da primeira instância foi precipitada, ao absolver os RR da instância.

Percute-se que não se trata de qualquer violação do julgado na sentença. Trata-se, sim, apenas de aferir se a carência de alegação factual vertida na (petição inicial da) liquidação foi/é de molde a justificar a decisão proferida de absolvição dos RR da instância, por ausência de causa de pedir.


É certo que a factualidade vertida nos autos para a determinação do quantitativo a fixar no incidente de liquidação (mesmo considerando - como pretendem os Recorrentes - , “implicitamente”, aceite a factualidade pelos mesmos carreada aos autos principais no seu requerimento de 4.2.2019, factualidade esta, diga-se, que no essencial é matéria que pouco ou nada releva para a questão da indemnização do dano da privação do uso da parcela em causa, ou melhor, como reza o segmento dispositivo da sentença que se pretende liquidar, para a determinação do valor locativo da parcela “desde a data da citação e até efetiva entrega”) não é fértil.

Porém, como dito (nisto se concordando com o acórdão da Relação), tal não era motivo para se considerar, simplesmente, inexistir causa de pedir; tratava-se, sim, de uma situação de insuficiência de alegação de matéria de facto. O que justificava – e impunha – fosse feito o convite às Autoras/Recorrentes para que, querendo, completassem a sua petição relativamente aos danos patrimoniais (como dito, os únicos aqui em causa).

Solução esta que, diga-se, tem assento no artº 360, nº 3, fine, do CPC, ao remeter para os termos subsequentes do processo comum declarativo, o que significa, v.g., que se não pode olvidar o que estatui o artº 590º do mesmo Código acerca da gestão inicial do processo, onde, no nº 4 se prevê a possibilidade de o juiz “convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.

O que, aliás, também é corroborado pelo estatuído no artº 411º do CPC (“princípio do inquisitório” – que vai, precisamente, de encontro àquele nº 4 do artº 360º CPC, permitindo que o juiz complete oficiosamente a prova produzida).


Não se pode olvidar que o incidente de liquidação existe, precisamente, para se fixar ou precisar a condenação (que fora genérica), sendo que, para além de a sentença proferida no incidente de liquidação não poder alterar o que ficou decidido na sentença de condenação[29], esse incidente – como referem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS PIRES DE SOUSA[30] –  “não pode findar com sentença de improcedência, a pretexto de que o requerente não fez prova, na medida em que tal equivaleria a um non liquet e violaria o caso julgado formado com a decisão definitiva anterior, que reconheceu à parte um crédito, apenas dependente de liquidação (cfr. STJ 4-7-19, 5071/12). Seria, de resto, um paradoxo o incidente de liquidação culminar na negação de um direito anteriormente firmado por sentença. Neste domínio, a única questão em aberto é a da medida da liquidação e nunca a existência do direito respetivo”[31].

Aliás – como também se observa na obra acabada de citar[32] - “Se, mesmo após a iniciativa oficiosa, a prova produzida for insuficiente para fixar a quantia devida, compete ao juiz proceder à respetiva fixação, recorrendo, como última ratio, à equidade (artº 566º, nº3, do CC; STJ 29-6-17, 4081/14, TJ 29-5-14, 130/09, RP 28-3-12, 55/2000 e RL 1-10-14, 2656/14)”.


**


Tudo, portanto, para concluir que, havendo, como havia, sido alegada pelas Recorrentes –alegaram, v.g., a concreta data da citação e a não entrega da parcela, fixando uma data como termo, mesmo que provisório, da privação do uso –  factualidade (pelo menos alguma) pertinente e útil para a questão da determinação do tal valor locativo do imóvel no período entre a data da citação e a instauração do incidente de liquidação, e sendo (como parece claro) caso de insuficiência de alegação e não de falta de causa de pedir, deveriam as Autoras, no fito de ser complementada alegação que conduzisse à efectiva liquidação (e, dessa forma, se evitasse o referido non liquet violador do caso julgado formado com a decisão definitiva anterior – ou, em última instância, ter de se recorrer à equidade), ter sido convidadas a complementar a sua petição inicial da liquidação (tendo por objecto o que emerge da condenação genérica – al. c) do dispositivo da sentença condenatória – , isto é, a determinação do valor locativo (os danos patrimoniais) do imóvel em causa no período que aquela mesma condenação genérica, claramente, balizou).


Como assim decidiu a Relação, nada há a censurar ao acórdão recorrido[33].


*


Termos em que claudicam as conclusões das alegações da revista.

**



IV. DECISÃO 

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, nega-se a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo das recorrentes.


Lisboa, 16 de Dezembro de 2021


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)


_________

[1] Nesse articulado, alegam a capacidade construtiva do terreno em litígio, o preço médio do terreno para construção e o seu impedimento de venderem a parcela, a qual – dizem – não pode ser vendida em separado do prédio rústico, sendo certo que a segunda autora tem necessidade absoluta de vender esse prédio, pois tem um passivo elevado e foi alvo de um pedido de insolvência, tendo tido de requerer, para evitar essa insolvência, um PER. Dizem ainda que o valor venal ou de mercado da “Quinta”, avaliada no âmbito do PER, é de 978.000,00€. Dizem também acrescer ao prejuízo pela ocupação abusiva o capital investido e imobilizado, que deve ser determinado por meio de perícia e, por último, acresce ainda o dano não patrimonial sofrido pelas autoras, impedidas de venderem o que lhes pertence e sem poderem satisfazer os seus compromissos e os membros dos órgãos sociais das autoras sofrem de forte ansiedade, insónias e de diminuição da sua imagem pública. E concluem: “Impõem-se, pois, ampliar a causa de pedir integradora do pedido de indemnização formulado na alínea c) da petição, nos termos supra expostos, com danos a liquidar em execução de sentença, pois não é possível fixá-los nesta data e os mesmo prolongar-se-ão no tempo”.­

No mesmo articulado alegam a litigância de má-fé dos réus e, a final, além de pedirem a condenação dos réus como litigantes de má-fé em multa e indemnização, escrevem “(...) em ampliação da causa de pedir e do pedido formulado na alínea c) da petição, devem os réus serem condenados a pagarem às autoras todos os prejuízos materiais causados com a sua conduta ilícita e dolosa, supra referidos e a liquidar em execução de sentença; Mais devem ser condenados a pagar os danos não patrimoniais sofridos pelas autoras e respetivos membros dos seus corpos sociais, supra referidos, desde a citação e até efetiva entrega do terreno, ora em litígio, a liquidar em execução de sentença”.
[2] Depois de se ter, designadamente, considerado: “Assim, tais desentranhamentos equivalem à falta de contestação e oposição, considerando-se confessados os factos alegados pelas autoras naqueles articulados, sendo que os que, por natureza, só por documento podem ser provados, estão plenamente provados por força dos documentos juntos aos autos. Foi admitida a ampliação da causa de pedir efetuada pelas autoras a fls. 127 a 134 dos autos, nos termos do art. 264 do CPC, o que, em nosso entender, supre a questão apontada no despacho de fls. 123 a 125 dos autos (ineptidão do pedido deduzido pelas autoras na petição inicial sob a alínea c)) e prejudica o conhecimento da mesma”.
[3] É nosso o destaque e o sublinhado.
[4] Sublinhados nossos.
[5] O destaque é nosso.
[6] Não podemos deixar de observar o uso absolutamente desleixado e incorrecto das vírgulas nas alegações (e nas conclusões) - frases há em que há uma vírgula a seguir a cada palavra! O que, convenhamos, não apenas retira “brilho” às alegações, como se não compadece com as exigências de redacção expectáveis em licenciados em Direito, mais ainda lavrando-se no âmbito do jurídico, em que, como é sabido, uma simples vírgula pode alterar, completamente, o sentido e/ou interpretação do que se escreve e pretenderia dizer, com as inerentes consequências.[7] Omite-se a que se refere ao reconhecimento da propriedade, por não estar em causa no incidente de liquidação ou neste recurso.
[8] Reza assim essa al. c) do dispositivo da sentença (que é, na verdade, a única condenação genérica que foi decretada e que importaria liquidar):
“(…) CONDENAM-SE todos os RR. A PAGAREM ÀS AUTORAS, OS PREJUIZOS CAUSADOS COM A OCUPAÇAO ABUSIVA E SEM TÍTULO, DA PARCELA DE TERRENO SUPRA REFERIDA, COM A ÁREA DE 1.144 M2, DESDE A DATA DA CITAÇAO E ATÉ EFETIVA ENTREGA, CORRESPONDENTE AO SEU VALOR locativo e A LIQUIDAR EM EXECUÇAO DE SENTENÇA.”.
[9] MARIA DOS PRAZERES BELEZA, Processo n.º 451/2001.G1.S1, in Sumários Cível- 2014, pág. 321.
[10] RUI PINTO, in Código de Processo Civil anotado, Almedina, vol. II, Almedina, 2018, nota 2-I ao art.619, pág.185.
[11] LEBRE DE FREITAS, in «Um polvo chamado Autoridade do Caso Julgado», pág.693, in www.portal.oa.pt
[12] Ac. RG de 07.08.2014, relatado por JORGE TEIXEIRA no processo nº600/14.TBFLG.G1.
[13] LEBR DE FREITAS, in artigo citado in ii, pág.693.
[14] Ac do STJ de 26/2/2019, processo nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[15] Assim, a autoridade de caso julgado decorre de “uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dando expressão aos valores da segurança e certeza inerentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver: a intangibilidade (tendencial) do caso julgado visa evitar a existência de decisões, em concreto, incompatíveis. A força e autoridade de caso julgado tem por finalidade evitar que a regulação jurídica da relação jurídica possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica” (Ac STJ de 14/5/2019, processo 1049/18.2T8GNR-A.S1, disponível em www.dgsi.pt ).
[16] Nas expressivas palavras deste Autor, “a mais clara das letras não pode deixar de ser interpretada, até para confirmar a “clareza”” - in Tratado de Direito Civil II, Parte Geral, 5ª ed., actualizada (com a colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro), Almedina, 2021, pág. 721.
[17] Código Civil Comentado, I-Parte Geral, Coordenação António Menezes Cordeiro, CIDP/Almedina, 2020, pág. 869.
Neste sentido, diz o Ac. do STJ de 3/2/2011, (P. 190-A/1999.E1.S1:
Constitui afirmação corrente a de que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos – pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de uma sentença - o que determina que a sentença deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto.
[18] Manuel de Andrade, Teoria da Rel. Jurídica, 1964, 2.º, p. 311.
Ver, também, Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 1989, p. 448.
[19] Excepção a esta regra é a contida no n.º 2, do artigo 236.º, do C.C., nos termos da qual e em conformidade com a velha máxima falsa demonstratio non nocet, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Em casos duvidosos, prevalece, nos negócios onerosos, o sentido da declaração que conduzir ao maior equilíbrio das prestações, sendo que, nos negócios formais, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento (ut arts. 237.º e 238.º do CC).
[20] Por todos, vide Ac. do STJ de 12.07.2011, processo 129/07.4.TBPST.S1, www.dgsi.pt – também o supra citado Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 20/6/2012, proc. 241/07.0TTLSB.L1.S1 (SAMPAIO GOMES).
[21] Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág 579.
[22] cfr. ac. de 8/6/10, proferido pelo STJ no p. 25.163/05.5YYLSB.L1.S1.
[23] Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pag. 255.
[24] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[25] Um reparo/correcção se impõe, desde já: parece claro que aquele despacho da primeira instância onde fala na admissibilidade da “ampliação da causa de pedir efectuada pelas AA a fls. 127 a 134 dos autos, nos termos  do artº 264º do CPC”, utilizou uma linguagem inapropriada, na medida em que se sustenta num preceito (o artº 264º do CPC) que se refere à “Alteração do pedido e da causa de pedir” e nenhuma alteração da causa de pedir  ou do  pedido teve lugar, apenas e só se tendo admitido a ampliação da causa de pedir efectuada pelas AA a fls. 127 a 134.
Ou seja, o que no dito despacho se decidiu foi admitir a ampliação da causa de pedir relativamente ao pedido de indemnização por danos patrimoniais emergentes da ocupação ilícita da parcela de terreno referida na al. C) do dispositivo da sentença.
[26] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Limitada, 1984, pp 70 -71. O destaque é nosso.
[27] Escreveu-se, com efeito, naquela decisão final do incidente de liquidação:
A este propósito, as autoras limitam-se a concluir que tiveram um prejuízo de € 97.800,00 sem que tivessem alegado os pressupostos de facto dessa conclusão enquadrados por aqueles limites, a saber: o valor locativo da parcela ou, não sendo possível o seu arrendamento parcial, o valor locativo da totalidade do prédio, alegando-se de seguida a área total do prédio e procedendo-se a uma proporção.

Não interessa alegar o valor venal da Quinta, porquanto os termos do cálculo pela privação do uso já foram determinados na sentença e não poderão ser outros.

Assim, conclui-se que nenhum facto relevante foi alegado para suportar a conclusão de que o prejuízo ascendeu a € 97.800,00, o que se reconduz à falta de causa de pedir no que se refere à liquidação do dano patrimonial, nos termos do art. 186º, n.º 2, al. a), do CPC.”.

[28] Mais ali se referindo que tal ineptidão não foi sanada, já que - diz-se ali – “sequer se pode concluir que os réus interpretaram convenientemente o requerimento inicial de liquidação, não resultando daquela oposição os pressupostos de facto de qualquer outro valor indemnizatório, mas apenas os critérios abstractos que poderão conduzir à quantificação dessa indemnização.”.

Porém, como se refere no acórdão, “sempre a sanação da ineptidão da petição inicial (artigo 186, n.º 3 do CPC) só faria sentido se o caso fosse de ininteligibilidade, e não nos casos de falta de causa de pedir, como a primeira instância considerou: em rigor, não pode interpretar-se o que não existe.”.

[29] Ac. STJ de 30.09.2010, proc. 1554/04.

[30] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª ed., pp 436.
[31] Destaque nosso.
[32] pág. 437.
[33] Já agora, uma nota adicional para dizer que bem observa o acórdão recorrido quando refere que «...importa, no entanto, acrescentar que a sentença transitou com o sentido literal do seu dispositivo, porque as autoras dela não reclamaram, não invocaram qualquer nulidade e não recorreram. Como se disse, a sentença é clara no que condena (repete-se que a mesma antecede o seu dispositivo com a afirmação de procedência do pedido formulado na alínea c) da petição inicial) e as autoras, se discordavam, haviam de a impugnar, uma vez que, pelo que ora sustentam, é claro que ficaram (parcialmente) vencidas. (…). Não o tendo feito, a sentença transitou nos precisos termos que já se consideraram, repetidamente».