Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
362/11.4TJPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: PARTILHA DA HERANÇA
ANULAÇÃO DA PARTILHA
CASO JULGADO
TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
HERDEIRO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
VONTADE DO TESTADOR
CONDIÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / INTERPRETAÇÃO DOS TESTAMENTOS.
Doutrina:
-Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume VI, 1998, 303.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2187.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-03-2013, PROCESSO N.º 3210/07;
- DE 18-06-2014, PROCESSO N.º 209/09;
- DE 10-09-2015, PROCESSO N.º 2695/06;
- DE 07-03-2017, PROCESSO N.º 740/10;
- DE 30-03-2017, PROCESSO N.º 1375/06.
Sumário :
I - Decidindo o Tribunal, na sequência de requerimento em que os interessados invocavam a sua qualidade de herdeiros testamentários tendo em vista pretendida anulação de partilha, remetê-los para os meios comuns a fim de obterem obter sentença em que sejam reconhecidos herdeiros testamentários do de cujus, o caso julgado determinado por essa decisão preclude a questão de se considerar, na ação de apreciação que entretanto e em consequência dessa decisão foi proposta pelos interessados contra o Estado, a eventual autoridade de caso julgado da anterior condenação da arguida em processo-crime no pagamento de indemnização aos interessados enquanto alegados herdeiros testamentários respeitante a quantias que integravam o património do de cujus.

II - A autoridade do caso julgado não se verifica sendo diferente o objeto das ações - aqui, ação de apreciação proposta contra o Estado tendo em vista o reconhecimento de que os AA são herdeiros testamentários, ali, o pedido de indemnização por eles deduzido contra a arguida que se apoderou de bens do património do de cujus - e diversa a factualidade que em cada uma delas fundamenta a pretensão.

III - A posição subjetivista em matéria de interpretação das disposições testamentarias - ver artigo 2187.º do Código Civil- significa que se impõe atender à vontade do testador; afigura-se que a disposição do testador que, prevenindo o seu decesso depois do decesso do respetivo cônjuge, institui herdeiro " a pessoa que estiver a tratar e cuidar de si há mais de três meses", similar à disposição testamentária do respetivo cônjuge, tem em vista compensar quem nos últimos momentos da vida o tratou, alimentando-o, dando-lhe medicação, levando-o ao médico, tratando da sua higiene.

IV - Não se verificando a prática de atos minimamente significativos de apoio, tratamento ou cuidado por parte dos interessados que se limitaram praticamente a algumas visitas no lar de terceira idade onde o de cujus foi internado, sem suportarem nenhum custo, não pode considerar-se preenchida a aludida condição, não podendo, portanto, ser-lhes reconhecida a qualidade de herdeiros testamentários.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA e BB intentaram ação declarativa de simples apreciação contra o Estado Português pedindo

a) que se reconheça que os AA são herdeiros testamentários de CC, falecido no dia 17-3-2005;

b) que se declare anulada a partilha efetuada no âmbito do processo de inventário instaurado em 3-2-2005 n.º 683/05.5 TJPRT que correu os respetivos termos no 3.º Juízo - 3ª secção dos Juízos Cíveis do … já que os bens a partilhar nesse processo de inventário devem ser atribuídos em partes iguais aos aqui AA.


2. Alegam os AA que são herdeiros testamentários de CC que estava casado desde 21-10-1977 no regime imperativo de separação de bens com a mãe dos requerentes, DD, falecida no dia 21-11-2004.


3. São, assim, herdeiros do património de CC composto, para além dos bens próprios, de 1/3 dos bens que lhe cabem na herança de sua mulher pré-falecida.


4. No testamento de CC, datado de 9-6-1987, foi instituída como única e universal herdeira a pessoa que, para a hipótese de à data do seu falecimento não ter ele herdeiros legitimários, dele "estivesse a tratar e cuidar com caráter de habitualidade há mais de três meses".


5. No dito processo de inventário, instaurado em 7-2-2005 pelos ora requerentes, enquanto herdeiros da sua mãe falecida em 21-11-2004, deu entrada em 17-6-2010 requerimento em que eles davam conhecimento do testamento e se alegavam os factos justificativos do preenchimento da referida condição fixada no testamento.


6. Pretendiam a anulação da partilha realizada no âmbito do inventário onde, segundo os requerentes, considerando que CC não tinha herdeiros, se deferiu ao Estado a herança aberta por óbito de CC composta por 1/3 da herança da inventariada DD em conjunto com os bens próprios do mencionado CC.


7. O Tribunal, por decisão transitada de 29-7-2010 (ver fls. 98), remeteu os interessados para os meios comuns tendo em vista obter sentença em que sejam declarados herdeiros testamentários de CC, não ocorrendo nenhum motivo para anular o processado sendo manifestamente extemporâneo qualquer pedido nesse sentido.


8. Esta decisão resultou do requerimento de 17-7-2010 em que os requerentes pretendiam ser reconhecidos como herdeiros testamentários de CC fundando-se, para tanto, na sentença penal proferida contra a diretora do Lar onde CC veio a falecer, que, na parte respeitante ao pedido de indemnização civil, a condenou no pagamento aos ora aqui AA " na qualidade de herdeiros legítimos de DD e CC na quantia de 27.594,07€ e juros de mora à taxa legal de 4% até integral e efetivo pagamento."


9. No referido inventário, onde afinal apenas se consideraram os bens existentes no património de DD, excluindo-se os demais bens indicados que integravam o património de CC, foi proferida sentença em 5-3-2008 julgando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide considerando que inexistem bens que possam ser partilhados no presente inventário (ver fls. 246 dos autos), ou seja, não chegou, pelas indicadas razões, a proceder-se a qualquer partilha


10. O Estado contestou e deduziu reconvenção pedindo que, reconhecida judicialmente a inexistência de outros sucessíveis legítimos, a herança deve ser declarada vaga para o Estado, nos termos das leis do processo.


11. O Estado, no saneador, foi absolvido da instância do pedido de anulação de partilha por ocorrer ineptidão com fundamento na contradição do pedido com a causa de pedir, pois, extinta a instância no inventário por inutilidade superveniente da lide por não existirem bens a partilhar, é contraditória tal realidade, que os requerentes invocaram, com o pedido de anulação de partilha.


12. Foi proferida sentença que julgou a ação procedente, declarando que os AA são herdeiros testamentários do falecido CC e julgou improcedente a reconvenção deduzida pelo Estado, absolvendo-se os AA/reconvindos e os reconvindos incertos do pedido reconvencional.


13. A sentença foi revogada por acórdão do Tribunal da Relação que, julgando a ação improcedente, julgou a reconvenção procedente, declarando-se que os AA AA e BB não são herdeiros testamentários do falecido CC cuja herança se declara vaga a favor do Estado.


14. Nas alegações de revista, os AA invocam a autoridade do caso julgado fundada na decisão proferida no âmbito do pedido de indemnização deduzido no processo crime onde os aqui AA reclamaram a devolução das quantias que tinham sido ilicitamente levantadas da conta bancária da falecida mãe e do falecido padrasto por via da qual a arguida foi condenada a pagar aos AA a quantia de 27.594,07€. É que a sentença penal declarava os AA herdeiros legítimos da sua mãe, DD, mas também os declarava herdeiros testamentários de CC, falecido posteriormente. Ou seja, o Tribunal Coletivo debruçou-se e interpretou o testamento que se discute nos presentes autos, concluindo que os AA afinal são herdeiros testamentários do falecido CC.


15. Os recorrentes sustentam ainda que não pode deixar de se considerar preenchida a aludida condição, pois os AA cuidaram e trataram de CC, não sendo exigível que se pretenda que a dita condição impusesse, no caso vertente, que recebessem em casa o padrasto atingido por enfarte cerebral extenso a justificar o seu internamento numa Lar, pois nenhum dos AA tinha condições logísticas ou físicas para o acolher nas suas casas. A prova de que dele cuidaram é que o transportaram para o Hospital, visitaram-no no Lar, cuidaram da casa, pagaram água e luz, providenciaram pela limpeza e pagaram o funeral.


16. Factos provados

1. Os autores AA e BB são filhos de DD.

2. CC casou com DD, em 21/10/1977, sob o regime imperativo da separação de bens.

3. DD faleceu em 21/11/2004.

4. CC faleceu em 17/03/2005.

5. CC faleceu no estado de viúvo e não deixou descendentes, ascendentes, irmãos ou seus descendentes ou outros colaterais até ao quarto grau.

6. Em 09/06/1987, no 2º Cartório Notarial do …, CC outorgou o seu primeiro testamento e disposição de sua última vontade, nos termos seguintes: “Que, para a hipótese de à data do seu falecimento não ter herdeiros legitimários, desde já institui sua única e universal herdeira a pessoa que estiver a tratar e cuidar de si com caráter de habitualidade há mais de três meses.”.

7. Em 09/06/1987, no 2º Cartório Notarial do …, DD outorgou o seu primeiro testamento e disposição de sua última vontade, nos termos seguintes: “Que da sua quota disponível institui único herdeiro o seu marido CC, consigo residente ou, sendo ele falecido, a pessoa que estiver a tratar e cuidar de si com caráter de habitualidade há mais de três meses”.

8. No dia 21/11/2004, data do falecimento da sua esposa, CC deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital Geral de …, onde ficou internado até 11/01/2015, altura em que teve alta hospitalar.

9. CC foi levado à Urgência do Hospital pela filha de [pelo autor] AA [e pela filha deste] na sequência de um telefonema do próprio [de] CC [para a sua “neta” (neta da esposa de CC e filha do autor AA)] dizendo que se estava a sentir mal.

10. Aquando deste internamento, a situação clínica de CC era muito grave, caracterizada por um enfarte cerebral extenso (em território da artéria cerebral média esquerda), com paralisia total da parte direita do corpo, pneumonia nosocomial, neoplasia da transição reto-sigmoideia, anemia normocítica normocromática e hipertrofia benigna prostática com algaliação crónica.

11. Em consequência do mencionado enfarte cerebral, CC ficou com dificuldade na linguagem, impossibilitado de falar e escrever, e défice de força muscular no hemicorpo direito, sequelas que o tornaram totalmente dependente de terceira pessoa para as atividades da vida diária (nomeadamente, alimentação, higiene e cuidados de saúde) e sem previsão de evolução favorável do seu estado de saúde.

12. Em face da adversa condição clínica de CC, maxime a dependência incondicional de terceiros para lhe prestarem os cuidados básicos, o Hospital fez intervir o serviço de assistência social nele existente [reportou o caso do paciente como um possível caso social fazendo intervir o serviço de assistência social existente no hospital]

13. A assistente social que exercia funções no hospital diligenciou por contactar as pessoas mais próximas de CC e concluiu que tais pessoas eram os Autores, enteados do paciente, pelo que os auscultou quanto à sua recetibilidade para cuidarem do padrasto, uma vez que este, logo que clinicamente estabilizado, teria de ter alta hospitalar, não podendo permanecer indefinidamente hospitalizado.

14. Os Autores comunicaram à assistente social que não tinham condições pessoais e familiares para assumirem os cuidados do seu padrasto, pelo que, em conjunto, diligenciaram pela integração daquele numa instituição adequada para o acolher após a sua alta hospitalar.

15. A assistente social procedeu à indicação do “Lar EE”, por constar da lista oficial de lares para inserção de idosos com alvará e fiscalização da Segurança Social, e comunicou aos Autores que deveriam visitar o mencionado lar, a fim de averiguarem das condições do mesmo para receber o seu padrasto.

16. Os Autores anuíram ao internamento do padrasto naquele lar e, em dezembro de 2004, mostraram-se criadas as condições para o internamento de CC no “Lar EE”.

17. O internamento de CC no “Lar EE” veio a ocorrer em 11/01/2005, data em que lhe foi dada alta hospitalar.

18. Porém, na sequência de sucessivas recaídas do seu estado de saúde, CC veio a sofrer diversos internamentos.

19. Entre o dia 22/01/2005 e o dia 09/02/2005, esteve internado no Hospital de São João.

20. Entre o dia 11/02/2005 e o dia 23/02/2005, esteve novamente internado no Hospital de São João.

21. E no dia 10/03/2005 foi novamente internado no Hospital de São João, onde permaneceu até à data da sua morte, ocorrida em 17/03/2005.

22. Nos intervalos dos internamentos hospitalares, CC voltava para o “Lar EE”.

23. Conforme protocolado entre o Hospital de Santo António e o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, caberia ao primeiro suportar o pagamento das duas primeiras mensalidades do internamento de CC no “Lar EE”, no valor de 1.222,72€, cada uma, assegurando a Segurança Social o pagamento das restantes mensalidades, até ao reconhecimento judicial da incapacidade de facto de CC (e consequente nomeação de tutor), altura em que a situação seria apreciada em função da sua situação económica.

24. O Hospital de Santo António procedeu ao pagamento ao “Lar EE” das mensalidades de janeiro e fevereiro de 2005, no montante de 1.222,72€, cada uma.

25. Os Autores (em conjunto com as respetivas esposas e filhos), ainda em vida da sua mãe, auxiliavam esta e o seu padrasto (CC), providenciando [pelas refeições, deslocações aos médicos e limpeza da habitação] entre outras tarefas pela limpeza da habitação.

26. Depois do primeiro internamento, em 21/11/2004, os Autores continuaram a acompanhar CC, visitando-o nos Hospitais [conduzindo-o aos Hospitais para internamento, quando necessário, e aí o visitando] bem como no “Lar EE”, providenciando, em conjunto com a assistente social do Hospital de Santo António, pelo seu internamento no “Lar EE” e tratando dos assuntos pessoais daquele, designadamente da limpeza da habitação [(limpeza da habitação, pagamento de despesas, aquisição de roupa)] e do seu funeral

Foram dados como não provados os seguintes factos:

1. No período que mediou entre o internamento de CC no Hospital Geral de Santo António, em 21/11/2004, e a sua morte em 17/03/2005, os Autores nunca tiveram qualquer preocupação em lhe assegurar os cuidados básicos e indispensáveis à sua sobrevivência.

2. Relegaram para o Instituto de Solidariedade e Segurança Social e para os hospitais em que o CC esteve internado, quer os cuidados básicos que o seu padrasto necessitava, quer os encargos financeiros que tal implicava.

3. As visitas dos autores ao CC eram caracterizadas por alguma agitação da parte deste, não correspondendo tal agitação a emoção característica da visita de um ente querido, mas antes a uma forma de expressão de irritação e aborrecimento.


Apreciando


17. São duas as questões suscitadas

- Saber se os AA têm de ser considerados herdeiros testamentários de CC por força da autoridade do caso julgado considerada a condenação da diretora do "Lar EE" no pagamento aos AA, enquanto herdeiros testamentários, da quantia de que se apropriou existente na conta bancária dos falecidos DD e CC

- Saber se à luz dos factos provados pode considerar-se preenchida a aludida disposição testamentária reproduzida em 6 supra da matéria de facto.


18. No que respeita à invocada autoridade de caso julgado, constata-se que, no âmbito do processo penal em que foi deduzida acusação contra FF, sócia gerente do Lar onde CC se encontrava internado, por ela se ter apropriado mediante falsificação das quantias em depósito bancário em nome do falecido casal, DD e CC, foi ela condenada no pagamento aos aqui AA, enquanto herdeiros legítimos e testamentários, respetivamente, de DD e CC, do montante correspondente às quantias depositadas de que indevidamente se apropriou.


19. As partes, no tocante aos pedidos deduzidos em ambas as ações, são diversas; no âmbito do pedido cível deduzido na ação penal o Estado não foi o demandado, não sendo, por isso, suscetível de invocar a autoridade do caso julgado (ACSTJ de 18-6-2014, rel. Abrantes Geraldes, revista n.º 209/09)


20. É certo que a figura da autoridade do caso julgado prescinde da tríplice identidade - partes, pedido e causa de pedir - que o caso julgado impõe, mas não é menos certo que a autoridade do caso julgado pressupõe que o objeto da primeira decisão constitua questão prejudicial da decisão a proferir na segunda ação.


21. Ora a presente ação constitui uma ação de apreciação que tem precisamente por objeto o reconhecimento de que os AA são herdeiros testamentários de CC caso se verifiquem factos que permitam preencher a aludida condição testamentária e, por essa via, serem reconhecidos sucessores daquele. No caso do pedido de indemnização deduzido em ação penal o objeto do pedido consistia no reconhecimento do direito de indemnização correspondente ao valor subtraído sendo o reconhecimento da sua qualidade de herdeiros testamentários não o próprio objeto do pedido, mas mero pressuposto fundado na apreciação de factos que não podem valer como factos adquiridos no âmbito de outro processo (ACSTJ de 21-3-2013, rel. Álvaro Rodrigues, revista n.º 3210/07, ACSTJ de 7-3-2017, rel. Fernando Bento, revista n.º 740/10


22. Não estamos, pois, perante um pressuposto necessário da decisão de mérito a proferir na presente ação. Com efeito, é com base nos factos que nesta ação se provarem que se pode considerar se os AA são ou não herdeiros testamentários, não relevando aqui os factos que na ação crime o Tribunal houve por justificativos do preeenchimento da condição.


23. Não há pois uma solução de vinculatividade entre a decisão proferida na ação penal e a decisão a proferir na presente ação - exigência positiva da autoridade do caso julgado - pois naquela ação o Tribunal com base nos factos 25 a 44 considerou que AA e BB " sempre acompanharam CC antes e depois do primeiro internamento hospitalar em 21-11-2004 na medida que lhes foi possível atenta a condição pessoal daqueles e a condição incapacitante e situação clínica grave deste que até 17-2-302205 sofreu 4 internamentos hospitalares por que de permeio apenas esteve 28 dias no 'Lar EE'" (ACSTJ de 30-3-2017, rel. Tomé Gomes, revista n.º 1375/06.


24. Ora na presente ação os factos são outros, são aqueles que estão adquiridos em função da prova produzida nos presentes autos que, aqui sim, são decisivos para efeitos de reconhecimento ou não reconhecimento dos AA como herdeiros testamentários visto que o objeto desta ação, ação de simples apreciação, é precisamente a declaração da existência ou inexistência de um direito.


25. A questão suscitada da autoridade do caso julgado mostra-se precludida. Na verdade, os AA tinham requerido junto do Tribunal onde foi instaurado o processo de inventário o reconhecimento da sua qualidade de herdeiros testamentários, mas o Tribunal remeteu-os para os meios comuns tendo em vista " obter uma sentença em que sejam declarados herdeiros testamentários de CC, não sendo o processo de inventário um meio para o efeito" (ver decisão de 98 e 241 no Vol I).


26. Ora os AA aceitaram que o reconhecimento dessa qualidade dependia da obtenção de sentença a proferir em ação de apreciação que intentaram - a presente ação - não sustentando que o Tribunal tinha de considerar adquirida essa qualidade por força da decisão proferida na ação penal. Essa decisão de remessa dos interessados para os meios comuns constitui caso julgado quanto aos AA que a acataram, propondo a presente ação, não sustentando que o inventário teria de ser reaberto para se proceder à partilha dos bens integrativos do património de CC por dele serem os AA herdeiros testamentários por força da aludida disposição testamentária.


27. O Tribunal da Relação - acolhendo a orientação constante do ACSTJ de 10-9-2015, rel. Lopes do Rego, revista n.º 2695/06 - considerou que os "autores nos últimos três meses de vida do testador não trataram nem cuidaram diretamente dele, nem o fizeram através de interposta pessoa, pois não o acolheram nas suas casas nem permaneceram na residência dele, alimentando-o, cuidando da sua higiene, dando-lhe medicação, levando-o aos médicos, nem contrataram alguém que o fizesse, assumindo os respetivos custos. Na verdade, tais cuidados assistenciais foram prestados ao falecido, na derradeira fase da sua vida pelo Estado português, através das unidades hospitalares onde ele esteve internado e pelo lar de terceira idade onde foi colocado, sem que tenha havido qualquer dispêndio económico por parte dos autores".


28. Prescreve o artigo 2187.º do Código Civil que "na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento".


29. A posição subjetivista em matéria de interpretação das disposições testamentárias significa que se impõe atender à vontade do testador, justificando-se o recurso, para o efeito, "à utilização de meios estranhos ao texto do testamento, mas capazes de auxiliar a descoberta da vontade do testador" (Código Civil Anotado, Antunes Varela, Vol VI, 1998, pág. 303).


30. Nem sempre se mostra difícil a determinação da vontade do testador. É o que se passa no caso vertente. Quando, como aqui sucede, marido e mulher no mesmo dia lavram testamento em que, prevenindo o caso de o seu decesso ser posterior ao do respetivo cônjuge, deixam a quota disponível (no caso da mulher porque esta tinha sucessores legitimários) ou todo o património (caso de CC que não tinha herdeiros legitimários) à "pessoa que estiver a tratar e cuidar de si com caráter de habitualidade há mais de três meses" afigura-se evidente que qualquer dos cônjuges, na solidão da viuvez, procura amparo e companhia no fim da vida e manifestamente não dá esse amparo a entrega o idoso desvalido aos serviços de um lar assistencial. Não são os tratamentos e cuidados ministrados em instituições hospitalares ou em lares de terceira idade o amparo que os testadores visavam.


31. Não se nega que implica elevado custo pessoal o acompanhamento efetivo de um idoso afetado de uma patologia incapacitante ao ponto de parte do seu corpo estar paralisada. Mas é precisamente o medo do sofrimento longe das pessoas que são próximas que leva o testador a compensar quem sacrifica o seu próprio bem estar e comodidade para auxiliar e acompanhar nos derradeiros momentos da vida quem está prestes a deixá-la. É este, e outro não pode ser, o sentido da disposição testamentária aqui em causa bem evidente no contexto em que foi produzida: marido e mulher que se acompanharam e apoiaram em vida não querem ficar desamparados depois da partida de um deles.


32. Analisando os factos provados, a Relação considerou que os factos são "manifestamente insuficientes para se ter por preenchida a referida condição, uma vez que não a preenche a mera circunstância dos autores, estando o falecido gravemente doente e tendo dividido os seus últimos meses de vida entre internamentos hospitalares e a permanência num lar da terceira idade, se terem limitado a transportá-lo para o hospital quando do seu primeiro internamento, e visitá-lo nos hospitais e no lar e a tratar da limpeza da sua habitação. Aliás, não pode sequer ignorar-se que, inclusive, o lar onde o falecido viria a ser colocado foi indicado pela própria assistente social que exercia funções no Hospital de Santo António, indicação a que os autores anuíram, e que o pagamento das respetivas mensalidades seria suportado primeiro pelo Hospital de Santo António e depois pela Segurança Social".


33. Na verdade, e tal como se diz no Ac do STJ de 10-9-2015, P. 2695/06 rel. Lopes do Rego, "não se vê razão bastante para censurar o decidido no acórdão recorrido quanto à insuficiência dos atos de apoio e auxílio concretamente apurados para ter por preenchida a referida condição - implicando a qualificação de cuidadora da falecida, constitutiva da própria vocação sucessória da R.: efetivamente, não preenche a cláusula modal estipulada e querida pela testadora a mera circunstância de – estando a falecida, afetada por significativas patologias e incapacidade, institucionalizada e internada em lares na fase final da sua vida e custeando ela própria, com o produto da pensão auferida, as despesas de internamento e assistência (apenas eventualmente adiantadas pela R. – cf. a matéria de facto não provada) - ocorrer a simples prática (com frequência não concretamente apurada) de atos de apoio ou auxílio da natureza, nomeadamente, dos provados nos autos sob os pontos 9, 11, 12, 13, 14, 18, 20, 22 e 24 da matéria de facto.

Note-se que isto não significa obviamente que a decisão de institucionalizar a testadora, face às suas crescentes incapacidades e à necessidade de assistência mais ou menos permanente de terceira pessoa, se configure como inadequada, desrazoável ou ilegítima, face aos padrões sociais atualmente dominantes - e como tal suscetível de justificar uma qualquer censura: o que está em causa no presente litígio é apenas determinar se – perante tal institucionalização, eventualmente justificada e razoável da testadora, e suportada pelos seus próprios rendimentos - perderá sentido a vocação sucessória conferida, assente constitutiva e essencialmente na qualificação do herdeiro designado como efetivo cuidador do de cujus no último ano da sua vida.

Na realidade, a cláusula modal estipulada tem na sua base a vontade de compensação de uma particular onerosidade suportada pelo real e efetivo cuidador na fase final da vida do de cujus, afetado por relevantes patologias incapacitantes, obrigando a uma dedicação intensa e limitadora da autonomia pessoal, no interesse primacial e em benefício do bem estar do de cujus; ora, no caso dos autos, falta efetivamente esse elemento de especial e agravada onerosidade, face à natureza pontual e secundária dos atos de assistência e auxílio efetivamente praticados pela R., não envolvendo, desde logo, a efetiva prestação pessoal de cuidados básicos pela própria R., mas naturalmente pelos funcionários e agentes dos lares em que a mesma esteve institucionalizada".


34. Face às razões expostas, a revista não pode deixar de ser negada.


Concluindo

I - Decidindo o Tribunal, na sequência de requerimento em que os interessados invocavam a sua qualidade de herdeiros testamentários tendo em vista pretendida anulação de partilha, remetê-los para os meios comuns a fim de obterem obter sentença em que sejam reconhecidos herdeiros testamentários do de cujus, o caso julgado determinado por essa decisão preclude a questão de se considerar, na ação de apreciação que entretanto e em consequência dessa decisão foi proposta pelos interessados contra o Estado, a eventual autoridade de caso julgado da anterior condenação da arguida em processo-crime no pagamento de indemnização aos interessados enquanto alegados herdeiros testamentários respeitante a quantias que integravam o património do de cujus.

II - A autoridade do caso julgado não se verifica sendo diferente o objeto das ações - aqui, ação de apreciação proposta contra o Estado tendo em vista o reconhecimento de que os AA são herdeiros testamentários, ali, o pedido de indemnização por eles deduzido contra a arguida que se apoderou de bens do património do de cujus - e diversa a factualidade que em cada uma delas fundamenta a pretensão.

III - A posição subjetivista em matéria de interpretação das disposições testamentarias - ver artigo 2187.º do Código Civil- significa que se impõe atender à vontade do testador; afigura-se que a disposição do testador que, prevenindo o seu decesso depois do decesso do respetivo cônjuge, institui herdeiro " a pessoa que estiver a tratar e cuidar de si há mais de três meses", similar à disposição testamentária do respetivo cônjuge, tem em vista compensar quem nos últimos momentos da vida o tratou, alimentando-o, dando-lhe medicação, levando-o ao médico, tratando da sua higiene.

IV - Não se verificando a prática de atos minimamente significativos de apoio, tratamento ou cuidado por parte dos interessados que se limitaram praticamente a algumas visitas no lar de terceira idade onde o de cujus foi internado, sem suportarem nenhum custo, não pode considerar-se preenchida a aludida condição, não podendo, portanto, ser-lhes reconhecida a qualidade de herdeiros testamentários.


Decisão

Nega-se a revista

Custas pelos recorrentes


Lisboa, 2-11-2017


Salazar Casanova (Relator)

Távora Victor

António Piçarra