Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
249/18.0YPRT.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO DE FACTO
ESCRITURA PÚBLICA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA DA REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSOS ESPECIAIS / REVISÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS / NECESSIDADE DA REVISÃO.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, p.141;
- António Marques dos Santos, Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras, in Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 141;
- Ferrer Correia, O Reconhecimento das Sentenças Estrangeiras no Direito Brasileiro e no Direito Português, in Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado, Almedina, 1989, p. 267 ; Aditamentos às Lições de Direito Internacional Privado, Do Reconhecimento e Execução das Sentenças Estrangeiras, 1973, p. 17, 18, 40 e 41 ; Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, 2000, p. 454;
- Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, colaboração de Rui Manuel de Moura Ramos, Curso de Direito da Família, vol. I, Introdução. Direito matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade, Coimbra, 2016, p. 71-72;
- Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Volume III, Almedina 2002, p. 240;
- Ricardo Fiúza e Regina Beatriz Tavares da Silva (coord.), Código Civil comentado, 8.ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2012.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 978.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-06-1986, IN BMJ 358º, P. 428;
- DE 19-06-1986, IN BMJ 358º, P. 460;
- DE 31-01-2002, IN CJSTJ, TOMO I, P. 68;
- DE 21-02-2006, PROCESSO N.º 05B4160, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-07-2008, PROCESSO N.º 08B1733, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-03-2011, PROCESSO Nº 214/09. 8YRERVR.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-06-2013, PROCESSOS N.º 623/12.5YRLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-05-2015, PROCESSO N.º 657/13.2YRLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 27-04-2017, PROCESSO N.º 93/16.9YRCBR.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-02-2019, PROCESSO N.º 106/18.0YRCBR.S1, IN WWW.DGSI.PT.
- DE 21-03-2019, PROCESSO N.º 559/18.6YRLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário : A declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem em união de facto desde Julho de 2013, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - RELATÓRIO


AA e BB, residentes na Rua …, …, …, …, …, instauraram conjuntamente a presente acção de revisão de sentença estrangeira.


Alegaram, em síntese, que por escritura pública celebrada no dia 27 de Abril de 2018, no 15º Ofício de Notas …,  …, Brasil, “foi reconhecida a união de facto de AA e BB, desde 2013 (…) nutrem uma relação familiar, social, afectiva e sexual, e residem na mesma casa desde então”.

Requerem que seja confirmada a sentença – aludindo à mencionada escritura – “para todos os efeitos legais, designadamente para que a união de facto, que a mesma decreta, produza os seus efeitos em Portugal com a posterior notificação da Conservatória do Registo Civil para que seja providenciado o averbamento da união de facto no assento de nascimento de CC.”


Cumprido o disposto no artigo 982º nº 1, do CPC, o Ministério Público não deduziu oposição ao requerido.


Por decisão sumária de 20 de Fevereiro de 2019, foi julgada improcedente a pretensão do requerente, negando-se a peticionada revisão e confirmação.


Os requerentes reclamaram para a Conferência que, por acórdão de 26 de Março de 2019, manteve na íntegra a decisão sumária.


 Não se conformando com tal acórdão, os requerentes dele recorreram de revista excepcional, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - O tribunal violou o disposto no artigo 762º 1 a) do CPC, pois está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. Nas razões acima, restou demonstrada as disposições legais (Provimento n° 37 de 07 de Julho de 2014 brasileiro e artigo 69°, r) do Código de Registo Civil português) que confira às declarações prestadas numa escritura declaratória de estável o poder de autorizar uma mudança na ordem jurídica.

2ª - O tribunal violou o disposto no artigo 762º 1, b do CPC pois está em causa interesses de particular relevância social, de elevado grau de complexidade que apresenta, pela controvérsia que gera na doutrina e/ou na jurisprudência ou ainda quando, não se revelando de natureza simples, se revista de ineditismo ou novidade que aconselhem a respectiva apreciação pelo Supremo. A revisão da escritura da união de facto ainda não foi discutida no Supremo e juntamos inúmeras decisões favoráveis de tribunais diferentes.

3ª - O tribunal violou o disposto no artigo 762º nº 1, c) do CPC pois o acórdão da Relação está em contradição com outros, logo a decisão é susceptível de contribuir para a formação de uma orientação jurisprudencial, tendo em vista, tanto quanto possível, a consecução da sua tarefa uniformizadora.

Em face dos elementos constantes dos autos não se suscita qualquer dúvida sobre a autenticidade do instrumento notarial revidendo, nem sobre a inteligibilidade do seu conteúdo.

A escritura de união de facto foi lavrada pela entidade brasileira legalmente competente para esse efeito e tal competência não foi provocada em fraude à lei, sendo válida segundo o ordenamento do país onde foi proferida e para que possa produzir os seus efeitos em Portugal, porquanto vincula um cidadão português.

Nestes termos, deve ser revogada a decisão recorrida, com a procedência do pedido para confirmação da união de facto celebrada através da escritura pública.


Por acórdão de 11.07.2019, a Formação a que alude o artigo 672º nº 3 do Código de Processo Civil, rejeitou o recurso de revista excepcional e ordenou a remessa dos autos à distribuição nos termos gerais.


O Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça contra-alegou, pugnando pela procedência do recurso e consequente rejeição do acórdão recorrido.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO


A) Fundamentação de facto


Mostram-se provados os seguintes factos:

1º - O requerente nasceu a … de Novembro de 1973, …, Brasil - (doc. fls. 8).

2º - A requerente nasceu a … de Setembro de 1981, … – (doc. fls 11).

3º - No dia 27 de Abril de 2018, no 15º Ofício de Notas …, …, Brasil, em Escritura Declaratória de União Estável, os ora requerentes declararam, além do mais, que “mantêm, sob o mesmo tecto, convivência pública, contínua e duradoura com o objectivo de constituição de família, desde o mês de Julho do ano de dois mil e treze (…)”; que “optam para essa união pelo regime de separação de bens, de acordo com o artº 1687º do Código Civil Brasileiro”; que ““é intenção de ambos que cada um, goze de todos os benefícios previdenciários (…) - (doc. junto a fls. 12 e 13)


B) Fundamentação de direito


A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, consiste em saber se estão reunidos os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da Escritura Pública Declaratória de União Estável.


Seguiremos de perto o nosso acórdão de 21.03.2019, proferido no processo nº 559/18.6YRLSB.S1[1].


Antes de darmos directamente resposta a esta questão, diremos o nosso sistema de reconhecimento das sentenças estrangeiras é informado pelo princípio da revisão predominantemente formal, ou seja, pelo controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito.

Deve tão-somente tomar-se em linha de conta a decisão contida na sentença estrangeira e não os respectivos fundamentos, como era geralmente entendido na vigência da versão anterior do preceito, por ser mais compatível com o nosso sistema de controlo das sentenças estrangeiras, que é fundamentalmente de revisão formal (ou de delibação)[2].


O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é, em regra, de revisão meramente formal.

Assim, o tribunal português competente para a revisão e confirmação, deve verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa.

Nessa perspectiva, se o tribunal nacional verificar que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa[3].

Este princípio de revisão formal é atenuado pelo estatuído no artº983º do Código de Processo Civil:


O sistema do direito português, como o do direito brasileiro, é, portanto, o do reconhecimento das sentenças estrangeiras mediante revisão ou controlo prévio (homologação). Antes de confirmada (homologada), a sentença não opera na ordem jurídica nacional os efeitos que lhe correspondem como acto jurisdicional. Ela é simplesmente um facto jurídico, cuja eficácia está pendente até que sobrevenha a condição legalmente requerida (condiciouiris), que é a decisão de confirmação ou homologação proferida no referido processo especial de revisão de sentença estrangeira[4].


O princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras tem por finalidade a garantia da estabilidade, uniformidade e certeza da regulamentação das situações jurídicas interindividuais da vida internacional, tendendo à realização do mesmo tipo de justiça do Direito Internacional Privado, ou seja, de uma justiça formal, sob pena de adesão a um sistema de justiça material, que implicaria a sujeição sistemática de todas as sentenças estrangeiras a uma revisão de mérito ou de fundo[5].


Nas palavras de Ferrer Correia, “reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos”[6].

Na génese das razões que podem explicar o reconhecimento de uma decisão estrangeira, radica uma necessidade de “assegurar a continuidade e estabilidade das situações da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as expectativas dos interessados não sejam ofendidos.”


Quanto ao sistema de reconhecimento, Portugal adoptou o sistema “segundo o qual o reconhecimento da sentença pressupõe a verificação prévia da sua regularidade, isto é, pressupõe a verificação no caso concreto das condições de que segundo a lei do país requerido depende a atribuição de eficácia às decisões dos tribunais estrangeiros. O sistema apresenta duas modalidades conforme seja ou não admitida a revisão de mérito. No segundocaso fala-se de sistema de delibação. É este o sistema seguido em Portugal, no Brasil e na Suíça[7].


O princípio da harmonia jurídica internacional limita-se a afirmar que o direito aplicável deve ser definido, por forma a que a solução a encontrar seja, tanto quanto possível, idêntica à assumida pelos outros Estados, em especial, por aqueles que, em relação ao mesmo litígio, reclamam a competência dos seus Tribunais, não assumindo, portanto, o conteúdo da decisão qualquer importância na determinação da lei aplicável.


O conteúdo da decisão a proferir não releva, em particular, para a finalidade das regras materiais em causa, logo que se tenha atingido o desígnio fundamental de atenuar, na medida do possível, a proliferação de conflitos com outros Estados.

O princípio da harmonia jurídica internacional, que mais não é do que um princípio do mínimo de conflitos, propicia uma oportunidade singular de evitar decisões discordantes entre o Estado do foro e o Estado cujo direito material é aplicável à questão principal[8].


O sistema de revisão de sentenças estrangeiras, estabelecido nos artigos 978º e seguintes de Código de Processo Civil, é um sistema que aponta para um reconhecimento facilitado das sentenças estrangeiras, dependente da mera verificação de determinados pressupostos simples, de ordem formal ou quase formal.


Não se trata de um sistema em que o tribunal nacional tenha que examinar o processo estrangeiro no qual foi proferida a sentença revidenda e, achando-a conforme, confirmá-la, dando-lhe o “exequatur”, o que implicaria maior morosidade e, levado até ao fim, inutilizaria a sentença estrangeira, obrigando à repetição de todo o processo, no foro nacional.

Não há, propriamente, um exame da sentença revidenda, no sentido de que o tribunal de revisão não aprecia o seu mérito, ou seja, se naquela sentença o julgamento foi ou não acertado. 

No entanto, existe sempre um limite para esta subserviência perante decisões estrangeiras: a não violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português[9].


O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 21.2.2006[10], considerou:

“A excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na alª) do artº 1096º (actual artº 980º) do Código de Processo Civil só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com o atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende.

Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português – núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, e que opera em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira.

O cabimento da reserva de ordem pública só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência”.


Como se escreveu no Acórdão deste Supremo de 3.7.2008[11]:

“Perante o direito processual anterior, entendia, maioritariamente, a jurisprudência que o nosso “sistema está enformado pelo princípio da revisão formal, só admitindo a revisão de mérito no caso da referenciada al. g) do art. 1096º do Código de Processo Civil, pelo que as disposições que esta alínea quer salvaguardar são aquelas que definem o respectivo direito e não as disposições que disciplinam a tramitação processual para que esse direito seja declarado pelos tribunais.

Esta mesma alínea visa proteger o próprio interesse do súbdito português, desobrigando-o de suportar as consequências de uma decisão proferida segundo uma lei diferente da sua lei natural” – (Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 5.6.86, 19.6.86 e 31.1.2002, in BMJ 358º, págs. 428 e 460 e CJ, I, pág. 68, respectivamente).

Isto significa que a revisão de mérito só teria lugar quando a decisão no tribunal estrangeiro fosse proferida contra português.

No preâmbulo do DL nº 329-A/95, sobre este artigo, foi dito que se aperfeiçoou o teor da al. f), pondo-se a tónica no carácter ofensivo da incompatibilidade da decisão com a ordem pública internacional do Estado Português.

Daí que, na situação actual, o obstáculo à revisão e confirmação não é mais o ser proferida contra português, mas apenas a salvaguarda dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

A exigência deste requisito está em consonância com o artº 22º do Código Civil, que estabelece que não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português.

No caso de revisão de sentença, a mesma só não será concedida quando contiver decisão que conduza a um resultado manifestamente incompatível com esses princípios”.


Não compete ao tribunal português apreciar do bem fundado da decisão e se a sua execução importa dificuldade para as partes; o critério é, em princípio, como dissemos, um critério de controlo formal[12].


Feita esta resenha sobre o princípio da revisão predominantemente formal, que informa o nosso sistema de reconhecimento das sentenças estrangeiras, voltamos ao caso concreto.


No caso dos autos, os requerentes apresentaram na petição inicial a Escritura Pública Declaratória de União Estável lavrada no Cartório do 15º Ofício de Notas da Tabeliã DD, …, perante entidade com competência para o efeito, segundo a lei brasileira – (docfls 12 e 13).


Dispõe o artigo 1723º do Código Civil brasileiro, que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homeme a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecidacom o objectivo de constituição de família”.


O artigo 978º do Código de Processo Civil estabelece a necessidade da revisão nos seguintes termos:

1 - Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.

2 - Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.


Sobre a amplitude do conceito de decisão para efeitos deste processo especial, Luís de Lima Pinheiro[13] escreveu: “por “decisão” entende-se qualquer acto público que segundo a ordemjurídica do Estado de origem tenha força de caso julgado. Há que aferir perante o Direito do Estado de origem se a decisão foi proferida por um órgão público e se tem força de caso julgado”.


O acórdão do STJ de 25-06-2013[14] - a propósito da escritura pública prevista no artigo 1124º-A do Código de Processo Civil Brasileiro (Lei nº 5869, de 11-01-1973), através da qual se pode realizar a separação consensual dos cônjuges, e prevista no artº 1580º do Código Civil Brasileiro -, decidiu que “os outorgantes não declaram a dissolução do vínculo conjugal. Pedem-na e o tabelião (notário) não se limita a testar as suas declarações, declara (decide) a dissolução, depois de verificados e preenchidos os requisitos legais”.


O caso dos presentes autos é diferente. Os requerentes não obtiveram na escritura uma decisão homologatória por parte da tabeliã que possa servir de base à presente revisão. Apenas declararam que “mantêm, sob o mesmo tecto, convivência pública, contínua e duradoura com o objectivo de constituição de família, desde o mês de Julho do ano de dois mil e treze (…)” – (docfls 12).


Por conseguinte, estamos perante um simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, ou seja, de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal, pelo que a mencionada escritura invocada pelos requerentes, fica excluída do processo de revisão de sentença estrangeira - artigo 980º nº 2 do CPC.


Num caso muito similar ao dos presentes autos, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 28-02-2019[15] decidiu:

“O direito brasileiro não exige uma decisão judicial para o reconhecimento da união de facto[16] e o direito português não exige que a prova seja feita por uma declaração da junta de freguesia competente. Em todo o caso, a prova feita por uma declaração da junta de freguesia não tem uma força superior à de uma escritura pública.

Como escrevem os Professores Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “A prova da união de facto é normalmente testemunhal; mas a possibilidade de prova documental não deve excluir-se. Interpretando com largueza o termo vida no artº 34º nº 1, do Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de Abril, que regula o modo como “os atestados de residência, vida e situação económica dos cidadãos” devem ser passados pelas juntas de freguesia, pode admitir-se que a junta de freguesia da residência dos interessados passe atestado comprovativo de que uma pessoa vive ou vivia em união de facto com outra. […]

Não se tratando, porém, normalmente, de facto atestado “com base nas percepções da entidade documentadora” (artº 371º nº 1, C.Civ), o documento não faz prova plena, podendo provar-se que o facto não é verdadeiro, pois a união de facto não existiu ou não existiu durante determinado período. O documento prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”[17].


Entre a força probatória da declaração emitida pela junta de freguesia e da escritura pública há uma relação de semelhança — como a declaração emitida pela junta de freguesia, a escritura “prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”.


E continua o referido acórdão de 28.02.2019, “nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem (muito menos) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” - com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada / revista”.


SUMÁRIO[18]

A declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem em união de facto desde Julho de 2013, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal.


III - DECISÃO


Atento o exposto, nega-se provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 10 de Dezembro de 2019


Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Maria dos Prazeres Beleza

________

[1] In www.dgsi.pt/jstj
[2]António Marques dos Santos, “Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras”, in “Aspectos do Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa, 1997, pág 141
[3]Alberto dos Reis – “Processos Especiais”, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, pág.141
[4]Ferrer Correia “O Reconhecimento das Sentenças Estrangeiras no Direito Brasileiro e no Direito Português”, in “Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado”, Almedina, 1989, pág.267.
[5]Ferrer Correia, Aditamentos às Lições de Direito Internacional Privado, Do Reconhecimento e Execução das Sentenças Estrangeiras, 1973, 17 e 18.
[6] Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, 2000, p. 454. “Os efeitos próprios da sentença considerada como tal – os que derivam da sua natureza de acto de jurisdição – são o efeito de caso julgado e o efeito executivo”.
[7]Ac STJ 26.05.2015, Proc.º nº 657/13.2YRLSB.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[8]Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, 1973, 40 e 41
[9]Ac STJ de 27.04.2017, Proc.º nº 93/16.9YRCBR.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[10]Proc. 05B4160, in www.dgsi.pt/jsjt
[11]Proc.08B1733, in www.dgsi.pt/jstj
[12]Ac STJ de 29.03.2011, Proc.º nº 214/09. 8YRERVR.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[13]Direito Internacional Privado, Volume III, Almedina 2002, página 240
[14] Proc.º nº 623/12.5YRLSB.S1, in www.dgsi.pt/jstj (Granja da Fonseca)
[15] Proc.º nº 106/18.0YRCBR.S1, in www.dgsi.pt/jstj(Nuno Manuel Pinto Oliveira).
[16]Como se escreve em Ricardo Fiúza / Regina Beatriz Tavares da Silva (coord.), Código Civil comentado, 8.ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2012, “[é] indispensável a demonstração da existência de união estável, em acção própria, em caso de litígio entre os interessados, sob pena de serem atribuídos direitos, inclusive sucessórios, sem que estejam presentes os respectivos requisitos. No entanto, com os instrumentos processuais da tutela antecipada e das acções cautelares, liminarmente, poderá haver o provimento jurisdicional, para acautelar direitos, como, p. ex., em acção de reconhecimento e dissoluçãõo de união estável com pedido cumulado de alimentos”.
[17]Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira (com a colaboração de Rui Manuel de Moura Ramos), Curso de Direito da Família, vol. I — Introdução. Direito matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade, Coimbra, 2016, págs. 71-72.
[18]Da responsabilidade do relator – artigo 663º nº 7 do CPC.