Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
306/10.0TCGMR.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: PRESUNÇÃO JUDICIAL
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
CONTRATO DE SEGURO
DEVER DE COMUNICAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 12/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
Doutrina:
- Alessandro Somma, «Il Diritto Privato Liberista», Themis, Ano II, n.º 4, 2001, p. 73.
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- Ana Prata, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Anotação ao Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 211, 223, 244.
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- Françoise Domont-Naert, Les relations entre professionnels et consommateurs en droit belge, in AAVV, La protection de la partie faible dans les rapports contractuel, LGDJ, Paris, 1996, p. 225.
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- Magali Bigot-Gonçalves, Les Assurances de Groupe, Presses Universitaires d’Aix Marseille, 2009, pp. 180, 192.
- Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 114-147.
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- Muriel Fabre-Magnan, De l’Obligation d’information dans les Contrats, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, pp. 421-422, apud Ana Prata, ob. cit., p. 223.
- Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, p. 423.
- Reynolds, p. 26, apud Ana Prata, ob. cit., p. 211.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 227.º, 232.º, 246.º, 247.º, 251.º
DL N.º 446/85, DE 25/10 COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO DL 220/95, DE 31 DE AGOSTO E PELO DL N.º 249/99, DE 7 DE JULHO: - ARTIGOS 1.º, 5.º, 6.º, 8.º, ALÍNEAS A) E B).
Referências Internacionais:
PRINCÍPIOS DE DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS: - ARTIGO 2:104.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 18-11-1999, PROCESSO N.º 99B869;
-DE 23-9-2003,CJ – ACÓRDÃOS DO STJ, ANO XI, TOMO III, P. 43;
-DE 09-12-2004, PROCESSO N.º 04S2390;
-DE 22-06-2005, PROCESSO N.º 1497/05-1;
-DE 29-11- 2005, PROCESSO N.º 05B3162;
-DE 18-04-2006, PROCESSO N.º 06A818;
-DE 12-09-2006, PROCESSO N.º 06A1994;
-DE 30/10/2007, PROCESSO N.º 07A3048;
-DE 23-10-2008, PROCESSO N.º 08B2977;
-DE 22-01-2009, PROCESSO N.º 08B3301;
-DE 05-11-2009;
-DE 07-01-2010, PROCESSO N.º 5175/03.4TBAVR.C1.S1;
-DE 20-01-2010, PROCESSO N.º 2963/07.6TVLSB.L1.S1;
-DE 03-02-2010, PROCESSO N.º 304/07.1TTSNT.L1.S1;
-DE 08-04-2010, PROCESSO N.º 3501/06.3TLSB.C1.S1;
-DE 29-04-2010,PROCESSO N.º 5477/8TVLSB.L1.S1;
-DE 17-02-2011, PROCESSO N.º 1458/056.7TBVFR-A.P.S1;
-DE 24-03-2011, PROCESSO N.º 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1;
-DE 29-03-2011, PROCESSO N.º 1295/04.6TBMFR.L1.S1;
-DE 03-03-2013, PROCESSO N.º 241/08.2TTLSB.L1.S1.
Sumário :
I – A decisão sobre a admissibilidade do uso de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação depende do respeito, ou não, pelos pressupostos legalmente estabelecidos quanto ao exercício dos seus poderes: a utilização de presunções não pode ofender normal legal, ser ilógica ou partir de factos não provados.

II – A exigência de comunicação deve ser cumprida na íntegra, devendo ser adequada e atempada, não se exigindo ao aderente mais do que a diligência comum, aferida em abstracto, mas tendo em conta as circunstâncias típicas de cada caso.

III – O dever de informação assume uma natureza personalizada e abrange a extensão da cobertura dos riscos e a medida exacta dos direitos e obrigações previstos no contrato, pressupondo iniciativas da empresa utilizadora e não apenas um papel passivo desta.

IV – Deve ter-se por deficientemente cumprido o dever de comunicação, quando a empresa utilizadora envia ao aderente uma nota informativa acerca da cláusula litigiosa, sem que demonstre qual o conteúdo exacto desta nota e qual a data do envio da mesma, para que o tribunal possa aferir do requisito da antecedência necessária a uma adequada formação da vontade do aderente.

V – Não cumpriu o dever de informação, a empresa utilizadora que não demonstra ter chamado a atenção do aderente, de forma especial, para uma cláusula prejudicial aos interesses deste.    

VI – A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa, exigindo-se a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjectiva para a materialidade da situação.

VII – Não constitui abuso do direito a situação do segurado que, decorridos seis anos após a celebração do contrato de seguro, invoca a exclusão de uma cláusula por falta do cumprimento dos deveres de comunicação e de informação, sendo completamente natural e nada contraditório, que o cidadão assine o contrato, confiando que não vai encontrar percalços na sua execução, e reaja apenas quando esses percalços, normalmente imprevisíveis na data da celebração do contrato, surgem. 

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

AA e mulher, BB, residentes na Rua ..., n.º ..., freguesia de ..., Guimarães, instauraram acção declarativa sob a forma de processo ordinário, contra Companhia de Seguros CC, S. A., com sede no ..., nº ..., Lisboa, alegando, no essencial, que, tendo contraído um empréstimo junto de uma instituição bancária, celebraram com a ré, por imposição da Caixa DD, um seguro do ramo vida, tendo como coberturas morte, invalidez total e permanente por doença e invalidez total e permanente por acidente ocorrido com as pessoas seguras, sendo tomadora aquela instituição.

O autor marido veio a padecer de doença, tendo-lhe sido diagnosticada, em ... de Janeiro de 2007, “neoplasia cólon descendente”, que o tornou total e permanentemente incapaz para o trabalho, com atribuição de uma IPG de 72%. Na sequência deste diagnóstico, exerceu o autor o direito de accionar o contrato de seguro para, assim, obter o pagamento do capital em dívida referente ao mútuo, responsabilidade que a ré recusa assumir, invocando que “à data do sinistro a cobertura que se pretende accionar já se encontrava excluída do contrato pelo facto da Pessoa Segura ter atingido o limite de idade previsto nas Condições da Apólice”.

Alegam, ainda, os autores, que, aquando da outorga do contrato de seguro, limitaram-se a assinar e a aceitar o clausulado que a ré lhes apresentou, aderindo a esse modelo, não o tendo discutido nem estipulado qualquer conteúdo. O autor alega que, na data da celebração do contrato estava em boas condições físicas, perto de celebrar 60 anos de idade, e que celebraria os 70 anos antes do terminus do contrato de mútuo. Não obstante, não lhe foi comunicada e explicada a exclusão contratual, em violação do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro. Atendendo à proximidade etária do autor em relação aos limites da exclusão contratual, se tal lhes tivesse sido comunicado e explicado, os autores não teriam celebrado o contrato de seguro.

Entendem os autores que tal facto determina a exclusão da referida cláusula contratual, ao abrigo do art. 8.º, al. a), do mesmo diploma legal, devendo a ré responder pelo pagamento do capital em dívida à Caixa DD, no valor de € 153.370,90.

Terminam, deduzindo o seguinte pedido, no articulado:

«Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, consequentemente:
a) Ser a cláusula referente ao art.º 2º, parágrafo 2º das Condições particulares do Seguro do Ramo Vida, apólice nº …, certificado ......, considerada excluída do respectivo contrato singular de seguro;
b) Ser declarada a invalidez total e permanente do A. por doença;
c) Ser a R. condenada a liquidar à Caixa DD a quantia de € 153.370,90;
d) Ser a R. condenada a pagar aos A.A. as prestações já pagas desde a data da declaração da invalidez total e permanente do A. e até assunção por parte daquela do pagamento da quantia mutuada pela Caixa DD;
e) Todas aquelas quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
f) E, ainda, ser a R. condenada nas custas e demais encargos legais.» (sic)

Citada, a ré contestou a acção, impugnando parcialmente os factos.

Alegou que, quando, em 22 de Agosto de 2001, o autor marido aderiu ao seguro em causa tinha 57 anos de idade e foi informado, verbalmente e por escrito, de todas as cláusulas essenciais daquele seguro de grupo do ramo vida, e em especial, daquela que prevê que, independentemente da duração do contrato, as respectivas coberturas cessem quando a pessoa segura atinge os 60 anos de idade para o caso da cobertura de Invalidez Total e Permanente por Doença, ou quando atinge a idade de 70 anos para as demais coberturas.

Alegam que foi entregue aos autores, à altura da adesão, uma “nota informativa” igual ao documento junto a fls. 103.

Mais referiu a ré que, para além disso, foi também entregue ao autor cópia das “Condições Gerais, Especiais e Particulares” do contrato de seguro. 

Concluiu que a acção deve ser julgada improcedente.

Os autores replicaram, impugnando parte da matéria da contestação, reafirmando que a ré não cumpriu o dever de informação e que nem sequer entregou cópia das condições gerais e particulares da apólice. 

Dispensada a audiência preliminar foi proferido despacho saneador tabelar e seleccionada a matéria de facto, com factos assentes e base instrutória, de que as partes não reclamaram.

Na instrução, foi junto documento comprovativo da idade do autor marido, de onde resulta que nasceu no dia 9 de Janeiro de 1944.

Teve lugar a audiência de julgamento, que culminou com respostas fundamentadas em matéria de facto, a que se seguiu a prolação da sentença, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:

«Em face do exposto, decido:

- julgar procedente a presente acção, e em consequência:

- excluir a cláusula referente ao art.º 2º, parágrafo 2º das Condições particulares do Seguro do Ramo Vida, apólice nº …, certificado ......, do respectivo contrato singular de seguro;

- declarar a invalidez total e permanente do A. por doença, para efeitos do referido contrato;

- condenar a ré a liquidar à Caixa DD a quantia que, com referência ao contrato referido na alínea a) dos factos provados, se encontrar atualmente em dívida;

- condenar a R. a pagar aos A.A. as prestações já pagas desde a data da declaração da invalidez total e permanente do A. e até assunção por parte daquela do pagamento da quantia mutuada pela Caixa DD, acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde a citação e até efectivo e integral pagamento.» (sic)

Inconformada, a ré recorre para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, após ter notificado as partes para que se pronunciassem sobre a questão nova do abuso do direito para prevenir eventual decisão-surpresa, decidiu, através de acórdão datado de 4 de Março de 2013, considerar a apelação procedente, revogando a sentença do tribunal de 1.ª instância e absolvendo a ré seguradora do pedido. 

      Inconformados com esta decisão, interpõem os autores recurso de revista para este Supremo Tribunal, integrando nas alegações de recurso apresentadas, as seguintes conclusões:

«1 – O tribunal de 1.ª instância deu por não provado o quesito 1.º e atribui uma redacção diferente aos quesitos 2.º e 3.º da Base Instrutória, por considerar que a prova produzida não foi suficiente e porque contraria as regras de experiência.

2 – Da sentença proferida pela primeira instância apenas foi interposto recurso de apelação pela Seguradora/recorrida para o Tribunal da Relação de Guimarães para controlo da matéria de direito.

3 – Daí que a Relação ao socorrer-se, ainda que não expressamente, de presunções judiciais para concluir que “o que houve, quando muito, foi um incumprimento imperfeito (não absoluto) do dever de comunicação, mas sem que se justificasse uma especial informação, por não haver necessidade objectiva de aclaração da cláusula”, violou o estatuído pelo art. 351.º C. Civil, uma vez que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.

4 – Para além disso, no processo civil, vigoram regras fundamentais sobre os requisitos de alegação e prova de factos para que uma determinada pretensão ou oposição que seja deduzida obtenha vencimento.

5 – E, se a um determinado quesito o Julgador da primeira instância responde “não provado”, por considerar que a prova produzida pela Ré não foi suficiente, não pode vir depois a segunda instância suprir por via da presunção judicial a carência de prova dum facto sujeito a julgamento, pois tal constitui a violação do princípio do dispositivo e do princípio geral do ónus da prova.

6 – Nessa medida, ao socorrer-se de presunções judiciais, a Relação violou frontalmente a lei substantiva por erro de interpretação ou aplicação, não só por aquelas não serem aqui admissíveis, como também por “in casu” não poder suprir-se por via da presunção judicial a carência de prova de um facto sujeito a julgamento.

7 – Porém, e sem prescindir, sempre se dirá que, analisado o teor das cláusulas contratuais gerais, especiais e particulares do contrato, quando conjugadas entre si, somos levados a concluir que não andou bem o tribunal “a quo” ao afirmar que as cláusulas ínsitas no contrato de seguro sub judice são explícitas e de fácil compreensão.

8 – Em primeiro lugar, porque qualquer homem médio não distingue condições especiais das condições particulares, e o certo é que, nas condições especiais, a extinção da cobertura complementar de invalidez total e permanente, quer por acidente quer por doença, verifica-se aos 65 anos de idade, enquanto nas condições particulares, a cobertura de invalidez total e permanente por doença termina quando a pessoa segura atingir os 60 anos de idade e por acidente quando atingir os 65 anos, não obstante tal seguro poder ser contratado por cliente até aos 65 anos de idade!!!

9 – Também do doc. 2 junto com a contestação, resulta que o seguro acompanha o prazo de empréstimo no máximo até os clientes atingirem os 70 anos de idade, estipulando, porém, prazos diferentes para as coberturas por acidente, 65 anos, e por doença, 60 anos, não obstante, e mais uma vez, estarem autorizados a contratar tal seguro as pessoas com idade até aos 65 anos!

10 – Pelo que, sabendo-se que quando o A. contratou o seguro em causa, ou seja, em 22 de Agosto de 2001, tinha 57 anos de idade, sempre a Ré tinha a responsabilidade acrescida de explicar devidamente que, apesar de o prazo de amortização do contrato de crédito subjacente ao contrato de seguro ser de 25 anos, os recorrentes só teriam direito ao seguro até aos 70 anos de idade; que em caso de acidente e/ou doença, este não teria a cobertura de seguro até aos 70 anos de idade; que, em caso de acidente o A. só teria direito à cobertura do seguro até aos 65 anos de idade; que, em caso de doença, ao contrário do previsto nas cláusulas especiais, o A. só teria a cobertura do seguro até aos 60 anos der idade; e que, apesar de todas estas limitações de idade, o A. podia cair no absurdo de contratar o seguro até aos 65 anos de idade, não obstante nessa altura já estarem excluídas as coberturas complementares de invalidez total e permanente quer por acidente, quer por doença!!

11 – Todavia, e sem prescindir, sempre se dirá que não andou bem o tribunal “a quo” ao considerar que o caso sub judice era enquadrável na figura do abuso de direito (o que nem sequer passou pelas cogitações da própria recorrida), na modalidade do venire contra factum proprium e do exercício em desequilíbrio;

12 – Na verdade, o que se infere do art. 334.º, sobretudo da expressão manifestamente, é que o exercício de um direito só poderá taxar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, isto é, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, pág. 299 e Vaz Serra, in "Abuso de Direito", BMJ, n.º 85, pág. 253 (sublinhado nosso);

13 – Aquele normativo assenta, essencialmente, no princípio vulgarmente designado por princípio da confiança, que consiste no facto de as pessoas deverem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros;

14 – É desse princípio (cláusula geral) que reside a proibição do venire contra factum proprium, isto é, do exercício do direito por alguém em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado.

15 – No caso sub judice, não existe qualquer fundamento para sustentar a tese que a conduta dos recorrentes tenha criado na recorrida a plena certeza (confiança) de que nunca viriam a invocar a nulidade das cláusulas ínsitas no contrato de seguro, mas, em contrapartida, já se pode conceber a ideia de que a recorrida, sabia da necessidade de informar e esclarecer, atempadamente e na íntegra, o teor de tais cláusulas, desde logo porque estamos perante um contrato em que um dos contraentes (recorrentes) se limita a uma pura aceitação ou rejeição das cláusulas de um contrato de adesão (protecção da parte mais débil no contrato), e o certo é que, o contrato de seguro dos autos tem particularidades que, necessariamente, teriam de ser esclarecidas.

16 – Além disso, não tem qualquer tradução com as regras da lógica e da experiência que alguém, de bom senso, contrata e paga um seguro que lhe cobre riscos por poucos anos E CONTINUA A PAGÁ-LO MESMO DEPOIS DE O RISCO NÃO ESTAR COBERTO.

17 – Quanto à figura do exercício em desequilíbrio apontada pelo tribunal “a quo”, do acórdão recorrido resulta que os Venerandos Desembargadores limitam-se, tão só, a referir que o resultado pretendido pelo A. “configura exercício em desequilíbrio e violação da confiança criada na parte contrária no sentido de que o contrato seria cumprido”

18 – Porém, o exercício em desequilíbrio só tem lugar nas seguintes situações: quando o titular é movido pela intenção exclusiva de prejudicar ou de fazer mal a outrem (exercício cumulativo); quando o exercício do direito não representa qualquer vantagem para o seu titular, enquanto dele resulte para outrem um sacrifício injusto (exercício danoso inútil ou injustificado), ou; quando se verifique uma desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o prejuízo que causa a outrem (desproporção no exercício).

19 – Ora, do que supra já se deixou dito não se vislumbra em que situação é que o tribunal “a quo” enquadra o comportamento alegadamente abusivo dos AA.

20 – Assim, e em suma, dir-se-á que os recorrentes agiram dentro dos limites e de acordo com os juízos de valor normativamente consagrados relativamente à invocação da nulidade da cláusula referida na al. E) dos factos provados, não podendo, por isso, concluir-se pela verificação no caso dos pressupostos do abuso do direito, razão pela qual não pode sustentar-se que os recorrentes estão a exercer o seu direito em termos clamorosa e intoleravelmente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.

21 – Donde, resultar evidente que ao revogar a douta sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância violou o douto acórdão recorrido o disposto nos arts. 227.º, 239.º, 437.º, 342.º, 351.º e 762.º todos do C. Civil, o art. 264.º do C.P. Civil e os arts. 1.º, n.º 1, 5.º, 6.º e 8.º do DL 446/85, de 25 de Outubro, na redacção dada pelo DL n.º 220/95 de 31/08.

Termos em que deve ser concedida a revista e, em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido, julgando a acção procedente e a Ré condenada no pedido, com as legais consequências.»

      A ré apresentou contra-alegações, em que pugna pela confirmação do acórdão recorrido.

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artigos 684.º, n.º 3, e 685.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes: 
1) Utilização de presunções judiciais pelo tribunal a quo e sindicância destas pelo Supremo Tribunal de Justiça;
2) Exclusão de cláusula de contrato de seguro do ramo vida, por incumprimento dos deveres de comunicação e de informação;
3) Abuso do direito.

Cumpre decidir.

II – Fundamentação de facto

São os seguintes os factos considerados provados pelas instâncias: 

«a) Por escritura pública celebrada a 22 de Agosto de 2001, na Agência da Caixa DD, situada no Largo …, em Guimarães, EE, em representação da Caixa DD, declarou que esta concedia aos Autores um empréstimo da quantia de Esc. 40.000.000$00, importância de que estes declaravam confessar-se solidariamente devedores, empréstimo esse a reger-se pelas cláusulas da escritura e de um documento complementar cujo conteúdo os Autores declararam conhecer e aceitar (doc. de fls. 14 a 24);

b) Declararam também os Autores que, em garantia do capital emprestado, dos respetivos juros à taxa anual de 9,544%, acrescida, em caso de mora, de uma sobretaxa até 4% ao ano a título de cláusula penal, das despesas emergentes do contrato que para efeitos de registo se fixavam em Esc. 1.600.000$00, constituir hipoteca sobre o seguinte imóvel: prédio urbano composto por uma casa de rés-do-chão e primeiro andar, com uma dependência e logradouro, situado no lugar ..., da freguesia de ..., concelho de Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º …-..., ao qual atribuíam o valor de Esc. 46.000.000$00 (doc. de fls. 14 a 24);

c) No documento complementar referido em A) encontra-se previsto que o prazo de amortização do empréstimo é de vinte e cinco anos, a efetuar em prestações mensais constantes, de capital e juros, através da conta de depósito à ordem n.º … (doc. de fls. 19 a 24);

d) Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, a Ré assumiu a garantia do pagamento à Caixa DD do capital máximo em dívida por cada anuidade referente à conta n.º …, em caso de morte, invalidez total e permanente por doença ou por acidente do A. AA, desde 22 de Agosto de 2001, pelo prazo de 25 anos, sendo o capital de € 171.139,52 desde 1 de Janeiro de 2007 (doc. de fls. 32);

e) Consta do artigo 2.º § 2.º das condições particulares da apólice referida em D) que:

a) a cobertura de invalidez total e permanente por doença termina quando a pessoa segura atingir a idade de 60 anos;

b) todas as outras garantias conferidas por esta apólice cessam, para cada pessoa segura, logo que esta atinja a idade prevista em cada cobertura ou, na falta dessa previsão, aos 70 anos (doc. de fls. 29 a 31).

f) Em ... de Agosto de 2007 foi diagnosticada ao Autor neoplasia do cólon ascendente;

g) A doença referida em F) impossibilita o Autor de trabalhar;

h) Foi atribuída ao Autor uma IPG de 72% em conformidade com a Tabela Nacional de Incapacidades;

i) O Autor é considerado portador de uma invalidez total e permanente;

j) Os Autores participaram à Ré a ocorrência dos factos no sentido de acionar o seguro para que esta assumisse o pagamento do valor em dívida à Caixa DD;

k) Por carta datada de 21 de Dezembro de 2009, a Ré recusou, alegando não lhe ser possível “proceder ao pagamento da indemnização solicitada uma vez que à data do sinistro a cobertura que se pretende acionar já se encontrava excluída do contrato pelo facto da pessoa segura ter atingido e limite de idade previsto nas condições da apólice (doc. de fls. 28).

l) Ao Autor foi entregue uma nota informativa semelhante à que consta de fls. 103;

m) Ao Autor foi enviada cópia das condições gerais, especiais e particulares.»

III – Fundamentação de direito

 
1) Das presunções judiciais

Alega o recorrente que o acórdão recorrido utilizou presunções judiciais ou de experiência para suprir a falta de prova de factos, sem que a recorrida seguradora tenha impugnado a matéria de facto, procedimento que considera não ser admissível. 

Tem-se entendido que o Tribunal da Relação, no exercício do seu poder de avaliação e interpretação da matéria de facto, pode utilizar presunções judiciais e regras de experiência. Conforme o decidido no acórdão deste Supremo Tribunal, de 09-12-2004, processo n.º 04S2390, Fernandes Cadilha (Relator): «O Tribunal da Relação pode exercer poderes de interpretação sobre a matéria de facto disponível, utilizando juízos de normalidade que se traduzem numa presunção judicial».

Amâncio Ferreira entende, com o apoio da jurisprudência e da doutrina significativas, entende que «(…) a Relação pode, mediante presunções judiciais, fundadas nas máximas de experiência, nos princípios da lógica ou nos juízos correntes de probabilidade, deduzir outros factos a partir dos factos apurados na 1.ª instância, mas não pode, em regra, alterar as presunções judiciais utilizadas na 1.ª instância, com base nos factos nelas averiguados. O comportamento da Relação baseado nessa faculdade é insindicável pelo STJ, por se reportar a julgamento da matéria de facto[1]. (…) Contudo, continua o autor, citando o acórdão do Supremo Tribunal, de 23 de Setembro de 2003 (CJ – Acórdãos do STJ, ano XI, tomo III, p. 43), «o acatamento pelo STJ das ilações extraídas dos factos provados, pressupõe a verificação de duas condições: que a conclusão ou ilação não altere os factos apurados e que ela seja a consequência lógica desses factos; daí, e por serem inadmissíveis as ilações ou conclusões que não correspondam ao desenvolvimento lógico da matéria de facto dada como provada, competir ao Supremo, como tribunal de revista, censurar a decisão das instâncias que, no que respeita a conclusões ou ilações de factos, infrinja o apontado limite»[2].

Conforme se estipula na jurisprudência deste Supremo Tribunal, a sindicância do uso destas presunções é uma questão de direito, cognoscível por este Supremo Tribunal, quando estas não decorrem logicamente da factualidade provada e não provada, das respostas positivas e negativas aos quesitos, e/ou constituem violação do princípio do dispositivo, por visarem suprir a carência de prova de um facto sujeito a julgamento:

«As presunções são ilações que a lei ou o julgador tira dum facto conhecido para firmar um facto desconhecido, conforme estabelece o artigo 349.º do CC. Tratando-se dum meio probatório que é admitido para prova de factos susceptíveis de serem demonstrados por prova testemunhal, conforme determina o artigo 351.º do CC, está por isso vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso deste meio probatório pelas instâncias, visto a sua competência, afora as situações de controlo de prova tabelada, se restringir a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos fixados pelas instâncias, conforme resulta dos artigos 722.º, n.º 3 e 729.º, n.º 1, do CPC. No entanto, já poderá o Supremo Tribunal de Justiça aferir se as presunções extraídas pelas instâncias violam os artigos 349.º e 351.º do CC, por se tratar duma questão de direito, podendo assim sindicar se as ilações foram inferidas de forma válida, designadamente se foram retiradas dum facto desconhecido, por não ter sido dado como provado, e bem assim se contrariam ou conflituam com a restante matéria de facto que tenha sido dada como provada, após ter sido submetida ao crivo probatório.» [(vide acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 03 de Março de 2013, Gonçalves Rocha (Relator), Processo n.º 241/08.2TTLSB.L1.S1)][3].

Seguindo a mesma orientação, veja-se o acórdão de 05-11-2009, Oliveira Rocha (Relator):

 «I - A Relação, dentro da competência que a lei lhe confere em matéria de facto, pode fazer uso das presunções judiciais, as quais não podem ser censuradas pelo STJ se forem extraídas dos factos provados com base em máximas de experiência, não alterarem esses factos e apenas representarem a sua decorrência lógica.

II - Porém, se essas ilações não forem a decorrência lógica dos factos provados ou se implicarem a prova de factos que contrariem as respostas afirmativas ou negativas aos quesitos ou a prova de factos nem sequer alegados, então já o Supremo as pode apreciar e censurar, por se estar perante alteração não prevista no art. 712.º, n.º 1, do CPC, ou perante matéria de facto não alegada pelas partes, com violação da parte final do art. 664.º, do mesmo Código.» 

E, ainda, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 29 de Novembro de 2005, Bettencourt Faria (relator), Processo n.º 05B3162, onde se afirma que: «Com efeito, é entendimento jurisprudencial o de que não se pode suprir por via da presunção judicial a carência de prova dum facto sujeito a julgamento».

A decisão sobre a admissibilidade do uso de presunções pelo Tribunal da Relação depende do respeito, ou não, pelos pressupostos legalmente estabelecidos quanto ao exercício dos seus poderes: a utilização de presunções não pode ofender normal legal, ser ilógica ou partir de factos não provados[4].

            Sendo assim, vamos analisar se o uso destas presunções respeitou a factualidade provada e não provada, e se é, ou não, um procedimento que decorre logicamente desta factualidade.

            Atentemos nos seguintes excertos do acórdão recorrido:

«É certo que não se provou – e não seria fácil provar – que a nota informativa entregue ao A. corresponde exactamente à de fls 103, mas ficou assente a entrega de uma nota informativa semelhante. Semelhante quer dizer idêntica ou análoga.

Ora, se se tratou de uma nota informativa análoga, não podemos presumir que não o era (análoga à de fls 103) no âmbito da informação sobre “Início e Duração do Contrato”, até porque a informação corresponde, ao menos na parte que aqui interessa, ao conteúdo do artigo 2º, § 2º das condições particulares da apólice contratada com os A.A., tudo indicando que aquela instituição financeira alertava e informava os clientes aderentes sobre as questões contratuais mais relevantes. E fê-lo, no caso, em termos análogos, idênticos ou semelhantes aos que constam de fls 103.»

(…)

«O que houve, quanto muito, foi um cumprimento imperfeito (não absoluto) do dever de comunicação, mas sem que se justificasse uma especial informação, por não haver necessidade objetiva de aclaração da cláusula. A R. só não provou que a comunicação das cláusulas contratuais foi efetuada com antecedência necessária e adequada ao perfeito conhecimento das cláusulas gerais e avaliação da vantagem, para o A., de contratar em conformidade.»

Com efeito, as presunções judiciais simples ou juris tantum, a que recorreu o tribunal a quo para nelas alicerçar a sua decisão, divergem da factualidade provada, pois, não se tendo demonstrado que o envio da nota informativa e da apólice tivesse sido anterior ao da adesão ao contrato (deu-se outra redacção aos quesitos 2.º e 3.º), nem se tendo provado o esclarecimento verbal sobre o conteúdo e significado da cláusula de exclusão da cobertura (deu-se como não provado o quesito 1.º), tal não permite inferir o cumprimento o dever de informação, ainda que de forma imperfeita. E, como se tem entendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal: «As presunções judiciais não podem suprir as respostas negativas aos pontos da matéria de facto» (acórdão de 07-01-2010, processo n.º 5175/03.4TBAVR.C1.S1, Bettencourt Faria)[5].

Por outro lado, o acórdão recorrido exerceu uma valoração sobre a prova testemunhal que não pode fazer, em sede de recurso de apelação, quando não lhe tenha sido pedida alteração da matéria de facto, tentando, desse modo, relativizar o facto de não se ter provado o quesito 1.º e de os quesitos 2.º e 3.º terem sido introduzidos na matéria de facto com outra formulação. Atente-se no seguinte excerto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães:
«É de salientar que a resposta ao quesito 2º se inspirou nos depoimentos dos funcionários bancários, referindo a testemunha FF - conforme consta da fundamentação da decisão em matéria de facto - que “… é facultada ao cliente informação escrita, semelhante à que consta de fls. 103, não podendo agora afirmar que foi essa efetivamente a nota informativa entregue ao autor. Os elementos mais essenciais do contrato (data de início e termo do seguro, exclusões, coberturas) são transmitidos aos clientes que, em caso de dúvida, poderão pedir mais esclarecimentos.” E a testemunha GG que “…a nota informativa constante de fls. 103 é semelhante àquela que era entregue aos clientes no momento em que preenchiam e assinava a proposta de adesão, não podendo no entanto confirmar que fosse exatamente aquela.”»
(…)
«É curioso notar o modo como o tribunal recorrido justificou a resposta negativa ao quesito 1º (da alegação da R.). Pergunta-se ali: “Aquando da proposta de adesão formulada pelo A. este foi informado pelos representantes da R. das cláusulas de seguro em especial da referida em E?”. Diz o tribunal, a fls. 227, na fundamentação das respostas aos quesitos, para não dar crédito a referências efetuadas pelos funcionários do Banco, em especial a testemunha GG, que lidou diretamente com o A. e referiu ter-lhe explicado o conteúdo do contrato: “Não nos parece plausível, por um lado, que sentisse necessidade de explicar o que era um seguro de vida a alguém que estava a “renegociar” um empréstimo com outra entidade e, por outro lado, que do extenso clausulado que envolve o contrato de seguro, tivesse sentido necessidade de lhe explicar justamente as cláusulas que estão em causa neste processo quando outras há de mais difícil compreensão”.»

Na falta de prova do esclarecimento verbal do autor e do momento do envio da apólice e da nota informativa, bem como do conteúdo exacto da mesma, não se pode concluir pelo cumprimento dos deveres de comunicação e de informação, constituindo, em nosso entender, a conclusão do acórdão recorrido de que o dever de comunicação foi cumprido, embora de fora imperfeita, uma presunção judicial que extravasa dos factos provados e não provados e que assenta num raciocínio que não é admitido pela lei, que adjudica o ónus da prova do cumprimento dos deveres de comunicação e de informação à empresa utilizadora de cláusulas contratuais gerais (art. 5.º, n.º 3 do DL 446/85, de 25 de Outubro).

Uma vez que a lei, no art. 5.º, n.º 3 do DL 446/85, de 25 de Outubro, imputa o risco da insuficiência de prova à seguradora, a decisão lógica, de acordo com as regras do ónus da prova, é a decisão desfavorável à Seguradora – o incumprimento dos deveres de comunicação e de informação – e não a conclusão de que foi cumprido o dever de comunicação, embora de forma imperfeita, como entendeu o acórdão recorrido.  

 

Sendo assim, procedem as conclusões n.º 1 a 6 da alegação de recurso dos recorrentes.


2) Exclusão de cláusula de contrato de seguro do ramo vida, por incumprimento dos deveres de comunicação e de informação.

1. A questão que se coloca prende-se com a formação do contrato, do ponto de vista da sua aceitação. Para que as cláusulas pré-estabelecidas, com vista à celebração do contrato, devam considerar-se parte integrante dele, é sempre necessária a respectiva aceitação pela outra parte, a qual só pode ocorrer se esta tiver conhecimento dessas componentes da proposta negocial. A não ser assim, não pode falar-se de uma livre, consciente e correcta formação de vontade, isenta dos vícios a que se alude nos arts. 246.º, 247.º e 251.º do CC, defendendo a doutrina francesa, no domínio das cláusulas contratuais gerais, o alargamento pela jurisprudência das causas de anulabilidade por vícios da vontade[6].

O art. 232.º do CC consagra o princípio do consensualismo, impondo a coincidência entre a proposta e a aceitação relativamente aos elementos essenciais do negócio, sob pena de não conclusão do contrato. Supõe-se que, nos contratos de adesão, se garanta ao aderente um cabal e efectivo conhecimento do clausulado que integra o projecto ou proposta negocial. Tal significa que, na hipótese de omissão do dever ou ónus de comunicação de certas cláusulas de um contrato de adesão, o aderente apenas se torna parte de um contrato cujo clausulado corresponde ao conteúdo efectivamente comunicado.

No caso dos autos, as condições do contrato de seguro estavam já elaboradas quando os autores aderiram ao mesmo, não tendo tido estes a possibilidade de influenciar o seu conteúdo, pelo que é aplicável o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (art. 1.º do DL 446/85, de 25/10 com as alterações introduzidas pelo DL 220/95, de 31 de Agosto e pelo DL n.º 249/99, de 7 de Julho).

Importa, também, esclarecer que, o thema decidendum que se discute, neste processo, é a questão de saber se as diligências feitas pela ré Companhia de Seguros para cumprir os deveres de comunicação e de informação, previstos nos arts 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25 de Outubro, são suficientes.

Os autores invocam a exclusão de uma cláusula constante de um contrato de seguro de vida, que acompanha o empréstimo à habitação, por violação dos deveres de comunicação e de informação, a que se referem os arts 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25 de Outubro.

A cláusula contratual em causa (artigo 2º, § 2º, das Condições Particulares da Apólice) afirma o seguinte:

«A cobertura de Invalidez Total e Permanente por Doença termina quando a pessoa segura atingir a idade de 60 anos. Todas as outras garantias conferidas por esta apólice cessam, para cada pessoa segura, logo que esta atinja a idade prevista em cada cobertura ou, na falta dessa previsão, aos 70 anos» (cf. doc. de fls. 29 a 31 e item e) dos factos provados).

  

A ré Seguradora assumiu-se como titular dos deveres de informação e de comunicação previstos nos arts 5.º e 6.º da DL 446/85, de 25 de Outubro, pelo que importa analisar se cumpriu, ou não, estas obrigações, de acordo com a lei.

            O Tribunal de 1.ª instância decidiu favoravelmente ao autor, condenando a seguradora ao pagamento à Caixa DD da quantia em dívida e das prestações que tenham sido pagas pelos autores, desde a data da declaração de invalidez até à data da assunção da dívida pela seguradora. 

O fundamento da decisão foi a violação do dever de informação a cargo da seguradora relativamente ao conteúdo da cláusula de exclusão da cobertura do risco a partir dos 60 anos, tendo o tribunal considerado que não se provou o teor concreto do documento intitulado “nota informativa” nem se demonstrou que a seguradora tivesse enviado cópia das cláusulas contratuais gerais em momento prévio à celebração do contrato, nem que os representantes da ré tivessem esclarecido os autores, no momento da celebração do contrato, da cláusula referida na alínea E) dos factos provados.

O acórdão recorrido revogou a sentença de 1.ª instância com fundamento no carácter simples e compreensível da cláusula em litígio, a qual não exigia qualquer obrigação de informar, entendendo que, apesar de a seguradora ter cumprido, de forma imperfeita, o dever de comunicação, o segurado, invocando a exclusão da cláusula, agiu em abuso do direito por só o ter feito cerca de seis anos após a celebração do contrato, aquando da declaração de invalidez:

«O que houve, quanto muito, foi um cumprimento imperfeito (não absoluto) do dever de comunicação, mas sem que se justificasse uma especial informação, por não haver necessidade objetiva de aclaração da cláusula. A R. só não provou que a comunicação das cláusulas contratuais foi efetuada com antecedência necessária e adequada ao perfeito conhecimento das cláusulas gerais e avaliação da vantagem, para o A., de contratar em conformidade.

Mas só depois de lhe sobrevir a invalidez é que o A. vem invocar a violação do dever de comunicação.

Esta conduta do A. atenta contra o princípio da boa fé, por violação da expetativa fundada, da confiança, que a R. criara de que o contrato continuaria a ser respeitado, já que nada fazia supor que o A., ao fim de tanto tempo, não lera e não compreendera o teor hialino daquela cláusula contratual geral.

A violação do princípio da confiança revela normalmente um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou --- “venire contra factum proprium” --- que se enquadra na expressão legal “manifesto excesso”.

A proceder a argumentação dos A.A. e a produzir-se o efeito jurídico pretendido, surgiria uma desproporcionalidade abissal entre a enorme vantagem auferida por eles e o sacrifício imposto à R. pelo exercício daquele direito, de tal modo que esta seria colocada na obrigação de pagar a quase totalidade do valor do empréstimo garantido quando, na realidade, cumpriu, ainda que de modo imperfeito (mas sem que a imperfeição atinja o contrato de modo relevante), o dever de comunicação, sem que ao A. tivesse estado coartado o direito de ler o contrato, a nota informativa recebida (de sentido explicativo), entregues pela tomadora, e de contactar a R. para qualquer efeito, nomeadamente no sentido de renegociar o contrato, ou mesmo de o denunciar. Estaríamos, anacronicamente, perante o desencadear de poderes-sanção por uma falta que se tornou de escassa relevância face à negligência do A., à facilidade com que ele, desde logo no próprio dia da adesão --- e, por maioria de razão, depois dessa data, ao longo de anos --- se poder ter apercebido do sentido, unívoco, da cláusula geral que só agora coloca em crise.  

O resultado pretendido pelo A. corresponderia a um exercício em desequilíbrio integrante de um tipo residual de atuações inadmissíveis, onde, como é de esperar, se manifestam, de modo informe, os grandes vetores que concretizam a boa fé e que correspondem a dados básicos do sistema.  Constituiria uma clara injustiça para a R. seguradora, um manifesto excesso a que obstam os princípios da boa fé contratual e da confiança, a tutela da primazia da materialidade subjacente e a necessidade, imposta pela ordem jurídica no seu todo, de evitar o desequilíbrio no exercício dos direitos. O A. exerce aqui o seu direito de modo anormal e excessivo, tentando alcançar um resultado oposto ao que uma consciência razoável poderia tolerar.»

2. A Parte Geral do Código Civil tratou o negócio jurídico como uma figura estrutural, totalmente abstracta e desligada de qualquer função. Mas na ciência jurídica actual, as pessoas não são concebidas, em termos abstractos, como partes iguais de um contrato, considerando-se, antes, o seu papel concreto no domínio das operações económicas e das relações sociais.

O regime jurídico das cláusulas contratuais gerais constitui um regime especial tutelador, em face do direito comum dos contratos que continua centralizado nos princípios da liberdade e da auto-responsabilidade, presumindo a igualdade entre os sujeitos.

Este regime especial visa conter os efeitos disfuncionais da liberdade contratual e proteger determinada categoria de sujeitos, os aderentes, os quais se encontram integrados em formas estruturais que geram situações de poder a favor de organizações, numa situação que tipicamente os impossibilita de uma autotutela dos seus interesses. Estão, assim, desprovidos de qualquer poder negocial em relação à fixação do conteúdo dos contratos que assinam, sem possibilidade de negociar ou de fazer contrapropostas, e sem alternativas à aceitação formal de cláusulas redigidas pela contraparte, que encaram como uma «inevitabilidade» necessária para terem acesso a bens ou serviços essenciais à sua sobrevivência e qualidade de vida.  

Dada a disparidade de poder entre as partes do contrato de adesão, assume um papel decisivo a garantia do “modelo de informação” ou “imperativo de transparência”, cuja finalidade é potenciar a formação consciente e ponderada da vontade negocial, parificando posições de disparidade cognitiva, quer quanto ao objecto, quer quanto às condições do contrato[7].

Reconhece-se que a liberdade de contratar assenta em pressupostos cognitivos e que a necessidade de transparência e de informação, reportada à fase da formação da vontade, permite combater «a estrutural assimetria informativa entre as partes», e exige ao profissional «deveres positivos de informação, de acordo com parâmetros quantitativos e qualitativos capazes de afiançarem a integralidade, a exactidão e a eficácia de comunicação»[8]. O princípio da transparência adequa-se, ainda, ao discurso argumentativo próprio do pensamento civilista, pois a sua função é instrumental à autonomia privada, permitindo criar condições para o seu exercício. O objectivo deste modelo é, assim, o de melhorar a qualidade do consentimento do consumidor, e também, corrigir o desequilíbrio das prestações, bem como promover a defesa da justiça interna do contrato[9].

Para averiguar se o aderente usa da diligência média ou comum para tomar conhecimento das cláusulas destes contratos, importa analisar a postura da generalidade dos cidadãos diante desta forma de tráfego negocial e conhecer a realidade humana e social implícita neste tipo de contratação.

Os estudos da análise económica revelam que o aderente, dada a impossibilidade de participação na modelação do conteúdo, não encontra motivação para se deter no estudo das condições gerais do contrato nem para comparar as condições oferecidas pela contraparte com as das empresas concorrentes, o que provoca um nivelamento por baixo do conjunto das condições gerais, não funcionando, neste contexto, o mecanismo individual de autotutela dos interesses nem o mecanismo colectivo da concorrência[10]. Por outro lado, a contratação em massa, dirigida a um conjunto indeterminado de destinatários, permite às empresas impor a sua vontade, e obter, para além da redução dos custos com a celebração dos contratos, outras vantagens económicas, através da deslocação indevida dos riscos para os aderentes e do aumento potencial das cláusulas abusivas. Diz-se a este propósito que «a parte mais forte ficou em condições de legislar por contrato, de uma maneira substancialmente autoritária»[11].

A moderna teoria dos contratos defende uma mudança de orientação no direito dos contratos, traduzida na passagem do paradigma do liberalismo económico, em que o contrato era visto como o resultado de interesses antagónicos negociados com dureza e egoísmo, para um nova concepção de contrato baseada num princípio de respeito pelos interesses do outro e numa ética de cooperação e de solidariedade [12] 

Este novo paradigma, resultante da crise do pensamento liberal sobre o contrato, exige às organizações utilizadoras de cláusulas contratuais gerais novos deveres destinados a suprir a desigualdade estrutural entre as partes dos contratos de adesão, entre os quais se destacam os deveres de comunicação e de informação previstos nos arts. 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25 de Outubro e, em geral, o dever de não lesar os interesses da contraparte e os deveres pré-contratuais de lealdade,  conselho, correcção, assistência e cooperação, decorrentes do art. 227.º do Código Civil.

O art.º 5.º, n.º 1 prevê, para o dever de comunicação, que “as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las”. De acordo com subsequente o nº 2, “a comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência”.

O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contraente que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.” (n.º 3 do art. 5.º).

 No âmbito do dever de informação, o art. 6.º dispõe:

1 - O contraente que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.

2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.

Quanto ao efeito da violação de qualquer um daqueles deveres, o art. 8.º do prevê que se considerem excluídas do contrato as cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do art. 5.º (al. a); e as cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo (al. b).

A inclusão de cláusulas contratuais gerais depende de uma efectiva comunicação e de uma efectiva informação ao aderente.

A comunicação das cláusulas deve ser clara e precisa e a informação completa, abrangendo as características do bem ou do serviço, a extensão dos riscos cobertos e a medida exacta dos direitos e obrigações previstos no contrato[13]. O direito à informação é um direito fundamental dos consumidores, e não se basta com o envio de uma nota informativa pela empresa utilizadora, assumindo um conteúdo mais vasto, que implica um dever de aconselhamento[14]. Este dever de conselho pode ser definido como uma obrigação de assistência que supõe não só uma grande lealdade, mas um verdadeiro serviço prestado ao aderente, e inclui um dever de chamar a atenção deste para cláusulas cujo conteúdo possa não corresponder às suas necessidades e situação pessoal ou que sejam «perigosas» para os seus interesses[15]. O cumprimento dos deveres de comunicação e de informação deve ser feito com a antecedência suficiente para esclarecer cabalmente o aderente dos efeitos jurídicos das cláusulas.

Trata-se de verdadeiros encargos, em sentido técnico, que, por isso, assumem uma intensidade superior à dos meros requisitos de validade dos negócios e que correspondem aos vectores presentes no art. 227.º, n.º 1 do CC[16]. Contudo, a sua inobservância não exige culpa e tem como consequência, não a obrigação de indemnizar, mas apenas a não-inclusão da cláusula conforme estipulado no art. 8.º [17].

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que basta, para se considerar cumprido o dever de comunicação, a possibilidade de o aderente conhecer o conteúdo das cláusulas, com a antecedência necessária para que lhe seja permitido reflectir e tomar uma decisão, não se exigindo a prova de que efectivamente o aderente tomou conhecimento:

Acórdão de 18-04-2006: «1- O dever de comunicação das cláusulas contratuais constante do artigo 5º do Decreto-lei nº 466/85 de 25 de Outubro destina se a que o aderente conheça antecipadamente o conteúdo contratual, isto é, as cláusulas a inserir no negócio. 2- Esse dever acontece na fase de negociação, ou pré-contratual, e deve ser acompanhado de todos os esclarecimentos necessários, possibilitando ao aderente conhecer o significado e as implicações das cláusulas. 3- Nas cláusulas contratuais gerais, por constarem de texto pré-elaborado, a adesão faz se com a emissão da proposta e aceitação do modelo.» (Processo n.º 06A818, Relator: Sebastião Póvoas).

- Acórdão do STJ, de 20-01-2010: «Estabelece a lei o princípio de que a comunicação deve ter em consideração a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, de forma a que o aderente, usando da diligência própria do cidadão médio, normal ou comum, possa aceder a um conhecimento completo e efectivo»; «(…)o dever de comunicação consagrado no art. 5º da LCCG visa “possibilitar ao aderente o conhecimento antecipado da existência das cláusulas contratuais gerais que irão integrar o contrato singular, bem como o conhecimento do seu conteúdo, exigindo-lhe, para esse efeito também a ele um comportamento diligente» (Processo n.º 2963/07.6TVLSB.L1.S1, n.º Relator: Alves Velho).

- Acórdão de 29-04-2010: «I – Ao proponente cabe propiciar à contraparte a possibilidade de conhecimento das cláusulas contratuais gerais de um contrato de seguro, em termos tais que este não tenha, para o efeito, que desenvolver mais que a comum diligência. II – Se o autor assinou a proposta de seguro de acordo com factualidade que não lhe foi devidamente explicada, devem ter-se por excluídas do contrato as cláusulas que não tenham sido comunicadas, nos termos do art. 5º do dec-lei 446/85.» (Processo n.º 5477/8TVLSB.L1.S1, Relator: Azevedo Ramos).

A doutrina pronuncia-se no mesmo sentido. É o caso Almeno de Sá[18], para quem não basta a mera comunicação, sendo ainda necessário que ela seja feita de tal modo que proporcione à contraparte a possibilidade de um conhecimento completo e efectivo do clausulado e que se realize de forma adequada e com certa antecedência, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, como impõe a lei. Entende também o autor que «não basta a mera invocação de um “dever saber” que recairia sobre o cliente, quer no que concerne à normal utilização de condições gerais pelo proponente nos contratos que habitualmente celebra, quer no que respeita ao conteúdo dessas condições», precisando que «não é o cliente quem deve, por iniciativa própria, tentar efectivamente conhecer as condições gerais, é ao utilizador que compete proporcionar-lhe condições para tal», e sempre num momento anterior ao da vinculação definitiva[19].

Menezes Cordeiro[20] salienta que a exigência de comunicação deve ser cumprida na íntegra, entendendo-se que a comunicação deve ser feita a todos os interessados directos (art. 5.º, n.º 1), e que deve ser adequada e atempada, não se exigindo ao aderente mais do que a diligência comum (art. 5.º, n.º 2), aferida em abstracto, mas tendo em conta as circunstâncias típicas de cada caso. Já o dever de informação (art. 6.º) visa assegurar que as cláusulas foram efectivamente entendidas pelo aderente e pressupõe iniciativas da empresa utilizadora e não apenas um papel passivo desta.

Para Ana Prata[21], a redacção do n.º 2 do art. 5.º «é deliberada e inevitavelmente vaga porque o conteúdo concreto da obrigação de comunicação depende do tipo de contrato, das circunstâncias da conclusão dele, do seu objecto e conteúdo, da natureza e da preparação das partes que nele intervêm. Trata-se de uma obrigação de extensão e intensidade variáveis, em função da condição relativa das partes, da complexidade (quer jurídica, quer técnica) do conteúdo contratual, bem como de outras circunstâncias da concreta situação em que o contrato é concluído.» Na expressão da doutrina francesa, é uma «obrigação personalizada»[22].

Sousa Ribeiro[23] defende que a intensidade e o grau do dever de informação dependem do conteúdo da cláusula: «o próprio conteúdo da estipulação influi no grau de transparência exigível. Assim, para as cláusulas inabituais, e, por isso, inesperadas, em função do tipo de contrato e dos seus fins, deve ser chamada a atenção por forma a que a sua consciencialização por quem use da diligência exigível não deixe dúvidas razoáveis. Para que ao aderente não seja apanhado de surpresa por este tipo de cláusulas, elas, a mais de compreensíveis nos seus termos, devem ser “assinaladas com uma bandeira” (…)» ou «redigidas em caracteres vermelhos (“red hand”) ou em formato destacado»[24].

Segundo o artigo 2:104 dos Princípios de Direito Europeu dos Contratos “as cláusulas que não tenham sido objecto de uma negociação individual não podem ser invocadas contra uma parte que não as conhecia, salvo se a parte que as invoca tiver tomado medidas razoáveis para chamar a atenção da outra para elas antes da conclusão do contrato” e “a mera referência feita a uma cláusula por um documento contratual não chama a atenção da contraparte para ela de forma satisfatória, mesmo quando esta última assinou o documento”.

 

3. Feito o enquadramento jurídico do caso, importa agora decidir o caso concreto dos autos.

A realidade sócio-económica e psicológica associada aos contratos de seguro do ramo vida e o contexto em que são celebrados, quando ligados a um contrato de mútuo para habitação - bem essencial para a vida dos segurados – contribui, quer para reduzir a atenção do segurado sobre o conteúdo do contrato de seguro, visto como elemento meramente acessório em relação ao empréstimo, quer para a seguradora se aproveitar desta situação, inserindo cláusulas contratuais gerais prejudiciais aos interesses do segurado. Daí a necessidade de, como bem destaca o acórdão de 22 de Junho de 2005 (processo n.º 1497/05-1), relatado pelo Conselheiro Moreira Alves, «(…) considerar o interesse dos aderentes que decorre naturalmente da ligação funcional entre o contrato de empréstimo, o contrato de seguro e o acto de adesão a este último, interesse esse que, os mais elementares princípios da boa fé exigem seja protegido, sob pena de a adesão ao contrato de seguro que o banco mutuante exige ao trabalhador seu devedor, com o inerente encargo de suportar o custo do respectivo prémio, não passar de simples artifício destinado a obter mais uma prestação a favor da seguradora, muitas vezes ligada ao grupo de que o banco faz parte…». 

No caso concreto, há ainda que atender a outras circunstâncias. Tendo já o aderente 57 anos de idade, e constando do contrato uma cláusula especial de exclusão da cobertura do risco de invalidez a partir dos 60 anos, esta informação devia ter sido prestada pessoal e verbalmente pelos profissionais, o que não se provou ter sucedido. É certo que se provou que a seguradora enviou ao segurado uma nota informativa de teor semelhante à que consta a fls. 103 dos autos. Contudo, constituindo a nota informativa um documento anexo ao contrato, não basta o mero envio da mesma - ignora-se a data do seu envio e o seu conteúdo exacto - para assim se poder aferir da possibilidade de o aderente conhecer o conteúdo da cláusula e tomar uma decisão esclarecida e racional. Seria necessário que além desse envio, o utilizador provasse ter esclarecido o aderente de que o conteúdo dessa nota informativa faz parte do contrato e que se certificasse do conhecimento da mesma, pelo aderente, na data da conclusão do contrato. Nos casos em que não se verifica qualquer esclarecimento verbal que assinale o conteúdo e os efeitos da cláusula litigiosa, como no caso sub judice, não estão cumpridos os deveres de comunicação e de informação. Note-se, ainda, que as condições particulares do contrato, onde se encontra integrada esta cláusula limitativa da cobertura do risco, estão localizadas no fim do texto da apólice. Em primeiro lugar, surgem as condições gerais e em segundo lugar, as condições especiais, nas quais se prevê que a cobertura do risco de invalidez por doença se verifica até aos 65 anos de idade, surgindo, apenas, em último lugar, a cláusula particular de exclusão do risco de doença incapacitante a partir dos 60 anos. Ora, não é exigível que uma pessoa comum saiba que as condições particulares, localizadas no fim da apólice e que só garantem o risco até aos 60 anos, prevalecem sobre as condições especiais. A verdade é que a ideia que a pessoa comum tem destes contratos é que eles garantem o risco de morte e de invalidez até à data da extinção do contrato de mútuo, cabendo às empresas utilizadoras deste tipo de contratação esclarecer os aderentes dos vários limites introduzidos à cobertura e provar, quando demandadas em tribunal, que efectivamente cumpriram os deveres de comunicação e de informação. Os tribunais não podem deixar de exercer um efectivo e rigoroso controlo sobre as empresas utilizadoras, dado o enorme poder de que estas dispõem.

No caso concreto, havia ainda uma outra circunstância que exigia cautelas suplementares à seguradora: a proximidade da idade do autor, aquando da celebração do contrato, em relação aos 60 anos, momento a partir do qual ficaria excluída a cobertura do risco de doença incapacitante para o trabalho.

A doutrina tem entendido que a consideração das circunstâncias que rodearam a conclusão do contrato pode exigir ao utilizador que chame a atenção do aderente para certas cláusulas, seja pela referência expressa a elas, seja pela informação, mesmo oral, do significado de uma ou de várias cláusulas[25].

Como tem decidido, de modo uniforme, a jurisprudência deste Supremo, a conformação destes deveres de comunicação e de informação ganha contornos especiais quando estamos perante sujeitos com poder contratual desequilibrado, com conhecimentos e experiências negociais e jurídicos desiguais[26] e tem de verificar-se de modo a que o aderente possa compreender o conteúdo do contrato nas suas consequências jurídico-práticas, outorgando-lhe um espaço de reflexão e ponderação[27], com antecedência em relação à assinatura do contrato, para permitir a livre formação da vontade do aderente e uma escolha consciente e prudente[28]. A comunicação deve abranger a totalidade das cláusulas e ser feita de modo adequado e pessoal, e com antecedência compatível com a extensão e complexidade do contrato, de modo a tornar possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência[29].

 Sabe-se pela experiência da vida que o mais comum é os aderentes confiarem nas explicações de um funcionário do profissional-utilizador, sem lerem as cláusulas escritas do acordo, por falta de tempo e de capacidade para compreender os seus efeitos. E que tal atitude, de tão generalizada que é, não pode considerar-se falta de diligência comum ou razoável. Veja-se, a este propósito, a posição da doutrina:

Para Ana Prata, a diligência média exigida ao aderente varia em função das características do sujeito, da sua preparação cultural e da sua maior ou menor vulnerabilidade. No contexto da contratação de massas, pode dizer-se que a comum diligência exigida tem de ser de baixo nível[30], por força da impossibilidade prática de o aderente influir no conteúdo do contrato e de uma atitude generalizada de confiança ou conformismo, que faz com que as pessoas se demitam de um esforço que sabem ser inglório.

Neste sentido, afirma também Galvão Telles[31]: «não se diga que o aderente, deixando de ler todas as cláusulas, ou não as meditando com o devido cuidado, revela negligência que o torne desmerecedor de protecção particular: o facto é tão geral que não significa negligência, aferida esta pelo padrão médio de homem».

Cabia, portanto, ao utilizador, assinalar, de forma especial, a cláusula susceptível de prejudicar o aderente, no caso concreto, a validade da cobertura do risco de incapacidade por doença só até aos 60 anos, bem como comunicá-la com a antecedência suficiente para permitir uma esclarecida formação da vontade.

Não se tendo demonstrado o esclarecimento verbal do segurado, acerca do conteúdo e efeitos da cláusula de exclusão da cobertura, nem o momento do envio da nota informativa nem o seu conteúdo exacto, de modo a tornar possível a reflexão e a decisão livre de contratar ou não, as regras do ónus da prova (art. 5.º, n.º 3 do DL 446/85, de 25 de Outubro) impõem decisão favorável ao autor. E nem se diga que resulta assim dificultada a prova pela empresa utilizadora.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre a inversão do ónus da prova, veja-se o acórdão de 23 de Outubro de 2008, Salvador da Costa (Relator), processo n.º 08B2977:

«A regra é no sentido de que aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos seus factos constitutivos (artigo 342º, nº 1, do Código Civil). Com efeito, os direitos de que umas pessoas são titulares no confronto de outras têm a sua origem em factos jurídicos que os constituem, pelo que se elas deles se pretenderem valer em juízo têm, em regra, de os alegar e provar, ou seja, devem demonstrar a sua realidade. Todavia, a referida regra inverte-se quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus de prova ou convenção ou disposição legal nesse sentido (artigo 344º, nº 1, do Código Civil).

 No caso vertente, conforme acima se referiu, resulta da lei que o ónus de prova da comunicação adequada e efectiva cabia à recorrida, ou seja, estamos perante uma excepção ao que se prescreve no n.º 1 do artigo 342º, prevista genericamente no nº 2 do artigo 344º, ambos do Código Civil.»

No mesmo sentido, o acórdão de 17-02-2011, processo n.º 1458/056.7TBVFR-A.P.S1, Távora Victor (Relator):

«I - O “contrato de adesão” na sua forma pura poderá definir-se como sendo “aquele em que uma das partes, normalmente uma empresa de apreciável dimensão formula unilateralmente as cláusulas negociadas e a outra parte aceita essas condições mediante a adesão ao modelo ou impresso que lhes é apresentado, não sendo possível modificar o ordenamento negocial apresentado”.

II - Entre o contrato de adesão e o contrato consensual não existe todavia uma dicotomia absoluta, havendo ainda a considerar uma figura híbrida, o “contrato de adesão individualizado”, onde a par de cláusulas que se mantêm inalteráveis de contrato para contrato, se verifica a inserção de disposições específicas moldadas no interesse das partes e em particular do aderente; estes contratos têm uma regulamentação diversificada, de harmonia com a índole das normas que deles constam.

III - Tendo em consideração a superioridade em que por via de regra o proponente do contrato de adesão se encontra perante o cliente que ao mesmo adere, a lei procura, através de mecanismos legais - entre nós o DL 446/85 - que a decisão deste último seja tomada no pleno conhecimento de todos os termos contratuais, onerando o primeiro com o ónus da prova que os comunicou de forma cabal ao aderente.

IV - Sendo omitido aquele ónus em relação a cláusulas fulcrais para o negócio tido em vista, terão as mesmas que considerar-se excluídas, o que pode afectar integralmente os termos do contrato com reflexo sobre os direitos e obrigações constituídos pelo mesmo.»

E, ainda, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 24-03-2011, Granja Fonseca (Relator), processo n.º 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1:


«O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe à parte que utilize as cláusulas contratuais gerais (art. 5.º, n.º 3). Deste modo, o utilizador que alegue contratos celebrados na base de cláusulas contratuais gerais deve provar, para além da adesão em si, o efectivo cumprimento do dever de comunicar (cf. art. 342.º, n.º 1, CC), sendo que, caso esta exigência de comunicação não seja cumprida, as cláusulas contratuais gerais consideram-se excluídas do contrato singular (art. 8.º, al. a)). Para além da exigência de comunicação adequada e efectiva, surge ainda a exigência de informar a outra parte, de acordo com as circunstâncias, de todos os aspectos compreendidos nas cláusulas contratuais gerais cuja aclaração se justifique (art. 6.º, n.º 1) e de prestar todos os esclarecimentos razoáveis solicitados (art. 6.º, n.º 2).»

Tratando-se o contrato de seguro dos autos de um contrato de adesão baseado em cláusulas contratuais gerais, sobre nada terá o aderente de fazer prova, antes incumbindo ao predisponente ilidir a presunção de que não tomou as medidas adequadas para dele dar “conhecimento completo e efectivo” ao aderente.

O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante determinado que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.

As regras do ónus da prova não têm uma natureza estritamente processual, mas repercutem-se nas posições substantivas das partes, constituindo uma forma de o legislador se pronunciar sobre a regulação e a hierarquia dos interesses em conflito[32], dando um sinal ao julgador de que deve considerar com particular cuidado os interesses do aderente, a parte mais fraca do contrato, e acentuar as responsabilidades dos utilizadores.

A questão deve, assim, ser resolvida em prejuízo de quem tinha o ónus de prova, não só por razões formais, mas também por razões materiais, ligadas à protecção da parte mais fraca: o risco da insuficiência de prova corre contra a parte a quem a lei atribuiu o respectivo ónus, equivalendo a falta de prova a uma decisão desfavorável relativamente à parte onerada, por ser o sujeito mais forte, que exerce o poder de estipulação sem negociação prévia e que domina o conteúdo do contrato por si unilateralmente estabelecido. 

            Sendo assim, decidimos que a cláusula 2.ª das «Condições Particulares» do Seguro do Ramo Vida a que o autor aderiu deve ser excluída do contrato, nos termos do art. 8.º, als. a) e b) do DL 446/85, de 25 de Outubro, e declarada inoponível ao segurado, por sobre ela não ter recaído consenso, devido à inobservância dos deveres de  comunicação e de informação.         

Procedem, portanto, as conclusões n.º 7 a 10 da alegação de recurso dos recorrentes.

 


3. Abuso do direito  

Considera o acórdão recorrido que o segurado, pagando os prémios do contrato de seguro durante cerca de seis anos, sem ter invocado qualquer incumprimento dos deveres de informação da seguradora, incorreu em abuso do direito, nas modalidades de venire contra factum proprium e de desequilíbrio de posições jurídicas, quando, anos mais tarde, invoca a exclusão da cláusula relativa à cobertura de invalidez, por incumprimento do dever de comunicação da mesma, e só após ter ficado com uma incapacidade de 72%.

O venire contra factum proprium consiste no exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta anteriormente assumida pelo agente, que suscitou, justificadamente, a confiança da outra parte. A mudança de atitude do sujeito viola a confiança gerada, na contraparte, pelo comportamento anterior, quando não tem nenhum factor que a justifique[33]. Ora, sendo o factum proprium um facto voluntário, ao qual se aplicam as disposições respeitantes às declarações de vontade, deve entender-se que um factum proprium, que foi praticado num contexto de falta de liberdade negocial e de falta de informação, pode ser contraditado, sem que tal signifique violação da boa fé ou da confiança da outra parte.

Tudo o que dissemos sobre a realidade humana e social deste tipo de contratação explica o comportamento do segurado e confere justificação à sua mudança de comportamento, estando, portanto, afastada a figura do venire. Como vimos, os aderentes não se preocupam com o conteúdo destas cláusulas, que conhecem mal ou de todo não conhecem, dada a complexidade das mesmas e a perda de tempo que implica o seu estudo para um leigo, num contexto em que é inútil a sua negociação, pois, como se sabe, o aderente não tem mais poder do que o de assinar ou não o contrato, não gozando de qualquer liberdade de fixação do conteúdo do mesmo. Daí que seja completamente natural e nada abusivo nem contraditório, que o cidadão assine o contrato, confiando que não vai encontrar percalços na sua execução e reaja apenas quando esses percalços, normalmente imprevisíveis na data da celebração do contrato, surgem. 

No contexto humano, social e económico da contratação de massa, o segurado, que reage contra uma cláusula que o prejudica, vários anos após a celebração do contrato, não pode ser equiparado ao senhorio que invoca a nulidade do contrato de arrendamento após ter executado o contrato e recebido as rendas, durante anos, criando a expectativa, no inquilino, de manutenção do contrato nulo. É que a aplicação do instituto não se desprende da análise das relações de poder na celebração do contrato, e, nos contratos de adesão, o aderente é a parte mais fraca, menos assessorada e informada, enquanto a empresa goza de vantagens informativas e organizacionais inegáveis. No mesmo sentido, se orientou, no domínio do direito do consumo, o acórdão deste Supremo Tribunal, de ...-10-2007, 07A...48, Fonseca Ramos (Relator):

«Quanto à ponderação de abuso do direito por parte do consumidor que invoca vícios do contrato, após o início da sua execução, o Tribunal deve actuar com particular prudência, já que, na relação de financiamento à aquisição de bens de consumo, é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a entidade financiadora da aquisição, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres cooperação, de lealdade, e informação, em suma os princípios da boa fé.» 

Mesmo dentro da lógica da fundamentação adoptada pelo acórdão recorrido, entendemos que, na falta de prova do conhecimento efectivo da cláusula pelo segurado, nunca poderia recorrer-se à figura do venire para paralisar o exercício do seu direito. Esta solução seria excessiva e injusta para um contraente débil, que não pode negociar o conteúdo dos contratos que assina, que não tem tempo nem conhecimentos para compreender o conteúdo dos mesmos, e que está dependente de empresas em situação de oligopólio ou monopólio para ter acesso a bens que são essenciais para si.

Relativamente ao desequilíbrio de posições jurídicas, na modalidade de exercício de um poder sanção pelo segurado, por uma falta mínima ou de escassa importância da seguradora, entendemos que esta modalidade de abuso do direito não se verifica. Com efeito, dada a hierarquia de valores reflectida no diploma que regula as cláusulas contratuais gerais, maxime, nas regras específicas de distribuição do ónus da prova, bem como a desigualdade económica entre a utilizadora e o aderente, não se pode considerar um resultado desproporcionado obrigar a seguradora a cobrir ao segurado o risco de invalidez, pois esta não demonstrou ter cumprido os seus deveres de comunicação e de informação relativamente à cláusula de exclusão, como lhe competia. Num contexto económico-social, em que a maior parte dos portugueses adquire habitação própria com empréstimo bancário, e paga, durante uma parte substancial da sua vida, prémios às Companhias de Seguro para garantia do risco vida ou invalidez, com o objectivo de solidariedade e de socialização do risco, não pode afirmar-se ser um sacrifício excessivo onerar as seguradoras com o pagamento das dívidas, sobretudo, se não esclareceram devidamente o segurado acerca das cláusulas particulares de exclusão.

Acrescente-se que, a haver má fé, seria da seguradora e não do segurado. Com efeito, aquela, de acordo os princípios da justiça contratual e do equilíbrio das prestações, devia ter comunicado ao segurado, quando este perfez 60 anos, o fim da cobertura do risco de invalidez, para que o prémio fosse proporcionalmente reduzido à diminuição do âmbito de cobertura do contrato, como seria justo e exigível a um contraente de boa fé e que zela pelos interesses do outro.

Como tem defendido Menezes Cordeiro[34], a aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa. Por outro lado, a aplicação do instituto exige a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo[35], sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjectiva para a materialidade da situação.

Sendo assim, por incumprimento dos deveres de comunicação e de informação, pela seguradora, e, na falta dos requisitos do abuso do direito pelo segurado, consideramos excluída a cláusula constante do art.º 2.º, parágrafo 2.º das Condições particulares do Seguro do Ramo Vida, e condenamos a Seguradora a:

- Liquidar à Caixa DD o valor actual da dívida do empréstimo à habitação;

- Reembolsar os autores do valor das prestações por estes pagas a partir da data da declaração da invalidez total e permanente do autor e até assunção por parte da Seguradora do pagamento da quantia mutuada pela Caixa DD;

- Pagamento de juros à taxa de 4% ao ano sobre os valores acima referidos.

Procedem, portanto, as conclusões n.º 11 a 21 da alegação de recurso dos recorrentes.

IV – Decisão

Termos em que se acorda, neste Supremo Tribunal de Justiça, conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença de 1.ª instância.

Custas a cargo da recorrida.

Lisboa, 2 de Dezembro de 2013

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Sebastião Póvoas

Moreira Alves

____________________
[1] Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 228.
[2] Ibidem, p. 228, nota 439.
[3] Neste sentido, vide acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-02-2010, processo n.º 304/07.1TTSNT.L1.S1, Sousa Grandão (Relator).
[4] Cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por presunção no direito civil, 2.ª edição, Coimbra, 2013, p. 165. No mesmo sentido, vide acórdão do STJ, de 29-03-2011, Revista n.º 1295/04.6TBMFR.L1.S1 – 1.ª Secção: «Embora as presunções judiciais se situem no domínio da matéria de facto, o STJ pode sindicar o uso daquelas pela Relação, averiguando se elas ofendem qualquer norma legal, se padecem de alguma ilogicidades ou se partem de factos não provados.»
[5] No mesmo sentido, acórdão de 12-09-2006, Alves Velho (Relator), processo n.º 06A1994.
[6] Cf. Jacques Ghestin, «Les Contrats d’Adhésion et les Clauses Abusives en Droit Français et Européens», in La Protection de la Partie Faible dans les Rapports Contractuels, Comparaisons Franco-Belges, LGDJ, Paris, 1996, p. 21.
[7] Cf. Joaquim de Sousa Ribeiro, Direito dos Contratos, Estudos, Coimbra editora, Coimbra, 2007, p. 49.
[8] Ibidem, p. 61.
[9] Cf. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, p. 423.
[10]  Joaquim de Sousa Ribeiro, ob. cit., p. 63.
[11] Cf. Kessler/Gilmore, Contracts. Cases and Materials, 1970, apud Sousa Ribeiro, Cláusulas Contratuais Gerais e o paradigma do contrato, Coimbra, 1990, p. 193.

[12] Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 114-147; Brigitta Lurger, «The “Social” Side of Contract Law and the New Principle of Regard and Fairness», in Hartkamp et al., Towards a European Civil Code, Third Fully Revised and Expanded Edition, London, 2004, p. 285; Alessandro Somma, «Il Diritto Privato Liberista», Themis, Ano II, n.º 4, 2001, p. 73.
[13] Cf. Magali Bigot-Gonçalves, Les Assurances de Groupe, Presses Universitaires d’Aix Marseille, 2009, p. 180.
[14] Cf. Françoise Domont-Naert, Les relations entre professionnels et consommateurs en droit belge, in AAVV, La protection de la partie faible dans les rapports contractuel, LGDJ, Paris, 1996, p. 225; Magali Bigot-Gonçalves, Les Assurances de Groupe, ob. cit., p. 180.
[15] Magali Bigot-Gonçalves, Les Assurances de Groupe, ob. cit., pp. 180 e 192.
[16] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 621-622.
[17] Ibidem, p. 622.
[18] Cf. Almeno de Sá, Cláusulas contratuais gerais e directivas sobre cláusulas abusivas, Almedina Coimbra, 2001, pp. 240-241.
[19] Ibidem, pp. 241-242.
[20] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, ob. cit.
[21] Cf. Ana Prata, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Anotação ao Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, Coimbra, 2010, p. 223.
[22] Cf. Muriel Fabre-Magnan, De l’Obligation d’information dans les Contrats, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, pp. 421-422, apud Ana Prata, ob. cit., p. 223.
[23] Cf. Sousa Ribeiro, ob. cit., p. 92
[24] Cf. Reynolds, p. 26, apud Ana Prata, ob. cit., p. 211.
[25] Ana Prata, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, ob. cit., p. 211.
[26] Cf. acórdão de 22-01-2009, Santos Bernardino (Relator), processo n.º 08B3301.
[27] Cf. acórdão de 08-04-2010, Lopes do Rego (Relator), Processo n.º 3501/06.3TLSB.C1.S1.
[28] Cf. acórdão de 18-11-1999, Ferreira de Almeida (Relator), processo n.º 99B869.
[29] Cf. acórdão de 30-10-2007, Fonseca Ramos (Relator), processo n.º 07A303048.
[30] Cf. Ana Prata, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Anotação ao Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, Coimbra, 2010, p. 244, salientando que, em Portugal, a preparação cultural dos cidadãos, para defenderem os seus interesses junto das empresas utilizadoras, é em média mais reduzida do que nos países europeus mais desenvolvidos.
[31] Cf. Galvão Telles, Manual dos Contrato em geral, pp. 313-314.
[32] Neste sentido Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 113.
[33] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 275.
[34] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Livraria Almedina, 1999, pp. 197-198.
[35] Ibidem, p. 196-198.