Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3496/16.5T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CUMULAÇÃO DE INDEMNIZAÇÕES
DANO BIOLÓGICO
REMIÇÃO DE PENSÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS PATRIMONIAIS
ASSISTÊNCIA DE TERCEIRA PESSOA
EQUIDADE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 11/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I - Sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o recebimento pelo lesado de um certo capital de remissão no âmbito do processo por acidente de trabalho, não exclui o direito à indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir;

II – O capital de remissão visa ressarcir as perdas salariais associadas à incapacidade laboral fixada no processo por acidente de trabalho; a indemnização pelo dano biológico, além de compensar a perda de capacidade de ganho, visa ainda compensar o lesado pelas limitações funcionais que se reflectem na maior penosidade e esforço no exercício da actividade diária e na privação de futuras oportunidades profissionais.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA e BB, intentaram acção declarativa de condenação contra Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A., peticionando a condenação da Ré no pagamento ao Autor nas quantias:

- €40.000,00 a título de danos não patrimoniais;

-  €125.000,00 a título de indemnização pela perda da capacidade de ganho;

- €22.100,00 a título de perdas salariais contabilizadas até Dezembro de 2016,

- €2.055,48 a título de indemnização pelas despesas médicas e medicamentosas ocorridas e de €76,00 a título de indeminização pelas despesas ocorridas, a que acrescem as quantias a liquidar em execução de sentença ou ampliação do pedido e descritas nos art°s 131°, 159.° e 164.°;

- E a condenação no pagamento à Autora da quantia de €2.561,85 a título de indemnização pelas perdas salariais em que incorreu no período que teve de deixar de trabalhar para prestar assistência ao marido.


Alegaram para o efeito, em síntese, que o Autor foi vítima de acidente de viação, cuja ocorrência imputam a culpa do condutor do veículo seguro na Ré e do qual resultaram os danos patrimoniais e não patrimoniais que descrevem.


A Ré contestou, impugnando a versão dos factos e o quantitativo da indemnização peticionada.


Efetuado julgamento foi proferida Sentença, em que na parcial procedência da acção se decidiu o seguinte:

"Pelo exposto, ao abrigo das citadas disposições legais, decido julgar a presente ação intentada por AA e BB contra Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A. parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

- Condeno a ré a pagar ao autor a quantia de €4.117,29, a título de dano patrimonial, na vertente das despesas médicas e medicamentosas, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação e das datas das ampliações dos pedidos respetivos até integral pagamento;

- Condeno a ré a pagar ao autor a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial futuro, na vertente de despesas médicas, medicamentosas e com tratamentos que o autor venha a necessitar, com o limite do pedido;

- Condeno a ré a pagar ao autor a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial, na vertente de perda de rendimentos do trabalho, deduzida do montante pago até à presente data pela seguradora do trabalho, acrescida após essa operação, de juros de mora, à taxa de juros civis, sobre o montante de capital que resultar do correspondente saldo, até integral pagamento, com o limite do pedido;

- Condeno a ré a pagar ao autor a quantia de €270.000,00, a título de dano patrimonial, na vertente de dano biológico, deduzida do montante pago até à presente data pela ré a título de renda mensal, acrescida, após essa operação, de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;

- Condeno a ré a pagar ao autor a quantia de €120.000,00 a título de dano patrimonial, na vertente de encargos pela assistência por terceira pessoa, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;

- Condeno a ré a pagar ao autor a quantia de €65.000,00 e à autora a quantia de €7.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;

Absolvo a ré do demais peticionado.


///


Da sentença apelaram a Ré a título principal e os AA subordinadamente.


A Relação ….. julgou improcedente o recurso principal, e procedente em parte o recurso subordinado, decidindo:

a) Na procedência parcial do Recurso Subordinado, revoga-se parcialmente a Sentença recorrida, e, consequentemente:

i) Condena-se a Ré a pagar ao Autor, a título de dano patrimonial, na vertente de encargos com a assistência por terceira pessoa, a quantia de €150.000,00 (cinto e cinquenta mil Euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados da data do presente Acórdão, até integral pagamento;

ii) Condena-se a Ré a pagar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €90.000,00 (noventa mil Euros) acrescidas de juros de mora, à taxa legal, contados da data do presente Acórdão, até integral pagamento;

Pela improcedência total do Recurso Principal.

No mais confirma-se a Sentença recorrida.


///


Desta decisão vem interposto recurso de revista pela Ré, a qual conclui como segue as suas alegações:

1ª. Os danos patrimoniais futuros decorrentes da afetação da capacidade de ganho do Recorrido, foram alvo de ressarcimento no âmbito da acção emergente de acidentes de trabalho;

2ª. O ordenamento jurídico português que se entende como sistemático não admite uma dupla ressarcibilidade do mesmo dano;

3ª. O Dano Biológico deve ser ressarcido de forma transversal e homogénea, isto é, o dano Biológico, será necessariamente ressarcido da mesma maneira, independentemente das condições económicas do individuo que o sofre, sob pena de se atropelar o princípio da igualdade;

4ª. Com base neste pressuposto defendeu a Recorrente que deve ser utilizado um critério geral e mais abstrato, como o rendimento médio mensal da região ou na ausência de tal valor, aquele que é o valor médio mensal dos salários em Portugal, que se apurou segundo a PORDATA, em 970,00€ para o ano de 2018.

5ª Tal posição mereceu acolhimento no Acórdão em crise.

6ª. As Digníssimas Juízas Desembargadoras do Tribunal “a quo” para justificar o valor arbitrado a título de dano biológico, socorrem-se das tabelas anexas à portaria nº 377/2008 (na versão introduzida pela portaria nº679/2009), designadamente a tabela IV, embora, introduzindo algumas alterações.

7ª. Não se consegue alcançar e isso não nos é explicado, qual a razão para, ao valor considerado pela tabela IV da referida portaria, multiplicar o valor considerado pela PORDATA como sendo o salário médio mensal e posteriormente dividir o mesmo pelo valor obtido para o RMMG de 2007, no caso 403,00€

8ª. É absolutamente ilógica, com todo o devido respeito, a fórmula apresentada no Acórdão de que agora se recorre.

9ª. A decisão é neste ponto completamente obscura, não havendo a mínima possibilidade de se considerar a mesma inteligível.

10ª.  Acórdão do Tribunal “a quo”, é, nesta questão em particular, nulo, de acordo com o disposto no art. 615º, nº 1, al. c), do CPC, devendo o presente Tribunal, substituir esta decisão, por outra que seja de facto aquela que fundamentada e justificadamente se aplique in casu.

11ª. A Recorrente não pode aceitar nem concordar com o valor arbitrado tanto pelo Tribunal de 1ª instância como pelo Tribunal a quo, que, através de uma fundamentação essencialmente diferente daquela que esteve na base da decisão do Tribunal de 1ª instância, atribuiu o mesmo valor.

12ª. O valor considerado para efeitos de cálculo do dano biológico, deve ser o do salário médio mensal nacional, que por consulta no site da PORDATA, se cifra em 970,00€, multiplicado por 252 meses, acrescido de 269,08€, multiplicado por 132 meses.

13ª.  Ao valor apurado terá necessariamente de ser aplicado um factor de desconto por via da entrega do Capital por inteiro e de uma só vez, não só porque tal circunstância permite, obviamente, ao seu beneficiário gerir com outra certeza todas variações monetárias do mercado, como promove o investimento do capital em soluções financeiras com vista a sua remuneração, dando-se a titulo de exemplo a aplicação do capital em certificados de aforro que não só garantem juros a rondar os 2,25%, como ainda permitem a obtenção de prémios de remuneração de 1,25%, ou seja, uma remuneração anual do capital em cerca de 3,50% o que face a um capital de 180.000,00€, permite, ao final de 21 anos, a obtenção de um lucro de 132.300,00€.

14ª. A entrega de tal capital, não pode deixar de ser considerado como a obtenção de um rendimento por parte do Recorrido, que face a sua não tributação, coloca, caso não haja qualquer desconto, o seu beneficiário numa situação de evidente vantagem económica, a qual não teria, não fosse, como é neste caso, a ocorrência de um sinistro.

15ª. Não compete à Recorrente, não é sua obrigação, nem do Tribunal, colocar o Recorrido em melhor situação, designadamente financeira, do que aquela em que estaria caso não fosse o sinistro dos presentes autos.

16ª. O desconto de 1/3 ao capital apurado por via do cálculo apresentado é de elementar logica e justiça.

17ª. Por aplicação e em consequência lógica de tudo o até agora estribado, chegamos ao valor de 186 639,04€;

18ª.A este valor haverá sempre lugar ao desconto/compensação da quantia que tem vindo a ser entregue pela Recorrente ao Recorrido mensalmente e por conta da indemnização final;

19ª. Do cotejo dos factos considerados como assentes resulta evidente a necessidade do Recorrente receber ajuda de terceira pessoa, porém a mesma não reveste qualquer especificidade técnica;

20º. Tal necessidade é consequência lógica do estado situacional que o Recorrido ficou após as lesões sofridas no acidente dos presentes autos e que encontram consagração nos factos considerados assentes, designadamente no seguinte facto:

“77. A nível situacional, apresenta: (1) Atos da vida quotidiana: dificuldade na condução, dificuldade em se deslocar nomeadamente em subir escadas na efetivação de compras por dificuldade em transporte de sacos, dificuldade na higiene pessoal e no uso de utensílios para comer (talheres e no vestuário nomeadamente ao calçar-se); (2) Vida afetiva, social e familiar: perturbações do foro sexual e irritabilidade frequente e dificuldade na comunicação interpessoal, já que está atualmente impedido de manter a dádiva de sangue que efetuava com regularidade trimestral no serviço de sangue do HDF; (3) Vida profissional ou de formação: alterações de comunicação e irritabilidade acrescida por sentimento de revolta perante as limitações físicas decorrentes do acidente.”


21ª. Ora, aceitando-se esta realidade e esta necessidade, já não se compreende e aceita que a mesma tenha de ser considerada para todos os dias da semana, porquanto nos dias em que a esposa do Recorrente, esteja em casa, seja aos fins de semana, seja aos dias de folga, terá obviamente a seu cargo estas tarefas, as quais foram especificamente indicadas, não sendo as mesmas, de forma alguma, de cariz técnico e específico.

22ª. De facto, o que resultou da produção de prova dos presentes autos e que encontra consagração no acervo factual julgado provado é que o Recorrido carece da ajuda de uma terceira pessoa, mas “apenas” para o orientar e ajudar nas tarefas corriqueiras do quotidiano;

23ª. Sintomático do que agora se disse, é o facto de serem consideradas três horas por dia e não 8, por exemplo.

24ª. Não se compreende a razão pela qual o Tribunal “a quo” manteve a decisão

de considerar necessária a ajuda de terceira pessoa para todos os dias do ano e nesse mesmo passo, tenha aumentado a indemnização arbitrada nesse ponto pela 1ª instância, em mais 30.000,00€

25ª. Com base nas reais necessidades do Recorrido, conclui-se de forma racional e razoável que o mesmo carece de 3 horas de assistência, durante cinco dias por semana, durante 12 meses – não se consideram aqui sequer as eventuais férias tanto do prestador de serviços como da esposa do Apelado, por implicar um juízo ainda mais difícil de ponderação quanto ao valor final a considerar, sendo que, não seria desprovido de sentido este raciocínio.

26ª. Com base nesta fórmula chegamos a um valor anual de 3.900€ [5 dias x 52 semanas = 260 dias; 260 dias x 3 horas = 780 horas por ano; 780 horas x 5,00€ = 3.900,00€). Valor que multiplicado pelos 26 anos de expectativa de vida considerado pelo Tribunal “a quo”, resulta numa quantia global de 101.400,00€.

27ª. A este valor global e tal como indicado na sentença de 1ª instância, que se concorda em absoluto, terá ainda de ser feita uma dedução de 10%, que se reputa de inteiramente justa;

28ª. Defende por isso a Recorrente que decisão proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada e alterada, por carecer de substância factual para se considerar justificado o valor arbitrado e nessa medida a Recorrente condenada a pagar uma indemnização no valor de 91.260,00€;

29ª. A Apelante entende que o montante de € 90.000,00 atribuído a título de danos não patrimoniais não é adequado aos princípios de equidade e razoabilidade que devem pautar a aplicação da justiça, não se encontrando em sintonia com outras indemnizações que os Tribunais têm aplicado, designadamente o Supremo Tribunal de Justiça.

30ª. Compulsados os factos dados como provados, verificamos que o Apelante

sofreu um dano estético de 3/7 e um quantum doloris de 5/7, ora estes valores jamais justificariam uma indeminização superior a 30.000,00€.

31ª. Apenas um dos factos, designadamente o défice funcional permanente de 63 pontos, justifica que se equacione uma indeminização a título de danos não patrimoniais superior ao valor de 30.000,00€;

32ª. Atenta a dificuldade em quantificar monetariamente os danos não patrimoniais, o Tribunal “ a quo” deveria ter enquadrado a sua decisão por recurso a decisões análogas e colocar os factos dos presentes autos em comparação a outras situações, sendo que dessa comparação resultaria que  efectivamente não estamos perante uma situação tão gravosa como a de  um jovem de 36 anos que vê uma parte do seu corpo amputada, ou a de um  jovem de 17 anos que passa por um calvário de 4 anos de recuperação e ao  qual foi atribuído um quantum doloris de 6/7;

33º. O valor arbitrado no Acórdão do tribunal a quo é mais consentâneo com uma situação de dano morte, não sendo efectivamente o caso dos presentes autos, não se aceitando que se valorize da mesma forma a perda do direito supremo e os danos que o Apelado sofreu na sequência do sinistro dos presentes autos.

34ª. Com o que, concedendo provimento ao recurso, julgando-se nulo o Acórdão na parte em que se debruça sobre a forma de cálculo do valor a atribuir a título de Dano Biológico, alterando concomitantemente nesse ponto o valor arbitrado para o Dano Biológico, e bem assim, na procedência do agora propugnado, alterando os valores considerados para os encargos com ajuda de 3ª pessoa e Danos não Patrimoniais, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA.


Contra alegou o Autor, pugnando pela improcedência do recurso da Ré, e totalmente procedente o recurso subordinado, de forma a fixar a indemnização pelo dano biológico em € 350.000,00.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


Visto as conclusões dos Recorrentes, as quais, como se sabe, delimitam o objecto do recurso, cumpre apreciar as seguintes questões:

- A indemnização pelo dano biológico;

- Quantum indemnizatório pela necessidade de uma terceira pessoa;

- Indemnização por danos não patrimoniais.


///



Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. O autor AA nasceu no dia ...07.1972 e contraiu casamento com a autora BB no dia ...07.2001.

2. No dia 02.04.2014, por volta das 18h30m, o autor conduzia o ciclomotor de marca ……, modelo ….. ....., de matrícula ..-IE-.., propriedade da autora, pela Estrada Nacional (EN) n.° .., ao km ….., em ............, na freguesia ........., concelho  …., no sentido de marcha ……-…..

3. A estrada no local possuía cerca de 6,50 metros de largura e configurava uma reta com extensão superior a 400 metros, de relevo plano e de piso betuminoso em razoável estado de conservação.

4. Com duas hemi-faixas de rodagem, com sensivelmente 3 metros de largura cada, destinadas cada uma delas a um sentido de trânsito, delimitadas por uma linha longitudinal contínua.

5. Junto à entrada e à saída do posto de abastecimento de combustível situado ao km 735,790 da EN .. existia uma linha mista M3, com pouco mais de 2/3 metros de comprimento.

6. O estado do tempo era bom e o piso encontrava-se seco.

7. Quando o ciclomotor circulava ao km ….. da EN .., a cerca de 20 metros da saída do posto de abastecimento de combustível da Repsol, que se apresentava à sua esquerda, deparou-se com a presença do veículo ligeiro misto de matrícula ..-..-EN.

8. O qual era conduzido pelo seu proprietário CC e que se encontrava no posto de abastecimento junto ao limite da intersecção da saída deste com a EN ...

9. O condutor do veículo ..-..-EN ingressou na EN.., para tomar o sentido de marcha …… - ...., atravessando perpendicularmente a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido de marcha ....-...... e ingressando na hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido inverso.

10. Obstruindo com essa manobra o sentido de marcha seguido pelo autor/condutor do ciclomotor de matrícula ..-IE-...

11. O qual, ao se aperceber da manobra realizada pelo condutor do veículo de matrícula EN, tentou travar e desviar-se para a sua direita.

12. Não conseguindo, atenta a distância a que se encontrava daquele, evitar o embate entre a frente do ciclomotor na parte traseira direita e na parte lateral direita do veículo de matrícula ..-..-EN.

13. O embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem afeta à circulação no sentido de marcha ......-.....

14. Em consequência do embate o autor sofreu traumatismo do braço esquerdo, traumatismo da mão e do joelho direitos, entorse do joelho direito com rotura do LCA e dores nos membros superiores e inferiores e na cabeça.

15. Foram acionados os meios de socorro e prestados os primeiros cuidados médicos no local.

16. Após o autor foi transportado para a urgência do Hospital ...., local onde lhe foram ministrados cuidados médicos e medicamentosos.

17. E realizados exames radiográficos, apresentando fratura proximal do úmero esquerdo (incluindo fratura cefálica); fratura da glenoide esquerda; fratura da diáfise do úmero esquerdo; neuropaxia do radial do membro superior esquerdo; fratura de Bennett e rotura do tendão flexor Dl da mão direita; rotura do LCA e do ligamento colateral interno do joelho direito.

18. Foi efetuada imobilização provisória seguida de internamento no serviço de ortopedia daquele Hospital, desde o dia 03.04.2014 até o dia 10.04.2014, a aguardar cirurgia.

19. Teve alta no dia 10.04.2014 contra parecer médico e nesta data foi internado na Clínica ........ para ser sujeito a intervenção cirúrgica à fratura do úmero esquerdo e à fratura de Bennett à direita.

20. No dia 11.04.2014 foi sujeito a intervenção cirúrgica em que foi efetuada osteossfntese da diáfise umeral, osteossíntese do colo do úmero e corrigida a fratura-luxaçâo de Bennett, com colocação de uma placa com 13 parafusos no úmero.

21. Permaneceu naquela Clínica até ao dia 17.04.2014 e foi-lhe colocada uma tala funcional na perna direita.

22. No dia 29.05.2014 apresentava um quadro de anemia ferropénia, medicada com Folifer, iniciando terapêutica com Valdoxam 25 e Dormidina 25.

23. No dia 05.09.2014 realizou um estudo neuroflsiológico, no qual se apurou registo de ausências de respostas sensitiva e motora do nervo radial, sinais de desnervação ativa na musculatura dependente, a traduzir uma lesão com axonotemese parcial ao nível do braço, de intensidade moderada, da qual teve recuperação total.

24. No dia 14.10.2014 foi observado por médico da especialidade de ortopedia e traumatologia, na Clínica ........, em ...., a quem apresentou electromiografia ao ombro esquerdo, a qual evidenciou uma lesão do nervo radial a nível do braço de 5/9, e RX ao úmero, o qual revelou a placa Phylos com 13 parafusos.

25. Apresentava uma mobilidade do ombro ativa e passiva de 90° de abdução e o joelho direito apresentava instabilidade antero-posterior e interna e foi proposto a manutenção de sessões de fisioterapia.

26. Foi-lhe diagnosticada lesão tríade do joelho direito.

27. No dia 05.02.2015 foi sujeito, naquela Clínica, a intervenção cirúrgica de ligamentoplastia do LCA e de meniscectomia parcial interna a esse joelho.

28. No dia 17.04.2015 foi sujeito, também naquela Clínica, a internamento por pseudartrose de artrodese trapézio mentecárpica da mão direita.

29. E sujeito a intervenção cirúrgica com extração de material e colocação de enxerto após limpeza dos bordos ósseos e fixação com parafusos, com alta no dia 18.04.2015.

30. Foi sujeito a internamento, na Clínica ........, entre o dia 11.09.2015 e o dia 13.09.2015, e sujeito a intervenção cirúrgica de tenoplastia do tendão flexor do polegar direito.

31. No dia 27.03.2017 foi observado em consulta, no Hospital......, por dor no ombro esquerdo e joelho direito.

32. No dia 26.04.2017 realizou RNM do joelho, a qual revelou inexistência de alterações, com ligamentoplastia integra, e ecografia ao ombro esquerdo, que revelou sinais de rotura do tendão do supra espinhoso e descontinuidade da porção proximal, compatível com rotura parcial, associada a bursite sub-acromio-deltoideia.

33. No dia 06.05.2017 foi observado em consulta de ortopedia, naquele Hospital Particular, apresentando queixas de omalgia esquerda com impotência funcional.

34. O exame clínico e imagiológico revelou rotura parcial do supra espinhoso com instabilidade da LPB.

35. No dia 20.06.2017 foi sujeito, naquele HPA, a intervenção cirúrgica (artroscopia) ao ombro esquerdo, com prévia extraçâo de material de osteossíntese do úmero, mantendo o internamento até ao dia 21.06.2017.

36. Foi proposto manter fisioterapia, com reforço da musculatura coifa rotadores e escapulo torácicos.

37. No dia 11.07.2017 consultou médico da especialidade de psiquiatria, sendo diagnosticada depressão ansiosa e perturbação de descontrole de impulso.

38. No dia 16.08.2017 realizou infiltração com ácido hialurónico no joelho direito.

39. No dia 17.08.2017 consultou médico da especialidade de psiquiatria, sendo diagnosticada depressão ansiosa e perturbação de descontrole de impulso, com necessidade de apoio de terceira pessoa para algumas atividades da vida diária.

40. No dia 14.10.2017 foi observado em consulta de ortopedia, apresentando dor no ombro intervencionado e proposto manter fisioterapia até dezembro de 2017.

41. Durante todo este período o autor apresentava um quadro de ansiedade, com descoordenação do sono, motivado pela sua condição física e incerteza quanto ao resultado dos tratamentos/intervenções.

42.  Começou a ter dificuldades em adormecer, motivo pelo qual começou a tomar medicação (Dogmatil 50mg).

43. As alterações nos períodos de descanso do autor tiveram um reflexo na mudança do seu biorritmo, com implicações ao nível do sistema nervoso.

44. No dia 28.02.2018 iniciou acompanhamento em consulta de especialidade de psiquiatria, no DPSM do Hospital .....

45. Em agosto de 2018 iniciou acompanhamento em consulta de psicologia, naquele mesmo Departamento.

46. No dia 04.08.2018 realizou consulta de ortopedia, no HPA, por agravamento das queixas do ombro esquerdo.

47. Os RNM e RX realizados ao ombro esquerdo revelaram sinais de heterogeneidade do supra espinhoso sem rotura, alterações degenerativas do labrum glenoideu e alterações da morfologia proximal do úmero relacionável com antiga fratura consolidada, mantendo material de osteossíntese.

48. Em setembro de 2018 teve um aumento de dores e cólicas abdominais, acompanhado por náuseas, diarreias, vómitos e má disposição.

49. O que levou a que fosse medicado com Spasmomen 40mg.

50. No dia 17.12.2018 teve consulta de fisiatria ortopédica, no Hospital ...., com indicação para infiltração ecoguiada no joelho direito.

51. Em janeiro de 2019 passou a ser observando por médico especialista em gastroenterologia, por quadro clínico de dor abdominal com alternância de períodos de diarreia e obstipação com diagnóstico provisório de síndrome do intestino irritável.

52. Desde 24.01.2019, por indicação do médico de reabilitação ortopédica e para ajuste terapêutico, é seguido na consulta da dor, no Hospital ...., avaliando-se a presença de quadro álgico de características neuropáticas com intensidade dolorosa na escala numérica da dor (END) de 8 em 10.

53. Toma medicação para a dor e ansiedade, nomeadamente Oxicodona 5mg e Pregabalina 25mg.

54. No dia 04.03.2019 realizou consulta de fisiatria ortopédica, no Hospital ......, apresentando dor no bending posterior, incapacidade para fazer a ponte, SLR a esquerda negativa, SLR a direita com dor no joelho.

55. Após a alta hospitalar e períodos pós-operatórios o autor apenas conseguia deslocar-se e lavar-se, vestir-se, alimentar-se e tratar da sua higiene pessoal, com a ajuda de uma terceira pessoa.

56. Ajuda que lhe foi prestada pela autora BB e por outros familiares.

57. O agravamento das dores no joelho direito e ombro esquerdo dificultaram a prestação da sua atividade profissional, com dificuldade em caminhar, em estar de pé e em subir escadas.

58.  O autor realizou várias sessões de fisioterapia.

59. Desde o embate deixou de praticar atividade desportiva.

60.  O autor era alegre, bem-disposto, mantendo relações sociais e uma vida ativa.

61. Passou a estar triste, a ser ansioso, facilmente irritável e a manifestar pensamentos suicidas.

62.  Desde o embate toma medicação com carater de regularidade, nomeadamente Clonazepam, Escilatopram, Rivotril, Ferro Gradumet, Dusphatal Triticum Castilium analgésico, Paracetamol, Britelix lOmg, Valdoxan, Diplexil-R 250 mg, Medipax 10, Quetiapina 50mg, Lorazepam lmg.

63.  O autor exercia as funções de manutenção de vilas e motorista, por conta da Elliot Portugal Títulos Férias, Lda., com sede em Estrada Vale do Lobo, em Almancil, auferindo a retribuição mensal ilíquida de €1.040,00, acrescida de € 151,00 de subsídio de alimentação.

64. Nas folgas, feriados e fins-de-semana realizava trabalhos de construção civil, vigilante e manutenção de vilas por conta própria e para a entidade patronal, auferindo rendimento variável e não concretamente apurado.

65. Retomou a atividade profissional no dia 09.03.2016, com o médico de medicina no trabalho a considerá-lo apto condicional.

66. Teve alta da seguradora de acidentes de trabalho no dia 20.01.2018.

67. Regressou ao trabalho no dia 07.02.2018, data em que foi observado pelo médico de medicina no trabalho, o qual o considerou inapto temporariamente para o exercício da profissão habitual.

68. Situação que não foi aceite pela seguradora de acidentes de trabalho.

69. Desde essa data que não voltou a trabalhar para a entidade patronal ou a executar trabalhos/serviços aos fins-de-semana, folgas e feriados.

70.  O embate foi participado à Ocidental - Companhia de Seguros, S.A., por ter ocorrido no percurso de/para o trabalho/residência do autor.

71. Correu termos no Tribunal de Trabalho .... processo de acidente de trabalho, com o n.° 1038/15......., no âmbito do qual, por sentença datada do dia 10.10.2016 foi decidido condenar a Ocidental- Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao autor uma pensão anual e vitalícia de €2.498,03, acrescida de juros legais, desde o dia 03.03.2016 até efetivo pagamento e calculou o capital de remissão no montante de €37.098,24, cuja entrega foi realizada no dia 10.01.2017.

72. No dia 16.08.2017 o autor foi sujeito a avaliação pelo Centro Regional de Segurança Social e foi-lhe atribuída uma incapacidade parcial de 63%, com caráter permanente, com efeitos desde 2014.

73. No dia 19.04.2018 foi reavaliado pelo mesmo Centro e foi-lhe atribuída uma incapacidade parcial permanente de 80%, com carácter permanente, com efeitos desde 2014.

74. Devido às lesões que sofreu e estado de saúde o autor suportou despesas médicas e medicamentosas que ascendem a €4.117,29.

75. Com a obtenção da certidão do assento de nascimento e do auto de participação o autor suportou a quantia total de € 76,00.

76. O autor apresenta as seguintes alterações:

(A) Postura, deslocamentos e transferências: Dificuldade na marcha prolongada e na posição de cócoras e ortostatismo prolongado;

(B)  Manipulação e preensâo: Dificuldade a pegar pesos;

(C)Cognição e afetividade: Estado de ansiedade frequente com perturbações do sono e do humor com irritabilidade frequente e vivência frequente do momento do acidente e estado de ausência frequente;

(D)Sexualidade e procriação: Perturbações da libido com perturbação na ereçâo e na ejaculação e dificuldade orgástica com natural desenvolvimento de quadro de ansiedade;

(E)  Fenómenos dolorosos: Dor crónica permanente do ombro e braço esquerdo e joelho direito e dor frequente dopolegar e punho direito;

(F) Outras queixas a nível funcional: "formigueiros na mão" esquerda e falta de força das mãos de predomíniodireito, agravamento do quadro gastrointestinal, com cólicas e diarreias frequente e vómitos.


77.  A nível situacional, apresenta:

(1) Atos da vida quotidiana: dificuldade na condução, dificuldade em se deslocar nomeadamente em subir escadas na efetivação de compras por dificuldade em transporte de sacos, dificuldade na higiene pessoal e no uso de utensílios para comer (talheres e no vestuário nomeadamente ao calçar-se);

(2) Vida afetiva, social e familiar: perturbações do foro sexual e irritabilidade frequente e dificuldade na comunicação interpessoal, já que está atualmente impedido de manter a dádiva de sangue que efetuava com regularidade trimestral no serviço de sangue do HDF;

(3) Vida profissional ou de formação: alterações de comunicação e irritabilidade acrescida por sentimento de revolta perante as limitações físicas decorrentes do acidente.


78. O autor é destro e apresenta marcha claudicante.

79. Apresenta, como sequelas:

- Crânio: perturbações de humor e personalidade enquadráveis em síndrome depressivo major e de perturbação pós-traumático;

- Membro superior direito: cicatrizes operatórias na face anterior e distai do antebraço de 10 cm e outra da face radial da mão com 5 cm, falta de força e limitação da mobilidade do dedo polegar por rigidez da MF do polegar direito e artrodese do trapézio metacárpica;

- Membro superior esquerdo: cicatriz operatória do ombro deltopeitoral com 25 cm, queilode e dismórfica com rigidez marcada no ombro, com abdução de 80° e rotações de 45°, com dificuldade de levar a mão à nuca e região lombar;

- Membro inferior direito: cicatriz operatória anterior com 10 cm e sinovite moderada do joelho com instabilidade anterior e limitação da mobilidade na flexão 120° sem amiotrofia;

- Abdómen: síndrome do cólon irritável agravado.


80. Em consequência do embate ficou a padecer de perturbação depressiva e de perturbação de stress pós-traumático.

81. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável no dia 14.10.2017.

82. O Período de Défice Funcional Temporário Total foi fixado em 59 (cinquenta e nove) dias (períodos de internamento e/ou repouso absoluto entre os dias 02.04.2014 a 17.04.2014 e de 05.02.2015 a 08.03.2015 e de 20.06.2017 a 30.06.2017).

83. O Período de Défice Funcional Temporário Parcial foi fixado em 1233 (mil duzentos e trinta e três) dias (entre os dias 18.04.2014 e 04.02.2015 e de 09.03.2015 a 19.06.2017 e de 01.07.2017 a 14.10.2017).

84. O período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total foi fixado num período de 701 (setecentos e um) dias (entre os dias 02.04.2014 e 02.03.2016).

85. O período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial foi fixado num período de 591 (quinhentos e noventa e um) dias (entre os dias 03.03.2016 a 14.10.2017).

86. O quantum doloris foi fixado no grau 5/7.

87. 0 Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica foi fixado em 63 pontos.

88. A Repercussão Permanente da Atividade Profissional foi considerado que as sequelas são incompatíveis com o exercício da atividade habitual mas compatível com outras profissões dentro da sua área de formação técnico profissional.

88 -A. Dadas as sequelas de que o acidente ficou a padecer por via do sinistro, ser-lhe-á muito difícil obter emprego fora do âmbito do emprego protegido (aditado pela Relação).

89. O Dano Estético Permanente foi fixado no grau 3/7.

90.A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer foi fixada no grau 2/7.

91. É considerada a necessidade de ajudas técnicas permanentes, designadamente acompanhamento médico em consultas das especialidades de neuropsicologia (anual) e gastroenterologia e a necessidade de fisioterapia, acrescidas de terapêutica medicamentosa complementar em conformidade com essas consultas com inclusão de analgésicos.

92. É considerada a necessidade de apoio de terceira pessoa numa média de 3 horas/dia.

93. A autora mantinha com o autor uma relação familiar estável.

94. Devido ao estado do autor a autora passou a ter momentos de solidão, tristeza e angústia e chora com frequência.

95. Antes do embate o autor partilhava com a autora as lides domésticas e a gestão do agregado familiar, o qual engloba o filho do casal que exige atenção e disponibilidade.

96. Deixando de prestar tal auxílio na execução das tarefas que se habituaram a realizar e preparar em conjunto.

97. O autor sente-se inútil e revoltado com a sua situação.

98. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ..-..-EN encontrava-se transferida para a ré através da apólice n°.............12.

99. No dia 11.05.2018, no âmbito do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, que se encontra apenso aos autos, foi acordado pelo autor e pela ré o pagamento da quantia mensal de €600,00, a título de renda."


///


 Fundamentação de direito.

Na revista estão apenas em causa os valores de indemnização, por estar assente a responsabilidade civil da Ré seguradora e a existência de danos indemnizáveis.


A primeira questão prende-se com a indemnização a título de dano patrimonial futuro/dano biológico, que a 1ª instância fixou em €270.000,00, valor que a Relação confirmou inteiramente.

 Insurgindo-se contra esta decisão, argumenta a Ré: i) a afectação da capacidade de ganho já foi ressarcida na acção por acidente de trabalho; ii) a fórmula de cálculo da indemnização utilizada pela Relação é ininteligível, o que torna a decisão nula (art. 615º, nº 1 c) do CPC); iii) a indemnização a este título deve ser fixada em €186.639,40.

 Vejamos se lhe assiste razão.


 Na doutrina e na jurisprudência fala-se em dano biológico para aludir ao dano causado ao corpo e à saúde do lesado; ao dano causado à integridade física e psíquica que a todos assiste.


É entendimento pacífico que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz essa incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental à saúde e à integridade física; por isso, não deve ser arbitrada uma indemnização que tenha em conta apenas aquela redução. (cf. Acórdão proferido na Revista nº 1333/18.8T8PDL1.S1, com o mesmo relator e adjuntos, ainda os Acórdãos do STJ de 19.09.2019, P. 2706/17, de 14.12.2016, P. 37/13, de 20.11.2014, P. 5572/05, de 10.11.2016, P. 175/05 e de 10.12.2019, P. 97/15).


Como referido no Acórdão de 29.09.2019, P. 683/11 (Conselheiro Ricardo Costa):

A vertente patrimonial do dano biológico tem a virtualidade de ressarcir não só i) as perdas de rendimentos profissionais correspondentes à impossibilidade de exercício laboral e/ou económico-empresarial e as frustrações de proveitos existentes à data da lesão (ponderadas até um certo momento da via activa), mas também ii) a privação de futuras oportunidades profissionais e o esforço acrescido de  reconversão (enquanto determinado pela incapacidade resultantes da lesão) para o exercício profissional, num caso e noutro, danos patrimoniais futuros previsíveis, na variante de lucros “cessantes” (arts. 562º, 564º, nºs 1 e 2 do CCivil)”


O recente acórdão de 21.01.2021, desta secção, relatado pelo Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, decidiu:

“A limitação funcional em que se traduz a incapacidade permanente de que ficou afectada a vítima de um acidente de viação, mesmo quando não implica a redução da capacidade de ganho, mas obriga a um esforço acrescido para a evitar, é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e não patrimonial.

Em ambos os casos, a indemnização deve ser calculada segundo a equidade.”


No caso e com interesse para esta questão, provou-se que o Autor foi vítima do acidente quando tinha 41 anos, na plenitude da via activa; as sequelas das lesões determinaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 63 pontos, incompatíveis com o exercício da atividade habitual embora compatíveis com outras profissões dentro da sua área de formação técnico profissional.

        

É inquestionável que estamos perante um dano patrimonial futuro, decorrente de uma perda de capacidade de trabalho e de ganho, e indemnizável como tal.

Sucede que o acidente foi também de trabalho, tendo o Autor recebido no âmbito do processo por acidente de trabalho, a título de capital de remissão a quantia de € 37.098,24, cuja entrega foi realizada no dia 10.01.2017.

Ao contrário do que defende a Recorrente a indemnização recebida no âmbito do processo por acidente de trabalho não ressarciu a integralidade do dano biológico patrimonial.

O STJ tem decidido constantemente que quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho as respetivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário (cf. Acórdãos do STJ de 14.12.2016, (secção social), e de 11.07.2019, P. 1456/15).

Como se escreveu neste último aresto, “a responsabilidade primeira é a que incide sobre o responsável civil. É essa responsabilidade que vai definir o quadro indemnizatório geral, sendo certo que, quanto a este mesmo dano concreto, não pode haver duplo ressarcimento.”


Quer isto dizer que nos casos em que o acidente seja ao mesmo tempo um acidente de trabalho e de viação, têm os responsáveis por um e outro a obrigação de indemnizar os lesados de harmonia com as regras de fixação de cada uma dessas indemnizações.

Ora, as duas indemnizações visam compensar danos distintos: a pensão vitalícia fixada no processo por acidente de trabalho corresponde á redução na capacidade de ganho do sinistrado, por incapacidade parcial permanente, como resulta do art. 10º, alínea b) da Lei nº 100/97 de 13.09, que aprovou o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais; a indemnização pelo dano biológico visa ressarcir, além da redução da capacidade de ganho, ainda as limitações funcionais do lesado, um dano que vai para além do tempo de vida activa, e o esforço acrescido no exercício das actividades profissionais e pessoais.

Neste sentido decidiu o Acórdão deste Tribunal de 11.12.2012 (Lopes do Rego), disponível em www.dgsi.pt:

“São de considerar como dano diferente o que decorre da perda de rendimentos salariais associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo por acidente de trabalho e compensado pela atribuição de um certo capital de remissão, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado, que envolvem restrições acentuadas à sua capacidade, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.”

Deste modo não existe no caso vertente uma duplicação de indemnizações em favor do Autor susceptível, como tal, de provocar um injustificado enriquecimento deste.

A Recorrente acusa ainda a decisão que fixou a indemnização pelo dano biológico de ininteligível, e como tal ferida de nulidade nos termos do art. 615º, nº 1, c), e se é excessiva.

A Relação confirmou o quantum indemnizatório de €270.000,00, fixado na sentença.

Para chegarem a este valor as instâncias percorreram caminhos essencialmente idênticos: consideraram que os valores que constam das Tabelas da Portaria nº 377/2008 de 26.05, alterada Portaria nº 679/2009, de 25.06, são meramente indicativas para o cálculo da indemnização, que o critério decisivo é o da equidade (como não pode deixar de ser por estar em causa um dano futuro, sendo impossível avaliar o valor exacto do dano (arts. 564º/2 e 566º/3 do CC)), tendo em conta as particularidades do caso, em que relevam: idade do Autor à data da consolidação das lesões, rendimento que auferia, défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, esperança média de vida e não a idade da reforma, e ainda os padrões jurisprudenciais geralmente utilizados.

A decisão da Relação não sofre de qualquer ininteligibilidade. Esclarece como a partir dos valores da Tabela IV das Portarias supra citadas, tomando como referência o salário médio mensal disponível na base Prodata (€970,40), o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica (63 pontos) e o índice correspondente na Tabela, obteve o valor de €235.023,12, que atendendo às particularidades do caso, subiu para €270.000,00.

As “particularidades do caso” são, no essencial, as seguintes:

- O autor, à data do acidente, (27.04.2014) tinha 41 anos, tendo a consolidação das lesões ocorrido em 14.10.2017;

- Trabalhava para um empreendimento turístico, em manutenção de vilas e motorista, com o salário mensal ilíquido de €1.040,00, acrescido de subsídio de alimentação de €151,00, fazendo ainda nos fins de semana trabalhos remunerados, designadamente na construção civil;

- Em consequência das lesões sofridas ficou afectado de um défice funcional permanente de 63 pontos, sendo as sequelas incompatíveis com o exercício da sua profissão habitual.

 

Dito isto, e porque importa assegurar a objetividade possível, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito (art. 8º/3 do CC), vejamos algumas decisões recentes do Supremo Tribunal de Justiça disponíveis em www.dgsi.pt.:

Acórdão de 19.09.2019, P. 2706/17 (Maria do Rosário Morgado): sinistrado com 45 anos de idade à data do acidente; serralheiro de profissão que auferia o salário ilíquido mensal de €788,00; IPG de 32 pontos, todavia impeditivo do exercício da sua profissão habitual: €200.000,00 de indemnização por perda de capacidade de ganho/dano biológico;

Acórdão de 29.10.2019, P. 683/11, supra referido: sinistrada, enfermeira de profissão; com 33 anos à data do acidente e 40 à data da consolidação das lesões; défice funcional permanente de 53 pontos, com incompatibilidade para o exercício da profissão de enfermeira: indemnização de €250.000,00 para ressarcimento da perda de capacidade de ganho/dano biológico.

Acórdão de 07.09.2020, P. 2184/16 (Manso Rainho): sinistrado com 45 anos de idade à data do acidente; IPG de 16 pontos, impossibilitado de executar trabalhos que impliquem utilizar o braço direito; auferia o salário mensal de €680,00: indemnização de €145.000,00 a título de perda de capacidade de ganho.

Tendo presente o quadro factual apurado e os exemplos citados, podemos desde já avançar que a pretensão do Autor, em sede de recurso subordinado, de subida da indemnização para €350.000,00 não pode ser atendida.

E se o valor de €270.000,00 não se afasta dos padrões jurisprudenciais em casos com alguma semelhança, não pode olvidar-se que o Autor já recebeu a título de capital de remissão no âmbito do processo por acidente de trabalho a quantia de €37.098,24, uma indemnização que visa justamente ressarcir a perda de rendimentos salariais associados ao grau de incapacidade laboral, um dano que, como vimos, integra o dano biológico na sua vertente patrimonial.

Assim, e para evitar um duplo ressarcimento do mesmo dano, aquele recebimento não pode deixar de ser considerado na fixação da indemnização por dano biológico, o que não parece ter ocorrido nas decisões das instâncias.

Assim, e dando em parte razão à Recorrente, num juízo equitativo entendemos  fixar a  indemnização a este título em €240.000,00.

O acórdão recorrido atribuiu ainda ao Autor a indemnização €150.000,00 a título de dano patrimonial futuro por se ter provado que em consequência das sequelas do acidente o Autor tem necessidade da assistência de uma terceira pessoa, alterando o montante indemnizatório fixado na sentença, €120.00,00.

A Recorrente não contesta a ressarcibilidade deste dano apenas se   insurge contra o valor da indemnização, propondo antes o valor de €91.260,00.

Recordemos como as instâncias fundamentaram as respectivas decisões:

Disse a sentença:

“Em face dos factos provados, constata-se que, quer após alta hospitalar, quer nos períodos pós-operatórios, o autor teve necessidade de se socorrer de terceiros (esposa e outros familiares) para se deslocar, lavar, vestir-se, alimentar-se e tratar da sua higiene.

E continuará a ter essa necessidade de se socorrer de outros para o resto da vida, nomeadamente por manter dificuldade na marcha prolongada, dificuldade a pegar em pesos, manter dor crónica permanente no ombro e braço esquerdos e joelho direito, dor frequente do polegar e punho direito, falta de força nas mãos e dificuldade de condução, em subir escadas, na efetivação de compras, na realização da higiene pessoal e no uso de utensílios para comer e em calçar-se.

Ou seja, para realização das atividades básicas da sua vida diária, como vestir-se, alimentar-se, deslocar-se, o autor necessita de ter o auxílio de terceiro.

Já para não falar na execução de algumas tarefas domésticas que a perícia não elenca mas que, naturalmente, dada a limitação e dores nos membros superiores, o autor efetuava e deixou de poder realizar sem esforço.

Para a execução de todas estas tarefas, de índole estritamente pessoal, o autor continuará a necessitar de auxílio, estimando-se que o seu desempenho importe uma média de 3horas/dia.

Porém, desconhecemos o custo médio/hora do mercado de empregadas domésticas, na área de residência do autor, sendo certo que, de acordo com regras de experiência, poderemos estimar um custo não inferior a 65,00/hora.

Neste contexto, será de ponderar, por um lado, a esperança média de vida do autor (até aos 77 anos), as obrigações legais e contratuais inerentes à contratação de uma terceira pessoa, como seja, o pagamento dos subsídios de férias e de Natal, impostos, contribuições para a Segurança Social e seguro de acidentes de trabalho, o previsível agravamento do custo de vida, bem como, num outro sentido, o recebimento imediato de todo o capital atribuído a este título, o que importa uma dedução (ainda que, como vimos, as taxas de juros atuais estejam próximo do negativo).

No caso dos autos, para além da imprevisibilidade da variação da taxa de rentabilidade, atento o período temporal a considerar (29 anos), há que ter em conta o expetável aumento das despesas a suportar nesse período.

Assim, perante todos estes elementos e com recurso à equidade, afigura-se-nos como correto e ajustado dever proceder-se a uma dedução situada à volta dos 10%, tendo por referência o valor de € 142.100,00 (correspondente a €350,00 x 14 meses/ano x29 anos de expetativa de vida).

Pelo que, com recurso à equidade, entende-se ser de reconhece ao autor o direito ao recebimento, para compensar este dano, de uma indemnização no montante de €120.000,00."

Por sua vez, ponderou a Relação:

“... tendo em conta que o encargo com terceira pessoa é diário, numa média de 3hora por dia, sete vezes por semana, 365 dias por ano, à razão de €5,00/hora, e a esperança média de vida para os homens é de 77 anos, encargo esse a manter até ao fim da vida provável do Autor, o que, num cálculo matemático simples ascende a = € 142.350,00 (3hx 365dx€5,00/hx26anos = €142.350,00), e tendo ainda em consideração, por um lado o facto de que capital da indemnização fixar, não ser reprodutivo, e que a tendência natural dos salários, numa aproximação à média da EU, vai no sentido do seu aumento progressivo, somos levados a fixar a indemnização devida a título de encargos com a assistência de terceira pessoa, no valor peticionado pelos Autores no seu Recurso, ou seja em €150.000,00 (cento e cinquenta mil Euros).

Em abono da sua tese alega a Recorrente que a necessidade de assistência por uma terceira pessoa resume-se a 3 horas; considerando 5 dias por semana e €5,00 como valor hora, chega-se ao valor de 780 horas/ano, representando um custo de €3900,00/ano; multiplicado este valor por 26 anos, “anos de vida expectáveis”, atinge-se a quantia de €101.400,00, e aplicando-lhe uma redução de 10% por o Autor receber de uma só vez o montante indemnizatório, tem-se o valor de €91.260,00.

Que dizer?

Estamos ainda aqui a ressarcir um dano futuro.

Neste particular, de relevante apurou-se:

- Após a alta hospitalar e períodos pós-operatórios o autor apenas conseguia deslocar-se e lavar-se, vestir-se, alimentar-se e tratar da sua higiene pessoal, com a ajuda de uma terceira pessoa. (55);

- Ajuda que lhe foi prestada pela autora BB e por outros familiares. (56);

- No dia 17.08.2017 consultou médico da especialidade de psiquiatria, sendo diagnosticada depressão ansiosa e perturbação de descontrole de impulso, com necessidade de apoio de terceira pessoa para algumas atividades da vida diária. (39);

- Atos da vida quotidiana: dificuldade na condução, dificuldade em se deslocar nomeadamente em subir escadas na efetivação de compras por dificuldade em transporte de sacos, dificuldade na higiene pessoal e no uso de utensílios para comer (talheres e no vestuário nomeadamente ao calçar-se); (71);

- É considerada a necessidade de apoio de terceira pessoa numa média de 3 horas/dia. (92).

- Á data da consolidação das lesões, o Autor tinha 45 anos.


Do quadro factual não há qualquer dúvida da necessidade de o Autor recorrer à assistência de uma 3ª pessoa para a realização de alguns actos básicos do dia a dia, assistência essa que tem sido prestada pela esposa ou por familiares.

Assistência que tem de ser prestado todos os dias, e não apenas nos 5 dias úteis e, previsivelmente, ainda por cerca de três décadas, como ponderado pelas instâncias.

E se é certo que até agora o Autor não necessitou de contratar alguém em regime de contrato de trabalho, não significa que não venha a ter de fazê-lo no futuro.

Atento a exiguidade do quadro factual para a fixação do quantum indemnizatório, a decisão terá de basear-se num juízo de equidade - “dentro dos limites que o tribunal tiver por provados” - como expressa o nº 3 do art. 566º do CCivil.

Não pode deixar de ponderar-se que o facto de a indemnização ser paga de uma só vez permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros – não se ignora que actualmente são baixas as taxas de juro remuneratório pagas pelas entidades bancárias, embora não seja certo que as coisas assim se mantenham - o que justificará introduzir um desconto no valor achado, como se tem decidido em casos análogos.

Tudo ponderado, afigura-se-nos mais equitativo o quantum indemnizatório de €120.000,00 fixado na sentença, que assim se repristina.

Por último, vejamos a indemnização pelos danos não patrimoniais.

A este título, a sentença fixou a indemnização em €65.000,00, valor que a Relação subiu para €90.000,00.

Defende a Recorrente que esta indemnização não deve exceder os €30.000,00.

Com o devido respeito, não tem razão.

Regem para o caso os artigos 496º, nºs 1 e 4, CCivil, dizendo este este nº 4 que a indemnização é fixada equitativamente, tendo em consideração as circunstâncias referidas no art. 494º.

A indemnização por danos não patrimoniais, mais que ressarcir um dano, visa compensar o lesado com uma quantia pecuniária que represente um lenitivo que contrabalance as dores físicas e morais sofridas, insusceptíveis de avaliação pecuniária.

A fixação da indemnização deve orientar-se em harmonia com os padrões de cálculo adoptados pela jurisprudência mais recente, de modo a salvaguardar as exigências de igualdade no tratamento do caso análogo, uniformizando critérios. São de ponderar as circunstâncias várias, como a natureza e grau das lesões físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas eventualmente sofridas e seu grau de risco, internamentos e a sua duração, o quantum doloris, o dano estético, o período de doença, a situação anterior e posterior da vítima em termos de afirmação social, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspectivas de futuro. (Ac. STJ de 07.09.2020, já citado).

A factualidade apurada revela que os danos não patrimoniais muito graves, como se extrai dos seguintes factos:

- Sofreu traumatismo do braço esquerdo, traumatismo da mão e do joelho direitos, entorse do joelho direito com rotura do LCA e dores nos membros superiores e inferiores e na cabeça. (14)

-  Foi transportado para a urgência do Hospital ...., local onde lhe foram ministrados cuidados médicos e medicamentosos. (16)

- Realizados exames radiográficos, apresentava fratura proximal do úmero esquerdo (incluindo fratura cefálica); fratura da glenoide esquerda; fratura da diáfise do úmero esquerdo; neuropaxia do radial do membro superior esquerdo; fratura de Bennett e rotura do tendão flexor Dl da mão direita; rotura do LCA e do ligamento colateral interno do joelho direito. (17)

- Foi sujeito a quatro intervenções cirúrgicas: em 11.04.2014, em 05.02.2015, 13.09.2015, e 20.06.2017, à mão, joelho e ombro;

-  O agravamento das dores no joelho direito e ombro esquerdo dificultaram a prestação da sua atividade profissional, com dificuldade em caminhar, em estar de pé e em subir escadas. (57),

 - O autor realizou várias sessões de fisioterapia. (58)

- Desde o embate deixou de praticar atividade desportiva. (59)

-  O autor era alegre, bem-disposto, mantendo relações sociais e uma vida ativa, passou a estar triste, a ser ansioso, facilmente irritável e a manifestar pensamentos suicidas. (60 e 61).

  -  Desde o embate toma medicação com carater de regularidade, nomeadamente Clonazepam, Escilatopram, Rivotril, Ferro Gradumet, Dusphatal Triticum Castilium analgésico, Paracetamol, Britelix lOmg, Valdoxan, Diplexil-R 250 mg, Medipax 10, Quetiapina 50mg, Lorazepam lmg. (62).

- O autor apresenta as seguintes alterações:

(A) Postura, deslocamentos e transferências: Dificuldade na marcha prolongada e na posição de cócoras e ortostatismo prolongado;

(B) Manipulação e preensão: Dificuldade a pegar pesos;

(E)Cognição e afetividade: Estado de ansiedade frequente com perturbações do sono e do humor com irritabilidade frequente e vivência frequente do momento do acidente e estado de ausência frequente;

(F) Sexualidade e procriação: Perturbações da libido com perturbação na ereção e na ejaculação e dificuldade orgástica com natural desenvolvimento de quadro de ansiedade;

(E)  Fenómenos dolorosos: Dor crónica permanente do ombro e braço esquerdo e joelho direito e dor frequente do polegar e punho direito;

(F)  Outras queixas a nível funcional: "formigueiros na mão" esquerda e falta de força das mãos de predomíniodireito, agravamento do quadro gastrointestinal, com cólicas e diarreias frequente e vómitos. (76);

- A nível situacional, apresenta:

(4) Atos da vida quotidiana: dificuldade na condução, dificuldade em se deslocar nomeadamente em subir escadas na efetivação de compras por dificuldade em transporte de sacos, dificuldade na higiene pessoal e no uso de utensílios para comer (talheres e no vestuário nomeadamente ao calçar-se);

(5) Vida afetiva, social e familiar: perturbações do foro sexual e irritabilidade frequente e dificuldade na comunicação interpessoal, já que está atualmente impedido de manter a dádiva de sangue que efetuava com regularidade trimestral no serviço de sangue do HDF;

(6) Vida profissional ou de formação: alterações de comunicação e irritabilidade acrescida por sentimento de revolta perante as limitações físicas decorrentes do acidente. (77);

 Como sequelas apresenta:

- Crânio: perturbações de humor e personalidade enquadráveis em síndrome depressivo major e de perturbação pós-traumático;

- Membro superior direito: cicatrizes operatórias na face anterior e distai do antebraço de 10 cm e outra da face radial da mão com 5 cm, falta de força e limitação da mobilidade do dedo polegar por rigidez da MF do polegar direito e artrodese do trapézio metacárpica;

- Membro superior esquerdo: cicatriz operatória do ombro deltopeitoral com 25 cm, queilode e dismórfica com rigidez marcada no ombro, com abdução de 80° e rotações de 45°, com dificuldade de levar a mão à nuca e região lombar;

- Membro inferior direito: cicatriz operatória anterior com 10 cm e sinovite moderada do joelho com instabilidade anterior e limitação da mobilidade na flexão 120° sem amiotrofia;

- Abdómen: síndrome do cólon irritável agravado. (79)

- Em consequência do embate ficou a padecer de perturbação depressiva e de perturbação de stress pós-traumático. (80)

- O Período de Défice Funcional Temporário Total foi fixado em 59 (cinquenta e nove) dias (períodos de internamento e/ou repouso absoluto entre os dias 02.04.2014 a 17.04.2014 e de 05.02.2015 a 08.03.2015 e de 20.06.2017 a 30.06.2017). (82)

- O Período de Défice Funcional Temporário Parcial foi fixado em 1233 (mil duzentos e trinta e três) dias (entre os dias 18.04.2014 e 04.02.2015 e de 09.03.2015 a 19.06.2017 e de 01.07.2017 a 14.10.2017). (83);

- O período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total foi fixado num período de 701 (setecentos e um) dias (entre os dias 02.04.2014 e 02.03.2016).

- O período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial foi fixado num período de 591 (quinhentos e noventa e um) dias (entre os dias 03.03.2016 a 14.10.2017). (84 e 85);

- O quantum doloris foi fixado no grau 5/7. (86);

- O Dano Estético Permanente foi fixado no grau 3/7.

- A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer foi fixada no grau 2/7. (90);

- É considerada a necessidade de ajudas técnicas permanentes, designadamente acompanhamento médico em consultas das especialidades de neuropsicologia (anual) e gastroenterologia e a necessidade de fisioterapia, acrescidas de terapêutica medicamentosa complementar em conformidade com essas consultas com inclusão de analgésicos. (91);

        

É este um quadro de indiscutível gravidade que justifica uma compensação condigna.

 A alegação da Recorrente de que a indemnização por danos não patrimoniais não deve exceder o valor habitualmente atribuído à indemnização do dano morte não tem, com o devido respeito fundamento. Como este Tribunal tem reiteradamente decidido, nada na lei obriga ou sugere que a compensação por danos não patrimoniais tenha de ser necessariamente inferior à indemnização habitualmente atribuída pelo STJ para indemnizar o dano morte, por serem compensações que assentam em pressupostos distintos. (Acórdãos de 05.07.2007, P. 072737, de 02.03.2011, P.1639/03, e de 19.06.2014, P. 1679/10).

   O que bem se compreende.

É que enquanto a indemnização pelo dano morte é percebida pelas pessoas que nos termos da lei a ela têm direito, a indemnização pelos danos morais é recebida pelo lesado como compensação pelas dores já sofridas e ainda as que o vão acompanhar pelo tempo de vida que lhe resta, podendo traduzir-se, como tantas vezes sucede, por uma brutal degradação da qualidade de vida, que pode justificar que a indemnização supere os valores normalmente fixados para o dano morte.


 Posto isto, impõe-se fazer um comparativo com outras decisões deste Tribunal no quadro da indemnização pelo dano não patrimonial decorrente de acidente de viação.


Eis alguns exemplos retirados do site www.dgsi.pt:

Acórdão de 21.01.2016 (P. nº 1021/13): fixada a indemnização de €50.000,00 a um jovem de 27 anos, com múltiplos traumatismos, sequelas psicológicas, quantum doloris de grau 5, dano estético de 2 pontos, incapacidade parcial de 16 pontos, com limitação nas actividades desportivas e de lazer, claudicação na marcha e rigidez na anca;


Acórdão de 14.12.2017, P. 589/13: indemnização de €30.000,00 a lesado, enfermeiro de profissão com 34 anos à data do acidente, que auferia €2.010 líquidos mensais; ficou afectado de défice funcional permanente de 20 pontos; foi sujeito a diversas intervenções cirúrgicas, permaneceu diversos períodos internado; apresenta dano estético de grau 3, quantum doloris de grau 5 numa escala de 7; com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer;


Acórdão de 12.07.2018, P. 1842/15:  indemnização de €60.000,00, a lesado com 45 anos, que como sequela das lesões sofre de perturbação persistente do humor; quantum doloris fixável no grau 6/7; com repercussão permanente na actividades desportivas e de lazer;  precisa de ajudas medicamentosas, técnicas e tratamentos médicos regulares; há lugar a dependências permanentes que incluem produtos de apoio pela necessidade de uso diário de meia de contenção elástica na perna e uso de cinta de contensão lombar; 


Acórdão de 19.09.2019, (P. 2706/17): indemnização de €50.000,00 a lesado que, à data do acidente tinha 45 anos, ficou afectado de uma IPG de 32 pontos, com internamento hospitalar, sofreu intervenção cirúrgica, dores muito intensas, com repercussões na sua actividade profissional e particular que deixou de poder exercer ou praticar.


Tendo presente o quadro factual apurado a indemnização fixada pela Relação compagina-se com a jurisprudência mais recente deste Tribunal, pelo que não se vê motivos para a alterar.


Com o que em parte procede a revista da Ré Seguradora, e improcede o recurso subordinado do Autor.

    Sumário:

I - Sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o recebimento pelo lesado de um certo capital de remissão no âmbito do processo por acidente de trabalho, não exclui o direito à indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir;

II – O capital de remissão visa ressarcir as perdas salariais associadas à incapacidade laboral fixada no processo por acidente de trabalho; a indemnização pelo dano biológico, além de compensar a perda de capacidade de ganho, visa ainda compensar o lesado pelas limitações funcionais que se reflectem na maior penosidade e esforço no exercício da actividade diária e na privação de futuras oportunidades profissionais.


  Decisão.

 Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao recurso da Ré, pelo que se altera o acórdão recorrido, indo a Ré condenada a pagar ao Autor:

- €240.000,00, a título de perda de capacidade de trabalho/dano biológico;

 -€120.000,00 por encargos com a necessidade de assistência de uma terceira pessoa;

 - €90.000,00 a título de danos não patrimoniais;

 - Confirma-se o acórdão recorrido quanto a juros de mora, mantendo-se a sentença na parte não impugnada na apelação.

 Julga-se improcedente o recurso subordinado.

Custas por Recorrente e Recorrida na medida do decaimento.

                                                                                  

Lisboa, 17.11.2021

                                                                                              

Ferreira Lopes (relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva