Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
503/14.OTBAMT.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CORTEJO RELIGIOSO
ATROPELAMENTO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ILUMINAÇÃO
CONTRA-ORDENAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 05/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO ESTRADAL - TRÂNSITO DE PEÕES / LUGARES EM QUE PODEM TRANSITAR / ILUMINAÇÃO DE CORTEJOS ORGANIZADOS.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / REPARAÇÃO DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, III, 3.ª edição, reimpressão, 1981, 215.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1.ª edição, 1970, 427 e nota (485), 428, 429; Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 607 e 608.
- João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 13.ª reimpressão, 2002, 182 e 183.
- Leite de Campos, «A Vida, a Morte e sua Indemnização», B.M.J. n.º 365, 16 e ss.; A Indemnização do Dano da Morte, 12.
- Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, T2, 2.ª edição, 41.
- Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 4.ª edição, 1970, 141.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, I, 4.ª edição, revista e actualizada, 1987, 499, 500, 501.
- Sousa Dinis, «Dano Corporal em Acidente de Viação», CJ (STJ), Ano V (1997), T2, 13.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 496.º, N.ºS 1, 3 E 4.
CÓDIGO DA ESTRADA (CE): - ARTIGOS 3.º, 24.º, N.ºS 1 E 3, 25.º, N.ºS 1, C), D), F), H) E 2, 27.º, N.ºS 1 E 2, A), 99.º, N.ºS 1, 2, E) E 4, 102.º, Nº 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 631.º, N.º 1, 671.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 17-3-1971, B.M.J. N.º 205, 150.
-DE 6-10-1981, B.M.J. N.º 310, 267.
-DE 15-9-2010, PROC. N.º 4119/04.0TTLSB.S1, WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - Limitando-se a parte a afirmar que a matéria de certos pontos dos factos provados configura um “conjunto de conclusões”, sem especificar qual ou quais os respetivos segmentos do conjunto em que esse vício está patente, e não enfermando os mesmos, globalmente, considerados de qualquer juízo conclusivo, não importa declará-los como «não escritos».
II - Não se anunciando a presença de um cortejo religioso constituído em via-sacra com, pelo menos, uma luz branca dirigida para a frente e uma luz vermelha dirigida para a retaguarda, bem como através da utilização de coletes retrorrefletores, um no início e outro no fim da formação, como impunham as normas percetivas dos arts. 99.º, nºs 1, 2, e) e 4 e 102.º, nº 1, ambos do CEst, mas, tornando-se o mesmo visível, apesar de já ser de noite, para além da iluminação pública existente, com as velas acesas dos participantes, em número de, pelo menos, cem pessoas, e da presença, no local, de um veículo imobilizado, por causa do evento religioso, com os quatro piscas ligados, com a frente voltada para o lado da via-sacra, cumpriu-se a razão de ser da lei, sendo razoável sustentar que a finalidade da norma estradal que impõe a necessidade de denunciar a presença, em ambiente noturno, da existência de um cortejo ou formação organizada de pessoas, perante o fluir da circulação rodoviária, se alcançou, no caso em apreço, com a iluminação pública do local, com as velas acesas das cerca de cem pessoas que a compunham e com a presença, imediatamente, atrás do aludido cortejo, de um veículo imobilizado com os quatro piscas ligados.
III - Deste modo, a contraordenação imputável aos comparticipantes no cortejo religioso, não ultrapassa as fronteiras de uma mera contraordenação conexa ao acidente, não assumindo a natureza de uma contraordenação causal do mesmo que, deste modo, é, exclusivamente, de atribuir ao condutor do veículo automóvel, único culpado pela sua produção e consequências que lhe sobrevieram.
IV - A reparação pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da sua morte é atribuída, independentemente do período de tempo decorrido entre o evento lesivo e o seu falecimento, podendo essa localizar-se entre o limite zero, no caso de morte instantânea, sem qualquer sofrimento, ou de coma profundo, desde o dia dos factos até ao falecimento, e o limite situado em plano aquém do que for entendido como adequado pela perda do direito à vida, dependendo do sofrimento e respetiva duração, da maior ou menor consciência da vítima sobre o seu estado e da aproximação da morte.


Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

AA, BB e CC propuseram a presente ação, com processo comum, contra “DD - Sucursal em Portugal”, todos, suficientemente, identificados, pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a pagar-lhes uma indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, no valor global de €247.396,47, sendo €77.465,48 para a autora AA, €77.465,48 para a autora BB, e €92.465,48 para o autor CC, acrescida de juros de mora legais, contados desde a citação, alegando, para tanto, e, em síntese, que, no dia 22 de abril de 2011, na Rua ..., ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ...-SN, conduzido por EE, segurado na ré, e, pelo menos, cem peões, entre os quais, FF, mãe dos autores, que se encontrava na berma da estrada, e na qual, entre muitas outras, o referido veículo, por culpa exclusiva do seu condutor, embateu, causando-lhe vários ferimentos, que lhe determinaram a morte, no dia 23 de dezembro de 2011.

Na contestação, a ré conclui pela improcedência da ação, defendendo a exclusão da responsabilidade do seu segurado pela ocorrência do acidente, não aceitando a extensão dos danos invocados pelos autores, o direito destes a alguns dos que reclamam, bem como o valor dos mesmos, que reputa de exagerados.

A sentença julgou “a ação, parcialmente, procedente por parcialmente provada e em consequência, condenou a ré seguradora a pagar à Autora AA a quantia de €45.457,06, acrescida de juros legais de mora sobre a quantia de €45.000, a contar da presente data em que foi proferida a presente sentença até integral e efectivo pagamento e acrescida de juros legais de mora sobre a quantia de €457,06 a partir da citação até integral e efectivo pagamento – a); condenou a Ré Seguradora a pagar á Autora BB a quantia de €45.457,06, acrescida de juros legais de mora sobre a quantia de €45.000 a contar da presente data em que foi proferida a presente sentença até integral e efectivo pagamento e acrescida de juros legais de mora sobre a quantia de €457,06 a partir da citação até integral e efectivo pagamento – b); e condenou a ré seguradora a pagar ao Autor CC a quantia de €55.457,05, acrescida de juros legais de mora sobre a quantia de €55.000 a contar da presente data em que foi proferida a presente sentença até integral e efetivo pagamento e acrescida de juros legais de mora sobre a quantia de €457,05 a partir da citação até integral e efectivo pagamento – c); absolvendo a Ré Seguradora do demais contra si peticionado pelos Autores nos presentes autos” – d)”.

Dessa sentença, a ré “DD-Sucursal em Portugal” interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação “julgado parcialmente procedente a presente apelação, pelo que, mantendo no mais o que ficou decidido, se altera a sentença recorrida na parte em que determinou a compensação pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima FF, cujo montante, em substituição do anteriormente definido, se fixa agora na quantia de 30.000,00 € (trinta mil euros)”.

Do acórdão da Relação do Porto, a ré interpôs recurso de revista independente e os autores interpuseram recurso de revista subordinado, formulando as seguintes conclusões que, integralmente, se transcrevem:

RECURSO INDEPENDENTE DA RÉ DD:

1ª – O presente recurso centra-se sobre a apreciação da culpa na eclosão do sinistro.

2ª - O entendimento de que este ocorreu devido à culpa exclusiva do condutor do veículo não se deve manter, devendo antes entender-se que a culpa de todos os peões, incluindo a da vítima, concorreu, na proporção de 60% para a eclosão do evento.

3ª – Prima facie – a matéria, acima elencada, constante dos pontos 8, 10 e 13 dos factos provados configura um conjunto de conclusões que não pode ser considerada matéria de facto, devendo, por conseguinte, ser declarada não escrita - cfr. Ac. do STJ de 24 de Fevereiro de 1999 (in www.stj.pt, Proc. 905/97, nº JST00035969, Rel. Ferreira Ramos) e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, p. 312.

4ª - O condutor do “SN” não seguia distraído ou sem atenção, pois, caso contrário, teria embatido no veículo que se encontrava parado à sua direita, a ocupar parte da faixa de rodagem, o que não sucedeu. Provou-se que contornou esse veículo.

5ª - No que respeita à questão da culpa na produção do sinistro importa verificar, em concreto, qual o comportamento de cada um dos intervenientes, face ao critério de culpa enunciado no art.º 487º nº 2 do Código Civil, ou seja, o da diligência de um bom pai de família - cfr. Ac. do S.T.J. de 3 de Junho de 2008 (Revista n.º 880/08 - 6.ª Secção).

6ª – A “visão” dos factos de que o sinistro se deveu a exclusiva do condutor do “SN”, constante do douto Acordão recorrido mostra-se redutora, segmentada e incompleta.

7ª - A vítima, mesmo seguindo pela berma, não deixava de ser uma das integrantes e componentes da via sacra, pois foi por causa de participar na procissão que a vitima estava no local, tendo-se provado, aliás, que era uma das participantes da via sacra.

8ª - Como bem se referiu no voto de vencido de fls. .  “(a) culpa da mãe dos autores não pode ser desintegrada da culpa de todos os outros intervenientes apeados da procissão, sendo tão culpada pelos danos de que ela própria e os seus três filhos foram vítimas como todos os outros intervenientes apeados”.

9ª – A vítima integrava uma procissão composta por mais de cem pessoas que caminhavam em plena faixa de rodagem, sem dispositivos luminosos, sem coletes reflectores, sem qualquer sinalização, a ocuparem por completo a via, de noite e a seguir a uma curva de aldeia, sem visibilidade – tudo factos provados !!!!!!

10ª – Este conjunto de peões constituía um OBSTÁCULO IMPREVISÍVEL para qualquer condutor e é no interior deste obstáculo que seguia a vítima.

11ª - O douto acórdão recorrido abre a porta a decisões completamente díspares, consoante seja a posição do peão no interior da procissão, o que não se pode aceitar.

12ª - O peão (vítima do atropelamento) integrava de livre vontade uma procissão nocturna que ocupava TODA A VIA, sem qualquer licenciamento ou sinalização.

13ª - Sendo a incúria colectiva o principal factor de culpa do CONJUNTO DE PEÕES DENOMINADO PROCISSÃO, não faz sentido afirmar que este ou aquele peão integrante da procissão tem mais ou menos culpa, ou até nenhuma culpa.

14ª - Foi a ocupação de toda a via – bermas incluídas – que configurou um obstáculo impossível de evitar ou contornar.

15ª - A vítima dos presentes autos tem de ser considerada culpada, pois INTEGRAVA UMA PROCISSÃO QUE OCUPAVA TODA A VIA, DE NOITE, E A SEGUIR A UMA CURVA SEM VISIBILIDADE.

16ª - Os peões encontravam-se conscientes de que integravam o cortejo e ocupavam toda a via, bermas incluídas, o que resultou do depoimento de todas as testemunhas.

17ª - Os peões sabiam que o cortejo não era regulado por autoridades policiais e sabiam que o mesmo não se encontrava sinalizado, fosse através de luzes, fosse através de um veículo de sinalização, fosse através do uso de coletes retrorrefletores.

18ª - Por via da posição e da falta de sinalização dos peões o sinistro tinha sempre de ocorrer (cfr. cópia do relatório do I.M.T.T. de fls), por causa e por culpa dos peões, e independentemente da velocidade do veículo.

19ª - O comportamento dos peões do cortejo concorreu também, de forma causal e culposa para a produção do sinistro – cfr. art.ºs 563º e 570.º n.º 1 do Código Civil.

20ª - A tese, constante do douto acórdão recorrido, de que um veículo a sinalizar a procissão nada resolvia é igualmente FALSA e DESMENTIDA pelos factos provados.

21ª - Se o condutor do “SN” contornou o tal veículo parado e se travou bruscamente ao avistar os peões, mister é concluir que teria parado ao avistar um veículo EM SENTIDO CONTRÁRIO a sinalizar a procissão, pois esse veículo era impossível de contornar.

22ª - Bastava que existisse um veículo com os faróis ligados, ou até com os quatro piscas a sinalizar o cortejo para que toda esta tragédia fosse evitada, até porque tal veículo teria de ser posicionado à frente da procissão e a uma distância de segurança dos peões.

23ª - Aos peões integrantes da via-sacra impunha-se o cumprimento de todos estes cuidados e obrigações legais. Contudo, nenhuma das obrigações legais foi cumprida.

24ª - OS PEÕES tiveram um comportamento totalmente desconforme à prática habitual, às regras do bom senso, e, decisivamente, às normas consagradas no Código da Estrada – vidé art.º 8.º n.º 1 e art.º 102.º n.º 1 do Código da Estrada.

25ª - A realização do cortejo não se encontrava devidamente autorizada, o que acentua a ilicitude do comportamento e, em consequência, a culpa na produção dos danos.

26ª - Causal do sinistro foi o facto dos peões não se encontrarem sinalizados, ou seja, o cortejo não assinalou a sua presença na via através de, PELO MENOS, uma luz branca dirigida para a frente e uma luz vermelha para a retaguarda e também não foram utilizados os coletes retrorrefletores, no início e no fim da formação.

27ª - A sinalização do cortejo, por veículo ligeiro ou por autoridades policiais, o uso de luzes de sinalização e o uso de coletes retrorreflectores teria evitado esta tragédia.

28ª - O condutor do “SN” não poderia prever a presença “de, pelo menos, cem peões” na via, a seguir a uma curva à direita, de má visibilidade, a ocuparem toda a faixa de rodagem, de noite e sem qualquer sinalização, mesmo que circulasse a 50 km/h.

29ª - O dever de previsibilidade não pode ir para além do normal – cfr. Ac. do S.T.J. de 03-05-2012, Revista n.º 136/07.7TBVLSB - 2.ª Secção e muitos outros.

30ª – Nunca por nunca poderá assim ficcionar-se a culpa única e exclusiva do condutor do “SN” na produção do sinistro en cause.

31ª – O sinistro ocorreu de noite e a condução nocturna rege-se, acima de tudo, pelas luzes dos outros veículos.

32ª - O condutor do “SN” só era obrigado a regular-se por essas luzes, no essencial.

33ª – Mesmo a existir iluminação pública, a mesma não se destina a substituir a iluminação dos veículos ou a sinalização dos utentes das vias públicas, muito menos de 100/200 peões a caminhar pela faixa de rodagem, sem qualquer sinalização!

34ª - Caso o “SN” circulasse dentro do limite legal de velocidade, ou seja, a 50 km/h, o sinistro ocorreria sempre, devido à posição dos peões, a seguir à curva e sem sinalização.

35ª - O comportamento do condutor do “SN” não se mostra apto, por si só, a causar o sinistro, até porque este condutor apenas pôde avistar o perigo e accionar os travões do “SN” a cerca de 13, 5 metros dos peões.

36ª – Dado que os peões não se encontravam sinalizados, o tempo de reacção do condutor do “SN” foi mais longo do que seria de dia.

37ª - A inobservância das obrigações decorrentes das normas plasmadas no Código da Estrada, por parte dos peões que integravam o cortejo religioso (de todos, pois só todos é que formam um cortejo), revelou-se, em concorrência com o comportamento do condutor do “SN” causal do sinistro.

38ª - Ocorreu assim uma concorrência de culpas que não foi valorada no douto acórdão recorrido, devendo ser fixada por este alto tribunal em 60% para os peões e em 40% para o condutor do “SN”, tal como se consignou no voto de vencido de fls.

39ª - A douta decisão recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos art.ºs 342º nº 1, 388º, 389º, 483º, 487º nº 2, 563º, 564º, 566º nº 2 e 3, 570º do Código Civil, 607º, 615º nº 1, alínea d), 616º, 637º, 640º, 644º, 645º e 647º do Código de Processo Civil, e 3º nº 2, 8º nº 1 e 102º do Código da Estrada, que deverão ser interpretados de acordo com as presentes conclusões, revogando-se o acórdão recorrido.

               RECURSO SUBORDINADO DOS AUTORES:

1.ª - Tendo em consideração a concreta factualidade apurada e a corrente jurisprudencial dominante, que propende para o afastamento do miserabilismo na fixação das indemnizações emergentes de acidentes viários, é escasso o valor de €51.000,00 arbitrado a título de indemnização pela lesão do direito à vida.

2.ª - A justa compensação do referido dano deverá ser efetuada através da atribuição aos lesados, herdeiros da infeliz vítima, do montante indemnizatório de €75.000,00.

3.ª - Também o valor (€30.000,00) arbitrado pela Relação para ressarcimento dos danos não patrimoniais traduzidos no atroz sofrimento da infeliz vítima, conscientemente vivido ao longo de oito meses em que aguardou, angustiada e impotente, a chegada da morte, é manifestamente exíguo, atendendo à extrema gravidade dos danos em apreço;

4.ª - Neste particular, há que atender-se às consequências físicas e morais que para inditosa vítima resultaram do acidente e que culminaram com o seu decesso;

5.ª - Recorrendo à equidade e tendo em consideração as concretas circunstâncias do caso em apreço, temos que a justa e equilibrada indemnização, adequada a compensar os danos não patrimoniais sofridos, transmitidos hereditariamente para os recorrentes, deverá corresponder ao montante de €60.000,00 que havia sido arbitrado em 1.ª Instância.

6.ª - Por fim, o justo ressarcimento dos danos não patrimoniais inerentes à dor e ao sofrimento que tiveram em face do trágico falecimento da mãe, deverá ser compensado mediante a atribuição de €40.000,00 ao recorrente CC e €20.000,00 a cada uma das recorrentes AA e BB.

7.ª - O douto acórdão recorrido violou, entre outras normas, os artºs 483.º e 496.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Civil.

Nas contra-alegações quanto ao recurso independente da ré, os autores concluem no sentido de que deve ser negado provimento ao mesmo, mantendo-se inalterado, no que se refere à definição da responsabilidade, o acórdão recorrido.

Por seu turno, nas contra-alegações relativas ao recurso subordinado dos autores, a ré conclui no sentido de que, quanto aos montantes da perda do direito à vida da vítima e do dano moral dos autores, o acórdão não pode ser objeto de recurso, por se ter formado a dupla conforme, além de que, por outro lado, os autores não apresentaram recurso da decisão de primeira instância que fixou os montantes relativos à perda do direito da vida, e aos danos morais por si sofridos, por via da morte de sua mãe.

Finalmente, a ré acrescenta que o único vetor do acórdão impugnado que pode ser recorrido, ou seja, relativamente ao dano moral próprio sofrido pela vítima, os autores pugnam pela fixação de um montante superior ao que já haviam aceite, procedimento este, de todo, ilegal e injustificado, sendo que a verba fixada pelo douto acórdão recorrido, em €30000,00, tem inteiro cabimento.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:

1- No dia 22 de abril de 2011, cerca das 21h30m, na Rua ..., área desta comarca, realizava-se um festejo, de cariz religioso, (uma via-sacra), que decorreu, pela primeira vez, nesse local, com um número de, pelo menos, cem peões, que se deslocavam nessa via, também, ocupando a berma do lado esquerdo, considerado o sentido ...

2 - O evento, referido em 1), não se encontrava autorizado pela Câmara Municipal, (não tendo sequer sido requerida tal autorização), não era precedido de um veículo com luzes em funcionamento, para assinalar a sua presença, não era precedido de qualquer autoridade a regular o trânsito, como a G.N.R ou a P.S.P., e a respetiva presença não vinha assinalada com luzes brancas à frente e vermelhas atrás.

3 - Nesse local e à referida hora, a iluminação pública estava, em pleno funcionamento, os peões, sem usarem coletes refletores, levavam velas acesas, e os acólitos e o padre que seguiam na frente da procissão (via-sacra) usavam vestes brancas, sem utilizarem qualquer dispositivo luminoso.

4 - A faixa de rodagem, no local por onde passava a procissão (via-sacra), tem a configuração de uma reta, com dois sentidos de marcha opostos, ou seja, um para cada lado, com a largura de 5,10 metros, com inclinação de 4%, em sentido ascendente, considerado o sentido da procissão (via-sacra), passando a 6%, após a curva aí existente, sendo o piso em alcatrão betuminoso, em bom estado de conservação e ladeada por campos e habitações.

5 - Na referida faixa de rodagem existia um sinal de velocidade recomendada de 30 kms/h, o estado do tempo era de chuva e o piso estava molhado.

6 - No local, a via descreve uma reta, seguida de uma curva longa à direita, atento o sentido ..., com o esclarecimento que antes dessa curva existe o sinal de velocidade recomendada de 30 kms/h, referido em 4).

7 - Logo a seguir á curva (considerando o sentido de marcha ...), que dista cerca de 35 metros do local onde estava a terceira cruz, encontrava-se parado, no lado direito da via, (sentido ...), um veículo com os quatro piscas ligados, com a frente voltada para o lado da procissão (via-sacra).

8 - Quando a procissão (via-sacra) se encontrava parada, junto da terceira cruz, primeira naquela estrada a ocupar a faixa de rodagem, e os peões se preparavam para reiniciar a marcha, o veículo ligeiro, com a matrícula ...-SN, conduzido por EE, circulava pela metade direita da via, na mesma faixa de rodagem, atento o sentido ..., a uma velocidade de, pelo menos, 90 Kms/h, levando os dispositivos luminosos ligados, nomeadamente, os faróis frontais, sem prestar a necessária atenção ao tráfego e sem tomar os cuidados devidos, não tendo reduzido sequer, à entrada da curva, a velocidade de, pelo menos, 90 kms/h a que seguia,

9 - e após terminar de descrever a curva, que dista cerca de 35 metros do local onde os peões estavam parados e, ao contornar pelo lado esquerdo (sendo certo que em sentido contrário, ..., não seguia veículo algum) o veículo ligeiro referido em 7), que se havia imobilizado, por causa do evento religioso, com os quatro piscas ligados, o condutor do SN avista o aglomerado de pessoas que integravam a procissão (via-sacra).

10 - O condutor do SN, deparando-se com o aglomerado de pessoas que integravam o mencionado evento religioso, travou, bruscamente, tentando parar o veículo, mas, devido à velocidade de, pelo menos, 90 kms/h a que seguia, não conseguiu dominar o ...-SN e foi embater em várias pessoas participantes na procissão (via-sacra), não só nas que se encontravam na faixa de rodagem, como, também, nas que se encontravam na berma direita, considerando o sentido de marcha do SN, entre as quais, [....] e, em FF, que seguiam apeados na referida via-sacra, derrubando-os a todos, tendo o veículo SN ficado atravessado, perpendicularmente, na via e deixado marcas de derrapagem numa extensão de 15 metros.

11 - A FF era uma das pessoas que seguia pela berma direita (atento o sentido de marcha do SN, ...) e que foi apanhada e derrubada pela frente do SN.

12 - A referida velocidade a que conduzia não permitiu ao condutor do veículo ...- SN, EE, dominar esse veículo, de forma a evitar colher as pessoas que faziam parte da procissão (via-sacra), entre as quais a falecida FF.

13 - O aludido condutor do SN seguia distraído, sem atenção às circunstâncias da via (piso molhado e escorregadio), com algumas pessoas a pé, mas que podia avistar, pois o local encontrava-se iluminado e as pessoas mais próximas com vestes brancas.

14 - A proprietária do veículo ...-SN era HH.

15 - O Artur Jorge conduzia o SN, com conhecimento e autorização da proprietária do veículo, referida em 14).

16 - A proprietária do veículo, de marca Volkswagen, modelo Passat, de matrícula ...-SN, transferiu para a seguradora DD", aqui ré, a respetiva responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ...-SN, através do contrato de seguro, titulado pela apólice n°....

17 - A ré "DD" procedeu a averiguações sobre o modo como ocorreu o sinistro "sub júdice", não tendo aceite a responsabilidade pela eclosão do acidente.

18 - Em virtude do atropelamento, referido em 10) e 11), a FF sofreu graves ferimentos, dos quais resultou a sua morte, que ocorreu, em 23 de dezembro de 2011, ou seja, 8 meses após o acidente,

19 - E, enquanto sobreviveu, teve angústias e dores físicas e morais atrozes, prevendo a sua morte.

20 - Após o acidente, FF foi transportada para o Hospital de ..., onde deu entrada, apresentando diversas e graves lesões, a saber:

TCE grave, com hematoma subdural, contusão cerebral hemorrágica e provável fratura da base do crâneo;

Traumatismo da face, com várias fraturas, nomeadamente da apófise coronoide e do colo mandibular esquerdos;

Traumatismo do tórax, com fraturas de costelas bilaterais e derrames pleurais bilaterais;

Traumatismo abdominal, com hematoma na bexiga;

Traumatismo da coluna, com fratura da apófise transversa direita de L2;

Traumatismo da bacia, com fratura da asa direita do sacro e fratura dos ramos ileo e isqueopubicos direitos;

Fraturas dos membros:

fratura exposta do pilão tibial esquerdo;

fratura exposta dos ossos da perna direita;

fratura do estiloide radial do braço direito;

fratura do M5 e F1 e D3;

Fratura da clavícula esquerda.

21 - Dada a gravidade do seu estado de saúde, a sinistrada foi transferida para o Hospital ..., onde foi observada por Ortopedia, Cirurgia Maxilo-Facial e Neurocirurgia, e onde se manteve internada, até 3 de junho de 2011.

22 - Nesse hospital, a sinistrada manteve-se ventilada, tendo-lhe sido feita traqueostomia percutânea.

23 - No Hospital ..., a lesada foi submetida a operação à fratura da perna esquerda, com a colocação de fixadores externos, tendo-lhe, também, sido colocados fixadores externos na perna direita (osteotaxia), foi-lhe imobilizada, com tala gessada, a fratura do rádio direito e colocado, na clavícula esquerda, um ligamento cruzado posterior.

24 - Em 3 de junho de 2011, a sinistrada foi transferida para o Hospital ..., onde deu entrada com sepsis, hipocalemia, pneumonia e úlcera sagrada.

25 - No Hospital ... foi submetida a cirurgia para extração de fixadores externos e encavilhamento da tíbia direita com vareta, a osteossíntese do pilão tibial esquerdo e remoção do material de osteossíntese do tornozelo esquerdo.

26 - Nesse Hospital esteve ligada a máquina de oxigénio com sonda, isto é, entubada, sendo que, também, era alimentada por processo semelhante (sonda).

27 - Em 8 de setembro de 2011, a lesada foi transferida para a Santa Casa da Misericórdia de ..., onde lhe eram prestados cuidados continuados, passando, posteriormente, para o Hospital de ..., onde veio a falecer, em 23 de dezembro de 2011.

28 - Nessa altura, já necessitava de ventilação, tendo sofrido derrame cerebral e deixado de falar, bem como sofrido graves problemas circulatórios, nomeadamente, na perna direita, que esteve em vias de amputar.

29 - Em virtude do agravamento do seu estado, acabado de referir, a FF voltou aos Hospitais de ... e de ..., onde foram tomados procedimentos no sentido de evitar a amputação da perna.

30 - A sinistrada teve um elevado sofrimento, sujeita a vários exames, várias intervenções cirúrgicas, enfrentando diversas complicações, nomeadamente, derrame cerebral, risco de amputação de uma perna, pneumonia e sepsis.

31 - Não obstante os tratamentos a que foi sujeita, a sinistrada, em certos momentos, estava lúcida e consciente, apercebendo-se do seu estado de saúde, pois sentia muitas dores, tinha a consciência que estava, totalmente, dependente de terceiros que a alimentavam e lhe faziam a sua higiene diária, o que a fazia sentir-se muito triste e diminuída, tendo muitas dificuldades em falar, tendo, também, consciência de que o seu estado de saúde se estava a agravar, prevendo a sua morte e a separação dos seus entes queridos.

32 - A FF, durante o período de sobrevida, sofreu dores físicas atrozes, decorrentes das lesões de que padecia, bem como a angústia de sentir que o seu estado de saúde se estava a agravar.

33 - A FF esteve internada, durante o período de sobrevida, foi submetida a três intervenções cirúrgicas, com as consequentes anestesias gerais, factos que implicaram elevado sofrimento físico e psíquico.

34 - Durante esse elevado período, a FF esteve sempre acamada, dependendo do auxílio de terceira pessoa para a ajudar a vestir-se, despir-se e para lhe fazer a sua higiene diária e para a alimentar, factos que a fizeram sentir-se triste e inútil.

35 - A sinistrada ficou, totalmente, acamada, dependente do uso de fraldas, factos que, do ponto de vista emocional, a afetaram muito.

36 - A morte de FF foi "devida a lesões broncopneumonia associada a traumatismo crânio encefálico e múltiplas fracturas...";

37 - Tais lesões, constantes do relatório de autópsia, foram consequência do internamento prolongado, devido a traumatismo craniano, provocado pelo atropelamento acima descrito.

38 - A FF era saudável e alegre.

39 - Os autores sofreram e ainda sofrem profunda dor e desgosto com a perda da sua mãe, que, continuamente, choram.

40 - A FF dedicava à família todo o tempo disponível, dando-lhe muito carinho e afeto, proporcionando-lhe uma grande e indescritível alegria.

41 - Os autores compensavam essa dedicação com igual carinho e afeto.

42 - A dor dos autores foi, particularmente, intensa, durante os oito meses de sobrevida da sua mãe, a lutar pela vida, internada em diversas instituições hospitalares e de assistência, sempre com o receio de ocorrer o decesso, como veio a acontecer.

43 - A falecida FF, à data do acidente, vivia com o 3° autor, com quem convivia, diariamente, e a quem dava especial atenção, carinho e particular apoio.

44 - O 3º autor tem graves problemas de saúde, ao nível cardíaco, dando-lhe a sua mãe especial atenção e carinho, pois dele necessitava.

45 - O 3° autor sentiu, pois, mais, intensamente, a perda da sua mãe, com quem convivia, diariamente, e deixou de beneficiar do seu apoio.

46 - A mãe dos autores teve um período de sobrevida de oito meses, durante os quais os autores viveram em estado de grande ansiedade, ao verem que o estado de saúde da sua mãe se estava a agravar de dia para dia.

47 - A mãe dos autores faleceu, na época natalícia (23/12/2011), o que ainda mais entristeceu os seus filhos.

48 - Em virtude do atropelamento, a lesada danificou uma saia, uma camisola, um casaco e um par de sapatos.

49 - Em despesas com o seu internamento e numa almofada anti-escaras, a lesada despendeu a quantia de € 360,30.

50 - Em 23 de dezembro de 2011, faleceu FF, no estado civil de viúva, deixando como únicos e universais herdeiros os seus três filhos, os ora autores.

51 - A morte de FF ocorreu, em consequência das lesões traumáticas sofridas no atropelamento, pelo condutor de veículo seguro na ré, nos termos referidos em 36) e 37).

52 - À data do seu falecimento, FF tinha 77 anos de idade.

53 - As despesas com o funeral de FF ascenderam a €1.400,00 e com a sepultura, os autores gastaram €600,00, tudo no total de €2.000,00.

54 - A falecida FF era beneficiária n°... da Segurança Social.

55 - Os autores receberam da Segurança Social o subsídio de reembolso das despesas de funeral de €628,83.

Mais se fez consignar que não se provaram quaisquer outros factos, para além, ou, em contrário, dos, anteriormente, referidos, designadamente, que:

- no dia 22 de abril de 2011, cerca da 21h30, na Rua ..., área desta comarca, os participantes na procissão (via-sacra), que se deslocavam naquela via pelo lado esquerdo, considerado o sentido ... ocupassem, apenas, uma pequena parte da faixa de rodagem;

- na visa-sacra participasse mais de um padre;

- o veículo parado, a cerca de 35 metros da terceira cruz, com os quatro piscas ligados, com a frente voltada para o lado da procissão (via-sacra), estivesse a sinalizar essa procissão (via-sacra) e estivesse aí parado para assistir ao evento;

- o condutor do SN, após ter travado, bruscamente, tenha desviado o veículo, para o lado direito da faixa de rodagem, considerado o seu sentido;

- os autores tenham perdido o gosto pela vida e chorem quando se fala no acidente que vitimou a sua ente querida, FF.

- com a perda da sua mãe, os autores tenham perdido a alegria de viver;

- a saia que a lesada danificou, em virtude do atropelamento, tivesse o valor de 40,00€, que a camisola que a lesada danificou, em virtude do atropelamento, tivesse o valor de 30,00€, que o casaco que a lesada danificou, em virtude do atropelamento, tivesse o valor de 100,00€, que o par de sapatos que a lesada danificou, em virtude do atropelamento, tivesse o valor de 60,00€;

- em virtude do atropelamento, a lesada tenha danificado uma carteira, no valor de 55,00€;

- em virtude do acidente, a sinistrada tenha danificado uns óculos, no valor de €380,00;

- o condutor do SN circulasse a uma velocidade, na ordem dos 50 Km/h;

- no local do acidente não existisse iluminação pública;

- no local, não existisse iluminação apta a iluminar a faixa de rodagem;

- o condutor do "SN" seguisse com atenção às condições da via;

- a marcha do "SN" fosse, inteiramente, regular;

- a curva que antecede o local do acidente (atento o sentido ...), se trate de uma dotada de fraca visibilidade, pois do seu lado direito, atento o sentido ..., existe um muro em pedra e cimento e ainda vegetação, com mais de dois metros de altura;

- Tal muro impeça a visibilidade para a extensão total da curva;

- o "SN", após acabar de descrever a curva e deparar com um veículo ligeiro, parado junto ao lado direito da via, tenha colocado os faróis frontais do seu veículo, na posição de "médios";

- o dito veículo se encontrasse parado, junto ao portão de uma habitação, ocupasse cerca de um metro da faixa de rodagem do lado direito e as suas rodas do lado esquerdo ocupassem a faixa de rodagem, enquanto que as rodas do lado direito ocupassem a zona da entrada da habitação, já em plena berma;

- esse veículo, além de parado, se encontrasse com as luzes de "STOP" (vermelhas e fortes) ligadas;

- apesar da posição desse veículo, a restante largura da via disponível para circulação fosse de quatro metros;

- não fossem visíveis luzes que se vissem, mormente, luzes de intensidade idêntica ou superior às referidas luzes do veículo parado;

- antes de contornar aquele veículo, o condutor do "SN" tenha ligado o sinal luminoso da esquerda e passado a circular, parcialmente, pela metade esquerda da via, atento o sentido por si seguido;

- o condutor do SN tenha contornado aquele veículo e prosseguido a sua marcha com a maior naturalidade, mantendo o condutor do "SN" os faróis, na posição de médios, devido à presença na via do veículo parado;

- o "SN" tenha tido de manter os faróis, na posição de médios, unicamente, devido à presença do referido veículo, a ocupar, parcialmente, a faixa de rodagem;

- esse veículo, na referida posição e com as luzes de "STOP" ligadas, tenham ofuscado o condutor do "SN";

- o "SN" tenha passado, pelo lado esquerdo do referido veículo, sem qualquer "novidade";

- nisto, sem que nada o fizesse prever, o condutor do "SN" depara com "algo" à sua frente;

- tenha sido com choque e estupefação que depara com mais de cem pessoas - peões - a caminharem pela faixa de rodagem, em sentido inverso ao seu, à sua frente, a uma distância curtíssima - difícil de contabilizar, mas entre os dois e os dez metros, a ocuparem a faixa de rodagem, em toda a sua largura, trajando de preto;

- os participantes na via-sacra estivessem num local onde não havia iluminação pública a funcionar;

- esses peões em nada se diferenciassem da negritude da noite.

- o condutor do "SN" não os tenha podido avistar, nem ao longe, nem ao perto, salvo quando se encontrava "em cima" deles;

- quando, à referida distância se apercebeu que um conjunto de pessoas caminhava pela faixa de rodagem, nas indicadas condições, tenha tentado desviar o veículo, mais para a sua direita, por via de uma guinada no volante, em manifesta manobra de salvamento, o que conseguiu;

- o condutor do "SN", atentas as referidas condições de visibilidade, nada pudesse fazer para evitar o sinistro;

- o embate nos peões, nas indicadas condições, tivesse sempre de ocorrer;

- o embate tenha ocorrido, unicamente, por causa da presença dos peões a ocuparem toda a faixa de rodagem;

- o condutor do "SN" tenha sido obrigado a manter os "médios" ligados, por causa do referido veículo parado, e que as luzes de "STOP" deste tenham ofuscado, de algum modo, o condutor do "SN";

- esse veículo, que se encontrava parado, tenha chegado ao local com os faróis nos máximos, que alcançam cem metros, e tenha sido por sorte que avistou algo insólito à sua frente e parou;

- o sinistro, o embate teria sempre ocorrido, mesmo que o "SN" seguisse a 48, 45 ou 43 Km/h;

- o sinistro (atropelamento da mãe dos autores) não tenha ocorrido num passeio;

- todos os peões se tenham apossado da faixa de rodagem, e que não respeitassem as regras de circulação;

- as velas transportadas, por alguns dos participantes na via sacra, fossem microscópicas;

- as velas transportadas, por alguns dos participantes na via sacra, estivessem tapadas pelo copo onde tais velas eram transportadas;

- alguém, com especiais responsabilidades de certo foro, andasse a berrar "a culpa é minha, a culpa é minha".

                                                       *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do CPC, são as seguintes:

            I – A questão da natureza conclusiva da matéria de facto.

II – A questão da culpa na produção do acidente.

III – A questão do quantitativo do dano não patrimonial próprio da vítima.

IV – A questão do quantitativo do direito à vida da vítima e dos danos não patrimoniais dos autores.

                  I. DA NATUREZA CONCLUSIVA DA MATÉRIA DE FACTO

            Sustenta a ré que a matéria constante dos pontos 8, 10 e 13 dos factos provados configura um conjunto de conclusões que não permitem que seja considerada matéria de facto, devendo, por conseguinte, ser declarada como não escrita.

Os pontos da base instrutória devem conter factos simples, e não factos complexos, factos, puramente, materiais, e não factos jurídicos, meras ocorrências concretas, e não juízos de valor, induções ou conclusões a extrair dessas ocorrências, sob pena de se estar perante uma questão de facto jurídico, e não de facto, meramente, material[2].

Efetivamente, ao Juiz que organiza o questionário ou aquele que responde aos respetivos pontos da base instrutória não cabe extrair ilações dos factos articulados pelas partes, ainda que elas se situem no domínio, puramente, factual, pois que essa é a função de quem profere a sentença[3].

Por outro lado, a matéria de facto contende com o apuramento das realidades que se realiza à margem da aplicação direta da lei, com a averiguação dos factos cuja existência ou inexistência não depende da interpretação a dar a qualquer norma jurídica[4], e bem assim como com os juízos qualificativos de fenómenos provocados por pessoas, desde que, envolvendo uma apreciação segundo as regras da experiência comum, não decorram da interpretação ou aplicação das regras de direito[5].

Consta do ponto 8 da base instrutória que “quando a procissão (via-sacra) se encontrava parada junto da terceira cruz, primeira naquela estrada a ocupar a faixa de rodagem e os peões se preparavam para reiniciar a marcha, o veículo ligeiro com a matrícula. ..-SN conduzido por EE circulava pela metade direita da via na mesma faixa de rodagem, atento o sentido ..., a uma velocidade de, pelo menos, 90 Kms/h, levando os dispositivos luminosos ligados, nomeadamente os faróis frontais, sem prestar a necessária atenção ao tráfego e sem tomar os cuidados devidos, não tendo reduzido sequer á entrada da curva a velocidade de, pelo menos, 90 kms/h a que seguia”.

E, no ponto 10, refere-se que “o condutor do SN, deparando-se com o aglomerado de pessoas que integravam o mencionado evento religioso, travou bruscamente tentando parar o veículo, mas, devido à velocidade de, pelo menos, 90 kms/h a que seguia, não conseguiu dominar o ...-SN e foi embater em várias pessoas participantes na procissão (via-sacra), não só nas que se encontravam na faixa de rodagem, como também nas que se encontravam na berma direita, considerando o sentido de marcha do SN, entre as quais, [...] e em FF, que seguiam apeados na referida via-sacra derrubando-os a todos, tendo o veículo SN ficado atravessado perpendicularmente na via e deixado marcas de derrapagem numa extensão de 15 metros”.

Finalmente, do ponto 13, consta que “o aludido condutor do SN seguia distraído, sem atenção às circunstâncias da via (piso molhado e escorregadio), com algumas pessoas a pé mas que podia avistar, pois o local encontrava-se iluminado e as pessoas mais próximas com vestes brancas”.

A ré limita-se, porém, a afirmar que a matéria dos pontos 8, 10 e 13 dos factos provados configura um “conjunto de conclusões”, sem especificar qual ou quais os respetivos segmentos do conjunto em que esse vício está patente, sendo certo que o ponto 10, apesar da sua extensão, não contém qualquer juízo conclusivo, nem os pontos 8 e 13, globalmente, considerados enfermam dessa deficiência.

Como assim, porquanto os mencionados pontos da matéria de facto, globalmente, analisados, consoante vem pedido, não apresentam natureza conclusiva, não importa considerar os mesmos como «não escritos».

                        II. DA CULPA PELA PRODUÇÃO DO ACIDENTE

II.1. Defende a ré que o acidente não ocorreu devido a culpa exclusiva do condutor do veículo, devendo antes entender-se que a culpa de todos os peões, incluindo a vítima, concorreu, na proporção de 60%, para a eclosão do evento, com o comportamento do condutor do automóvel, este na proporção remanescente de 40%.

Efetuando uma síntese do essencial da factualidade que ficou demonstrada, importa reter, neste particular, que, no dia 22 de abril de 2011, cerca da 21,30 horas, na Rua ..., realizou-se, pela primeira vez, uma via-sacra, com um número de, pelo menos, cem pessoas, que se deslocavam nessa artéria, ocupando, também, a berma do respetivo lado esquerdo, considerado o sentido de marcha ..., sem que o evento se encontrasse autorizado, pela Câmara Municipal, nem sendo o mesmo precedido de um veículo, com luzes em funcionamento, para assinalar a sua presença, ou de qualquer autoridade reguladora do trânsito, ou de luzes brancas, à frente, e vermelhas, atrás, muito embora, no local, dia e hora referidos, a iluminação pública se encontrasse, em pleno funcionamento, as pessoas fossem portadoras de velas acesas e os acólitos e o padre seguissem na dianteira da procissão, usando vestes brancas.

A faixa de rodagem, no local por onde passava a via-sacra, tem a configuração de uma reta, com a largura de 5,10 metros, com dois sentidos de trânsito opostos, ladeada por campos e habitações, encontrando-se o piso, em alcatrão betuminoso, em bom estado de conservação, com inclinação ascendente de 4%, considerando o sentido da via-sacra, passando a 6%, após a curva aí existente, estando o tempo chuvoso e o piso molhado.

A faixa de rodagem descreve uma reta, seguida de uma curva longa, à direita, atento o sentido ..., existindo, antes dessa curva, o sinal de velocidade recomendada de 30 kms/h.

Logo a seguir à curva, que dista cerca de 35 metros do local onde estava a terceira cruz, do lado direito da via, considerando o sentido de marcha ..., encontrava-se parado um veículo, com os quatro piscas ligados, com a frente voltada para o lado da via-sacra.

Quando a via-sacra se encontrava parada, junto da terceira cruz, primeira naquela estrada a ocupar a faixa de rodagem, e os peões se preparavam para reiniciar a marcha, o veículo ligeiro, com a matrícula ...-SN, conduzido por EE, circulava pela metade direita da via, na mesma faixa de rodagem, atento o sentido ..., a uma velocidade de, pelo menos, 90Kms/h, levando os dispositivos luminosos ligados, nomeadamente, os faróis frontais, mas não reduzindo essa velocidade, à entrada da curva, que dista cerca de 35 metros do local onde os peões estavam parados, e, após terminar de descrever essa curva, ao contornar pelo lado esquerdo, sendo certo que, em sentido contrário, ..., não seguia veículo algum, o veículo ligeiro que se havia imobilizado, por causa do evento religioso, com os quatro piscas ligados, o condutor do SN, ao avistar o aglomerado de pessoas que integravam a via-sacra, travou, bruscamente, tentando parar o veículo, mas, devido à velocidade de, pelo menos, 90 kms/h, a que seguia, não o conseguiu dominar e foi embater, em várias pessoas que participavam na via-sacra, não só nas que se encontravam na faixa de rodagem, como, também, nas que se encontravam na berma direita, considerando o sentido de marcha do SN, em número de dezassete, entre as quais, FF, mãe dos autores, que seguiam apeadas na referida via-sacra, derrubando-as a todas, tendo aquele SN ficado atravessado, perpendicularmente, na via e deixado marcas de derrapagem, numa extensão de 15 metros.

Ao circular a uma velocidade instantânea de, pelo menos, 90 kms/h, dentro de uma localidade, com o tempo chuvoso e o piso da estrada molhado, com um sinal de velocidade recomendada de 30 kms/h, a anteceder a curva existente, considerando o sentido ..., cuja velocidade não reduziu, após terminar de descrever a mesma, que, por sua vez, se situava, cerca de 35 metros antes do local onde os participantes da via-sacra, incluindo a vítima, se encontravam parados, sem se aperceber que, nesse local, se encontrava imobilizado um veículo, com os quatro piscas ligados, com a frente voltada para o lado da via-sacra, por causa do evento religioso, e, ao contorná-lo pelo lado esquerdo, sendo certo que, em sentido contrário, não seguia veículo algum, ao avistar o aglomerado de pessoas que integravam a via-sacra, travou, bruscamente, tentando parar o veículo, mas, devido à velocidade de, pelo menos, 90 kms/h a que seguia, não o conseguiu dominar e foi embater em várias pessoas que participavam na via-sacra, não só nas que se encontravam na faixa de rodagem, como, também, nas que se encontravam na berma direita, considerando o sentido de marcha do SN, entre as quais a mãe dos autores, ficando atravessado, perpendicularmente, na via e deixado marcas de derrapagem, numa extensão de 15 metros.

A velocidade a que o condutor do veículo automóvel segurado na ré seguia não lhe permitia dominar a viatura, no espaço livre e visível à sua frente, não tendo aquele moderado a mesma, de acordo com a localidade e via marginada por habitações em que circulava, aproximação de aglomeração de pessoas que faziam parte da via-sacra, curva pré-existente, com a velocidade recomendada de 30 K/h e condição de chuva e via molhada, violando, assim, o preceituado pelos artigos 24º, nºs 1 e 3, 25º, nºs 1, c), d), f), h) e 2 e 27º, nºs 1 e 2, a), 3º, todos do Código da Estrada. 

Devendo os peões transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas, podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nomeadamente, quando sigam em formação organizada, sob a orientação de um monitor ou em cortejo, nos termos do disposto pelo artigo 99º, nºs 1 e 2, e), do Código da Estrada.

A isto acresce que, “sempre que transitem na faixa de rodagem, desde o anoitecer até ao amanhecer…, os peões devem transitar numa única fila, salvo quando seguirem em cortejo ou formação organizada nos termos previstos no artigo 102º”, hipótese em que “os cortejos e formações organizadas devem assinalar a sua presença com, pelo menos, uma luz branca dirigida para a frente e uma luz vermelha dirigida para a retaguarda, ambas do lado esquerdo do cortejo ou formação, bem como através da utilização de coletes retrorrefletores, um no início e outro no fim da formação”, atento o disposto pelos artigos 99º, nºs 1, 2, e) e 4 e 102º, nº 1, ambos do Código da Estrada.

II.2. Regressando à factualidade que ficou provada, importa registar, neste particular, que, cerca da 21,30 horas, já de noite, mas com iluminação pública funcional, realizava-se uma via-sacra, com um número de, pelo menos, cem pessoas, pela rua de uma localidade, que dela ocupavam, também, a berma, sem que a sua presença fosse assinalada com, pelo menos, uma luz branca dirigida para a frente e uma luz vermelha dirigida para a retaguarda, bem como através da utilização de coletes retrorrefletores, um no início e outro no fim da formação, muito embora as pessoas participantes fossem portadoras de velas acesas e os acólitos e o padre seguissem na dianteira da procissão, usando vestes brancas e ainda, acidentalmente, se encontrasse um veículo imobilizado, por causa do evento religioso, com os quatro piscas ligados, e com a frente voltada para o lado da via-sacra.

Deste modo, não se anunciando a presença do cortejo religioso, constituído em via-sacra da Semana Santa da Páscoa, com, pelo menos, uma luz branca dirigida para a frente e uma luz vermelha dirigida para a retaguarda, bem como através da utilização de coletes retrorrefletores, um no início e outro no fim da formação, como impunham as normas percetivas dos artigos 99º, nºs 1, 2, e) e 4 e 102º, nº 1, ambos do Código da Estrada, já considerados, urge enfatizar que o cortejo se tornava visível, apesar de já ser de noite, para além da iluminação pública existente, com as velas acesas dos participantes, em número de, pelo menos, cem pessoas, sem esquecer a presença, no local, de um veículo imobilizado, por causa do evento religioso, com os quatro piscas ligados, e com a frente voltada para o lado da via-sacra.

Assim sendo, a razão de ser da lei (ratio legis), a sua justificação social, o fim visado pela elaboração da norma, que o elemento teleológico da interpretação enfatiza[6], permitem afirmar que a finalidade da norma estradal que impõe a necessidade de denunciar a presença, em ambiente noturno, da existência de um cortejo ou formação organizada de pessoas, perante o fluir da circulação rodoviária, se alcançou, no caso em apreço, com a iluminação pública do local, com as velas acesas das cerca de cem pessoas que a compunham e com a presença, imediatamente, atrás do aludido cortejo, de um veículo imobilizado com os quatro piscas ligados.

Como assim, a contraordenação imputável aos comparticipantes no cortejo religioso, não ultrapassa as fronteiras de uma mera contraordenação conexa ao acidente, não assumindo a natureza de uma contraordenação causal do mesmo que, deste modo, é, exclusivamente, de atribuir ao condutor do veículo automóvel segurado na ré, único culpado pela sua produção e consequências que lhe sobrevieram.

      III. DO DANO NÃO PATRIMONIAL PRÓPRIO DA VÍTIMA

III.1. Sustentam os autores, no recurso subordinado, que o valor do dano não patrimonial próprio sofrido pela vítima antes do seu decesso deve ser fixado, em €60000.00, como aconteceu com a sentença de 1ª instância, e não, em €30.000,00, como foi arbitrado pela Relação.

A ré, porém, rebate a posição dos autores, defendendo que estes pugnam pela fixação de um montante superior ao que, pelos mesmos, já havia sido aceite, além de que a verba fixada pelo acórdão recorrido tem inteiro cabimento.

Quanto a este segmento da instância de recurso, importa reter que os autores reclamam, no articulado inicial, o valor de €75000.00, a título de dano não patrimonial próprio da falecida FF, que a sentença de 1ª instância fixou, em €60000,00, mas que, sem apelação destes, mas, tão-só, da ré, o acórdão impugnado estabeleceu, em €30000,00.

Assim sendo, não obstante os autores não haverem apelado do quantitativo estabelecido, pela sentença de 1ª instância, a este título, o recurso de revista ora interposto, para este Supremo Tribunal de Justiça, é admissível, porquanto ficaram vencidos pelo acórdão recorrido, atento o preceituado pelo artigo 631º, nº 1, do CPC, só o não sendo se, por hipótese, viessem agora peticionar um valor superior aquele que foi fixado pela aludida sentença de 1ª instância.

III.2. Estipula o artigo 496º, nº 4, do Código Civil (CC), que “…; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”, de modo a tornar autónomo, para efeitos indemnizatórios, o sofrimento da própria vítima, ocorrido entre o momento do acidente e o momento da sua morte, para além do dano da sua morte, propriamente dito.

O artigo 496º, nº 1, do CC, aceitando a tese da ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial, limita-a, porém, aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, ou seja, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, acrescentando o respetivo nº 3 que “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito à indemnização nos termos do número anterior”, sendo certo que a gravidade do dano deve ser medida por um padrão objetivo, ainda que a sua apreciação haja de ser feita, tendo em consideração as circunstâncias do caso concreto, e não à luz de fatores subjetivos[7].

Por seu turno, como resulta do nº 1 do normativo acabado de citar, o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, e esta tem de ser apreciada, em função da tutela do direito, de modo a justificar a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.

O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser apurado, em qualquer caso, seja na hipótese de dolo ou de mera culpa do lesante, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, como decorre do nº 3, do artigo 496º, do CC, já referido, aos padrões da indemnização, geralmente, adotados na jurisprudência, e à flutuação do valor da moeda[8], mas sempre de acordo com as regras da boa prudência, do bom senso prático, da criteriosa ponderação dos interesses da vida, sem que tal impeça o julgador de referir o processo lógico através do qual chegou à liquidação equitativa do dano[9].

Assim sendo, no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste numa natureza, acentuadamente, mista, porquanto, não obstante visar reparar, de algum modo, mais do que indemnizar, também não se alheia da ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente[10].

A dificuldade em quantificar os danos não patrimoniais, cuja grandeza é insuscetível de medida exata, só podendo ser alvo de determinação indiciária fundada em critérios de normalidade, uma vez que o seu padrão é constituído por algo de qualitativo diverso, como é o dinheiro, meio da sua compensação[11], não pode servir de obstáculo à fixação de uma indemnização justa, embora correndo o risco de se tornar aleatória, dada a relevância, nesta matéria, da incerteza inerente à vertente de um imprescindível juízo de equidade.

III.3. A reparação pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da sua morte é atribuída, independentemente do período de tempo decorrido entre o evento lesivo e o seu falecimento, e é transmissível aos seus herdeiros, por direito próprio, ou seja, “cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes;”, nos termos do preceituado pelo artigo 496º, nº 2, e não, por direito adquirido, por via sucessória, aos herdeiros constantes do elenco do artigo 2133º, ambos do CC[12].

Com efeito, quanto ao dano sofrido pela vítima antes da sua morte, importa considerar que essa dor pode localizar-se entre o limite zero, no caso de morte instantânea, sem qualquer sofrimento, ou de coma profundo, desde o dia dos factos até ao falecimento, e o limite situado em plano aquém do que for entendido como adequado pela perda do direito à vida, dependendo do sofrimento e respetiva duração, da maior ou menor consciência da vítima sobre o seu estado e da aproximação da morte[13].

Ficou demonstrado, a este respeito, que, em virtude do atropelamento pelo automóvel, a FF sofreu graves ferimentos, dos quais resultou a sua morte, que ocorreu em 23 de dezembro de 2011, ou seja, oito meses após o acidente.

E, enquanto sobreviveu, teve angústias e dores físicas e morais atrozes, prevendo a sua morte.

Após o acidente, a FF foi transportada para o Hospital ..., onde deu entrada, apresentando diversas e graves lesões, nomeadamente, TCE grave, com hematoma subdural, contusão cerebral hemorrágica e provável fratura da base do crâneo, traumatismo da face, com várias fraturas, designadamente, da apófise coronoide e do colo mandibular esquerdos, traumatismo do tórax, com fraturas de costelas bilaterais e derrames pleurais bilaterais, traumatismo abdominal, com hematoma na bexiga, traumatismo da coluna, com fratura da apófise transversa direita de L2, traumatismo da bacia, com fratura da asa direita do sacro e fratura dos ramos ileo e isqueopubicos direitos, fratura exposta do pilão tibial esquerdo, fratura exposta dos ossos da perna direita, fratura do estiloide radial do braço direito, fratura do M5 e F1 e D3 e fratura da clavícula esquerda.

Dada a gravidade do seu estado de saúde, foi transferida para o Hospital de São João, no Porto, onde foi observada por Ortopedia, Cirurgia Maxilo-Facial e Neurocirurgia, mantendo-se ventilada, tendo-lhe sido feita traqueostomia percutânea, sendo submetida a operação à fratura da perna esquerda, com a colocação de fixadores externos, tendo-lhe, também, sido colocados fixadores externos, na perna direita (osteotaxia), foi-lhe imobilizada, com tala gessada, a fratura do rádio direito e colocado, na clavícula esquerda, um ligamento cruzado posterior, aí se encontrando internada, até 3 de junho de 2011, data em que foi transferida para o Hospital ..., onde deu entrada com sepsis, hipocalemia, pneumonia e úlcera sagrada.

No Hospital de ..., foi submetida a cirurgia, para extração de fixadores externos e encavilhamento da tíbia direita com vareta, a osteossíntese do pilão tibial esquerdo e remoção do material de osteossíntese do tornozelo esquerdo, encontrando-se ligada à máquina de oxigénio com sonda, isto é, entubada, sendo que, também, era alimentada por processo semelhante (sonda).

Em 8 de setembro de 2011, foi transferida para a Santa Casa da Misericórdia de ..., onde lhe eram prestados cuidados continuados, passando, posteriormente, para o Hospital ..., onde veio a falecer, em 23 de dezembro de 2011.

Nessa altura, já necessitava de ventilação, tendo sofrido derrame cerebral e deixado de falar, bem como sofrido graves problemas circulatórios, nomeadamente, na perna direita, que esteve em vias de ser amputada.

Em virtude do agravamento do seu estado, acabado de referir, a FF voltou aos Hospitais ... e de ..., onde foram adotados procedimentos no sentido de evitar a amputação da perna.

A Maria Adelaide teve um elevado sofrimento, sujeita a vários exames, várias intervenções cirúrgicas, enfrentando diversas complicações, nomeadamente, derrame cerebral, risco de amputação de uma perna, pneumonia e sepsis.

Não    obstante os tratamentos a que foi sujeita, a FF, em certos momentos, estava lúcida e consciente, apercebendo-se do seu estado de saúde, pois sentia muitas dores, tinha consciência que estava, totalmente, dependente de terceiros, que a alimentavam e lhe tratavam da sua higiene diária, o que a fazia sentir-se muito triste e diminuída, tendo muitas dificuldades em falar, mas com consciência de que o seu estado de saúde se estava a agravar, prevendo a morte e a separação dos seus entes queridos.

Durante o período de sobrevida, sofreu dores físicas atrozes, decorrentes das lesões de que padecia, bem como a angústia de sentir que o seu estado de saúde se estava a agravar.

Esteve internada durante o período de sobrevida, foi submetida a três intervenções cirúrgicas, com as consequentes anestesias gerais, factos que implicaram elevado sofrimento físico e psíquico, período durante o qual esteve sempre, totalmente, acamada, dependente do uso de fraldas e do auxílio de terceira pessoa para a ajudar a vestir-se, despir-se, para lhe fazer a higiene diária e para a alimentar, factos que a fizeram sentir-se triste e inútil, e que, do ponto de vista emocional, a afetaram muito.

A morte de FF foi devida a broncopneumonia, associada a traumatismo crânio-encefálico e múltiplas fraturas, lesões que foram consequência do internamento prolongado, devido a traumatismo craniano, provocado pelo atropelamento.

Assim sendo, mostra-se adequado fixar, em €45.000,00, o valor da compensação pelos danos não patrimoniais próprios sofridos pela vítima, que deverá ser concedido, por direito próprio e originário, aos autores AA, BB e CC, dividindo-se o respetivo quantitativo, em três partes iguais, de €15000,00 cada uma, que se atribuirá a cada um deles, em conformidade com o preceituado pelo já citado artigo 496º, nº 2, do CC.

IV. DO QUANTITATIVO DO DIREITO À VIDA DA VÍTIMA E DOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS DOS AUTORES

Defendem os autores, por fim, que é escasso o valor de €51.000,00, arbitrado a título de indemnização pela lesão do direito à vida da vítima, cujo dano deverá reparado, através da atribuição aos lesados do montante indemnizatório de €75.000,00.

Por outro lado, continuam os autores, o justo ressarcimento dos danos não patrimoniais inerentes à dor e ao sofrimento que tiveram, em face do trágico falecimento da mãe, deverá ser compensado, mediante a atribuição de €40.000,00, ao recorrente CC, e de €20.000,00, a cada uma das recorrentes, AA e BB.

Nas suas contra-alegações, a ré conclui que, relativamente a estes dois segmentos do acórdão recorrido, este não pode ser objeto de revista, por se ter formado a dupla conforme, além de que, por outro lado, os autores não apresentaram recurso da decisão de primeira instância, que fixou os montantes relativos à perda do direito da vida e aos danos morais por si sofridos, por via da morte de sua mãe.

Efetivamente, o acórdão recorrido, neste particular do montante do direito à vida e dos danos não patrimoniais fixados, confirmou a sentença de 1ª instância, sem fundamentação, essencialmente, diferente, e sem qualquer voto de vencido, razão pelo qual o mesmo, quanto aqueles dois vetores, porque inexistente qualquer das hipóteses em que o recurso é sempre admissível, se encontra a coberto de recurso, por se haver verificado a situação da «dupla conformidade», nos termos do preceituado pelo artigo 671º, nº 3, do CPC.

A isto acresce, outrossim, que os autores não interpuseram recurso de apelação da sentença que estabeleceu os aludidos quantitativos, a título da perda do direito à vida da vítima e dos danos não patrimoniais próprios dos mesmos, razão pela qual se não podem considerar vencidos pelo acórdão ora impugnado, que manteve esses valores, atento o disposto pelo artigo 631º, nº 1, do CPC.

Procedem, assim, apenas, em parte, as conclusões constantes das alegações da revista dos autores.

CONCLUSÕES:

I – Limitando-se a parte a afirmar que a matéria de certos pontos dos factos provados configura um “conjunto de conclusões”, sem especificar qual ou quais os respetivos segmentos do conjunto em que esse vício está patente, e não enfermando os mesmos, globalmente, considerados de qualquer juízo conclusivo, não importa declará-los como «não escritos».

II - Não se anunciando a presença de um cortejo religioso constituído em via-sacra com, pelo menos, uma luz branca dirigida para a frente e uma luz vermelha dirigida para a retaguarda, bem como através da utilização de coletes retrorrefletores, um no início e outro no fim da formação, como impunham as normas percetivas dos artigos 99º, nºs 1, 2, e) e 4 e 102º, nº 1, ambos do Código da Estrada, mas, tornando-se o mesmo visível, apesar de já ser de noite, para além da iluminação pública existente, com as velas acesas dos participantes, em número de, pelo menos, cem pessoas, e da presença, no local, de um veículo imobilizado, por causa do evento religioso, com os quatro piscas ligados, com a frente voltada para o lado da via-sacra, cumpriu-se a razão de ser da lei, sendo razoável sustentar que a finalidade da norma estradal que impõe a necessidade de denunciar a presença, em ambiente noturno, da existência de um cortejo ou formação organizada de pessoas, perante o fluir da circulação rodoviária, se alcançou, no caso em apreço, com a iluminação pública do local, com as velas acesas das cerca de cem pessoas que a compunham e com a presença, imediatamente, atrás do aludido cortejo, de um veículo imobilizado com os quatro piscas ligados.

III – Deste modo, a contraordenação imputável aos comparticipantes no cortejo religioso, não ultrapassa as fronteiras de uma mera contraordenação conexa ao acidente, não assumindo a natureza de uma contraordenação causal do mesmo que, deste modo, é, exclusivamente, de atribuir ao condutor do veículo automóvel, único culpado pela sua produção e consequências que lhe sobrevieram.

IV - A reparação pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da sua morte é atribuída, independentemente do período de tempo decorrido entre o evento lesivo e o seu falecimento, podendo essa localizar-se entre o limite zero, no caso de morte instantânea, sem qualquer sofrimento, ou de coma profundo, desde o dia dos factos até ao falecimento, e o limite situado em plano aquém do que for entendido como adequado pela perda do direito à vida, dependendo do sofrimento e respetiva duração, da maior ou menor consciência da vítima sobre o seu estado e da aproximação da morte.

DECISÃO[14]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista da ré, mas em conceder, parcialmente, a revista dos autores e, em consequência, condenam a ré “DD - Sucursal em Portugal” a pagar aos autores AA, BB e CC, a título de compensação pelo dano não patrimonial próprio sofrido pela vítima, o quantitativo de €45.000,00, que deverá ser concedido, por direito próprio e originário, aos autores, dividindo-se o respetivo quantitativo, em três partes iguais, de €15000,00 cada uma, que se atribuirá a cada um deles, confirmando quanto a tudo o mais o douto acórdão recorrido.

                                                   *

Custas da revista, a cargo da ré e dos autores, na proporção de ¾ e de ¼, respetivamente.

                                                             *

Notifique.

Helder Roque *
Roque Nogueira
Alexandre Reis

(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)



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[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira; 2º Adjunto: Conselheiro Alexandre Reis.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 3ª edição, reimpressão, 1981, 215.
[3] STJ, de 6-10-81, BMJ nº 310, 267.
[4] Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, T2, 2ª edição, 41.
[5] STJ, de 15-9-2010, Pº nº 4119/04.0TTLSB.S1, www.dgsi.pt
[6] João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 13ª reimpressão, 2002, 182 e 183.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 499; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1ª edição, 1970, 428.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 501; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1ª edição, 1970, 429.
[9] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1ª edição, 1970, 427 e nota (485).

[10] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, 607 e 608.
[11] Leite de Campos, A Indemnização do Dano da Morte, 12.
[12] Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 4ª edição, 1970, 141; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e atualizada, 1987, 500; Leite de Campos, A Vida, a Morte e sua Indemnização, BMJ nº 365, 16 e ss.; STJ, de 17-3-1971, BMJ nº 205, 150.
[13] Sousa Dinis, Dano Corporal em Acidente de Viação, CJ (STJ), Ano V (1997), T2, 13.
[14] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira; 2º Adjunto: Conselheiro Alexandre Reis.