Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
212/14.0T8OLH-AB.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PERIÓDICA
TRADIÇÃO DA COISA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
FALÊNCIA
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / SINAL / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO / CASOS ESPECIAIS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO / ACÇÃO DE CUMPRIMENTO E EXECUÇÃO / VENDA EM EXECUÇÃO.
Doutrina:
-Brandão Proença, Para a necessidade de uma melhor tutela dos promitentes-adquirentes de bens imóveis, CDP nº 22, p. 21;
-Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 12.ª edição, p. 185;
-Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, p. 497;
-Gisela César, Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso, 73;
-Gravato Morais, Da tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor, AUJ nº 4/2014, CDP nº 46, p. 52 e 53 ; Promessa obrigacional de compra e venda com tradição da coisa e insolvência do promitente-vendedor, CDP nº 29, p. 4;
-Lebre de Freitas, Sobre a prevalência, no apenso da reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença, ROA Ano 66 (2006), Volume II, p. 6;
-Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, p. 183;
-Pestana de Vasconcelos, Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, CDP nº 33, p. 9;
-Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma, 2007, p. 171;
-Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, p. 163 e 164.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, N.º 2, 755.º, N.º 1, ALÍNEA F) E 824.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-03-1996, ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA;
- DE 09-12-1997, ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2014;
- DE 03-06-2003;
- DE 08-07-2003;
- DE 14-05-2009, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-05-2010;
- DE 20-10-2011;
- DE 11-09-2014;
- DE 18-02-2015;
- DE 02-07-2015, PROCESSO N.º 19994/10;
- DE 24-11-2015;
- DE 29-07-2016;
- DE 27-04-2017;
- DE 27-05-2017.
Sumário :
I - Apesar de não ter força obrigatória geral, como tinham os anteriores assentos, nem natureza vinculativa para os outros tribunais, o acórdão de uniformização constitui um precedente qualificado, de carácter persuasivo, a merecer especial ponderação, que se julgou suficiente para assegurar a desejável unidade da jurisprudência.

II - Daí que os tribunais só devam afastar-se da jurisprudência uniformizada em "decisões fundamentadas que ponham convincentemente em causa a doutrina fixada".

III - Não se verificando essa situação e sendo aplicável a mesma legislação e idêntica a questão fundamental de direito, não existe razão para afastar a jurisprudência fixada no AUJ de 12.03.1996.

IV - Assim, mostrando-se satisfeitos os requisitos previstos no art. 755º, nº 1, al. f), do CC, deve concluir-se pela eficácia dos direitos de retenção sobre as "fracções" que se prometeram comprar, independentemente da constituição da propriedade horizontal.

V - Com a venda do prédio em execução, os direitos de retenção passaram a incidir sobre o produto da venda do prédio (art. 824º do CC), mas na proporção do valor relativo da "fracção autónoma" ou do "direito real de habitação periódica" que cada um prometeu adquirir.

VI - A credora hipotecária, não interveniente no processo em que foi reconhecido o direito de retenção, é terceiro, mas um terceiro juridicamente interessado, uma vez que a sentença é susceptível de lhe causar um prejuízo jurídico.

VII - Não é, pois, invocável perante o credor hipotecário a sentença que, com trânsito em julgado, tenha declarado, em acção em que o credor hipotecário não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado.

VIII - Sendo o quadro normativo aqui aplicável diferente do que foi atendido no AUJ nº 4/2014 (a sentença que decretou a falência foi proferida em 09.12.1997) e tendo o incumprimento definitivo dos contratos promessa ocorrido em data anterior à declaração de falência (não constituindo negócios jurídicos em curso), não tem de ser observada a jurisprudência fixada naquele Acórdão uniformizador.

IX - Sendo aplicável o regime geral dos arts. 442º, nº 2, e 755º, nº 1, al. f), do CC, não está o direito de retenção aí reconhecido ao promitente-comprador dependente de a este ser reconhecida a qualidade de consumidor.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

Por sentença proferida em 9/12/1997, transitada em julgado foi decretada a falência da AA, S.A..

No apenso de reclamação de créditos, foi proferida sentença que procedeu à verificação e graduação dos créditos reclamados, tendo, no que interessa a este recurso, decidido:

"(…)

4) Proceder à graduação dos créditos reconhecidos, nos termos que se seguem e pela ordem que se indica:

(…)

b) Quanto ao produto da venda do prédio rústico sito no ... ou ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° … e inscrito na respectiva matriz sob o art° 14° da Secção AC:

1º - Os créditos dos credores identificados em 13, 21, 24, 62, 63, 68, 74, 87, 100, 101, 102, 103 e 104 (os quais gozam de direito de retenção);

2º - Os créditos garantidos por hipoteca referidos no ponto 1 do relatório;

3º - Os créditos dos trabalhadores referidos nos pontos 32 a 55 do relatório;

4º - Os demais créditos, em situação de igualdade.

(…)

Discordando desta decisão, a credora BB, SA interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, mantendo integralmente a decisão recorrida.

Ainda inconformada, a recorrente veio pedir revista, formulando as seguintes conclusões:

A)

1ª- Deve eliminar-se da matéria de facto provada, o teor de factos nºs 33 e 82 - pois, afirmando-se ali, como um facto, que a recorrente adquiriu aqueles apartamentos, tal facto não tem o documento autêntico exigido por arts. 364.º e 875.º do Cód. Civil. Correcção a efectuar, desde logo, ao abrigo dos poderes do STJ, conferidos pelo art. 674.º n.º 3 do Cód. Proc. Civil,

2ª- Por outro lado, acresce que as demais razões invocadas no acórdão recorrido, para dar tais apartamentos como incluídos no prédio rústico, objecto das hipotecas da ora recorrente, carecem também de meio de prova autêntica, ou de quaisquer outros factos provados, visto que a matéria de facto não demonstra que os bens detidos pelos reclamantes dos pontos 13, 21, 24, 62, e 87 estivessem localizados no mesmo prédio rústico das hipotecas.

3ª- Ao contrário do julgado no acórdão, não cabe à ora recorrente o ónus de demonstrar que os apartamentos ali referenciados não integram o prédio; mas, nos termos de art. 342.º n.º 1 do Cód. Civil, cabia aos reclamantes alegar e provar tal identidade entre o prédio onde teriam a coisa detida e o prédio objecto das hipotecas da recorrente.

4ª- Pelo que, por falta de factos e meio legal de prova, que seria documental, deve rejeitar-se que os direitos de retenção identificados em pontos 13, 21, 24, 62, e 87 digam respeito ao mesmo imóvel descrito no facto n.º 3 da sentença (p. 23 - fls. 4396) - sem prescindir do que mais se alega aqui.

B)

5ª- Por força do princípio da unidade valorativa e axiológica da ordem jurídica - imposto desde logo, também no art. 9.º n.º 1, do Cód. Civil - a densidade do direito de retenção relativo a contratos-promessa sobre imóveis, resulta, por um lado, dos requisitos positivos constantes no art. 755.º n.º 1 al. f), e por outro, dos requisitos negativos constantes em art. 756.º do Cód. Civil.

6ª- O legislador ordinário, mesmo sob a égide de uma Constituição declaradamente socialista, tanto no domínio das alterações introduzidas neste tema pelo Decreto-Lei n.º 236/80, bem como pelo Decreto-Lei n.º 379/86, manteve intocável a identificação inequívoca dos casos de exclusão do direito de retenção.

7ª- Está assim excluído, por lógica vontade do pensamento legislativo, o direito de retenção quanto às coisas impenhoráveis, e nos termos do actual art. 736.º al. a) do Cód. Proc. Civil - anterior al. a) do art. 822.º - são impenhoráveis as coisas inalienáveis.

8ª- Nos termos de art. 759.º n.º 1 do Cód. Civil, o direito de retenção, quanto a coisa imóvel exige que a mesma seja executável, isto é, que se trate de coisa penhorável – sendo a noção de coisa imóvel penhorável resumida a prédio rústico, ou a prédio urbano, conforme disposto em art. 204.º n. 1 al. a) e n.º 2, combinado com o disposto nos arts. 1302.º e 1414.º e ss. todos do Cód. Civil (estes sobre as coisas corpóreas sujeitas a direitos reais e à propriedade horizontal).

9ª- Ora, no caso dos autos, dos créditos em causa neste recurso, um deles respeita a uma "futura semana", ou seja, uma futura fracção de gozo, num futuro direito real de habitação ou turismo - caso do crédito identificado no ponto n.º 62 -, e os demais respeitam a prometidas futuras e também hipotéticas fracções, a constituir, se e quando e legal a propriedade horizontal.

10ª- Sem prejuízo de se impugnar nas reclamações identificadas supra conclusão 4ª que o prédio dos respectivos futuros direito reais de habitação periódica e propriedade horizontal seja o mesmo prédio rústico hipotecado à ora recorrente, todas as situações reclamadas são de futuros e eventuais direitos reais, fracções de hipotética propriedade horizontal e de propriedade em time sharing - assim, não sendo coisas penhoráveis, caem forçosa e inequivocamente no âmbito da exclusão do direito de retenção, operada pelo disposto no art. 756.º al. c) do Cód. Civil

C)

11ª- A regra que o acórdão recorrido retira do AUJ de 12 de Março de 1996 não pode ser aqui aplicada: primeiro, porque os AUJ não têm força revogatória da lei ordinária - neste caso, daquele art.º 756.º al. c) do Cód. Civil, nem aquele pretendeu revogar este preceito, nem isso exarou.

12ª- Por outro lado, destinando-se as promessas em causa, a futuros bens de utilização comercial e turística, não ocorre coincidência com os interesses de protecção à habitação e à parte mais fraca, supostos no AUJ referido.

13ª- Acresce que, aquele AUJ apenas quis antecipar o direito de retenção no pressuposto de que a respectiva propriedade horizontal seja ou fosse uma falha temporária - neste sentido o Acórdão diz que " ... a situação de inalienabilidade é transitória. Termina com a conclusão das obras e a elaboração do título constitutivo da propriedade horizontal. Poderá não terminar, se, porventura, as obras forem abandonadas. Nesta hipótese, porém, a retenção tomba em absoluta anodínia."; sendo certo que, como regista a sentença (p.63) até à sua data (2013) não existia propriedade horizontal.

14ª- Assim, a combinação sábia do AUJ de Março de 1996 - que atenda designadamente aquela sua ratio essendi – com a inequívoca restrição excludente, que o legislador quis manter no art.º 756.º do Cód. Civil, impõe a não classificação como dotados da garantia de retenção, dos créditos em causa - por todos eles se referenciarem a realidades definitivamente impenhoráveis.

D)

15ª- Caso improceda o que antecede, o que não se concede, deve concluir-se que o AUJ de 12 de Março de 1996 padece de nulidade, por contradição entre aquele fundamento limitador ou restritivo supra enunciado e o seu segmento uniformizador, o qual, ao não mencionar aquele carácter limitador e provisório, desvirtua completamente os fundamentos - assim, nulidade nos termos de art.º 615.º n.º 1 aI. c) do Cód. Proc. Civil (ou do preceito anteriormente igual), e decisão que deve ser proferida no Plenário das Secções Cíveis, à semelhança do julgado no Acórdão do seu Plenário, de 9.1.2014, Proc. 92/05 (Sumários, 2014, p. 2).

E)

16ª- Sem prescindir de tudo o que antecede, verifica-se também a nulidade da decisão recorrida, no tocante ao julgamento de que cada um dos créditos em causa deve ser pago pelo preço da totalidade da venda do prédio rústico em causa - porquanto e desde logo, os reclamantes não alegaram a posse/detenção de todo o prédio, nem tão pouco esta vem provada, sendo certo que o direito de retenção, por força do disposto no art.º 442.º n.º 2 do Cód. Civil está limitado "à coisa a que se refere o contrato prometido", como ali consta.

17ª- A nulidade da decisão deriva, pois, logo aqui, da violação frontal do disposto nos arts. 609.º n.º 1 e 615.º n.º 1 al. e) do CPC - e a sua ilegalidade deriva também da sua contrariedade àquela disposição do art.º 442.º n.º 2, bem como ao teor dos arts. 759.º e 824.º n.º 3 do Cód. Civil.

F)

18ª- Por outro lado, acresce que, ao alargar o objecto dos direitos de retenção à totalidade do prédio rústico e totalidade do preço da sua venda judicial, sem que isso tivesse sido pedido ou objecto de prévia defesa da recorrente, o acórdão recorrido mantém a grosseira violação do direito à defesa e ao contraditório - cometida já na sentença - rasgando o núcleo do direito ao processo justo e equitativo, garantido em art.º 3º n.º 3 do Cód. Proc. Civil, art.º 20.º n.º 4 da Constituição e art.º 6.º da CEDH.

G)

19ª- Mais acresce que, nesta parte, o acórdão interpreta o disposto no art.º 442.º n.º 2, art.º 759.º nº 1 e art.º 824.º n.º 3 do Cód. Civil, no sentido de que, afinal, "a coisa a que se refere o contrato prometido" e o "produto da venda" do respectivo bem - sobre o qual os reclamantes detinham a garantia retentória - correspondem à totalidade de um prédio e à totalidade do respectivo preço de venda judicial, apesar de cada um dos reclamantes ter alegado deter apenas uma pequena quota-parte do prédio.

20ª- Ora esta interpretação não só é violentamente injusta, como sobretudo, é de facto expropriativa da garantia creditória hipotecária - na parte em que ultrapassa a quota-parte da alegada retenção do reclamante – e, por conseguinte, trata-se de uma interpretação proibida, porque viola a tutela dos direitos de propriedade e creditício, garantidos em art.º 62.º da Constituição, bem como no art.º 1.º do Protocolo nº 1, adicional à CEDH vinculante do Estado português.

H)

21ª- Caso improceda o que antecede, no que não se concede, e caso se julguem verificados os demais requisitos dos direitos de retenção - o que também não se concede - a unidade do sistema jurídico e a justiça material imporiam que, com base no disposto em arts. 1416.º n.º 1 e 824.º n.º 3 do Cód. Civil, o direito de retenção fosse reconhecido na proporção do valor relativo de cada "apartamento" e de cada semana de time-sharing - como o ensino e o Parecer do Sr. Professor Calvão da Silva (anexo na Relação), sustenta, e de resto, como já este Supremo sabiamente julgou (no Acórdão de 3.6.2003, Senhor Conselheiro Silva Salazar).

22ª- Contudo, os reclamantes não alegaram os factos pertinentes à efectiva afirmação da sua alegada garantia - bem sabendo que pretendiam e apenas lhes era lícito exercê-la sobre o preço do imóvel, vendido judicialmente bastante antes da declaração de falência e do respectivo prazo para reclamações (facto n.º 4) - pelo que, tem inteira aplicação o disposto no art.º 342.º n.º 1 do Cód. Civil.

23ª- Assim, não tendo sido alegado, pelos reclamantes, nem constando nos autos todos os factos do seu direito à proporção respectiva no preço da venda do imóvel em que teriam os "apartamentos" e a "semana" de time sharing, não pode proceder a sua pretensão.

I)

24ª- Acresce que os créditos referenciados sob os pontos nºs 24, 68 e 74 vêm reconhecidos, quanto ao direito de retenção, por causa de terem sido assim julgados em Acórdão da Relação nestes autos de fls. 2187 (p. 62 da sentença) - mas tal fundamento mostra-se errado, pois não houve tal decisão, como o Acórdão do STJ ao pronunciar-se sobre o esclarecimento de fls. 2206 aqui exarou.

25ª- Acresce que, o único fundamento quanto a estas reclamações - 24, 68 e 74 - é constituído pelo facto de assim terem sido reconhecidos, mas em processos em que a recorrente não foi parte.

26ª- Ora como tem sido reiteradamente julgado neste STJ, tal circunstância impede a oponibilidade dessas decisões à credora hipotecária pois, de outro modo, violar-se-iam direitos fundamentais, como o de defesa e de contraditório.

27ª- De modo que não tendo aqueles reclamantes alegado mais factos, têm de improceder aquelas pretensões – nºs 24, 68 e 74 - por total ausência de factos eventualmente pertinentes à garantia real invocada.

J)

28ª- Finalmente - sem prescindir do que antecede - verifica-se da factualidade provada que a construção no prédio rústico das hipotecas se destinava ao uso turístico e exploração comercial, quer de time-sharing, quer de lazer.

29ª- Ao terem comprado "na planta", ou até mesmo já durante a construção, os promitentes assumiram as vantagens de preço mais baixos, contra os numerosos riscos e incertezas inerentes - para além da própria construção - como os riscos inerentes às autorizações legais do governo local e central quanto a empreendimentos e formas de propriedade de exploração comercial e turística.

30ª- Como juízos e regras de experiência de todos conhecidas, é sabido que o preço, em tal fase, é bastante mais baixo, do que em estando acabado e legalizada a propriedade.

31ª- Mostra-se pois inequívoco que, não só o destino dos futuros bens não era a habitação, como também, os promitentes agiram tipicamente como investidores.

32ª- Como julgado no AUJ nº 4/2014 e reafirmado neste Supremo, designadamente no Acórdão de 17 de Novembro de 2015 (Sr. Conselheiro Fonseca Ramos), cabia aos reclamantes o ónus de alegarem factos pertinentes à sua qualidade de consumidores finais.

33ª- Ora, para além desta regra geral, as circunstâncias supra indicadas – mostrando os promitentes como efectivos investidores em imóvel turístico e não como futuros titulares de habitação – muito mais reforçam aquele ónus alegatório.

34ª- Contudo, não só não o exerceram, como, dos factos provados se mostra, que na realidade, os promitentes não revestem a qualidade de consumidores finais.

35ª- Assim, e face à densidade normativa que a protecção alargada da garantia de retenção confere ao promitente-comprador - e não concedendo no que acima se alegou quanto à sua não inexistência no caso - têm de julgar-se como improcedentes todas as reclamações, por falta daquele normativo nuclear, que é a qualidade de consumidor- final.

Termos nos quais, deve julgar-se procedente a revista, revogar-se o acórdão, e concluir-se que nenhum dos alegados direitos de retenção deve graduar-se prioritariamente aos créditos hipotecários da ora recorrente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Alteração da decisão de facto;

- Identidade entre o prédio onde se localizam os "apartamentos" detidos e o prédio objecto das hipotecas constituídas a favor da recorrente;

- Exclusão do direito de retenção: impenhorabilidade da fracção;

- Inaplicabilidade do AUJ de 12.03.1996;

- Nulidades do acórdão recorrido ao reconhecer a garantia do direito de retenção sobre a totalidade do preço da venda do prédio;

- Caso improceda o que antecede: o direito de retenção só deveria ser reconhecido na proporção do valor relativo de cada "apartamento" e de cada semana de time sharing;

- Reclamações de créditos dos pontos 24, 68 e 74: inoponibilidade da sentença, que reconheceu o direito de retenção, à recorrente;

- Os reclamantes não têm a qualidade de consumidores.

III.

Com relevância para a apreciação deste recurso de revista foram considerados provados os seguintes factos[2]:

Ponto 1 do relatório:

1.    A "BB - …, S.A." celebrou com a sociedade CC, SA (adiante CC), em 25/01/1995 e 16/02/1995, contrato pelo qual declarou adquirir, e a CC declarou ceder, todos os créditos que esta última detinha sobre a EE.

2.    A CC, no exercício do seu objecto social, celebrou com a EE vários contratos de mútuo, mediante os quais lhe emprestou diversas somas monetárias, obrigando-se a EE a restituir tais quantias, acrescidas de juros remuneratórios e juros de mora em caso de falta de pagamento atempado, às taxas convencionadas pelas partes, estando em dívida os seguintes montantes:

a)     esc. 213 .031.177$00 (acrescida de juros remuneratórios desde 1/10/1990 a 31/10/1990 à taxa de 18,5% e respectivo imposto de selo, bem como juros de mora vencidos desde 31/10/1990 a 9/12/1997 à taxa de 20,5% e respectivo imposto de selo), com origem em mútuo celebrado por escritura pública de 18/11/1987;

b)    esc. 1.500.000.000$00 (acrescida de juros de mora à taxa de 29% desde 31/07/1990 e respectivo imposto de selo), quantia mutuada à EE em 31/05/1990;

c)     esc. 11.000.000$00 (acrescida de juros de mora à taxa de 26% desde 30/0811990 e respectivo imposto de selo);

d)    esc. 12.500.000$00 (acrescida de juros de mora à taxa de 24% desde 15/0211990 e respectivo imposto de selo);

e)     esc. 105.000.000$00 (acrescida de juros de mora à taxa de 24% desde 31/0811990 e respectivo imposto de selo).

3.    Os créditos acima referidos encontram-se garantidos por três hipotecas constituídas sobre o prédio rústico sito em "..." ou "...", freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° … da freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz sob parte do art° 14° da Secção … (a primeira hipoteca, com a inscrição C-I, garante o crédito de capital até esc. 300.000.000$00 mais juros e despesas num montante máximo de 514.500.000$00; a segunda hipoteca, com a inscrição C-2, garante o crédito de capital até esc. 550.000.000$00 mais juros e despesas num montante máximo de 943.750.000$00 e a terceira hipoteca, com a inscrição C-3, garante o crédito de capital até esc. 850.000.000$00 mais Juros e despesas num montante máximo de 1.674.500.000$00).

4.    O prédio referido no ponto anterior foi vendido em hasta pública à "BB - …, S.A.", em 30/04/1996, no âmbito do processo executivo n.º 2564 da 1ª Secção do 16º Juízo Cível de Lisboa, pelo preço de 620.000.000$00, antes de nesse processo ter sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, tendo a reclamante BB - …, S.A." sido dispensada de proceder ao pagamento do preço.

5.    Na sequência da aquisição do prédio acima referido pela "BB, S.A.", foi registada hipoteca a favor dos credores que viessem a obter graduação de créditos preferente às três hipotecas da ora reclamante.

Ponto 13:

29.  DD celebrou em 21/05/1988 com a EE um contrato de promessa de compra e venda e cessão de exploração, mediante o qual a EE se obrigou a vender e o reclamante a comprar o apartamento n° …, localizado no 5° andar do prédio sito no edifício ..., localizado na Av. ..., freguesia e concelho de ..., pelo preço total de 7.700.000$00; o reclamante obrigou-se ainda a ceder a exploração do apartamento à EE para fins turísticos e hoteleiros pelo prazo de 10 anos a contar da data da escritura.

30.  A título de sinal foi pago por DD o montante total de 5.823.800$00.

31.  Foi acordado pelas partes que ambas as escrituras de compra e venda e de cessão de exploração seriam realizadas na mesma data durante o ano de 1989, o que não veio a suceder, por sucessivos adiamentos da EE, a quem incumbia proceder à marcação das escrituras e avisar o reclamante da respectiva data e local de celebração das mesmas, o que nunca foi feito pela EE.

32.  Na data de apresentação da reclamação de créditos, o reclamante DD não tinha qualquer interesse na compra do apartamento, atendendo ao elevado número de anos decorridos e ao facto do edifício onde se situa o apartamento não dispor de licenças emitida pela Direcção-Geral do Turismo e pela Câmara Municipal de ....

33.  Acresce que o imóvel objecto do contrato acima referido, foi adquirido por "BB - …, S.A.", nas condições descritas em 4.

34.  O reclamante tomou posse do apartamento em 29/05/1989, data em que pagou a última tranche do sinal entregue à EE.

Ponto 21:

47.  FF celebrou em 16/07/1989 com a EE um contrato de promessa de compra e venda, mediante o qual a EE se obrigou a vender e a reclamante a comprar o apartamento n° …, sito no edifício ..., localizado na Av. ..., freguesia e concelho de ..., pelo preço total de 10.000.000$00, quantia que foi entregue à EE pela reclamante logo na data de celebração desse contrato.

48.  A EE entregou o apartamento à reclamante em 16/07/1990, o qual foi mobilado e equipado por esta última, passando a usar a e a fruir do mesmo, por si e através dos seus familiares, desde então e até ao presente.

49.  A EE nunca procedeu à marcação da escritura definitiva de compra e venda, apesar de a tanto estar obrigada nos termos do contrato celebrado, apesar das várias insistências da reclamante ao longo de todo o período desde a data de celebração do contrato-promessa.

50.  Na data de apresentação da reclamação de créditos, o imóvel valia 25.000.000$00, valor que corresponde ao valor de aquisição de um andar idêntico e nas mesmas condições.

Ponto 24:

53.  Por sentença já transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n° … que correu os seus termos na 3a Secção do 1° Juízo Cível de Lisboa, a EE foi condenada a pagar a GG a quantia de esc. 12.500.000$00, acrescida de juros de mora no valor de esc. 5.156.250, sentença na qual foi reconhecido à reclamante o direito de retenção sobre o apartamento n° …, localizado no 4° andar de um prédio em construção na Urbanização ..., freguesia e concelho de ..., objecto do contrato-promessa celebrado entre a EE e a reclamante, declarado resolvido pela mesma sentença.

Ponto 62:

75.  HH celebrou com a EE, em finais de Novembro de 1991, um contrato de promessa de compra e venda, mediante o qual a EE se obrigou a vender e a reclamante a comprar um direito real de habitação periódica referente a uma semana e que tinha por objecto o apartamento n° …, sito no edifício ..., localizado no sítio do ..., freguesia e concelho de ..., pelo preço de 750.000$00, quantia que foi integralmente paga pela reclamante à EE, em 29/02/1991.

76.  Na data de celebração do contrato, as partes acordaram que a reclamante poderia ocupar, antes da celebração do contrato definitivo o apartamento objecto do contrato, na semana que lhe correspondia (1ª semana de Janeiro), sendo que a reclamante passou a ocupar e a possuir regularmente aquele apartamento, desde Setembro de 1990, durante uma semana que lhe foi atribuída como brinde e, depois dessa data, na semana acordada.

77.  Apesar da reclamante ter contactado por diversas vezes a EE para celebrar a escritura definitiva, sendo a última vez em Junho de 1995, esta nunca foi celebrada por nunca a EE ter procedido à respectiva marcação, apesar de a isso estar obrigada, sendo que, com o passar dos anos, a reclamante perdeu o interesse nessa celebração.

78.  Em Junho de 1995, o valor do direito prometido vender ascendia a 3.500.000$00.

Ponto 63:

79.  II celebrou com a EE, em 14/10/1988, um contrato de promessa de compra e venda, mediante o qual a EE se obrigou a vender e a reclamante a comprar o apartamento n° …, no 6° andar do edifício ..., localizado na Av. ..., freguesia e concelho de ..., pelo preço de 8.500.000$00.

80.  A título de sinal, o reclamante entregou à EE o montante total de 6.400.000$00, tendo as partes acordado que o reclamante tomaria posse do apartamento logo que o mesmo pudesse ser utilizado, o que veio a acontecer em 16/08/1990, tendo o reclamante mobilado e equipado o apartamento em Agosto de 1990.

81.  As partes acordaram que a escritura de compra e venda definitiva deveria ser outorgada no ano de 1989, mas apesar das insistências do reclamante, a EE sempre se negou a outorgar essa escritura, tendo o próprio reclamante marcado a escritura em Agosto de 1993, informando a EE, a qual não entregou quaisquer documentos, nem compareceu à escritura.

82.  Acresce que o apartamento objecto do contrato foi adquirido por "BB - …, S.A.", nas condições descritas em 4.

83.  Em Agosto de 1996, o apartamento objecto do contrato tinha um valor em 17.500.000$00.

Ponto 68:

93.  Por sentença proferida no processo ordinário n° 2/97 do 2° Juízo do Tribunal de Círculo de ..., a EE foi condenada a pagar a JJ a quantia de esc. 12.637.415$20, sentença que reconheceu igualmente o direito de retenção do reclamante sobre o apartamento n° …, tipo T2-A do edifício ..., localizado no Sítio do ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° …, para garantia desse crédito.

Ponto 74:

103. Por sentença, já transitada em julgado, proferida no proc. n° 564/96 que correu termos na 3ª Secção do 6° Juízo Cível de Lisboa, a EE foi condenada a pagar a KK, LL e MM a quantia de esc. 16.530.000$00, acrescida de juros de mora.

104. Por sentença, já transitada em julgado, proferida no proc. n° 574/96 que correu termos na 2ª Secção do 6° Juízo Cível de Lisboa, a EE foi condenada a pagar a MM e NN a quantia de esc. 17.062.000$00, acrescida de juros de mora, onde lhes foi também reconhecido o direito de retenção sobre o apartamento tipo T1-A, n° 150, sito no 4° andar do edifício ..., localizado no Sítio do ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° …, para garantia daqueles créditos.

105. Por sentença, já transitada em julgado, proferida no proc. n° 582/96 que correu termos na 1ª Secção do 13° Juízo Cível de Lisboa, a EE foi condenada a pagar a KK, LL e MM a quantia de esc. 17.900.000$00, acrescida de juros de mora, onde lhes foi reconhecido o direito de retenção sobre o apartamento tipo T2-B, n° 151 (hoje n° 435), sito no 4° andar do edifício ..., localizado no Sítio do ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° 00733/060586, para garantia dos créditos acima referidos.

125. Encontram-se apensas aos presentes autos, as seguintes acções, nos quais foram reclamados os seguintes créditos:

Ponto 87:

- Esc. 12.650.889$00 reclamado por OO e PP, reconhecido por sentença de 16/04/99, onde se reconheceu igualmente que tal crédito se encontra "garantido" pelo direito de retenção sobre o apartamento n° …, tipo TI-A, localizado no 3° andar do prédio sito na urbanização ..., freguesia e concelho de ... (apenso E);

Ponto 100:

- Esc. 12.573.361$00 reclamado por QQ e RR, reconhecido por sentença de 16/05/01, onde se reconheceu igualmente que tal crédito se encontra "garantido" pelo direito de retenção sobre o apartamento n° …, tipo T2-B, localizado no 7° andar do imóvel construído no prédio rústico sito no ... ou ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° … e inscrito na respectiva matriz sob o art° …° da Secção AC (apenso U);

Ponto 101:

- Esc. 12.279.622$00 reclamado por SS e TT, reconhecido por sentença de 14/03/02, onde se reconheceu igualmente que tal crédito se encontra "garantido" pelo direito de retenção sobre o apartamento n° …, tipo T1-B, localizado no 4° andar do imóvel construído no prédio rústico sito no ... ou ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° … e inscrito na respectiva matriz sob o art. 14° da Secção AC (apenso V);

Ponto 102:

- Esc. 15.000.000$00 reclamado por RR e UU, reconhecido por sentença de 26/09/01, onde se reconheceu igualmente que tal crédito se encontra "garantido" pelo direito de retenção sobre o apartamento n° …, tipo T1-A, localizado no 6° andar do imóvel construído no prédio rústico sito no ... ou ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° … e inscrito na respectiva matriz sob o art. 14° da Secção AC (apenso W);

Ponto 103:

- Esc. 11.600.000$00 reclamado por VV, XX, ZZ, AAA, BBB por si em representação da herança de CCC, reconhecido por sentença de 16/05/01, onde se reconheceu igualmente que tal crédito se encontra "garantido" pelo direito de retenção sobre o apartamento nº …, tipo T1-B, localizado no 1° andar do imóvel construído no prédio rústico sito no ... ou ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° …. e inscrito na respectiva matriz sob o art° 14° da Secção AC (apenso X);

Ponto 104:

- Esc. 11.128.835$00 reclamado por DDD e EEE, reconhecido por Sentença de 16/05/01, onde se reconheceu igualmente que tal crédito se encontra "garantido" pelo direito de retenção sobre o apartamento n° … tipo T1-A, localizado no 7° andar do imóvel construído no prédio rústico sito no ... ou ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° …. e inscrito na respectiva matriz sob o art° 14° da Secção AC (apenso Y).

IV.

1. Sustenta a recorrente que "deve eliminar-se da matéria de facto provada, o teor de factos nºs 33 e 82 - pois, afirmando-se ali, como um facto, que a recorrente adquiriu aqueles apartamentos, tal facto não tem o documento autêntico exigido por arts. 364.º e 875.º do Cód. Civil".

Não tem razão.

Esses factos são deste teor:

33.  Acresce que o imóvel objecto do contrato acima referido (celebrado com DD – ponto 13) foi adquirido por "BB - …, S.A.", nas condições descritas em 4.

82.  Acresce que o apartamento objecto do contrato (celebrado com II – ponto 63) foi adquirido por "BB - …, S.A.", nas condições descritas em 4.

Como parece evidente, a omissão invocada pela recorrente é apenas aparente e até, como o devido respeito, artificial; o teor destes factos é perfeitamente compreensível.

Não há qualquer dúvida que a recorrente adquiriu o prédio identificado em 3., por arrematação em hasta pública, nos termos referidos em 4..

A recorrente não põe em causa, obviamente, a regularidade formal desta aquisição.

Ora, o que se pretende dizer nos factos referidos – de uma forma simplificada, é certo, e menos rigorosa – é que a recorrente, ao adquirir o dito imóvel, adquiriu também os "apartamentos" que nele foram construídos.

Apartamentos que, antes da constituição da propriedade horizontal do edifício construído, não têm existência jurídica como fracções autónomas deste, não constituindo unidades independentes que possam ser adquiridas isoladamente.

A recorrente adquiriu o aludido imóvel, tal como este, à data, existia na realidade, incluindo, portanto, a construção nele edificada e, assim, forçosamente, os "apartamentos" nela integrados.

Não tendo esses "apartamentos" autonomia jurídica em relação ao prédio, não faz sentido a referência à exigência das formalidades invocadas pela recorrente. Esta adquiriu também os apartamentos, por estes constituírem parte material integrante do prédio que a mesma arrematou.

A utilidade dos referidos factos – e pode ser esta a verdadeira razão da sua impugnação – é também a de estabelecer a correspondência e identidade entre os aludidos "apartamentos" e o prédio adquirido pela recorrente, o que esta questiona, como se verá de seguida.

Não existe, por conseguinte, razão para eliminar os factos 33 e 82 da matéria de facto provada.

2. Defende, por outro lado, a recorrente que a "matéria de facto não demonstra que os bens detidos pelos reclamantes dos pontos 13, 21, 24, 62, 63 e 87 estivessem localizados no mesmo prédio rústico das hipotecas", sendo certo que cabia aos reclamantes alegar e provar tal identidade.

Sem razão também aqui, como parece evidente, surpreendendo, aliás, que, passados mais de 20 anos desde o início do processo, ainda se coloque esta questão da identidade dos prédios.

Repare-se que a própria Comissão de Credores (presidida pela "BB", ora recorrente), no seu parecer, refere que o imóvel vendido na execução nº 2564, descrito no nº 733 da Conservatória do Registo Predial de ..., é conhecido por "Edifício ..." e a questão que suscitou não tinha a ver com a identidade do prédio, mas apenas com a questão, adiante tratada, de os "apartamentos", que constituiriam o objecto dos direitos de retenção, "não serem juridicamente autónomos daquele prédio". Como depois aí se afirma, "trata-se de uma parte juridicamente não autonomizada do prédio acima referido".

De todo o modo, no que respeita às reclamações de créditos dos pontos 13 e 63, a referida identidade decorre dos factos provados 33 e 82, já acima analisados.

Para além disso, saliente-se que, nas respectivas reclamações, o imóvel é identificado como "Edifício ...", sito na Avenida ..., ..., edifício em construção, para a qual foi emitido o alvará de licença nº 1396 pela Câmara Municipal de ....

Na reclamação do crédito do ponto 24 foi feita alegação idêntica à dos pontos anteriormente referidos – "apesar da reclamante manter a retenção do apartamento identificado, o imóvel foi globalmente arrematado pela BB pelo preço de 620.000.000$00, no âmbito do processo de execução 2564…" (art. 3º) – cfr. facto provado nº 4.

Na reclamação do crédito do ponto 62, o imóvel, "Edifício ...", onde se localiza o "apartamento" sobre que incidiria o direito real de habitação periódica, é identificado como descrito no nº 733 da Conservatória do Registo Predial de ... (art. 2º), acrescentando-se que sobre esse imóvel foi constituída uma hipoteca de 1.674.500.000$00 a favor da CC (art. 17º) – cfr. facto provado nº 3 (descrição e hipotecas).

Em termos semelhantes, na acção para reclamação do crédito do ponto 87, o imóvel onde se situa o "apartamento" prometido comprar é identificado como descrito no nº 733 da CRP de ..., aludindo-se igualmente às responsabilidades hipotecárias constituídas sobre esse imóvel a favor da CC (art. 14º) – cfr. facto provado nº 3.

Por fim, na reclamação do crédito do ponto 24, a identificação do imóvel é idêntica à que é feita em anteriores reclamações – "Edifício ...", na Avenida ..., ... (cfr. pontos 13, 62 e 63) –, sendo um edifício em construção, tendo sido emitido para esta o alvará de licença nº … pela Câmara Municipal de ..., como noutros casos (cfr. pontos 13, 63 e 87).

Os factos referidos, que acrescem à matéria de facto indicada supra como provada, podem ser aqui considerados, como parece evidente, por não terem sido impugnados – cfr. art. 196º, nº 2, do CPEREF e arts. 490º, nº 2 e 659º, nº 3, do CPC, na redacção então em vigor destes diplomas.

Decorre desses factos que estamos perante o mesmo imóvel: edifício em construção, conhecido por "Edifício ...", sito na Avenida ..., ..., construção para a qual foi atribuída pela CM de ... o alvará de licença nº …, estando o prédio descrito no nº 733 da CRP de ..., sobre ele impendendo as hipotecas constituídas a favor da CC e agora, por cedência dos respectivos créditos, a favor da credora "BB".

Conclui-se, assim, que o imóvel onde se localizam os "apartamentos", que constituem o objecto dos invocados direitos de retenção, é aquele sobre que incidem as hipotecas constituídas a favor da recorrente "BB", identificado em 3.

3. A recorrente defende que, no caso, o direito de retenção deve considerar-se excluído, nos termos do art. 756º, al. c), do CC, uma vez que incidiria sobre coisa impenhorável: todas as situações reclamadas respeitam a futuros e eventuais direitos reais, fracções de hipotética propriedade horizontal e de propriedade em time sharing.

Por outro lado, sustenta que a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência de 12.03.1996 não pode ser aqui aplicada: destinando-se as referidas promessas a futuros bens de utilização comercial e turística, não ocorre coincidência com os interesses de protecção à habitação e à parte mais fraca, supostos nesse AUJ; acresce que este assenta no pressuposto de que a falta de constituição de propriedade horizontal é uma situação temporária e transitória, o que não é o caso.

Vejamos.

O direito de retenção encontra-se previsto, com carácter genérico, no art. 754º do CC e consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de não a entregar, como deveria, a outra pessoa enquanto esta não satisfizer o crédito daquela, desde que este crédito resulte de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados.

No art. 755º prevêem-se casos especiais de direito de retenção, fundados na "comunhão da fonte", isto é, na mesma relação jurídica e, entre eles, na al. f) do nº 1, o do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º.

Para além da função coercitiva, que a referida faculdade de não entrega da coisa traduz, o direito de retenção desempenha também uma função de garantia: como decorre do disposto no art. 759º do CC, o direito de retenção constitui um direito real de garantia, conferindo ao seu titular o direito de ser pago pelo valor da coisa retida com preferência aos demais credores do devedor, mesmo à frente do credor hipotecário, ainda que a hipoteca tenha sido anteriormente registada.

Requisito do direito de retenção é que o mesmo incida sobre coisas penhoráveis - art. 756º, al. c), do CC.

Tendo em conta este requisito, a recorrente entende que os credores reclamantes não podem beneficiar desse direito, uma vez que este iria incidir sobre fracções ainda não autonomizadas, por não ter sido constituída a propriedade horizontal.

No acórdão recorrido, porém, seguindo o entendimento já adoptado na sentença da 1ª instância, optou-se por solução que, de algum modo, evita essa questão colocada pela recorrente, acabando por reconhecer-se que o direito de retenção incidia sobre todo o prédio.

Com efeito, depois de se reproduzir a fundamentação do aludido AUJ, acrescentou-se:

"Assim, e sem necessidade de mais considerações, atendendo aos factos assentes e às disposições legais acima mencionadas, tendo também em conta a jurisprudência fixada pelo STJ, não restam dúvidas que, devem ser reconhecidos aos credores reclamantes os direitos de retenção que invocaram.

Ademais, dada a natureza real do direito de retenção, este apenas pode incidir sobre coisas, logo, o direito de retenção incide sobre todo o prédio e não sobre as ditas fracções ainda não autonomizadas, já que enquanto não estiver definitivamente constituída a propriedade horizontal, e, portanto, autonomizadas as diversas fracções, apenas é coisa, no sentido jurídico, o prédio e não cada andar ou parte dele; assim o direito de retenção, que existe em função do crédito resultante do não cumprimento imputável ao promitente-vendedor, incide sobre o prédio e reconhecê-lo sobre o prédio, não constitui condenação em quantidade superior (o crédito não sofre qualquer alteração) nem em objecto diferente (o direito que se reconhece é precisamente o mesmo). A ratio da concessão do direito de retenção mantem-se, sendo esta solução a que melhor garante os interesses do promitente-comprador que a lei quis acautelar.

Assim, pelo produto da venda do prédio rústico sito no ... ou ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° …. e inscrito na respectiva matriz sob o art° 14° da Secção AC, os créditos identificados nos pontos 13, 21, 24, 62, 63, 68, 74, 87, 100, 101, 102, 103 e 104, que beneficiam de direito de retenção, prevalecem às hipotecas registadas, ainda que anteriormente, sobre o mesmo prédio - artigo 759° do Código Civil".

O referido AUJ fixou jurisprudência nestes termos:

Nos termos do nº 3 do artigo 442º do Código Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, tendo havido tradição de fracção de prédio urbano, o promitente-comprador goza do direito da sua retenção, mesmo que o edifício ainda não esteja submetido ao regime de propriedade horizontal.

Verifica-se, por conseguinte, que o acórdão recorrido, no fundo, diverge da tese assim consagrada e uniformizada: apesar de afirmar "subscrever inteiramente a orientação constante" do AUJ e de reproduzir uma boa parte da fundamentação deste, que conduziria ao reconhecimento do direito de retenção sobre a "fracção" prometida comprar – o "direito da sua retenção", a que se alude no segmento uniformizador, respeita claramente à "fracção de prédio urbano" que antes foi referida –, acaba por entender, com evidente apoio nas razões invocadas nas declarações de voto de vencido apostas a esse Acórdão, que o direito de retenção incide sobre todo o prédio.

Importa referir[3] que, apesar de não ter força obrigatória geral, como tinham os anteriores assentos (com a revogação do art. 2º do CC), nem natureza vinculativa para os outros tribunais, o acórdão de uniformização constitui um precedente qualificado, de carácter persuasivo, a merecer especial ponderação, que se julgou suficiente para assegurar a desejável unidade da jurisprudência[4].

Daí que os tribunais só devam afastar-se da jurisprudência uniformizada em "decisões fundamentadas que ponham convincentemente em causa a doutrina fixada"[5].

Como refere Abrantes Geraldes, "só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (…). Ademais, a discordância deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior (…). Em suma, para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas".

Como se diz no Acórdão deste Tribunal de 14.05.2009[6], "a decisão uniformizada, não sendo estrita e rigorosamente vinculativa, cria uma jurisprudência qualificada, mais persuasiva e, portanto, a merecer uma maior ponderação".

Não basta, pois, não concordar com o entendimento adoptado no acórdão uniformizador, sob pena de a uniformização se revelar um instituto sem utilidade, por subsistir, nos mesmos termos, a controvérsia jurisprudencial. A desconsideração desse acórdão tem de resultar de fundadas razões ou de argumentos jurídicos novos ou que não foram aí "convincentemente rebatidos"[7].

No caso, como se disse, o acórdão recorrido, embora não o reconhecendo (ao invés da sentença de 1ª instância), assume um entendimento diferente do preconizado no AUJ de 12.03.1996, sobre a possibilidade de o direito de retenção incidir sobre fracção de edifício ainda não submetido ao regime de propriedade horizontal, apoiando-se nas declarações de voto de vencido do aludido Acórdão.

Estas razões não saem do âmbito em que a questão foi discutida nesse Acórdão, nada acrescentando de novo e ponderoso a tal discussão, acolhendo apenas, no fundo, a tese que foi aí vencida.

Não vemos, pois, razões para afastar a jurisprudência do referido Acórdão uniformizador.

Existe, com efeito, identidade de situações, sendo os aqui reclamantes dos créditos também beneficiários de promessas de transmissão de direitos reais, que obtiveram a tradição das coisas a que se referem os contratos prometidos, sendo credores de indemnização pelo incumprimento definitivo desses contratos, imputável à promitente vendedora, nos termos do art. 442º do CC – art. 755º, nº 1, al. f), do CC.

Requisito essencial deste regime é a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, que cria uma confiança mais forte na concretização desse contrato e justifica, por isso, uma tutela acrescida.

Como veremos, esta tutela não abrange, porém, apenas a situação dos promitentes adquirentes de fracções habitacionais ou que tenham a qualidade de consumidores. Apesar de visada pelo legislador, por se tratar da situação mais comum, essa protecção do consumidor, como parece patente na norma legal citada, não foi erigida em elemento constitutivo do aludido direito de retenção.

Por outro lado, no citado AUJ pressupõe-se que a falta do título constitutivo da propriedade horizontal é transitória e temporária, sobressaindo então a função coercitiva do direito de retenção.

No caso, refere a recorrente, a situação é diferente, não existindo ainda, ao fim de todos estes anos, a propriedade horizontal, pelo que os créditos reclamados se referenciam a "realidades definitivamente impenhoráveis".

É certo que não se mostra ainda constituída a propriedade horizontal, mas, como se reconhece no referido Acórdão, a transferência da detenção das "fracções" foi feita já, evidentemente, com esse propósito e finalidade. "É o seu inelutável destino".

Repare-se, ainda, que a recorrente adquiriu o imóvel, onde se localizam as "fracções", já em 1996. Não parece, por isso, curial e legítimo que possa valer-se agora da falta de constituição da propriedade horizontal, uma vez que, sendo, desde ali, proprietária do imóvel, só ela poderia promover as diligências necessárias para esse efeito.

 

4. Em Acórdão do STJ de 03.06.2003 foi apreciada questão idêntica à anteriormente referida, de os apartamentos detidos não integrarem fracções autónomas e não poderem, por isso (por serem coisas inalienáveis e impenhoráveis), ser objecto de direito de retenção.

Essa questão foi aí desatendida, afirmando-se (para além da invocação do aludido AUJ):

"Por um lado, o andar detido pelos reclamantes só não poderá ser alienado isoladamente, pois isoladamente só o poderá ser quando o imóvel penhorado for constituído em regime de propriedade horizontal. Até então, constitui parte desse imóvel, só com ele, na totalidade, podendo ser alienado. Mas daí resulta precisamente que pode ser alienado, embora não separadamente da parte restante do imóvel em que se integra. Por isso, também podia ser penhorado, de forma integrada no mesmo imóvel, como foi. Nessas condições, não obsta a lei a que possa ser, mesmo isoladamente, objecto de direito de retenção, criando até o mecanismo necessário para resolver o problema eventualmente suscitado pelo facto da sua integração no todo constitutivo do imóvel e pelo facto de o direito de retenção só abranger o aludido andar. É que, sendo os bens vendidos em execução transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, que portanto caducam, os direitos de terceiro que assim caducarem transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens (art.º 824º do Cód. Civil). Ora, como a sentença que reconheceu o direito de retenção o restringe, expressamente, ao andar prometido vender à reclamante, - não podendo em consequência alargar-se tal direito à parte restante do imóvel, que esta nem sequer detinha não podendo por isso recusar qualquer entrega dessa parte restante -, haveria que considerar que o direito dos reclamantes sobre o andar se transferira apenas para o valor deste, que obviamente teria de ser calculado para o efeito de apenas por ele ser efectuado o respectivo pagamento".

No que respeita a este último ponto, Calvão da Silva[8] assume idêntico entendimento, com apoio nas normas dos arts. 1416º, nº 1, e 824º do CC:

"Há, deste modo, uma sub-rogação do objecto do direito de retenção, na transferência para o produto da venda na proporção do valor da fracção ou do direito real de habitação periódica prometido comprar por cada um dos reclamantes. A não se entender assim, teríamos o absurdo da extensão do direito de retenção sobre uma fracção ou unidade de alojamento a todo o prédio, mesmo que a restante parte do imóvel não fosse detida por aquele promitente-comprador. Absurdo porque esse promitente-comprador não deteria a restante parte do prédio que devesse entregar a outrem, a mais da manifesta desproporcionalidade e inadequação perante o seu crédito, numa sobre-garantia de autotutela contrária à boa fé.

Termos em que os direitos de crédito garantidos por direito de retenção só poderão ser graduados na proporção do valor correspondente à «fracção autónoma» (ou ao «direito real de habitação periódica») objecto mediato do contrato-promessa e «retido» pelo reclamante".

Conclui-se, assim, como no aludido AUJ, pela eficácia dos direitos de retenção invocados pelos reclamantes, independentemente da constituição da propriedade horizontal.

Nos termos do art. 824º do CC, os bens vendidos em execução são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram (nº 2); estes direitos de terceiro que caducarem transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens (nº 3).

Assim, pelas razões referidas, com a venda do prédio em execução, os direitos de retenção passaram a incidir sobre o produto da venda do prédio, mas na proporção do valor relativo da "fracção autónoma" ou do "direito real de habitação periódica" que cada um prometeu adquirir.

Chegados a esta conclusão, ficam prejudicadas as questões invocadas pela recorrente que decorreriam do entendimento do acórdão recorrido de que a garantia do direito de retenção de cada reclamante incide sobre a totalidade do prédio.

É também manifesta a intempestividade da arguição de nulidade do próprio AUJ de 1996.

Acresce que a solução referida, de limitar a garantia do direito de retenção ao valor correspondente à "fracção" ou "direito real de habitação periódica", representa claramente um menos em relação ao que foi decidido no acórdão recorrido e, na prática, corresponde ao efeito que sempre ocorreria com a venda do prédio em processo de falência, transferindo-se a garantia do direito de retenção para o produto da venda, passando a incidir sobre este.

Neste caso, o produto da venda que serve de garantia a cada crédito reclamado deve corresponder proporcionalmente ao valor da respectiva "fracção" ou "direito real de habitação periódica".

O problema que pode colocar-se na graduação de cada um desses créditos é apenas quantitativo, pelo que o apuramento daquele valor pode ser efectuado em momento ulterior (art. 609º, nº 2, do CPC), à semelhança do que se decidiu no citado Acórdão de 03.06.2003.

5. Insurge-se ainda a recorrente por a decisão das reclamações de créditos dos pontos 24, 68 e 74 assentar no reconhecimento judicial anterior, em processos em que aquela não foi parte, pelo que as respectivas decisões não lhe são oponíveis. Assim, uma vez que os reclamantes desses créditos não alegaram outros factos, as suas pretensões têm de improceder.

Em tese, concorda-se com o entendimento da recorrente sobre a referida inoponibilidade.

A credora hipotecária, não interveniente no processo em que foi reconhecido o direito de retenção, é terceiro, mas um terceiro juridicamente interessado, uma vez que a sentença é susceptível de lhe causar um prejuízo jurídico, decorrente do facto de o crédito garantido pelo direito de retenção, ser graduado prioritariamente ao crédito garantido com hipoteca sobre o mesmo imóvel.

Nesse condicionalismo, a sentença que reconheça o direito de retenção, não pondo em causa a validade do crédito hipotecário, iria afectar o grau de garantia deste crédito e, assim, a sua consistência jurídica; perante essa sentença, o credor hipotecário não pode ser considerado um terceiro juridicamente indiferente[9].

Seria, pois, de concluir que "não é invocável perante o credor hipotecário a sentença que, com trânsito em julgado, tenha declarado, em acção em que o credor hipotecário não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado, inclusivamente a favor do promitente comprador do imóvel ou fracção"[10].

Importa notar, porém, que, em contrário do que vem referido pela recorrente, na reclamação do ponto 68 (JJ), foram alegados factos suficientes para o reconhecimento do crédito e respectiva garantia – a celebração do contrato-promessa e respectivos termos, a tradição e o incumprimento por parte da promitente vendedora – factos esses que não foram impugnados, pelo que nada obstava, por isso, a que aqui pudessem ser aproveitados, à semelhança do que já acima se afirmou (ponto 2 desta fundamentação).

As reclamações dos pontos 24 e 74 não contêm realmente factos suficientes para o reconhecimento dos respectivos direitos. Remetem, contudo, para as sentenças que foram proferidas, pelo que poderia colocar-se a questão do aproveitamento dos factos que foram alegados nos correspondentes processos para o reconhecimento dos créditos e que as reclamações implicitamente pressupõem.

Mas o que nos parece decisivo, porém, é que os referidos créditos não sofreram qualquer impugnação. Por isso, nos termos do art. 196º, nº 2, do CPEREF (nº 4, na redacção introduzida em 1998), esses créditos sempre teriam de ser reconhecidos e com as garantias de que beneficiam.

6. A recorrente alega ainda que decorre da factualidade provada que a construção do edifício aqui em questão se destinava ao uso turístico e exploração comercial, tendo os promitentes compradores agido como investidores e não como consumidores finais.

Invoca também o AUJ nº 4/2014.

Importa começar aqui por referir que a factualidade provada não revela que a finalidade prosseguida por todos os promitentes compradores fosse a indicada pela recorrente. Esta apenas ficou demonstrada em relação às reclamações dos pontos 13 e 62 (sendo este o único caso de direito real de habitação periódica), tendo sido apenas essas, aliás, as situações identificadas concretamente pela recorrente nas suas alegações.

Em coerência com a posição acima defendida, poder-se-ia considerar que também os créditos dos pontos 74 e 87 estariam nessas condições, tendo em conta que, nas respectivas reclamações, se alega ter sido celebrada a promessa de compra e venda e, bem assim, a de cessão de exploração do "apartamento" prometido comprar.

Afigura-se-nos, todavia, que esta questão não assume aqui relevo decisivo.

Será de notar, a respeito do aludido Acórdão uniformizador, que o regime legal aqui aplicável se distingue daquele sobre que incidiu esse Acórdão.

Com efeito, a sentença que decretou a falência da sociedade "...mar" foi proferida em 09.12.1997, no domínio do CPEREF, na sua primitiva redacção, não sendo de observar, sequer, a norma do art. 164º-A, sobre contrato-promessa, apenas introduzida com a revisão operada pelo DL 315/98, de 20/10. É certo, por outro lado, que o CIRE estabelece uma disciplina diferente sobre os negócios jurídicos em curso (arts. 102º e segs), nomeadamente no que respeita ao contrato-promessa (art. 106º).

O quadro normativo aqui aplicável é, assim, diferente do que foi atendido no aludido AUJ.

De todo o modo, como se observou na sentença da 1ª instância, verificou-se, no caso, o incumprimento definitivo dos contratos-promessa ainda antes da declaração de falência. Seja pelos fundamentos concretamente invocados nas respectivas reclamações, ou, de qualquer forma, sempre em consequência da venda a terceiro do prédio onde se situam os "apartamentos", por ser evidente que, a partir daí, a EE não poderia cumprir os contratos-promessa celebrados.

Daí resulta, por conseguinte, que não estaríamos perante um negócio jurídico em curso, para efeitos do disposto nos arts. 102º e segs. do CIRE.

Este artigo dispõe sobre os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios jurídicos em que o insolvente seja parte e que se encontrem em curso, ou seja, negócios jurídicos que não tenham sido integralmente cumpridos, mas que ainda possam ser cumpridos.

Assim, se antes da declaração da insolvência já há incumprimento definitivo ou resolução do contrato, não pode afirmar-se que este esteja em curso, não sendo aplicável o referido regime.

Nessa situação, o cumprimento do contrato não poderia, na verdade, ficar suspenso para que o administrador da insolvência pudesse optar pela execução ou recusa de cumprimento, uma vez que o contrato já estava extinto.

Trata-se de entendimento pacífico[11].

Não se tratando de um negócio jurídico em curso, não seria, assim, aplicável o regime dos arts. 102º e segs do CIRE e também não tem de ser observada a doutrina fixada pelo AUJ nº 4/2014 – "No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil" – que pressupõe que o negócio não tenha sido ainda cumprido e que não venha a ser cumprido pelo administrador da insolvência.

Por outro lado, deve ser aplicado o regime que decorre dos arts. 442º, nº 2, e 755º, nº 1, al. f), do CC.

Aludindo à hipótese de, antes da declaração de insolvência do promitente-vendedor, existir uma situação de não cumprimento imputável a este último, sublinha Soveral Martins que, neste caso, não existem dúvidas sobre a aplicação daquelas normas:  "O direito de retenção que já protegia o promitente-comprador antes da declaração de insolvência do promitente-vendedor não se extingue com essa declaração de insolvência"[12].

Questão que pode colocar-se é se, mesmo assim, na aplicação desse regime, o direito de retenção aí reconhecido ao promitente comprador depende de este ter a qualidade de consumidor, como se exigiu para o caso tratado no aludido Acórdão Uniformizador.

Crê-se que não[13].

Desde logo, por tal entendimento não encontrar qualquer apoio na letra da lei; nem o espírito da lei aponta também nesse sentido restritivo.

Afirma-se, com efeito, no Preâmbulo do DL 379/86, de 11/11, que, ao conceder-se ao beneficiário da promessa o direito de retenção, se pensou "directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas", mas logo se acrescentou que "nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites".

O art. 755º, nº 1, al. f) do CC exige apenas a traditio da coisa, como situação socialmente atendível, por criar legitimamente ao beneficiário da promessa uma "confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio", o que justifica que lhe corresponda um acréscimo de segurança e, assim, uma tutela reforçada.

Pretendeu o legislador atribuir prioridade, através da concessão do direito de retenção, à tutela dos promitentes-compradores em geral, mormente nos casos em que estes se confrontam com as instituições de crédito, que beneficiam de hipoteca.

Este conflito foi especialmente (e expressamente) ponderado, entendendo-se ser razoável atribuir aquela prioridade aos particulares, sem qualquer restrição. Neste contexto, como parece evidente, se houvesse intenção de restringir o direito de retenção ao promitente-comprador, que simultaneamente tivesse a qualidade de consumidor, isso não deixaria de ser afirmado expressamente.

Sobre o aludido requisito, afirmou-se no Acórdão do STJ de 29.07.2016:

"A aplicação do artigo 755.º n.º 1 alínea f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato-promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato-promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente-comprador é mesmo um possuidor".

Neste sentido, sublinha também Gravato Morais[14]:

"Se bem que a figura do retentor-consumidor esteja abrangida pelo quadro legal civilista (no preâmbulo do diploma de 80 alude-se à «habitação própria» e à «unidade habitacional», tal como no diploma de 86 se refere à «tutela dos particulares», a uma «lógica de defesa do consumidor»), não parece confinar-se essa protecção a tal sujeito.

Note-se que, no 2.º § do preâmbulo do DL n.º 379/86, se observa que o texto de 80 protege os promitentes-adquirentes, «sobretudo quando [o bem objecto da promessa é] destinado a fins habitacionais».

Esta é, de facto, a situação mais comum, mas não a única que se teve em vista.

As normas em causa não conferem, a nosso ver, uma protecção exclusivamente de matriz consumerística, até porque isso significaria a sua integração numa realidade muito própria, com conceitos específicos (…).

Aquelas normas, antes, reflectem uma protecção bem mais abrangente, literalmente nunca aludindo ao consumidor".

Assim, apesar de se visar "sobretudo" a protecção do promitente adquirente de imóveis destinados a fins habitacionais, "numa lógica da defesa do consumidor", como se refere no Preâmbulo do DL 379/86, "não pode confundir-se a identificação do bem ou interesse tutelado por certa norma legal com o plano da previsão dos elementos constitutivos do tipo ou fattispecie normativa em questão: e, no caso em apreciação, afigura-se que o bem jurídico primacialmente prosseguido (a tutela do consumidor) não foi arvorado pelo legislador em elemento constitutivo do direito de retenção previsto na alínea f) do nº 1 do art. 755º do CC"[15].

7. Conclui-se, assim, pela procedência parcial das alegações de recurso, devendo manter-se o que foi decidido quanto à verificação dos créditos, mas precisando-se, quanto à respectiva graduação, que os créditos dos reclamantes que beneficiam do direito de retenção devem ser graduados apenas na proporção do valor correspondente ao apartamento ou direito real de habitação periódica que cada um prometeu adquirir e retém, valor esse a determinar em função da permilagem provável ou através de outro meio legal de avaliação (cfr. citado Acórdão do STJ de 03.06.2003).

V.

Em face do exposto, concede-se parcial provimento à revista, mantendo-se o decidido sobre a verificação e graduação dos créditos, mas quanto a esta, relativamente ao produto da venda do imóvel descrito sob o nº 733/060586 da CRP ... – ponto 4), b), da parte dispositiva da sentença – e no que respeita aos créditos graduados em 1º lugar, que beneficiam do direito de retenção, apenas na proporção do valor correspondente ao apartamento ou direito real de habitação periódica que cada um prometeu adquirir e que retém, valor esse a determinar com recurso à permilagem provável ou a qualquer outro meio legal de avaliação.

Custas pela recorrente e recorridos, na proporção de 3/4 e 1/4, respectivamente.

                                             Lisboa, 9 de Janeiro de 2018

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

______________
[1] Proc. nº 212/14.0T8OLH-AB.E1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 199)
Cons. José Rainho; Consª Graça Amaral
[2] Mantendo-se a numeração, os factos são indicados com referência a cada uma das reclamações de créditos – pontos – referidas no relatório da sentença da 1ª instância.
[3] Seguindo neste ponto o Acórdão do STJ de 02.07.2015 (Proc. nº 19994/10), também relatado pelo ora relator.
[4] Sem produzir o enquistamento ou cristalização das posições tomadas pelo Supremo – preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12.
[5] Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007, 171.
[6] Acessível em www.dgsi.pt, como todos os Acórdãos adiante citados.
[7] Cfr. a enumeração feita por Abrantes Geraldes, Ob. Cit., 381; no mesmo sentido, o Acórdão deste Tribunal de 11.09.2014.
Será aqui de referir que, como é evidente, não se pretende, por esta via, impor aos outros tribunais as condições em que se podem afastar da jurisprudência uniformizada; tal não seria conciliável com a natureza meramente persuasiva e não vinculativa desta. Do que se trata é, tão só, estabelecer critérios que permitam ao Supremo aferir se é aceitável e justificada a divergência em relação a tal jurisprudência.
[8] Sinal e Contrato Promessa, 12ª ed., 185.
[9] Como se afirmou no Acórdão do STJ de 27.05.2017 (com o mesmo relator deste); no mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 08.07.2003, de 20.05.2010, de 20.10.2011, de 18.02.2015 e de 24.11.2015.
[10] Lebre de Freitas, Sobre a prevalência, no apenso da reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença, ROA Ano 66 (2006), Vol. II, 6.
[11] Cfr. Gravato Morais, Promessa obrigacional de compra e venda com tradição da coisa e insolvência do promitente-vendedor – CDP nº 29-4, Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 163 e 164; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 497; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., 183; Pestana de Vasconcelos, Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, CDP nº 33-9; Brandão Proença, Para a necessidade de uma melhor tutela dos promitentes-adquirentes de bens imóveis, CDP nº 22-21; Gisela César, Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso, 73.
[12] Ob. Cit., 164. Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda (Ibidem), "se antes da declaração da insolvência há já incumprimento do contrato, o direito de retenção consolidou-se (nasceu efectivamente) e a sentença não o altera".
[13] Neste sentido o Acórdão do STJ de 27.04.2017 (com o mesmo relator deste), que passa a acompanhar-se.
[14] Da tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor – Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 – CDP nº 46-52 e 53.
[15] Declaração de voto do Exmo Conselheiro Lopes do Rego no aludido AUJ.