Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3562/14.1T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - SENTENÇA DE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA - INSOLVÊNCIA DE PESSOAS SINGULARES / EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS DOS TRABALHADORES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO / PENHORA.
Doutrina:
- Catarina Serra, O Novo Regime Jurídico Aplicável à Insolvência – Uma Introdução, 2ª edição, p. 73.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, em nota ao art. 1º,
- Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª edição, p. 1294.
- Jorge Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana, vol. I, pp. 19 e 20.
- Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, tradução de Paulo Quintela, 1986, p. 77.
- Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, p. 186, 2.º volume.
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, pp. 265/266.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 1.º, 46.º, N.ºS 1 E 2, 235.º, 236.º, 238.º, 239.º, N.ºS 2 E 3, ALS. B) E I).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 738.º, N.ºS 1 E 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 1.º, 59.º, N.º 2, AL. A), E 63.º, N.ºS 1 E 3.
Referências Internacionais:
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (ADOPTADA E PROCLAMADA PELA ASSEMBLEIA-GERAL NA SUA RESOLUÇÃO 217A (III) DE 10 DE DEZEMBRO DE 1948. PUBLICADA NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE A, N.º 57/78, DE 9 DE MARÇO DE 1978, MEDIANTE AVISO DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS): - ARTIGO 1.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º177/2002, DE 23.4, DR I-A, 150, DE 02.07.2002, E DISPONÍVEL IN HTTP://WWW.TRÍBUNALCONSTITUCIONAL.PT/TC/ACORDAOS/2002Q 177.HTMLC
Sumário :

I - Jogam-se no art. 239.º, n.º 3, b)-i), do CIRE – cessão do rendimento disponível – dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da protecção dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração; outro, na lógica da “segunda oportunidade” concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos.


II - O montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível deve ser fixado casuisticamente, tendo em conta “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar…”.

III - A norma remete para o conceito de “dignidade” que indissocia da exigência do sustento do devedor e do seu agregado familiar.
IV - Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

V - Em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna.

VI - Não constando, nem da Lei Fundamental, nem da lei ordinária, a existência de um salário mínimo familiar, definido em função dos rendimentos dessa natureza e da composição do agregado familiar, não existe fundamento legal para, no caso de ambos os membros do casal terem sido declarados insolventes e lhes ter sido concedida a exoneração do passivo restante, se atribuir um valor global não discriminado que, desde que supere o salário mínimo nacional, se deva considerar rendimento propiciador de um nível de vida minimamente digno.

VII - Dado o valor dos rendimentos de duas pessoas idosas e titulares de pensões previdenciais de velhice, que ascendem a menos de mil euros mensais, tendo em conta as despesas a que têm que acorrer, o valor de € 750 que lhes foi reservado como isento de cessão, não é compatível com a dignidade que a Lei Fundamental exige e o critério do art. 239.º, n.º 3, al. b)-i, do CIRE acolhe.

VIII - Apesar de se dever considerar que a economia familiar importa peculiar gestão dos rendimentos auferidos, tratando-se no caso de réditos diferenciados, ainda que com origem comum – ambos os recorrentes são devedores/insolventes e auferem pensão de velhice – a cada um deles deve ser atribuído montante igual ao salário mínimo nacional – porque só assim se lhes assegura uma vivência compatível com a dignidade humana, tendo em conta aquilo que deve ser o valor compatível com “o sustento minimamente digno”.

Decisão Texto Integral:

Proc.3562/14.1T8GMR.G1.S1

R-531[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


           AA e BB, declarados insolventes nos autos de Insolvência de Pessoa Singular, n.º 3562/14.1T8GMR, da Inst. Central – 1ª Secção Comércio – Guimarães, comarca de Braga, inconformados com o despacho judicial proferido em 6.5.2015, na parte em que fixou o valor global de € 750,00, como o valor necessário a assegurar a existência condigna dos Insolventes, determinando que, a partir desse valor, as quantias sobrantes deverão ser cedidas à Senhora Fiduciária, interpuseram Recurso de Apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por Acórdão de 24.9.2015 – fls. 245 a 255 –, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

           De novo inconformados interpuseram recurso de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça. Esse recurso não foi, como tal, admitido pelo Relator na Formação a que alude o art. 672º, nº3, do Código de Processo Civil, tendo sido ordenada a distribuição dos autos à revista normal – ut. fls. 333 a 334.

           

            Por despacho liminar do Relator foi admitido recurso de revista, por se considerar existir oposição entre a decisão recorrida e aqueloutra sentenciada sobre a mesma questão – art. 14º, nº1, do CIRE – no Acórdão-fundamento do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12. 2013, junto com as alegações dos Recorrentes, a fls. 312 a 318, disponível in www.dgsi.pt.  


***

           Nas Alegações, os Recorrentes formularam as seguintes conclusões[2]:

           8ª - Nos termos do disposto no ponto i), da al. b), do nº3. do art. 239º do CIRE, deve ser excluído da cessão ao fiduciário o que razoavelmente seja necessário para “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”.

           9ª - Conforme decidiu o Tribunal Constitucional, em acórdão datado de 09.07.2002, Proc. n.º177/2002, “o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma o uma subsistência digna do respectivo beneficiário.”

 

           10ª - A lei, nomeadamente a Constituição da República Portuguesa, não fixa um salário mínimo nacional por cada agregado familiar, mas por cada trabalhador, precisamente por considerar que o valor em que o mesmo se traduz é o “mínimo dos mínimos” que assegura a sobrevivência digna do trabalhador.

           11ª - Também por este motivo, é impenhorável o valor equivalente ao salário mínimo nacional de cada executado, independentemente da composição do agregado familiar.

            12ª - Se numa execução singular é impenhorável o equivalente ao salário mínimo nacional de cada um dos devedores, sendo a insolvência um processo de execução universal, não se justifica que estes tenham um tratamento menos favorável que o estabelecido para a execução singular, sob pena de conduzir a situações e consequências injustas que levariam à violação da ratio legis das limitações impostas pelo actual artigo 738º do Novo Código de Processo Civil e pelo nº 2, do artigo 46º do C.I.R.E..

            13ª - Se o legislador fixou o salário mínimo nacional como sendo o mínimo a pagar pela remuneração do trabalho, por considerar consistir o respectivo valor o mínimo necessário para fazer face às necessidades básicas do trabalhador, será difícil admitir que uma quantia inferior seja, à luz do actual quadro legal, suficiente para assegurar a sobrevivência condigna de um agregado familiar, independentemente das suas características concretas e da sua composição.

           14ª - Para encontrar os rendimentos com que os insolventes se hão-de governar cumpre partir, por cada devedor, do salário mínimo, que é o mínimo previsto por lei para uma única pessoa viver com dignidade, e acrescentar-lhe o que for necessário para que tal dignidade não seja quebrada face às características e necessidades específicas do agregado familiar em questão.

           15ª - Assim, o salário mínimo nacional é o limite mínimo que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade, por cada devedor – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.09.2011. Proc. nº 692/11.5TBVCD-C.P1. www.dgsi.pt.

           16ª - A decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação do disposto no artigo 1º, da alínea a) do nº2, do artigo 59º e dos nºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição da República Portuguesa, do ponto i), do nº3, do art. 239º do C.I.R.E.

           Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a deliberação recorrida, que deve ser substituída por outra que determine que o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não poderá ser fixado em quantia inferior a um salário mínimo nacional por cada insolvente, nos termos do disposto no artigo 239º, nº3, alínea b, subalínea iii), do CIRE.

            Não houve contra-alegações.


***

            Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provado o seguinte:

            1) - No despacho inicial relativo ao pedido de exoneração do passivo restante, proferido em 6/5/2015, decidiu o Mº Juiz “a quo” fixar o valor global de € 750,00 como o valor necessário a assegurar a existência condigna dos insolventes.

           

            2) - O apelante AA recebe uma pensão de velhice no valor de € 442,40, e, a apelante BB recebe uma pensão de velhice no valor de € 519,72.

            3) - Como despesas regulares têm as com alojamento, energia, água e telecomunicações e ainda despesas com medicamentos, num valor que se situa entre os 400 e 500 euros mensais.

            Fundamentação:

           Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso –, importa saber se, considerando o valor do salário mínimo nacional como o mínimo intangível dos rendimentos dos insolventes/requerentes da exoneração do passivo restante, salvaguardando com esse rendimento disponível a sua dignidade, tal valor, no caso de ser requerente um casal, deve ser de dois salários mínimos e não apenas de um como sentenciou o Acórdão recorrido.

            Vejamos:

Foi declarada a insolvência dos ora Recorrentes, marido e mulher, por se ter considerado por sentença “que o crédito da requerente [foi requerente da insolvência a “Caixa de CC Mútuo de Terras do Sousa, Ave, Basto e Tâmega”] é de um valor elevado, verificando-se um incumprimento de uma obrigação que, considerando o valor em referência, a data do vencimento e a natureza do crédito, revelam a impossibilidade de satisfazerem pontualmente a generalidade das suas obrigações, uma vez que, não têm rendimentos, nem dispõem de património, não provando os mesmo terem activo disponível que lhe permita liquidar o seu passivo, não se afigurando existirem elementos que permitam supor que o venham a ter, não tendo contestado o pedido formulado nos presente autos. Então, verificam-se os pressupostos estabelecidos nos artigos 3.° e 20.°, n.°1, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.

           Os requeridos são devedores do montante global de € 129 103,73 como consta da sentença – fls. 99.

           Os requeridos confessaram a sua situação de insolvência, tendo requerido a exoneração do passivo restante, nos termos do art. 236º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

           No despacho de fls. 185 a 194, de 6.5.2015, considerou-se que, tendo em conta os rendimentos dos insolventes o “valor necessário a assegurar a sua existência condigna” era o de € 750,00, “sendo que a partir desse valor as quantias sobrantes deverão ser cedidas à Sr.ª Fiduciária.

           Aquele valor foi questionado pelos Recorrentes no recurso de apelação onde sustentaram, sem êxito, que o valor que asseguraria uma sobrevivência com o mínimo de dignidade deveria ser o equivalente a um salário mínimo nacional por cada um dos insolventes.

           O essencial da fundamentação consta do seguinte trecho do Acórdão:

           “In casu, provando-se que o apelante AA recebe uma pensão de velhice no valor de € 442,40, e, a apelante BB recebe uma pensão de velhice no valor de € 519,72, tendo despesas regulares têm as com alojamento, energia, água e telecomunicações, em valor não apurado, e ainda despesas com medicamentos, num valor que se situa entre os 400 e 500 euros mensais, tomando-se por referência o valor do RSI, criado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio, e que consiste numa prestação que visa garantir a satisfação das necessidades básicas essenciais, e o valor do salário mínimo nacional (cujo valor foi estabelecido em € 505,00, para vigorar no ano de 2015, nos termos do DL n.º 144/2014, de 30.9), fixando-se no despacho recorrido em valor superior a este último o valor excluído do rendimento disponível e a fixar nos termos e para os efeitos do citado art.º 239º, n.º3, alínea – -i) do C.I.R.E., como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno “dos devedores”, tendo-se fixado em € 750,00 o valor do rendimento dos insolventes, afastada está a alegada inconstitucionalidade na aplicação dos preceitos legais em causa, e que se defende dever ser, em absoluto, salvaguardado (v., no sentido seguido Ac. TRL, de 20/3/2012, in www.dgsi.pt e vários outros Ac. deste colectivo), mais se salientando, e como se referiu já no Ac. de 20-01-2011, deste TRG, que “Numa perspectiva constitucional, à luz dos preceitos contidos nos arts. 59º, nº 2, al. a) e 63º, nºs 1 e 3, da CRP, o salário mínimo representará aquele valor imprescindível a uma subsistência digna”, sendo este um valor mínimo inviolável e o qual se mostra garantido no caso em apreço, mostrando-se correctamente integrado o conceito legalmente imposto de sustento mínimo, e de acordo com justos valores de equidade, e equitativo atentos os valores em referência nos autos correspondentes ainda ás obrigações dos insolventes perante os seus credores, salientando-se dever o valor em referência correspondente ao do salário mínimo nacional reportar-se a cada agregado familiar, e não individualmente, como evidente resulta, e atento o nível económico médio das famílias Portuguesas globalmente consideradas, e como decorre do n.º3 do art.º 239º do C.I.R.E., que exclui do rendimento disponível do insolvente, o rendimento que seja razoavelmente necessário para – o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”.

               

A exoneração do passivo restante, inovadoramente introduzida no direito insolvencial português pelo CIRE, está regulada nos arts. 235º a 248º daquele diploma e apenas é conferida a insolventes que sejam pessoas singulares.

Como resulta do seu Preâmbulo – “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. 

O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante”.

Nos termos do art. 1º do CIRE o processo de insolvência é um processo de “execução universal” que visa acautelar os interesses dos credores, da economia e não despreza, a título excepcional, os interesses do insolvente pessoa singular.

Catarina Serra, in “O Novo Regime Jurídico Aplicável à Insolvência – Uma Introdução”, 2ª edição, pág. 73, sobre tal regime especial escreve:

 “É um regime novo, tributário da ideia de fresh start.  Corresponde à discharge da lei norte-americana (Bankruptcy Code) e à Restschuhbefreiung da lei alemã (cfr. §§ 286 a 303 da InsO).

O objectivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, “aprendida a lição”, este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica.

Só o devedor que seja uma pessoa singular pode requerer a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento (cfr. art. 235.°).”

Similar é a perspectiva de Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, ao afirmar – págs. 265/266:

“A exoneração do passivo restante constitui uma novidade do nosso ordenamento jurídico, inspirada no direito alemão (Restschuldbefreiung), determinada pela necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo (fresh start).

De acordo com o art. 235.°, trata-se da concessão de uma exoneração dos créditos sobre a insolvência que não fiquem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento. A exoneração do passivo restante é aplicável exclusivamente aos devedores pessoas singulares (titulares de empresa ou não, titulares de uma grande ou de uma pequena empresa) que se tenham “portado bem”, desde que não tenha sido aprovado e homologado um plano de insolvência (art.237º, al.c)).”

A lei insolvencial, no art. 235º, estatui – “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.

Nos termos do art. 236º, nº1, do CIRE – “O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de cedido apresentado no período intermédio”.

O nº3 – “Do requerimento consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”.

O nº4 – “Na assembleia de apreciação do relatório é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento”.

Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 186, 2º volume, afirmam:

  “O nº3 estabelece requisitos a que deve obedecer o requerimento do devedor, para além, como é manifesto, do pedido de exoneração. Assim o devedor pessoa singular tem de, no requerimento, declarar expressamente que estão preenchidos os requisitos de que a exoneração depende.

Mas deve ainda declarar, de modo expresso, que se obriga a observar todas as condições que a exoneração envolve e estão estabelecidas nos artigos seguintes”.

Tal pedido está sujeito a apreciação liminar do art. 238º. In casu, o pedido dos insolventes não foi liminarmente indeferido.

No crucial art. 239º do CIRE é regulada a “Cessão do rendimento disponível

O nº2 estatui: “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência (…).”

O nº3 estabelece, “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

(…)

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

(…).”

 O legislador pretendeu estabelecer critérios minimamente objectivos quanto ao montante de rendimento dos insolventes que fica isento de cessão ao fiduciário, fixando um patamar tendencialmente máximo correspondente a “três vezes o salário mínimo nacional”, valor que pode ser até ser excedido, desde que “em decisão fundamentada”.

 Jogam-se nesta norma dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da protecção dos credores dos requerentes da exoneração; outro, na lógica da “segunda oportunidade” concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos.

  O montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível deve ser fixado casuisticamente, tendo em conta “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar…” – nº3, al. b)-i) do citado art. 239º do CIRE.

            A norma remete para o conceito de “dignidade” que indissocia da exigência do sustento do devedor e do seu agregado familiar.

           Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

           O conceito de dignidade consta do art. 1º da Constituição da República que estabelece:

            “Portugal é uma república soberana baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade, livre, justa e solidária”.

          O Professor Jorge Reis Novais, in “A Dignidade da Pessoa Humana”, vol I, págs. 19 e 20, afirma:

            “A dignidade como princípio constitucional supremo.

           A dignidade da pessoa humana não surge constitucionalmente consagrada como um de entre vários outros princípios constitucionais, mas como base em que assenta a República, o que, mesmo sem ter um significado preciso e imediatamente apreensível, há-de ter, para a afirmação constituinte ser levada a sério, consequências normativas relevantes e correspondentes ao lugar especial que lhe foi reservado na Constituição.

            Assim, a concreta recepção constitucional de que foi objecto não pode ser reduzida a facto jurídico trivial, na medida em que a forma como a ideia é constitucionalmente assumida aponta para a atribuição ao princípio de uma relevância especial. Como se percebe imediatamente, até pela própria inserção sistemática formal – a dignidade da pessoa humana vem consagrada no primeiro artigo da Constituição –, o princípio da dignidade da pessoa humana é elevado à qualidade de base ou alicerce em que assenta todo o edifício constitucional e, portanto, é, de algum modo, constitucionalmente reconhecido como princípio dos princípios.”

            A garantia da dignidade humana, está contemplada no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”, Adoptada e proclamada pela Assembleia-geral na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948. Publicada no Diário da República, I Série A, n.º 57/78, de 9 de Março de 1978, mediante aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

            O conceito de “Dignidade” e a sua consideração na aplicação do Direito e na vida de relação, encerra um importantíssimo princípio ético-jurídico que ilumina todo o direito, não só na vertente dos direitos fundamentais, mas no domínio da composição de interesses que ao Estado, através do órgão de soberania Tribunais, cumpre dirimir, sob o estrito critério da legalidade e com observância do princípio da igualdade.

           Dignidade é tudo aquilo que não tem preço, segundo a conhecida formulação de Kant – “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” – [tradução de Paulo Quintela, 1986, p. 77].       Nessa obra procura-se distinguir aquilo que tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, daquilo que é dotado de dignidade – do que é inestimável, do que é indisponível, do que não pode ser objecto de troca.

           Afirma-se, lapidarmente: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade.”

            Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, em nota ao art. 1º, escrevem:

  “A dignidade da pessoa humana não é jurídico-constitucionalmente apenas um princípio-limite. Ela tem um valor próprio e uma dimensão normativa específicos. Desde logo, está na base de concretizações do princípio antrópico ou personicêntrico inerente a muitos direitos fundamentais (direito à vida, direito ao desenvolvimento da personalidade, direito à integridade física e psíquica, direito à identidade pessoal, direito à identidade genética).

            Por outro lado, alimenta materialmente o princípio da igualdade proibindo qualquer diferenciação ou qualquer pesagem de dignidades: os “deficientes”, os “criminosos”, os “desviantes”, têm a mesma dignidade da chamada “pessoa normal”. Os estrangeiros e os apátridas (refugiados, asilados) têm a mesma dignidade do cidadão nacional”.

               Sendo a “dignidade” um princípio basilar que o Estado adopta na Lei Fundamental como “princípio dos princípios”, faz sentido que, na interpretação das normas infraconstitucionais que pressupõem tal conceito, se acolha o critério da interpretação conforme à Constituição, que no ensino do Professor Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição” – 6ª edição, pág. 1294 – “É um princípio geral de interpretação…que, no domínio específico da jurisdição constitucional, remonta ao velho princípio da jurisprudência americana segundo a qual os juízes devem interpretar as leis in harmony with the constitution.

            O princípio tem sido interpretado no sentido do favor legis, no plano do direito interno, e do favor conventionis, no plano do direito internacional […]. Ora, o princípio da interpretação conforme a constituição é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei. Desta forma, o princípio da interpretação conforme a Constituição é mais um princípio de prevalência normativo-vertical ou de integração hierárquico-normativa de que um simples princípio de conservação de normas…”.

           

            O montante excluído da cessão de rendimentos do insolvente ao fiduciário “deve  assegurar um sustento minimamente digno”. Haverá a tendência de considerar que o requerente beneficiário da exoneração não pode pretender manter o trem de vida económico prévio à sua agora débil situação económica, pelo que lhe deve ser reservado como disponível um montante que assegure apenas e tão só um mínimo de sobrevivência, sob pena de não sentir os efeitos da sua quiçá imprudente administração.

           Salvo o devido respeito, não entendemos que o “sustento minimamente digno” equivalha à atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência; de outro modo negar-se-ia ao instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver.

           As interpretações punitivas da lei correspondem, quantas vezes, a preconceitos e, num domínio em que o conceito de dignidade e a ideia de subsistência são primordiais, o padrão a adoptar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem.

           O salário mínimo nacional, (SMN) pese embora não ter sido actualizado entre 2009 e 2014, deveria ser considerado o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende que seja vivida com dignidade, tendo em contas despesas, essas sim de sobrevivência, como são as relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica.

           Nesta perspectiva consideramos que, em regra, o SMN é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna.

          Da conjugação dos nºs 1 e 3 do art. 738º do Código de Processo Civil, decorre que são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer regalia social, “ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”. A impenhorabilidade desses rendimentos “tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional”.

            Não se vislumbra critério equitativo que afaste a ponderação da aplicação da norma processual civil, respeitante à impenhorabilidade ao rendimento disponível, que deve ser deixado ao insolvente requerente da exoneração, para lhe assegurar uma vivência com um mínimo de dignidade.

           Como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº177/2002, de 23.4 de que foi Relatora a Conselheira Maria dos Prazeres Beleza – “…Assim como o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim, também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário”. (disponível in http://www.tríbunalconstitucional.pt/tc/acordaos/2002Q 177.htmlc DR I-A, 150, de 02.07.2002).

                 

            Apreciemos, então, a questão que o recurso coloca. Desde logo, importa referir que foram declarados insolventes os Recorrentes que são casados e não são trabalhadores no activo: o requerente AA recebe uma pensão de velhice de € 442, 40 e a sua mulher, BB, também recebe uma pensão de velhice de € 519,12.

            Como “despesas regulares” ficou provado que têm as inerentes ao alojamento, consumos de electricidade, água, telecomunicações, em valor não apurado, bem como despesas com medicamentos, num valor que se situa entre os 400 e 500 euros mensais. A 1ª Instância foi muito parca na indicação da matéria de facto.

            Ao tempo em que os ora Recorrentes requereram a exoneração do passivo restante vigorava o SMN de € 505,00 – DL. 144/2014, de 30.9.

            Nos termos da lei previdencial as pensões de velhice são pagas 14 vezes ao ano.

            Dispõe o artigo 46.º, n.º1, do CIRE, que, salvo disposição em contrário, a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Decorre do nº2 que os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.

              As instâncias ao considerarem ser razoável e compatível com uma vida digna afectar às despesas do casal o total de € 750,00, devendo o mais por eles recebido ser entregue à Senhora Fiduciária, entenderam que, superando tal montante o valor do SMN, não havia sequer violação da Lei Fundamental.

            Como vimos, os Recorrentes discordam duplamente da decisão; por um lado, consideram que, sendo ambos insolventes, deve ser individualizado para cada um o rendimento disponível; por outro lado, entendem que o montante a ser fixado para cada um, deve ser igual ao SMN.

            Entendemos que, não constando, nem da Lei Fundamental, nem da lei ordinária a existência de um salário mínimo familiar definido em função dos rendimentos dessa natureza e da composição do agregado familiar, não existe fundamento legal para, no caso de ambos os membros do casal terem sido declarados insolventes e lhes ter sido concedida a exoneração do passivo restante, se atribuir um valor global não discriminado que, desde que supere o SMN, se deva considerar rendimento propiciador de um nível de vida minimamente digno.

           Diferentemente, entendemos, pese embora se dever considerar que a economia familiar importa peculiar gestão dos rendimentos auferidos, tratando-se no caso de réditos diferenciados ainda que com origem comum – cada dos recorrentes é devedor/insolvente e aufere a sua pensão de velhice – a cada um deles deve ser atribuído montante igual ao salário mínimo nacional – porque só assim se lhes assegura uma vivência compatível com a dignidade humana, tendo em conta aquilo que deve ser o valor compatível com “o sustento minimamente digno”.

           Sempre se dirá que, se por cada um deles fosse requerida autonomamente a exoneração, lhes deveria seria assegurado esse valor, não sendo justo nem equitativo que, fazendo-o conjuntamente, seja atribuída aos dois a mesma quantia.

            Dado o valor dos rendimentos de duas pessoas idosas e titulares de pensões previdenciais de velhice, que ascendem a menos de mil euros mensais, e tendo em conta as despesas a que têm que acorrer, o valor de € 750,00 que lhes foi reservado como isento de cessão, não é compatível com a dignidade que a Lei Fundamental exige e o critério do art. 239º,nº3, al. b) –i do CIRE acolhe.

           Por tal, a decisão recorrida não pode manter-se, devendo ser excluído da cessão de rendimentos o valor equivalente a dois salários mínimos mensais, um para cada um dos recorrentes.

            Decisão:

Nestes termos, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e, consequentemente, fixando-se como quantia indispensável ao sustento digno de ambos os Insolventes, no montante de € 1010,00 mensais [€ 505,00x2], correspondente a duas retribuições mínimas garantidas (SMN), ficando os mesmos obrigados a entregar ao fiduciário – durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência –, todo o rendimento que aufiram e que exceda a quantia referida.

           

            Custas pela massa insolvente.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Fevereiro de 2016

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

__________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] Foram suprimidas as conclusões 1ª a 7ª, que se referiam à revista excepcional e que, agora, desinteressam à economia do recurso.