Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
692/11.5TBVNO.E2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA
DIREITO CANÓNICO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PERSONALIDADE JURÍDICA
ESCRITURA PÚBLICA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. No momento da aprovação desta associação em 1959 o Código de Direito Canónico de 1983, então vigente, apenas conhecia as associações de fiéis sem as diferenciar em públicas ou privadas.

II. A associação foi constituída por iniciativa espontânea dos seus membros, tendo como objectivo essencial a santificação individual pelo cumprimento dos preceitos e conselhos evangélicos e normas da Igreja e a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das obras da misericórdia, sem que se tenha feito prova de que visasse prosseguir a prática do culto público.

III. As Sr.ªs que decidiram formar a referida associação organizaram-na e passaram a nela desenvolveu os fins pios a que se devotaram desde 1956. Em face do trabalho por elas desenvolvido, com o reconhecimento e apoio do Bispo de Angra, foi seguido o formalismo de aprovação do referido Instituto religioso a que se seguiria, o decreto de erecção.

IV. Foi erigida por Decreto Episcopal, em 1959, ao abrigo do cân. 100.º do Código de Direito Canónico de 1917, porque no momento da sua constituição ou seguia tal procedimento ou não teria existência jurídica, daí que este factor não possa ser decisivo para a determinação da natureza jurídica da associação.

V. Acresce que este factor – tipo de constituição - como requisito da qualificação como pública da associação de fiéis não existia à data da constituição da segunda A., pelo que a verificação da existência de tal decreto Episcopal, relevante para a classificação das associações de fiéis a partir do Código de Direito Canónico de 1983, não pode conferir a mesma relevância para os factos ocorridos em 1959.

Decisão Texto Integral:
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I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

A Diocese de Leiria-Fátima, e Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, intentaram acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra a Fundação do Divino Coração de Jesus, onde formularam os seguintes pedidos:

I - Ser declarada nula ou ineficaz a credencial de 18/10/2005 e em consequência a nulidade da Pública Forma da procuração da superiora Geral de 19/10/2005, conferida com base nessa credencial.

II. Ser declarada nula a escritura pública outorgada em 22 de Junho de 2006 no Cartório Notarial ... de AA, a Escritura Pública exarada a fls. 104 e seguintes do Livro 33, em que instituiu uma Fundação de solidariedade social que denominou de FUNDAÇÃO DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS, que incidiu sobre os seguintes prédios:

1.  Prédio Urbano, composto por casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, sito a ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3122 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 1494 da freguesia de ..., com o valor patrimonial € 10.717,38;

2.  Prédio Misto, composto por casa térrea de habitação, dependência e logradouro, sito em Caldeireira - ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 732 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 445 da freguesia de ... e na matriz rústica sob os artigos 11095 e 11097, com os valores patrimoniais actuais respectivamente de € 965,98, € 710,90 e € 153,41;

3.  Prédio Urbano composto por casa de rés do chão e quintal, sito na Rua..., lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2222 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 1413 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 42.868,66;

4.  Prédio Urbano composto por casa de habitação de rés do chão e quintal, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2250 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 381 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 277,63;

5.  Prédio Urbano composto por casa de habitação de rés do chão, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2247 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 383 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 423,53;

6.  Prédio Misto composto por uma casa de habitação com rés do chão, 1º andar, sótão, dependência e de terra de cultura, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2249 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1471 e na matriz predial rústica sob o artigo 7922 da freguesia de ..., com os valores patrimoniais respectivamente de € 2.193,25 e 8,93;

7.  Prédio Rústico composto por terra de cultura, sito na Ribeira de Baixo, ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2248 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1954 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 143,05;

8.  Prédio Rústico composto por terra de cultura, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2308 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 7042 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 34,82;

9.  Prédio Urbano composto por casa de habitação de rés do chão, 1º andar e quintal, sito na Rua..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 391, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 111 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 9.526,37;

10. Prédio Urbano composto por casa de habitação de rés do chão e pátio, sito em ..., freguesia da ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 371 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 442 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 1.587,58;

11. Prédio Misto composto por casa de habitação com loja térrea, 1º andar e dependência e de terra de lavradio, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 7 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 150 e na matriz predial rústica sob o artigo 322 da freguesia de ..., com o valor patrimonial actual de € 15.222,38 e € 754,94; de € 15.222,38 e € 754,94;

III. Ser declarada a nulidade dos actos de registo e cancelamento correspondentes:

a. À apresentação n.º 1128 de 2009/03/11, feita nos prédios descritos Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.ºs 3122 e 732 da freguesia de ...; e

b. Às apresentações n.sº 1154 e 1162 de 13/02/2009 e de 11/03/2009, feita no prédio descrito Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2222 da freguesia de ...;

c. À apresentação n.º 7 e 4 de 2006/10/27 e 1996/11/18, feita nos prédios descritos Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.ºs 2250, 2247, 2249, 2248 e2308, da freguesia de ...;

d. À apresentação nº 2 de 2006/09/04, feita nos prédios descritos Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.ºs 391, 7 e 371 da freguesia respectivamente da ... e ..., bem como de todos os registos subsequentes que incidem sobre todos os prédios constantes na escritura indicada em I do presente pedido.

      Foi proferido nestes autos, pelo Tribunal da Relação de Coimbra acórdão em recurso de apelação em 20 de Maio de 2014, onde ficou definido que, “por força da extensão da competência estabelecida no art.º 91.º, n.º 1 para conhecimento dos incidentes e das questões prejudiciais que o réu suscite como meio de defesa, o tribunal a quo enquanto tribunal competente para a acção, tem competência para apreciar e decidir da natureza canónica da 2.ª A. em divergência nos autos, ainda que, por força do n.2 da norma mencionada a decisão proferida neste processo não constitua caso julgado fora do mesmo.”

     O processo sofreu vicissitudes várias, e diversos recursos que ao longo da sua tramitação foram ocorrendo.

     Em 3 de Dezembro de 2020 foi proferida sentença no Tribunal Judicial de Santarém que julgou a acção improcedente e absolveu a ré dos pedidos contra si formulados.

    Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Évora, em 16 de Dezembro de 2021, julgou parcialmente procedente a acção e o recurso, revogando a sentença e declarando a nulidade:

- da escritura pública outorgada em 22/06/2006 no Cartório Notarial ... de AA, a Escritura Pública, exarada a fls. 104 e seguintes do Livro 33, em que instituiu uma Fundação de solidariedade social que denominou de Fundação do Divino coração de Jesus, que incidiu sobre os prédios melhor identificados no ponto II. do pedido;

- dos actos de registo e o cancelamento correspondentes às apresentações melhor identificadas no ponto III. do pedido.

     Julgou ainda improcedente o pedido de declaração de nulidade ou ineficácia da credencial de 18-10-2005 e, em consequência, da nulidade da pública forma da procuração da superiora geral de 19-10-2005, conferida com base nessa credencial.

                       

A Fundação do Divino Coração de Jesus, Recorrida na apelação e a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, vieram interpor recurso de revista, com junção de procuração outorgada por esta última a favor do Dr.ª BB e do Dr.º CC, em 19 de Outubro de 2019, pela Madre Superiora da 2.ª recorrente, e apresentaram alegações que encerram com as seguintes conclusões:

A falta de poderes de representação da 2.ª A., Pia União;

Nulidade do Acórdão

a) A questão da falta de poderes de representação da 2.ª A., PIA UNIÃO, já fora arguida na contestação, tendo sido objecto de resposta na réplica, altura em que foi junta aos autos procuração a favor do Dr. DD, a qual foi outorgada pelo Comissário Padre EE em representação da PIA UNIÃO. Não há qualquer dúvida de que a referida procuração foi outorgada ao abrigo de poderes estatuídos pelo Decreto Bispal de 15/07/2008, como expressamente é referido no art. 19.º da referida réplica.

b) Ora, nos termos do acórdão do STJ de 08/10/2020, proferido no proc. n.º 4680/08...., junto aos autos em 13/10/2020, transitado em julgado nos termos da informação constante dos autos e proveniente do STJ em 03/11/2020, foi declarada a nulidade de tal Decreto Bispal, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto. Assim sendo, o Dr. DD deixou de representar a 2.ª A. PIA UNIÃO.

c) É possível que o Dr. DD tenha substabelecido poderes no Dr. FF, mas, se assim foi, as ora Recorrentes não conseguem localizar o substabelecimento nos autos. De qualquer forma, tal substabelecimento também seria nulo, como igualmente seria nula qualquer outra procuração emitida ao abrigo do Decreto Bispal de 15/07/2008 ou de outro proferido na sequência daquele, ao abrigo do erróneo entendimento de que a 2.ª A. PIA UNIÃO seria uma associação pública de fiéis, como resulta do que já foi decidido pelo acórdão do STJ de 08/10/2020.

d) Ou seja, nem o Dr. DD, nem o Dr. FF se podem arrogar na qualidade de representantes da PIA UNIÃO, que assim estava – aquando da interposição do recurso de apelação – sem representação judiciária, situação em que se manteve até à data de hoje, em que é junta aos autos procuração validamente emitida pela PIA UNIÃO a favor do signatário e do Dr. CC.

e) Mais declara a PIA UNIÃO, através dos seus mandatários, que não interpôs recurso de apelação da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, a qual a PIA UNIÃO aceita para todos os efeitos, razão pela qual vem interpor recurso do acórdão da Relação, que declarou a nulidade de actos que a PIA UNIÃO entende que são válidos, correspondendo à sua vontade e ao seu interesse.

f) Nesta sede, cabe arguir a nulidade do acórdão recorrido, porque não se pronunciou sobre a questão da falta de poderes do mandatário que subscreveu a apelação em nome da PIA UNIÃO, como foi expressamente arguido na conclusão C das contra-alegações apresentadas pela FUNDAÇÃO DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS; de resto, essa nulidade é de conhecimento oficioso, uma vez que a falta de poderes de quem recorre deve ser verificada pelo Tribunal.

Caso Julgado ou Autoridade de Caso Julgado

g) No STJ houve acórdãos com abordagens diferentes dessa matéria, mas a questão em pauta tinha sido tratada de forma incidental até que, no proc. n.º 208/11.... – onde se discutia a validade de um contrato de doação outorgado pela PIA UNIÃO – , foi proferido o acórdão de 2/12/2019, transitado em julgado em 19/12/2019 – cuja certidão foi junta a estes autos em 14/02/2020 –, onde, entre outros temas, foi proferida uma decisão de mérito sobre a natureza jurídica da PIA UNIÃO, numa acção movida pela DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA... e pela PIA UNIÃO contra GG, com o nome religioso de HH, Superiora da PIA UNIÃO, e II, que representa a FUNDAÇÃO DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS; nessa acção foi decidido que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis.

h) Depois disso, numa acção intentada pela PIA UNIÃO e GG, com o nome religioso de HH, contra a DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA. (proc. n.º 4680/08....), o STJ teve oportunidade de se pronunciar mais uma vez sobre o assunto, decidindo concretamente sobre o pedido formulado na acção relativamente à natureza jurídica da PIA UNIÃO e à nulidade dos decretos bispais, ao abrigo dos quais a DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA se arrogara no direito de administrar o património da PIA UNIÃO através de comissários por si nomeados.

i) Foi assim que foi proferido o acórdão do STJ de 8/10/2020 – já nos autos desde 13/10/2020, entretanto transitado em julgado, nos termos da informação constante dos autos e proveniente do STJ em 03/11/2020 –, onde foi declarado que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis, sendo nulos os decretos bispais e actos subsequentes, ao abrigo dos quais a DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA, ora Recorrida, partindo do pressuposto erróneo de que a PIA UNIÃO se trataria de uma associação pública de fiéis, passou a interferir directamente na gestão do seu património.

j) Mais recentemente, num processo em que era Autora a DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA. e RR. a PIA UNIÃO DAS ESCRAVAS DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS, GG e uma sociedade a quem haviam sido vendidos dois prédios da PIA UNIÃO (proc. n.º 34/...), foi proferido, em 12/01/2022, novo acórdão do STJ, já transitado em julgado, que reafirma a PIA UNIÃO como associação privada de fiéis, na linha dos outros acórdãos do STJ proferidos em 2019 e 2020.

k) Neste contexto, é incontornável que os acórdãos dos STJ supracitados proferiram decisões de mérito sobre as seguintes matérias:

§ Entendimento de que a verificação dos requisitos da PIA UNIÃO, para os efeitos da sua qualificação como associação pública ou privada de fiéis, se faz ao abrigo do regime instituído pelo CDC de 1983, cujo regime se aplica às associações de fiéis constituídas em data anterior (cfr. os três acórdãos proferidos em 02/12/2019, 08/10/2020 e 12/01/2022)

§ qualificação da PIA UNIÃO como associação privada de fiéis (cfr. os três acórdãos proferidos em 02/12/2019, 08/10/2020 e 12/01/2022);

§ nulidade do Decreto Bispal de 15/07/2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto, pelos quais a DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA, partindo do pressuposto erróneo de que a PIA UNIÃO se trataria de uma associação pública de fiéis, passou a interferir directamente na gestão do seu património (cfr. acórdão de 08/10/2020).

l) As decisões de mérito do STJ supra-referidas, em acções em que a DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA foi parte, constituem caso julgado sobre a natureza jurídica da PIA UNIÃO (neste caso, os três acórdãos), bem como sobre a nulidade do Decreto Bispal de 15/07/2008 e dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto (neste caso, o acórdão de 08/10/2020), nos termos dos arts. 619.º e 621.º do CPC, sendo certo que é dessa qualificação da PIA UNIÃO e da validade ou invalidade do Decreto Bispal de 15/07/2008 e actos subsequentes que depende o julgamento sobre a validade dos actos cuja nulidade é suscitada pela DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA nestes autos.

m) E mesmo que se entenda que não existe completa identidade objectiva e subjectiva nas matérias em disputa nos arestos convocados e nestes autos, é incontroverso que, em relação às questões nucleares da natureza pública ou privada da PIA UNIÃO e à invalidade do Decreto Bispal de 15/07/2008 e dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto, mesmo não se tendo formado caso julgado, as decisões proferidas nos supracitados acórdãos gozam pelo menos de autoridade de caso julgado.

n) As decisões proferidas nos supracitados acórdãos do STJ de 02/12/2019, 08/10/2020 e 12/01/2022 incorporam, de forma indissociável, a posição adoptada quanto à qualificação da PIA UNIÃO como associação privada de fiéis, bem como no que respeita à invalidade das intervenções da DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA através do Decreto Bispal de 15/07/2008 e actos subsequentes, que são questões igualmente indissociáveis da decisão a proferir nestes autos.

o) Existe por isso identidade objectiva entre as decisões proferidas nos arestos do STJ de 02/12/2019, 08/10/2020 e 12/01/2022 e a decisão final que vier a ser proferida nestes autos.

p) Mas também existe uma identidade subjectiva, uma vez que a DIOCESE DE LEIRIA- FÁTIMA e a PIA UNIÃO são partes nestes autos e também foram partes nos autos a que dizem respeito os acórdãos do STJ de 02/12/2019, 08/10/2020 e 12/01/2022. Haverá outras partes nos autos em apreço, mas o que interessa, em termos de verificação da referida identidade subjectiva, é que a DIOCESE DE LEIRIA- FÁTIMA e a PIA UNIÃO são partes nos quatro processos em pauta. E, nestes autos, a FUNDAÇÃO DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS é a “beneficiária” dos actos da PIA UNIÃO que se pretendem impugnar, os quais por ela são aceites, razão pela qual não tem qualquer interesse em opor-se à formação do caso julgado ou à autoridade do caso julgado nos termos acima expostos.

q) Estabelecido que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis, cabe-lhe gerir o seu património, nos termos previstos nos Cânones 309, 321, 323 §1, 324 §1 e 325 §1 do CDC de 1983, sendo nulos os decretos bispais que determinaram a intervenção da DIOCESE DE LEIRIA- FÁTIMA na vida da PIA UNIÃO.

r) Em consequência disso, não tem a DIOCESE DE LEIRIA- FÁTIMA legitimidade para vir pôr em causa os actos livremente praticados pela PIA UNIÃO ou a favor ou no interesse dela – designadamente i) a credencial referida no facto provado n.º 18; ii) a procuração mencionada no facto provado no n.º 19; iii) as escrituras públicas reportadas nos factos provados nos. 20.º, 21.º e 22 do probatório –, uma vez que os pedidos da presente acção se sustentam numa alegada natureza pública da PIA UNIÃO, a qual não se verifica.

s) Pelo exposto, improcede a argumentação do acórdão recorrido quanto aos seguintes pontos:

(i) não ter considerado verificada a excepção de caso julgado ou, pelo menos, a autoridade de caso julgado, nos termos supra expostos, o que devia ter sido julgado como ocorrido;

(ii) ter julgado a PIA UNIÃO como uma associação pública de fiéis, que o não é, como decorre dos acórdãos do STJ convocados para a formação do caso julgado e da argumentação exposta infra em capítulo autónomo;

(iii) ter julgado a nulidade da escritura pública que instituiu a FUNDAÇÃO DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS baseada no pressuposto erróneo de que a PIA UNIÃO seria uma associação pública de fiéis.

 Da Natureza da Pia União e da Improcedência do Pedido

t)A questão da natureza jurídica da PIA UNIÃO deve ser avaliada à luz do CDC de 1983. É o que resulta do art. 12.º, n.º 2, do C.C., que rege a aplicação das leis no tempo, onde se estabelece que, dispondo a lei directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas.

Ora, o C.D.C. de 1983 quis precisamente abstrair-se do facto que deu origem às associações de fiéis, passando a qualificá-las como públicas ou privadas, em função da iniciativa da sua constituição e dos fins prosseguidos, não ressalvando nada do que constava do C.D.C. de 1917.

u) À luz destas regras, é claro que a natureza privada das associações decorre de dois critérios fundamentais:

i) por um lado, a iniciativa da sua constituição;

ii) por outro lado, os fins prosseguidos, uma vez que, de acordo com o Cân. 301, § 1, só às associações públicas cabe ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou prosseguir outros fins cuja função esteja reservada à autoridade eclesiástica.

Ora, in casu, a PIA UNIÃO foi constituída por convénio privado, a partir de uma livre iniciativa das senhoras que se juntaram para esse fim, pelo que nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao facto da PIA UNIÃO ter resultado de uma iniciativa privada (cfr. artigo 1.º dos estatutos da PIA UNIÃO).

Por outro lado, os fins prosseguidos – a santificação individual e a evangelização dos pobres pelo exemplo e a prática das obras de misericórdia (cfr. artigo 2.º dos estatutos da PIA UNIÃO) – inscrevem-se nos fins gerais previstos no Cân. 298 para todas as associações de fiéis, não se incluindo nos fins reservados às associações públicas, nos termos do Cân. 301, §1.

Ademais, o artigo 55.º das Normas Gerais das Associações de Fiéis[1] refere expressamente que a evangelização e a realização de obras de piedade e de caridade podem constituir fins das associações privadas, só lhes estando vedados a promoção do culto público e a transmissão da doutrina cristã em nome da Igreja, o que as Irmãs nunca fizeram, nem se provou que tivessem feito.

v) Assim sendo, quer pela iniciativa da sua constituição, quer pelos fins prosseguidos, é incontornável que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis. Estabelecida a natureza privada da PIA UNIÃO, é incontroverso que a PIA UNIÃO administra livremente os seus bens - cfr. Cân. 325 §1 do CDC –, podendo, como aconteceu no caso dos autos, instituir uma fundação, a ora Recorrida, em ordem à realização dos ideais sociais de solidariedade e justiça, transmitindo-lhe os bens referidos no facto provado n.º 21.º.

w) Deste modo, não há fundamento para declarara nulidade dos actos em causa nesta acção, designadamente a instituição da FUNDAÇÃO DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS e a transmissão dos bens a seu favor, bem como da credencial e da procuração em que se basearam os poderes de representação exercidos, pelo que o acórdão recorrido aplicou erroneamente à situação dos autos os regimes estabelecidos pelos Cân. 298, §1, Cân. 299, Cân. 301, §1 e §3, e 325, §1, todos do CDC de 1983.

Em Qualquer Caso, da Alegada Nulidade Da Escritura

x) No acórdão recorrido, considerando-se que a PIA UNIÃO seria uma associação pública de fiéis – não se pondo em causa nem a credencial, nem a procuração com base na qual foi outorgada a escritura que instituiu a FUNDAÇÃO DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS –, veio a julgar-se a nulidade dessa escritura pública por falta do consentimento do Conselho para os Assuntos Económicos, o que resultaria dos Câns. 1277, 1291 e 1292 § 1, todos do CDC, para os actos de administração extraordinária dos bens eclesiásticos (in casu, assim tidos por se ter julgado a PIA UNIÃO uma associação pública de fiéis).

y) Acresceria ainda, segundo o acórdão recorrido, o facto de o transmissário[2]4 da escritura pública em apreço ser sobrinho da Superiora da PIA UNIÃO, o que igualmente violaria o Cân. 1298 do CDC (o qual imporia uma licença especial da autoridade eclesiástica competente), gerando igualmente a nulidade de tal escritura.

z) Ora, não só o sobrinho da Superiora não é o transmissário da escritura pública em pauta, a qual instituiu a FUNDAÇÃO DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS, entidade que incorporou os bens que pertenciam à PIA UNIÃO, como a alegada falta de licenças especiais, nos termos previstos nos Câns. 1277, 1291 e 1292 § 1, todos do CDC, não geraria a nulidade da escritura em apreço, uma vez que o CDC não comina tal pretensa irregularidade com a sanção de nulidade, o que se extrai dos Câns.10 e124, como, de resto, também já julgou o supracitado acórdão do STJ de 02/12/2019.

Esta guerra que a DIOCESE LEIRIA-... quis fazer à PIA UNIÃO – com o exclusivo fito de se apoderar do seu património – já foi longe de mais. Seria altura de a DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA deixar em paz as irmãs da PIA UNIÃO e a FUNDAÇÃO que elas quiseram criar para prosseguir a sua obra. Em nome da justiça (da justiça dos homens e da justiça de Deus, que, afinal, deve ser a mesma).

Termos em que a revista deve proceder, com as legais consequências, repristinando-se a boa sentença proferida em 1.ª instância.

        


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Apenas a Diocese de Leiria-Fátima apresentou contra-alegações considerando que deve ser mantido o acórdão recorrido, apesar de o seu mandatário indicar também que as contra-alegações eram apresentadas também pela Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, entidade que é representada nestes autos por diverso mandatário, pelas razões que adiante melhor se esclarecerão.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Nos termos conjugados do disposto nos art.º 629.º, n.º1, 631.º, n.º1, 671.º do Código de Processo Civil o recurso de revista interposto pela ré Fundação do Divino Coração de Jesus é admissível.

Porém, à luz dos mesmos preceitos e na ausência de dispositivo legal que o permita, a A. Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus não pode interpor recurso de revista, acompanhando a posição da ré, na parte em que foi vencedora, art.º 631.º do Código de Processo Civil. A tal não obsta a circunstância de ter sido invocado como fundamento do recurso a violação do caso julgado. O art.º 629.º, n.º 2, a) do Código de Processo Civil considera admissível o recurso nesta situação independentemente do valor e da sucumbência, mas não independentemente do vencimento. Com efeito, só tem legitimidade para interpor recurso de uma decisão quem, sendo parte na causa, ficou vencido – art.º 631.º - e, na parte em que ficou vencido – art.º 633.º, ambos do Código de Processo Civil.

Como referido na notificação que foi efectuada ao abrigo do disposto no art.º 655.º do Código de Processo Civil aquela autora não querendo que os interesses da ré saiam desfavorecidos pela decisão do recurso dispõe do meio processual de desistência do pedido que contra ela formulou na petição inicial ou pode transigir sobre o objecto da causa, art.º 283.º do Código de Processo Civil.

Além disso, constando dos autos procuração outorgada pela mesma autora a favor do Dr. DD em 27 de Abril de 2011, em resposta à contestação onde foi arguida a falta de poderes de representação da ré Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, invocando lapso na sua não apresentação com a petição inicial e regularização do processado com a respectiva junção por a procuração ter data anterior à da propositura da acção, não pode ter-se por revogado tal mandato com a junção de uma procuração emitida muitos anos antes.

 A situação da irregularidade do mandato, foi enunciada no despacho saneador proferido em 04/03/2013 e na sentença proferida em 05/12/2016, mas não conhecida por se considerar que a decisão de mérito neles contida era mais favorável à ré que a absolvição da instância decorrente dessa irregularidade e, conhecida no despacho saneador proferido em 23/09/2014 foi decidido que as AA se encontravam devidamente representadas nos autos.

Tendo sido proferidas decisões de mérito desfavoráveis às A.A., só estas tinham legitimidade para delas recorrerem sendo certo que a mesma questão foi objecto das contra-alegações apresentadas pela ré, sem ampliação do recurso, pelo que o acórdão recorrido as não podiam considerar como objecto do recurso.

  Tão pouco na mesma acção pode um autor e um réu, com interesses contraditórios e incompatíveis ser representado em juízo pelos mesmos mandatários, mesmo que entendam que, do ponto de vista material o melhor interesse desta autora é defender os interesses do réu.

Pelo exposto, não se admite a revista apresentada pela Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, condenando-se a mesma nas custas a que a sua actuação deu causa.


*

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Nulidade do acórdão recorrido por ausência de pronuncia sobre a falta de poderes do mandatário que subscreveu a apelação em nome da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus.

2. Caso julgado ou autoridade de caso julgado.

3. Natureza jurídica da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus

4. Nulidade da escritura que instituiu a Fundação do Divino Coração de Jesus


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I.4 - Os factos

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1. “PIA UNIÃO DAS ESCRAVAS DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS” foi erecta canonicamente por Decreto de 02-03-1959, emitido pelo bispo de Leiria, Dom JJ, tendo sido posteriormente feita comunicação de participação de erecção ao Governador Civil de Santarém e registada na Secretaria do Governo Civil de Santarém sob o n.º 181, em 06-03-1959.

2. Com data de 08-03-1959, o Bispo de Leiria comunicou-a à Superiora da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus o Registo da Pia União na secretaria do Governo Civil de Santarém.

3. Dos Estatutos da Pia União consta, designadamente:


Do nome

Art. 1.º - «Escravas do Divino Coração de Jesus» é o nome de família das Senhoras quem por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo na pessoa dos pobres, em todas as obras de caridade.

Dos fins

Art. 2.º - O fim desta Pia União é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja, em segundo lugar, a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia.

Da dedicação

Art. 3.º - Esta Pia União será consagrada aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e propõe-se desagravá-los pela oração, penitência e caridade.

Da superiora

Art. 15.º - A pia União das Escravas deve ter uma Superiora eleita por três anos e por todas as associadas já com votos. (…)

Art. 17.º - Depois de eleita, a superiora deve escolher, entre as associadas já com votos, duas ou três que sejam suas auxiliares na direcção das Casas que tiverem à sua conta.

4. No mencionado Decreto de 02-03-1959, lê-se: “Tendo-Nos sido pedida a erecção canónica da «Pia União das Escarvas do Divino Coração de Jesus», depois de termos examinado atentamente os Estatutos que nos foram presentes e julgando que a mesma Pia União, se for fiel, como esperamos, ao espírito que presidiu à sua organização e fins que se propõe, será de grande utilidade para as almas. Havemos por bem: 1.º - Erigir canonicamente em Pessoa Moral, segundo as normas do Can. 100 do Código de Direito Canónico, a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus. 2.º - Aprovar à experiência os seus Estatutos (…) Esperamos confiadamente que o Sagrado Coração de Jesus e o Coração Imaculado de Maria cujas intenções de misericórdia as Escravas prometem fazer suas tomem sob a sua protecção e amparo esta Pia União e a façam crescer e desenvolver-se no espírito da Mensagem de ...”.

5. Com respeito à erecção da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus”, por carta datada de 31-08-1957 e dirigida ao Bispo de Leiria, o Bispo titular da então Diocese ... referiu, além do mais, “(…) que se tratam de pessoas sérias e que desejam realmente entregar-se ao serviço de Deus e das almas”.

6. Com data de 21-11-1957, o Padre KK, ..., desde 11-06-1936, enviou ao Bispo de Leiria um documento no qual consta, designadamente, ser ele o fundador das Escravas do Divino Coração de Jesus, indicando como motivo da fundação: “colaborar pelo meu humilde Ministério na renovação da face da terra em união com a Santa Igreja”.

7. Em 19-12-1959, sob a presidência do Monsenhor LL, em representação de Dom JJ, então Bispo da Diocese de Leiria-Fátima procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, e foi eleita a MM.

8. Em 10-06-1981, o Vigário-Geral da Diocese de Leiria confirmou a eleição da MM para o cargo de Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus.

9. Em 16-06-1981, a MM prestou juramento de fidelidade à Santa Igreja Católica.

10.  Em 22-04-1984, procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, tendo presidido ao acto o Padre NN, em religião Frei OO e foi eleita a irmã MM.

     E tal eleição foi confirmada em 05-05-1984 pelo Prelado de Leiria.

11. Na acta lavrada em 22-06-1990 da reunião das Irmãs Escravas do Divino Coração de Jesus para procederem à eleição da superiora, consta, designadamente, que: “A fundadora da Pia União, Irmã MM, superiora da comunidade por eleição unânime de mandatos sucessivos (…) partiu para a eternidade a 27 de Abril (…)”.

 Presidiu ao acto da eleição o Padre NN, tendo sido eleita a HH.

12.  Em 04-07-1990 o Bispo de Leiria-Fátima confirmou a eleição da Irmã HH para o cargo de Superiora.

13.  Em 30-06-1996, procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, tendo presidido ao acto o Padre NN e foi eleita a irmã HH.

 E tal eleição foi confirmada em 06-06-1996 pelo Prelado da Diocese de Leiria-Fátima.

14.  Com data de 12-02-1992, Pe. PP, Vigário Geral para a Diocese de Leiria Fátima, na sequência do solicitado pela superiora da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus”, visando obter isenção do pagamento da Contribuição Autárquica para um prédio sito em ..., emitiu a Declaração na qual fez constar que a Pia União é um instituto religioso da Igreja Católica, que goza de personalidade jurídica no foro canónico e civil, tendo como finalidade o serviço da Igreja em ordem ao culto, estando abrangido pelo estabelecido na alínea c) do artigo 50.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Dec. Lei 215/89, de 01-07.

15. Em 17-01-1997, a Superiora da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus solicitou ao Chanceler da Cúria Diocesana que emitisse uma credencial para efeitos de doação de uma casa com ermida no sítio de ..., ..., à Fábrica da Igreja Paroquial e tal doação foi autorizada pelo Bispo.

16. Em 11-06-2005, procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, tendo presidido ao acto o Rev. Padre Frei QQ (em substituição do Ver. P. Frei OO) e foi eleita a irmã HH.

17.  GG, em religião irmã HH, exerceu funções de Superiora da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pelo menos desde 1991, tendo a sua última eleição sido confirmada pelo Bispo de Leiria-Fátima, em 11-06-2005.

18.  Em 18-10-2005, Dom RR, Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, declarou, além do mais, que a Associação de Fiéis, ou Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus com o NIPC 501232222, com sede no lugar de ..., goza de personalidade jurídica no foro canónico e civil e é representada em juízo e fora dele, em todos os assuntos referentes à mesma Associação, segundo as normas do direito, pela sua Superiora Geral, GG, em religião, Irmã HH, nomeadamente (…) praticar os actos necessários à criação de uma fundação de natureza social que garanta, no futuro a permanência do espírito que presidiu à organização e fins daquela Pia União, bem como assegurar a continuidade da sua acção social, afectando património para o efeito (…).

19.  Em 19-10-2005, no Cartório Notarial ..., GG, na qualidade de Superiora Geral da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, constituiu procurador da Congregação que representa o seu sobrinho II, conferindo-lhe poderes para, em nome da Pia União, praticar, além do mais, todos os actos à criação de uma fundação de natureza social que garanta no futuro a permanência do espírito que presidiu à organização e fins da mesma Congregação, bem como assegurar a continuidade da sua acção social, afectando património para o efeito administrar, adquirir e alienar bens.

20.  No dia 22-06-2006, II, na qualidade de procurador, em nome e em representação da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus”, outorgou escritura pública em que constituiu uma fundação de solidariedade social com a denominação “Fundação Divino Coração de Jesus”.

21.  Na mesma escritura, II, em nome da sua representada, declarou transmitir à Fundação Divino Coração de Jesus e destinar-lhe como património um conjunto de bens móveis e imóveis, propriedade da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus”, a título gratuito em plena propriedade, no valor atribuído global de € 285.588,81, designadamente:

a) O prédio urbano, composto por casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, sito a ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3122 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 1494 da freguesia de ... e registada a aquisição, por usucapião, a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-1. Através de Ap. 1128 de 11-03-2009 11:18:56, ficou registada a aquisição, por entrada, a título gratuito, para realização de património para constituição de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

b) O prédio misto, composto por casa térrea de habitação, dependência e logradouro, sito em Caldeireira - ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 732 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 445 da freguesia de ... e na matriz rústica sob os artigos 11095 e 11097, e registada a aquisição, por herança, a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-3. Através de Ap. 1128 de 11-03-2009 11:18:56 UTC, ficou registada a aquisição, por entrada, a título gratuito, para realização de património para constituição de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

c) O prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e quintal, sito na Rua..., lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2222 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 1413 da freguesia de ..., e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G- Ap. 55 de 12-01-2006. Através de Ap. 1154 de 13-02-2009 11:12:02 UTC, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

d) O prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e quintal, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2250 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 381 da freguesia de ... e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-1. Através de Ap. 4 de 27-10-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

e) O prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2247 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 383 da freguesia de ... e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-3. Através de Ap. 4 de 27-10-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

f) O prédio misto composto por uma casa de habitação com rés-do-chão, 1.º andar, sótão, dependência e de terra de cultura, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2249 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1471 e na ... predial rústica sob o artigo 7922 da freguesia de ... e registada a aquisição por sucessão testamentária a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-1. Através de Ap. 4 de 27-10-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

g) O prédio rústico composto por terra de cultura, sito na Ribeira de Baixo, ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2248 e inscrito na respectiva ... predial sob o artigo 1954 da freguesia de ... e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-5. Através de Ap. 4 de 2710-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

h) O prédio rústico composto por terra de cultura, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2308 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 7042 da freguesia de ... e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-1. Através de Ap. 4 de 27-10-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

i) O prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, 1º andar e quintal, sito na Rua..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 391, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 111 da freguesia de ... e registada a aquisição a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-2. Através de Ap. 2 de 04-09-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património na criação de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

j) O prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e pátio, sito em ..., freguesia da ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 371 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 442 da freguesia de ... e registada a aquisição a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-2. Através de Ap. 2 de 04-09-2006, ficou registada a aquisição, por transmissão de património, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

k) O prédio misto composto por casa de habitação com loja térrea, 1.º andar e dependência e de terra de lavradio, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 7 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 150 e na matriz predial rústica sob o artigo 322 da freguesia de ... e registada a aquisição a favor de Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pela inscrição G-4. Através de Ap. 2 de 04-09-2006, ficou registada a aquisição, por transmissão de património na criação de fundação, a favor da Fundação Divino Coração de Jesus.

l) Todos os bens móveis que constituem o recheio dos identificados mencionados prédios urbanos e mistos, designadamente mobiliário, equipamento e material escolar e didáctico de diversa natureza no valor atribuído global de €50.000,00;

m) A quantia de €150.000,00.

22. Dos Estatutos da Fundação Divino Coração de Jesus consta, designadamente:


Artigo 1.º

1 - A Fundação Divino Coração de Jesus é uma fundação de solidariedade social, instituída pela Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus para prosseguir a acção social realizada por esta congregação e promover o desenvolvimento e a diversificação das suas actividades junto das comunidades locais.

Artigo 2.º

1 - A Fundação prossegue, em ordem à realização dos ideais sociais de solidariedade e de justiça os seguintes fins: a) Apoio a crianças, jovens e famílias necessitadas e à integração social e comunitária; (…) d) Promoção da edução e da formação profissional, nomeadamente nas áreas pré-escolar e escolar e nas actividades de tempos livres. (…).

2 - Consideram-se fins principais da Fundação os prosseguidos no âmbito da segurança social. (...)


Artigo 15.º

1 - O Conselho de Administração é constituído por 3 membros, sendo um presidente e dois vogais. (...).

23. Foram designados como primeiros membros dos órgãos da Fundação, nomeadamente: Presidente – II; Vogais: -SS e CC. Conselho Fiscal: - Presidente, GG, e Vogais: - (…).

24. Em 15-07-2008, o Bispo de Diocese de Leiria–Fátima, TT, ao abrigo do cân. 318 §1 e art. 23.º das Normas Gerais das Associações de Fiéis da Conferência Episcopal Portuguesa, designou o Padre EE como comissário e o Dr. UU como comissário adjunto para representarem a Pia União para a instauração de diversas acções judiciais, designadamente a presente, designação esta que foi confirmada e prorrogada em 29-07-2008, 13-07-2009.

25.  As casas das irmãs da Pia União têm capela para uso exclusivo das residentes – irmãs e estudantes internas.

26.  Desde a sua constituição, nas casas das irmãs da Pia União funcionam escolas onde as irmãs se dedicavam ao ensino oficial infantil e secundário e para além do ensino curricular, as irmãs ensinavam, ainda, costura e outras extracurriculares e apoiavam os estudantes carenciados.

27.  As contas bancárias da Pia União eram geridas pelas irmãs, sem necessidade de autorização da Diocese.

28.  Por despacho de 09-11-2011 do Ministério de Solidariedade e da Segurança Social, foi a Fundação Divino Coração de Jesus reconhecida, como instituição particular de solidariedade social e o respectivo registo foi lavrado em 17-11-2011, pela inscrição n.º 9/2011, a fls. 33 v., 34 e 34 v. do Livro n.º 7 das fundações de Solidariedade Social.

29. A credencial emitida pelo Bispo titular da então da Diocese de Leiria-Fátima, exibida e arquivada na referida escritura pública (doc. 31) não foi precedida da audição e parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores, com vista a validar a outorga da escritura, pela procuração conferida em 19/10/2005.

Não resultou provado o seguinte facto:

 - A constituição da Fundação do Divino Coração de Jesus deixou a entidade instituidora Pia União das Escravas Divino Coração de Jesus sem qualquer património.

   O acórdão recorrido enunciou ainda os seguintes factos de que tomou conhecimento oficioso:

30 - Correu termos o processo n.º 2153/06.5ATBCBR-C.C1.S1 onde foi proferido acórdão do STJ de 01.03.2016, (relator: Fonseca Ramos) transitado, que: Declarou a incompetência do Tribunal para apreciar a representação da Pia união, com base no facto de esta ter natureza pública.

Esse processo tem as seguintes partes, pedido e causa de pedir:

Partes:

AA - A AA e a BB,

RR - O CC; A Diocese de DD, representada pelo respectivo Bispo EE; e, FF.

Pedido: “Ser declarada nula e de nenhum efeito a confissão no Processo nº 2153/06.5 TBCBR, revogando o despacho de homologação e determinando-se que o processo siga os seus termos.

Causa de pedir:

Na sequência do afastamento do signatário da petição inicial, como mandatário da Autora “BB”, com base no entendimento de que esta é uma associação canónica pública de fiéis, foi homologado o termo de desistência da acção e confissão da reconvenção, a que a Autora não pode reagir.

A 1.ª Autora é uma associação privada, logo o acto do Senhor Bispo de DD é nulo, por fundamentado em norma que não é aplicável e porque violador do disposto no artigo 11.º da Concordata celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé, que estabelece que as associações privadas de fiéis só têm as limitações à sua autonomia constantes do Código de Direito Canónico (CDC).

Do que decorre, reiteram, que o Sr. Bispo de DD, não tem poderes para indicar o 4.º Réu como representante da BB, o que se traduz na absoluta falta de vontade desta, que determina a nulidade ou anulabilidade da confissão/transacção que foi levada a cabo nos autos principais.

 Também correu termos o processo n.º 208/11.... onde foi proferido o Acórdão do STJ de 05.12.2019, (Relator: Abrantes Geraldes), transitado que:

Julgou a acção totalmente improcedente e absolveu as RR. de todos os pedidos nela formulados.

Foi considerada para isso a qualificação jurídica da Pia União como associação privada de fiéis e a correspondente exclusão do bem imóvel da categoria de bens eclesiásticos,

Esse processo tem as seguintes as partes, o pedido e a causa de pedir:

Partes: AA - DIOCESE de LEIRIA-FÁTIMA e a PIA UNIÃO das ESCRAVAS do DIVINO CORAÇÃO de JESUS

RR –II e GG (com o nome religioso de “HH”).

Pedido (que fosse):

a) Declarada nula ou ineficaz a credencial que foi emitida em …-10-2005 pelo anterior Bispo da Diocese de Leiria-Fátima;

b) Declarada nula a doação do prédio urbano e do respetivo recheio que foi outorgada por escritura pública;

c) Declarada a nulidade dos atos de registo subsequentes a tal doação, ordenando-se o seu cancelamento.

Causa de pedir:

Alegaram que a 2ª A., Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, é uma associação pública de fiéis.

Em 9-11-05, na qualidade de Superiora e representante da Pia União, a “HH” munida de uma credencial emitida em 28-10-05 pelo anterior Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, outorgou a doação de um prédio urbano de que a Pia União era proprietária, a favor do 1º R., AA, seu sobrinho.

Tratava-se de um bem de natureza eclesiástica, na medida em que pertencia a uma associação pública de fiéis, pelo que tal doação carecia de autorização escrita do Bispo da Diocese, a qual deveria ter sido precedida obrigatoriamente da audição e do parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos (CAE) e do Colégio de Consultores (CS), sendo insuficiente a credencial que foi apresentada no ato.

Mais alegaram que, incidindo a doação sobre um bem imóvel de elevado valor, o facto de o respetivo beneficiário ser parente (de 3º grau) da referida Superiora, tornava obrigatória uma licença especial do Bispo da Diocese dada por escrito, nos termos do cân. 1298º do CDC de 1983, a qual não existiu.

E que tais actos:

a) Não foram precedidos da audição e dos pareceres do CAE e do CS da Diocese de Leiria-Fátima, os quais seriam obrigatórios, pois estava em causa a alienação de um bem imóvel de que era proprietária a Pia União, qualificada como associação pública de fiéis, e que

b) O donatário é sobrinho da Superiora da Pia União, sem que na licença que foi subscrita pelo Bispo de Leiria-Fátima se indicasse a existência dessa relação de parentesco, como o exigia o cân. 1298º do CDC de 1983.


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II - Fundamentação

1. Nulidade do acórdão recorrido por ausência de pronuncia sobre a falta de poderes do mandatário que subscreveu a apelação em nome da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus

    Alega a recorrente enfermar o acórdão recorrido de nulidade por não ter tomado conhecimento de todas as questões que lhe foram colocadas, nomeadamente a questão da falta de poderes do mandatário que subscreveu o recurso de apelação em nome da autora PIA UNIÃO, como foi expressamente arguido na conclusão C das contra-alegações apresentadas pela ré Fundação do Divino Coração de Jesus.

    O tribunal recorrido pronunciou-se em conferência sobre esta invocada nulidade que considerou não ocorrer dado não se ter omitido pronúncia sobre “pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as excepções”, mas apenas sobre "razões" ou dos "argumentos" invocados pela parte.”.

   Acrescentou ainda que:

“(…) a nulidade invocada pela " Fundação...," baseia-se na omissão de pronúncia relativamente ao ponto C das conclusões das contra-alegações (onde nada é requerido de concreto ao tribunal).

Tal nulidade é relativa, não a uma questão, mas a uma interpretação/posição exposta pela "Fundação ..." de que o mandatário que subscreveu o recurso anterior, em nome da Pia União, deixou de ter poderes para a representar na sequência de uma decisão do STJ que declarou a nulidade do decreto Bispal, decreto que segundo refere a "Fundação..." esteve na base da nomeação do advogado em causa, sem que, no entanto, conclua sobre a consequência dessa interpretação, manifestando alguma pretensão nos autos.

Pois bem, para além de não termos nestes autos totalmente assentes os factos em que se baseia tal interpretação (desconhecemos o que esteve na base daquela procuração), nem cabendo ao tribunal decidir sobre tal matéria, afigura-se que tal questão será irrelevante para a decisão do mérito da causa (a procuração forense é um ato unilateral pelo qual a parte confere poderes de representação ao seu advogado, sendo meio de prova da relação jurídica de mandato forense e nunca dos factos em disputa no processo) até porque a irregularidade do mandato não é irreversível nem insusceptível de regularização.

 Não estamos perante uma questão que traduza o objecto do recurso. Tanto basta para a improcedência da invocada nulidade.”      

    A omissão de pronúncia nos termos do disposto no art.º 615º, aplicável à apelação por força do disposto no art.º 666.º ambos do Código de Processo Civil é geradora de nulidade. O tribunal de recurso apenas tem de se pronunciar sobre as questões que integram o objecto do recurso, definido nas alegações e conclusões apresentadas pelo recorrente, e nas conclusões apresentadas pelo recorrido, quando tenha havido ampliação do recurso, de acordo com o disposto no art.º 636.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e sobre as questões que sejam de conhecimento oficioso.

A aqui recorrente, recorrida no recurso de apelação, apontou na sua conclusão C o seguinte:

“A posição da PIA UNIÃO, enquanto sujeito processual, foi variando consoante quem a representava, se a sua Superiora, se os comissários nomeados pelo Bispo de Leiria-Fátima, questão hoje encerrada, uma vez que, por acórdão do STJ, de 08/10/2020, transitado em julgado, já junto a estes autos, foi declarada a nulidade do decreto bispal que nomeou tais comissários. Assim sendo, só deve ser admitido o recurso de apelação interposto pela DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA, mas já não o da PIA UNIÃO, porque o Ilustre Mandatário que a subscreve, em nome dessa entidade, deixou de ter poderes para a representar (cfr. Procuração junta com a réplica, a qual lhe foi outorgada por comissário nomeado por acto nulo praticado pelo Bispo da Diocese de Leiria-Fátima). “

    Esta questão não tinha de ser apreciada porque não fazia parte do objecto de recurso e, nessa medida não há nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.

    Todavia mostra-se omitida a apreciação de uma questão de conhecimento oficioso com aquela relacionada, que se reporta à regularização da instância em termos de verificação dos pressupostos processuais. Com efeito, como se constata pela simples análise das peças integrantes do citius, em 06-04-2021, ref.ª 7 592 121, o Dr.º FF apresentou em nome de ambas as autoras o recurso de apelação. Todavia a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus estava nos autos representada pelo Dr. DD conforme procuração outorgada em 27 de Abril de 2011 e junta aos autos, sem que tenha sido junto aos autos qualquer substabelecimento a favor do mandatário que subscreveu o recurso de apelação ou manifestada a sua adesão ao recurso.

Não estando o recurso de apelação assinado por ambos os mandatários, terminando mesmo com a indicação – o advogado – e tendo sido apresentadas as alegações apenas pelo mandatário que representa nos autos a Diocese de Fátima-Leiria, importava, e isso nem precisava de ter sido referido pela recorrida por se conter dentro dos poderes, mesmo deveres do tribunal, esclarecer se se tratava de mero lapso ou se se tratava mesmo de ausência de vontade da autora Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus para apelar da decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

O dever de gestão processual - art.º 6.º - a falta ou irregularidade do mandato – art.º 48.º - ambos do Código de Processo Civil definem que o juiz, também o juiz em sede de recurso, deve suscitar oficiosamente, conhecer e providenciar pela regularização da instância quando ocorra uma situação como a que vimos expondo, circunstância que foi de todo omitida.

Também as contra-alegações de revista foram subscritas apenas pelo mandatário que representa nestes autos a Diocese de Leiria-Fátima. O mandatário da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus Dr. Paulo Páscoa foi notificado de todas as peças processuais constantes destes autos e, recentemente do despacho que admite a hipótese de ser considerado inadmissível o recurso apresentado pela Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus em defesa da posição da ré, nada tendo dito. Dado o tempo em que este processo está pendente e tendo presente o que se decidirá quanto ao mérito da causa crê-se neste momento meramente dilatório e, inútil qualquer tentativa do tribunal para obter melhor regularização da intervenção processual desta autora cujo recurso já consideramos não admissível.

2.      Caso Julgado ou autoridade de caso julgado

Invoca que os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em 02/12/2019, 08/10/2020 e 12/01/2022 têm força de caso julgado ou, pelo menos, autoridade de caso julgado relativamente à qualificação da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus como associação privada de fiéis (cfr. os três acórdãos proferidos em 02/12/2019, 08/10/2020 e 12/01/2022).

Invoca, ainda que o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/10/2020 tem força de caso julgado ou, pelo menos, autoridade de caso julgado relativamente à nulidade do Decreto Episcopal de 15/07/2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto, pelos quais a DIOCESE DE LEIRIA-FÁTIMA, partindo do pressuposto erróneo de que a PIA UNIÃO se trataria de uma associação pública de fiéis, passou a interferir directamente na gestão do seu património.

A questão da natureza jurídica da Pia União das Escravas do Sagrado Coração de Jesus foi conhecida nos referidos processos a título incidental.

Nos termos do disposto no art.º 91.º do Código de Processo Civil o seu conhecimento assentou na extensão da competência do tribunal competente para a acção para conhecer dos incidentes neles suscitados e das questões que o réu suscitou como meio de defesa. Como claramente expresso no n.º 2 do preceito,

 “A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia”.

Não foi, em nenhum dos processos formulado esse pedido de ampliação, e obstáculos de competência em razão da matéria sempre se suscitariam, pelo que não é razoável falar de qualquer excepção de caso julgado oponível neste processo com o conteúdo do ali decidido.

Porém, mesmo que assim não fosse, sempre haveria que considerar que nos termos do disposto no art.º 619.º do Código de Processo Civil a sentença transitada em julgado, como são todos os invocados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, porque tomaram conhecimento do mérito da causa são obrigatórios fora do processo nos limites fixados nos limites estabelecidos nos art.ºs 580.º e 581.º do Código de Processo Civil. Tais limites impõem a verificação cumulativa de identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

No processo com o n.º 208/11...., em que foi proferido acórdão pelo STJ em 05-12-2019, cuja cópia, com nota de trânsito, foi junta pela aqui recorrente em 14-02-2020, a acção foi interposta pela Diocese de Leiria-Fátima e a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus contra II e GG e formulado os pedidos de:

a. Declaração de nulidade ou ineficácia da credencial que foi emitida em 28-10-2005 pelo anterior Bispo da Diocese de Leiria-Fátima;

b. Declaração de nulidade da doação do prédio urbano e do respectivo recheio que foi outorgada por escritura pública;

c. Declaração de nulidade dos actos de registo subsequentes a tal doação, ordenando-se o seu cancelamento.

     Não há identidade de partes porque a recorrente, Fundação do Divino Coração de Jesus, não teve qualquer intervenção nessa acção.

No processo com o n.º 4680/08...., em que foi proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08-10-2020, cuja cópia, com nota de trânsito, foi junta pela aqui recorrente em 26-10-2020, a acção foi intentada pela Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus e GG contra a Diocese de Leiria-Fátima, TT, EE e UU, formulando os seguintes pedidos:

Que fosse declarado nulo e de nenhum efeito o "decreto" do Bispo de Leiria-Fátima de 15 de Julho de 2008 que designou os 3.º e 4.º réus, comissário e comissário adjunto para administrarem bens da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, e bem assim todos os actos praticados ao abrigo do referido decreto, nomeadamente termos de desistência ou confissão, procurações, revogações de procurações, escrituras ou quaisquer outros dele resultantes;

Que os réus fossem solidariamente condenados:

- Os dois 1ºs pela totalidade dos danos causados, e

- Os 3º e 4º na medida da respectiva intervenção directa, a pagar às AA uma indemnização pelos danos patrimoniais causados à 1ª, resultantes dos efeitos judiciais ou notariais dos actos praticados ao abrigo do acto a que se refere a al. a) relativos à propriedade de prédios urbanos, despesas judiciais, honorários e quaisquer outras despesas em que as AA. tenham de incorrer para acautelaram os seus direitos;

Que os réus fossem condenados, solidariamente, a pagar à 2ª R, a título de reparação pelos danos morais sofridos em consequência dos actos impugnados, a quantia de € 2.500,00 que destinará à sua obra assistencial.

Não há identidade de partes porque a recorrente, Fundação do Divino Coração de Jesus, não teve qualquer intervenção nessa acção.

       No processo com o n.º 34/09...., em que foi proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12-01-2022 cujo transito ocorreu em 27-01-2000, a acção foi intentada pela Diocese de Leiria-Fátima contra a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, GG e L..., Lda., na qual foram formulados os seguintes pedidos:

a) Declaração de nulidade do acto de eleição da 2.ª ré como Superiora da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, realizado em 25 de Maio de 2008 e exarada na acta eleitoral n.º 17 da mesma Pia União, com fundamento no facto de o acto não ter sido presidido por Assistente Espiritual e depois confirmado pelo Bispo de Leiria-Fátima;

b) Declaração de nulidade da acta n.º 18, na qual foi ratificado o acto da 2.ª ré como Superiora da Pia União, com os mesmos fundamentos;

c) Declaração de nulidade da escritura de compra e venda, de 2 de Setembro de 2008, exarada a fls. 75 e s. do Livro de Notas para Escrituras Diversas do Cartório Notarial ... BB, que incide sobre os seguintes prédios:

i) Prédio Urbano, sito em “Lomba do Carro” ou “...”, na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo 305, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3392;

ii) prédio rústico, composto de terra de cultura, sito ou denominado “...” na freguesia e concelho do Botão, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 8327, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3393; com fundamento em falta de poderes de representação da 2ª Ré para outorgar tal escritura e porque se trata de bens eclesiásticos, cuja alienação carece de autorização da autoridade eclesiástica, uma vez que a Pia União é uma associação pública e, por conseguinte, não pode dispor dos bens nem transferir poderes de representação à margem ou sem o consentimento da Diocese de Leiria-Fátima.

d) Cancelamento do registo de aquisição sobre os imóveis identificados.        

     Não há identidade de partes porque a recorrente Fundação do Divino Coração de Jesus não teve qualquer intervenção nessa acção.

    A falta de identidade de partes entre os referidos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e a presente acção basta para declarar a não verificação da excepção de caso julgado invocada pela recorrente.

    Invoca a recorrente que tais decisões terão para o presente recurso, pelo menos a autoridade de caso julgado, pretendendo com isso demonstrar que as decisões de mérito neles proferidas colocam esta acção numa relação de prejudicialidade com o decidido naquelas referidas acções. Mas a autoridade de caso julgado não impondo a cumulativa verificação de identidade de partes, pedido e causa de pedir, não prescinde obviamente da identidade subjectiva que permita garantir que sobre uma mesma questão decidida anteriormente tenham tido todas as partes oportunidade de apresentar os seus argumentos e provas em momento anterior a essa decisão final em termos de nela terem sido considerados.

     Assim, a situação presente não permite que se considere qualquer autoridade de caso julgado de qualquer uma das decisões proferidas nesses processos para a decisão a proferir nestes autos por a ré e aqui recorrente não ter tido qualquer intervenção nos referidos processos.

     Improcede, assim, a revista com o apontado fundamento.

3.     Natureza jurídica da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus

O Supremo Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se em diversos acórdãos a título principal e incidental sobre a natureza jurídica da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus como se verifica quer das decisões antes identificadas quer dos acórdãos proferidos nos processos n.º 27/09.... em 10-12-2013 e n.º 2153/06...., em 01-03-2016, estes no sentido de que estávamos perante uma associação pública de fiéis, e, nos acórdão proferidos nos processos 332/09...., em 22-02-2011, n.º 208/11...., em 05-12-2019, n.º 4680/08...., em 08-10-2020, e n.º 34/09...., em12-01-2022 que adoptaram posição contrária atribuindo natureza de associação privada de fiéis à autora Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus.

No momento da aprovação desta associação, 1959 o Código de Direito Canónico de 1983, então, vigente apenas conhecia as associações de fiéis sem as diferenciar em públicas ou privadas.

O vigente Código de Direito Canónico faz uma distinção, das associações de fiéis ligadas à Igreja Católica, entre as associações públicas e privadas, consagrando que as primeiras adquirem a personalidade jurídica, quer pelo próprio direito, quer por decreto da autoridade competente, enquanto as associações públicas de fiéis adquirem personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda. Desta distinção resultam significativas diferenças, nomeadamente: as primeiras actuam em nome próprio e gerem livremente o seu património ao passo a que as associações públicas o fazem em nome da igreja católica que determina o conteúdo e limites do seu funcionamento, administrando de forma directa ou indirecta o respectivo património que é, não mais, que património eclesiástico. Não foi estabelecido qualquer regime transitório que defina uma qualquer requalificação das associações de fiéis constituídas antes da sua entrada em vigor que permita a harmonização com a actual dicotomia de associações de fiéis públicas e privadas.

A ter em conta nesta decisão está também a Concordata de 2004 onde se define, entre outras questões, que competirá ao estado, regular as questões civis, nomeadamente liberdade de associação, gestão do património das associações, estando-lhe vedado qualquer ingerência na organização da Igreja ou no exercício das funções do culto.

Mesmo tendo em consideração que na interpretação da lei canónica releva, segundo o disposto no seu cânone 19, a jurisprudência da Cúria Romana e a opinião comum e constante dos doutores, não se vislumbra uma opinião comum e constante dos canonistas, tendo o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica emitido pronúncia quanto aos critérios a atender na qualificação das pessoas morais já existentes à data da entrada em vigor do Código de direito Canónico, designadamente em sentenças de 24ABR1999 (23966/93) e 30ABR2005 (34864/01), cujo conteúdo se não mostra acessível havendo apenas notícia  (cf. https://bibliotecanonica.net/docsaf/btcafo.pdf) de que essas decisões foram no sentido no sentido de que:

a) As associações existentes antes da promulgação do código vigente, deixando de parte a questão do nome - privadas ou públicas – conservam a condição que, de facto e quanto à substância, tinham”, não vislumbramos razão para nos afastarmos da posição assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão proferido no processo n.º 208/11...., dado que nele se atende à condição que, de facto e em substância tinha e manteve a referida associação à data da sua constituição ainda na vigência do Código de Direito Canónico de 1917 que não estabelecia a dicotomia entre associações privadas e públicas de fiéis como veio a consagrar o Código de Direito Canónico de 1983 que o substituiu.

A associação foi constituída por iniciativa espontânea dos seus membros, tendo como objectivo essencial a santificação individual pelo cumprimento dos preceitos e conselhos evangélicos e normas da Igreja e a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das obras da misericórdia, sem que se tenha feito prova de que visasse prosseguir a prática do culto público. Como consta do ponto 5 e 6 do probatório as Sr.ªs que decidiram formar a referida associação organizaram-na e passaram a nela desenvolveu os fins pios a que se devotaram desde 1956. Em face do trabalho por elas desenvolvido com o reconhecimento e apoio do Bispo de Angra que na carta manuscrita em 31 de Agosto de 1957, endereçada ao Bispo de Leiria/Fátima declara “tratar-se de pessoas sérias e que desejam realmente entregar-se ao serviço das almas devendo, por isso ser ajudadas – doc. 2 junto com a petição inicial – indicando em seguida o formalismo que deve ser seguido na aprovação do referido Instituto religioso a que se seguiria, como veio a ocorrer o decreto de erecção, caso não fosse colocado obstáculo pela Santa Sé.

Foi erigida por Decreto Episcopal, em 1959, ao abrigo do cân. 100.º do Código de Direito Canónico de 1917, porque no momento da sua constituição ou seguia tal procedimento ou não teria existência jurídica, daí que este factor não possa ser decisivo para a determinação da natureza jurídica da associação. Acresce que este factor – tipo de constituição - como requisito da qualificação como pública da associação de fiéis não existia à data da constituição da segunda A., pelo que a verificação da existência de tal decreto Episcopal, relevante para a classificação das associações de fiéis a partir do Código de Direito Canónico de 1983 não pode conferir a mesma relevância para os factos ocorridos em 1959.

Como detalhadamente analisado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça no processo n.º 208/11...., em 05/12/de 2019, acessível em www.dgsi.pt, fazendo o percurso da legislação e da doutrina a esta situação atinente, a que integralmente aderimos e para o qual remetemos, consideramos que, no caso concreto, tendo em conta que os fins prosseguidos por esta associação de fieis, criada por iniciativa particular das senhora que a integraram e nela prosseguiram os objectivos expressos nos estatutos, ainda que com aprovação da diocese, concluímos que a Pia União das Escravas do Coração de Jesus deve ser considerada uma associação privada de fiéis.

4.   Nulidade da escritura que instituiu a Fundação do Divino Coração de Jesus

   Atenta a natureza jurídica de associação privada de fiéis, com capacidade para administrar o seu património não está ferida de nulidade a escritura pública que instituiu a Fundação do Divino Coração de Jesus cujo invocado fundamento era a incapacidade da Pia União para poder dispor do seu património se tivesse a natureza jurídica de associação pública de fiéis. Ao dispor do seu património, naquela escritura, com o fim de instituir uma fundação, devidamente representada pela Madre Superiora regularmente eleita, esteve a dispor do seu património nos limites dos direitos civis que lhe assistem, e não a dispor de bens alheios. Fê-lo suportada no documento emitido em 18-10-2005, por Dom RR, Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, que declarou, que a Associação de Fiéis, ou Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus com o NIPC 501232222, com sede no lugar de ..., goza de personalidade jurídica no foro canónico e civil e é representada em juízo e fora dele, em todos os assuntos referentes à mesma Associação, segundo as normas do direito, pela sua Superiora Geral, GG, em religião, Irmã HH, (…) que tem os seguintes poderes: praticar os actos necessários à criação de uma fundação de natureza social que garanta, no futuro a permanência do espírito que presidiu à organização e fins daquela Pia União, bem como assegurar a continuidade da sua acção social, afectando património para o efeito” documento de que não há nota nos autos haja sido declarado nulo, anulado ou, por qualquer forma invalidado pelas autoridades eclesiásticas.

Este documento emanado do Bispo de Leiria/Fátima foi elaborado nos dias que antecederam a escritura de constituição da Fundação aqui recorrente e do seu conteúdo é claro que se destinava a permitir a tramitação necessária a essa constituição junto das entidades públicas. A circunstância de ter sido feito no fim ou no início do mandato não altera o seu conteúdo ou diminui o seu alcance jurídico tanto mais que emanada de uma alta entidade eclesiástica que de modo nenhum se apurou que, quando a emitiu, estava privado de capacidade de querer ou entender. Também não se verifica qualquer transferência de bens da Associação de fiéis para um qualquer parente da sua Madre Superiora, mas uma transferência de bens para uma fundação, entidade colectiva em que várias pessoas, no desempenho das suas funções, determinarão o uso e afectação de tais bens, naturalmente sujeitas à lei e aos estatutos da Fundação.

    No acórdão recorrido não foi declarada a nulidade ou invalidade desta declaração por se ter entendido que:

“Não se vislumbra fundamento para a declaração em causa no 1º pedido (1- Seja declarada nula ou ineficaz a credencial de 18-10-2005 e, em consequência a nulidade da pública forma da procuração da superiora geral de 19-10-2005, conferida com base nessa credencial).

A credencial, só por si, não põe em causa o regime supra exposto, ao contrário da escritura pública, que instituiu a “Fundação do Divino Coração de Jesus", e a dotou dos prédios indicados.”.

    Em consequência deste entendimento foi decidido:

Julgando-se improcedente quanto ao pedido de declaração de nulidade ou ineficácia da credencial de 18-10-2005 e, em consequência da nulidade da pública forma da procuração da superiora geral de 19-10-2005, conferida com base nessa credencial.”

    Esta decisão transitou em julgado por não ter sido objecto de recurso de revista mantendo-se válida na ordem jurídica quer a credencial quer a procuração em causa.

O único fundamento erigido pelo acórdão recorrido para invalidar a escritura de constituição da fundação ré assenta na natureza pública da Associação de Fiéis, aqui em discussão, que faria de todos os bens que integram o seu património, bens eclesiásticos insusceptíveis de serem transferidos para a Fundação apenas com base na vontade manifestada pela sua Madre Superiora. Não demonstrada a natureza de Associação Pública de Fiéis da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, os bens que integravam o seu património eram bens privados e não bens eclesiásticos tendo os mesmos sido transferidos para a fundação ré por negócio jurídico isento dos vícios invalidantes que lhe eram apontados pelas A.A. nesta acção.

    Procede, pois, a revista com este fundamento.

III – Deliberação


Pelo exposto, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que declarou a nulidade da escritura pública outorgada em 22/06/2006 no Cartório Notarial de AA, a Escritura Pública, exarada a fls. 104 e seguintes do Livro 33, em que instituiu a Fundação do Divino coração de Jesus, que incidiu sobre os prédios melhor identificados no ponto II. do pedido, e, dos actos de registo e determinou o seu cancelamento e julga-se improcedente a acção.

Custas pela recorrida Diocese Leiria-Fátima.


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Lisboa, 19 de Janeiro de 2023

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria Graça Trigo

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[1] Regras regulamentares do Código de Direito Canónico, aprovadas pela Conferência Episcopal Portuguesa em 04/03/2008, disponíveis para consulta em http://www.conferenciaepiscopal.pt/v1/normas-gerais-das-associacoes-de-fieis/.
[2] No acórdão recorrido, diz-se “transmitente”, mas queria certamente dizer-se transmissário, porque a transmitente é a PIA UNIÃO.