Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1793/05.4TBFIG.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
FRACÇÃO AUTÓNOMA
PARTES COMUNS
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
DIREITO DE PROPRIEDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/19/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I- A presunção a que alude o artigo 1421.º/2 do Código Civil é uma presunção juris tantum; por isso, pode o condómino interessado demonstrar - e dele é o ónus da prova (artigo 342.º/1 do Código Civil)- que um determinado espaço está afectado ao uso exclusivo da sua fracção (artigo 1421.º/2, alínea e) do Código Civil).

II- A afectação que se tem aqui em vista é uma afectação material - uma destinação objectiva - existente à data da constituição do condomínio.

III- O reconhecimento dessa afectação material, que leva ao afastamento da aludida presunção, pode verificar-se ainda que o espaço em litígio não se encontre identificado no título constitutivo da propriedade horizontal, na escritura de aquisição da fracção  nem registado na competente conservatória.

IV- Tal o caso da cave existente sob fracção em que o único acesso ao mencionado espaço ou cave, que não dispõe de ventilação e janelas e com chão em terra, é feito pela fracção, através de um alçapão e com escadas de acesso, espaço esse que foi sempre utilizado pelos proprietários da fracção bem como pelos anteriores proprietários da mesma, comprovando-se que há mais de 40 anos que já existem o alçapão e as escadas de acesso ao mencionado espaço

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 

1. AA[…] e mulher, BB […] , instauraram contra “Totta – Crédito Especializado, Instituição de Crédito, S.A.”, e CC […]  e mulher, DD […] , acção declarativa, tramitada após reconvenção como ordinária, pedindo a condenação dos Réus nos seguintes termos:

 

a) reconhecerem que a área que fica por baixo da fracção “A” e ao lado da cave da fracção “B” do prédio identificado no art. 1º da petição inicial é uma parte comum desse prédio;

 

b) reconhecerem que não a podem utilizar em exclusivo, restituindo-a ao condomínio;

 

c) desocuparem tal espaço com efeitos imediatos, fechando o alçapão que abriram e retirando tudo o que nele tenham colocado.

 

2. Fundamentaram os AA. os seus pedidos, em síntese, no domínio sobre a fracção autónoma designada pela letra “B” – correspondente a cave, lado centro, para arrumos e rés-do-chão, lado centro, destinado a comércio – e sobre a fracção autónoma designada pela letra “C” – correspondente a rés-do-chão, lado direito nascente, uma divisão e arrumo sob a escada, logradouro, primeiro e segundo andares –, fracções essas do prédio urbano em regime de propriedade horizontal devidamente identificado na petição inicial, sendo que a 1ª Ré é proprietária, pelo menos desde 28 de Outubro de 2004, da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a rés-do-chão, lado esquerdo poente, constituída por espaço comercial, do mesmo prédio urbano.

 

A 1ª Ré efectuou, oportunamente, uma locação financeira desta fracção “A” aos 2os Réus (CC […] e mulher, DD […]).

 

Na fracção “B”, os demandantes exercem a sua actividade comercial de venda de sapatos, meias e artigos de viagem de marroquinaria, por intermédio da sociedade comercial da qual são sócios, enquanto na fracção “A” os 2os Réus, na sua qualidade de locatários da locação financeira da 1ª Ré, desenvolvem a actividade comercial de pronto-a-vestir.

 

Sucede que por baixo da fracção “A” e ao lado da fracção “B” (cave) existe um espaço com uma área semelhante à da fracção “A”, que se encontra devoluta e sem acesso próprio, sem ventilação e janelas e com chão em terra, não tendo sido afectado no título constitutivo de propriedade horizontal ao uso exclusivo nem fazendo parte de nenhuma das fracções existentes no prédio em causa.

 

Daí que, tudo ponderado e à face da lei civil, só possa concluir-se tratar-se tal espaço de uma parte comum do prédio.

 

Os 2os Réus pretendem utilizar o espaço em questão para aí realizarem o seu comércio, afectando-o ao uso exclusivo da fracção “A”, tendo nele efectuado obras, aberto um alçapão com uma escada rudimentar, inclusivamente electrificando-o e colocado diversas lâmpadas, utilização que, a ser feita, não merecerá nunca o consentimento dos ora demandantes.

 

3. A 1ª Ré, na sua contestação, confirmou ter celebrado com o 2º Réu o contrato de locação financeira imobiliária que teve por objecto a fracção “A” acima referida.

 

Todavia, e ao contrário do invocado pelos AA., a cave situada por baixo da dita fracção “A” integra esta mesma fracção, facto não escamoteável ou iludível pela circunstância de aquela cave não vir expressamente mencionada na escritura de constituição da propriedade horizontal.

 

Realmente, o único acesso a tal cave é feito pela fracção “A”, através de um alçapão e com escadas de acesso, não sendo, pois, verdade que a cave não tenha acesso próprio; depois, é esse espaço exclusivamente utilizado pelos 2os Réus e por ninguém mais.

 

Daí que de modo algum se possa considerar a referida cave como parte comum do prédio, pois pela sua destinação objectiva a mesma não pode servir senão um dos condóminos, precisamente a proprietária da fracção “A”.

 

Por outro lado, a especificação relativa à cave feita no projecto de construção não é algo de determinante para a organização da propriedade horizontal, pois o que a constituição da propriedade horizontal deve respeitar é o destino indicado no projecto de construção relativamente a cada uma das partes que compõem o prédio, não sendo tal projecto, contudo, vinculativo relativamente à propriedade horizontal, no que toca à destinação do que venham a ser partes comuns ou fracções autónomas do edifício.

 

Acresce que, quando a contestante adquiriu a fracção “A”, já dispunha esta do alçapão e das escadas de acesso à cave, estado de coisas existente desde a construção do prédio, ou seja, há muito mais de 10 anos, sendo sempre exercida pelos proprietários da referida fracção uma utilização plena, ininterrupta e pacífica da cave em questão, pelo que se outro título não tivesse sempre teria adquirido a 1ª Ré a propriedade da mesma cave por usucapião.

 

Concluiu pugnando pela improcedência da acção.

 

4. Os 2os Réus também contestaram, deduzindo ainda reconvenção.

 

Alegam, em síntese, que são locatários da fracção “A”, onde exercem a actividade comercial de venda de confecções, vestuário e pronto-a-vestir.

 

A referida fracção, para além da nomenclatura constante do título constitutivo da propriedade horizontal, é também composta de uma cave que naturalmente se situa entre o soalho do estabelecimento – isto é, da fracção “A” – e o solo, cave aquela que é dotada de energia eléctrica e se encontra murada e tapada por todos os lados, tendo unicamente acesso por uma escada que dá para o estabelecimento dos contestantes, situação que se mantém há mais de 40 anos (desde muito antes, portanto, da sujeição do prédio ao regime da propriedade horizontal).

 

Tendo em conta os aspectos acabados de referir, deve ter-se por ilidida a presunção legal que faria ab initio supor ser a cave em questão uma parte comum do edifício, pois a verdade é que sempre esteve afecta, de modo exclusivo, e desde o início da construção do prédio, à divisão que é hoje a fracção “A”.

 

Em reconvenção, os demandados pedem a condenação dos autores a reconhecerem que o dito espaço da cave é propriedade dos reconvintes, adquirida por usucapião.

 

5. Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que

 

a) absolveu os réus dos pedidos;

b) condenou os reconvindos a:

 

- reconhecer que o espaço (cave com a área de 59,40 m2, medida pelo interior das paredes, e um “pé direito” variável entre um valor mínimo de 1,10 metros e um máximo de 1,72 metros) existente debaixo do soalho da fracção autónoma designada pela letra “A” (fracção “A” esta identificada como correspondendo ao rés-do-chão, lado esquerdo poente, destinado a comércio) do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na […]  Figueira da Foz, inscrito na respectiva matriz […]  e descrito na Primeira Conservatória […]  (afecto ao regime de propriedade horizontal pela inscrição F-2) é parte integrante de tal fracção “A”;

 

- a absterem-se de todo e qualquer comportamento que colida com o direito de propriedade que sobre a fracção “A” e espaço de cave aludidos goza a Ré “Totta – Crédito Especializado, Instituição de Crédito, S.A.”, e o direito de ocupação (por via de locação financeira) que sobre a mesma fracção “A” e espaço de cave gozam os reconvintes, CC […]  e mulher, DD […];

c) absolveu os reconvindos do demais contra si peticionado em sede reconvencional.

 

6. Interposto recurso, o Tribunal da Relação de Coimbra negou-lhe provimento.

 

7. Do acórdão da Relação de Coimbra interpõem os AA recurso para o Supremo Tribunal de Justiça considerando, em síntese, o seguinte:

 

1. Que do título constitutivo de propriedade horizontal não consta a menção do espaço existente sob a fracção “A”.

2. Que, não estando especificado no título, a referência ao referido espaço, não pode ele ser considerado propriedade privada por se impor concluir que não foi afectado juridicamente à fracção “A” pela vontade do então único proprietário que bem conhecia a sua existência.

3. Que o valor relativo da aludida fracção “A” é de 26,67% e seria maior se compreendesse o aludido espaço.

4. Que o referido espaço não pode ser utilizado para comércio, pois isso implicaria uso diverso do fim a que a fracção é destinada (artigo 1421.º/1, alínea c) do Código Civil).

5. Que a utilização do aludido espaço é clandestina, não autorizada pelo proprietário único do prédio até 1995, tanto assim que não reconheceu a existência do mesmo no título constitutivo da propriedade horizontal junto de fls 23/25.

6. Que o anterior proprietário das fracções “B” e “C” foi autorizado, enquanto promitente comprador, a prolongar a cave existente  na fracção “B” de forma a ocupar toda a área por debaixo da fracção “A”, o que não teria feito se considerasse que tal espaço fazia parte integrante da fracção.

7. Que, a considerar-se tal espaço parte privativa da fracção “A”, desvirtuar-se-ia o fim para que foi concebido, caixa-de-ar.

 

8. Factos provados:

 

1 – os AA. AA […]  e mulher, BB […] , são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma designada pela letra “B” correspondente a cave, lado centro, para arrumos, e rés-do-chão, lado centro, destinada a comércio, com a área total de 87 m2, e fracção autónoma designada pela letra “C” correspondente a rés-do-chão, lado direito-nascente, uma divisão e arrumo sob a escada, logradouro, primeiro andar e segundo andar, com a área total de 344 m2, ambas do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na […]  Figueira da Foz, inscrito na matriz […]  e descrito na competente Conservatória […].

2 – Os demandantes adquiriram tais fracções a José […], por escritura pública outorgada em 31 de Maio de 1996, no Segundo Cartório Notarial da Figueira da Foz.

3 – Consta da descrição n.º […] Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz que a fracção “A”, composta por rés-do-chão, lado esquerdo-poente, destinada a comércio, do prédio urbano aludido no ponto 1 (da presente matéria factual provada) foi registada em 28 de Outubro de 2004, provisória por natureza, a favor da 1ª Ré “Totta Crédito Especializado, Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, com base em aquisição por compra, a qual foi convertida em definitivo em 17 de Novembro de 2004.

4 – As fracções referidas nos pontos 1 e 3 (dos presentes factos assentes) encontram-se identificadas nas plantas constantes de fls. 37 a 41 dos presentes autos (ora dadas por integralmente reproduzidas).

5 – A 1ª Ré efectuou locação financeira da fracção “A” aos 2os Réus CC […] e mulher, DD[…], a qual foi registada em 17 de Novembro de 2004.

6 – Na fracção “A” os 2os Réus, enquanto locatários da locação financeira referida no ponto 5 (destes factos provados), exercem a sua actividade comercial de pronto-a-vestir.

7 – Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 4 de Novembro de 2004, no Segundo Cartório Notarial da Figueira da Foz, EE […]  e mulher, FF […] , declararam vender à ora 1ª Ré, e esta declarou comprar, a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão, lado esquerdo poente, destinado a comércio, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na […] Figueira da Foz, inscrito na respectiva matriz […] com o valor patrimonial correspondente à fracção de 27.581,52€, prédio descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial deste concelho […]  afecto ao regime de propriedade horizontal pela inscrição F-2, à dita descrição, fracção registada a favor dos vendedores pela inscrição G-1, pelo preço de 225.000€.

8 – Na primeira Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz encontra-se descrito o prédio com o n.º […] da freguesia de São Julião, tendo sido inscrita em 8 de Maio de 1992 a sua aquisição a favor de GG […], casado com HH […], por sucessão testamentária por óbito de II […] , o qual abrange três prédios.

9 – No documento aludido no ponto 8 (da presente matéria factual assente) encontra-se igualmente inscrita, em 3 de Novembro de 1994, a constituição de propriedade horizontal, com o valor relativo das fracções: “A” – 26,67%, “B” – 20%, “C” – 53,33%.

10 – Por escritura pública de constituição de propriedade horizontal outorgada no dia 28 de Outubro de 1994, no Segundo Cartório Notarial da Figueira da Foz, JJ […] , na qualidade de procurador de GG […] , instituiu no prédio urbano composto de cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com a superfície coberta de 151 m2, de logradouro com 31 m2, sito na […]  Figueira da Foz, descrito na competente Conservatória sob o n.º 855 daquela freguesia e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 83, o regime de propriedade horizontal, o qual ficou a ser constituído pelas seguintes fracções autónomas:

- fracção “A”, rés-do-chão, lado esquerdo-poente, constituído por espaço comercial;

- fracção “B”, cave, lado centro, para arrumos, e rés-do-chão, lado centro, para espaço comercial;

- fracção “C”, rés-do-chão, lado direito-nascente, com vestíbulo de entrada, uma divisão de arrumo sob a escada, o logradouro com 31 metros m2, primeiro andar com sete divisões amplas e um terraço, e segundo andar com oito divisões e uma casa de banho.

As fracções “A” e “B” ficaram destinadas a comércio e a fracção “C” a escritórios. Todas as mencionadas fracções são unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para a via pública;

11 – na Primeira Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz encontra-se descrito o prédio com o n.º […] e aí inscrita, relativamente à fracção “A”, em 7 de Junho de 1995, a aquisição da mesma a favor de Gracindo […] casado sob o regime da comunhão geral com Maria Arminda […].

12 – Na fracção “B” os AA exercem a sua actividade comercial de venda de sapatos, malas e artigos de viagem de marroquinaria, por intermédio da sociedade “[…]  Lda.”.

13 – Por baixo da fracção “A” e ao lado da fracção “B” (cave) existe um espaço com uma área semelhante à da fracção “A”.

14 – O único acesso ao mencionado espaço ou cave é feito pela fracção “A”, através de um alçapão e com escadas de acesso.

15 – O espaço referido no ponto 13 (dos presentes factos provados) tem como único acesso o alçapão e as escadas mencionadas no ponto 14 (igualmente desta matéria factual assente), tendo no seu interior diversos bens e mercadorias do comércio dos 2os Réus.

16 – O espaço referido no ponto 13 (dos presentes factos provados) encontra-se sem ventilação e janelas e com chão em terra.

17 – No documento de constituição da propriedade horizontal mencionado no ponto 10 (da presente matéria factual assente) não existe qualquer menção à existência de um espaço com as características do referido no ponto 13 (igualmente desta matéria factual provada).

18 – O espaço referido no ponto 13 (desta matéria factual provada) foi sempre utilizado pelos proprietários da fracção “A”, a saber, a actual 1ª Ré (sendo tal uso exercido actualmente pelos 2os Réus enquanto locatários), bem como pelos anteriores proprietários da mesma.

19 – Os 2os Réus electrificaram e colocaram diversas lâmpadas no espaço mencionado no ponto 13 (da presente factualidade assente).

20 – A utilização que os 2os Réus fazem do espaço aludido no quesito 13 (destes factos assentes) não tem o consentimento dos AA.

21 – O contrato de locação financeira aludido no ponto 5 (desta matéria factual provada) foi celebrado para satisfazer encargos de ambos os 2os Réus, tais como as despesas com água, luz, telefone, gás, alimentação, educação e saúde.

22 – Quando a 1ª Ré adquiriu a fracção “A” já dispunha a mesma do alçapão e das escadas referidas no ponto 14 (da presente factualidade assente).

23 – Há mais de 40 anos que o alçapão e as escadas de acesso ao espaço mencionado no ponto 13 (destes factos provados) já existem na fracção “A”.

24 – O espaço aludido no ponto 13 (da presente factualidade assente), situado entre o soalho da fracção “A” e o solo, possui a área de 59,40 m2, medida pelo interior das paredes.

25 – O “pé direito” do espaço referido no ponto 13 (desta matéria de facto provada) não é constante, variando entre um valor mínimo de 1,10 metros e um máximo de 1,72 metros.

26 – O referido espaço encontra-se murado e tapado por todos os lados, tendo unicamente acesso pelas escadas (aludidas no ponto 14 desta factualidade provada) que dão para o estabelecimento dos 2os Réus;

27 – É um espaço dotado de energia eléctrica e que tem servido sempre como armazém para os produtos de venda no estabelecimento dos 2os Réus.

28 – Os 2os Réus (reconvintes), por si, pelos seus antepossuidores e anteproprietários, têm vindo a usufruir do espaço referido no ponto 13 (da presente matéria factual assente), dele retirando todos os rendimentos e proveitos, o que têm feito há mais de 20 ou 40 anos.

29 – o prédio a que corresponde o n.º […] da respectiva Conservatória, até ao ano de 1994, pertenceu no seu todo a GG […] e mulher.

30 – Até à data aludida no ponto 29 (destes factos provados) o prédio encontrava-se indiviso.

31 – EE […] e mulher eram arrendatários da fracção “A” em 7 de Junho de 1995.

 

Apreciando:

 

9. A questão a decidir circunscreve-se a saber se o espaço existente por baixo da fracção «A» e ao lado da fracção «B» do ajuizado condomínio deve ser ou não considerado parte comum do edifício.

 

10. A este propósito referiu-se o seguinte no acórdão recorrido (Correia Mendonça) da Relação de Coimbra:

 

“ O artigo 1421.º rege sobre as partes comuns do prédio. Como refere, v.g., o Ac. RP, de 06.01.92, CJ, T I: 215, uma das funções deste artigo ‘é estabelecer por forma peremptória quais as partes do prédio em propriedade horizontal que ficam submetidos ao regime da compropriedade, no que respeita ao seu uso ou aproveitamento’.

A citada disposição normativa permite a distinção, que é pacífica, ente partes necessária ou imperativamente comuns (n.º 1) e partes presuntivamente comuns (n.º 2).

O legislador, a respeito das partes presuntivamente comuns, adoptou um enunciado exemplificativo, que complementou com um princípio de ordem geral, ao estabelecer que são comuns, em geral, as coisas que não sejam afectadas ao  uso exclusivo de um dos condóminos (artigo 1421.º, n.º 2, alínea e))”.

Prossegue mais adinte o aresto referindo-se a duas orientações:

“Para esta tese, não se presumem comuns as partes dos prédios que estejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos. Só que essa afectação, para ser relevante, tem ela, também, de constar do título constitutivo da propriedade horizontal.

Defenderam esta tese, entre outros, os Acs. do  STJ, de 23.03.82, BMJ, 315: 270, e de 09.05.91, BMJ, 407: 545, da RL, de 30.06.81, BMJ 313:316, de 30.04.91, www.dgsi.pt., de 20.01.94, www.dgsi.pt, e ainda o Ac. RC, de 09.12.86, CJ, T 5: 83.

Para a tese B a afectação ao uso exclusivo de um dos condóminos de uma parte de um prédio pode dar-se não apenas por negócio jurídico, ou seja pelo documento através do qual foi instituída ou modificada a propriedade horizontal, mas também atendendo à natureza ou função concreta da coisa em apreço.

Dito de outro modo: se do título constitutivo da propriedade horizontal não constar a afectação de parte de um prédio a alguma fracção autónoma, a presunção derivada da alínea e) do n.º 2 do artigo 1421.º pode ser ilidida, nomeadamente se se demonstrar que ab initio essa parte esteve afecta em exclusivo a determinada fracção, não se exigindo que a afectação material conste do respectivo título executivo.

Encontramos esta tese sufragada, entre outros, pelos Acs. do STJ de 28.09.99, www.dgsi.pt, de 08.02.2000, CJ/STJ, T I: 67, RL de 18.02.97, www.dgsi.pt, de 29.06.99, www.dgsi.pt, de 07.05.2002, www.dgsi.pt, e RC, de 26.02.2002, www.dgsi.pt.

Dizer que a elisão da presunção relativa, contida na citada norma, está dependente da demonstração de que ab initio a parte do prédio esteve afecta ao uso exclusivo de determinado condómino, tem algo de ambíguo. Ambiguidade que fica afastada se se concretizar que é entendimento maioritário na jurisprudência o de que o termo inicial coincide com o momento da constituição da propriedade horizontal ou, a fortiori, com a construção do prédio (cfr. Acs. STJ de 28.09.99, 08.02.2000 citados).

No caso vertente, o tribunal seguiu a segunda tese. Os recorrentes entendem que se deve aplicar a tese A.

A quem assistirá razão?

A nosso ver, ao primeiro grau. Estamos, recorde-se, a falar de um espaço existente por baixo da fracção “A”, ocupada pelos AA., e ao lado da fracção “B” (cave).

Esse espaço tem uma área semelhante à da fracção “A”, sendo que o único acesso a tal espaço é feito pela fracção “A”, através de um alçapão e de umas escadas.

O mesmo espaço encontra-se murado e tapado por todos os lados, sem ventilação e janelas e com chão em terra, e nele foram colocadas pelos 2os Réus algumas lâmpadas, decerto para facilitar o manuseamento de bens e mercadorias aí dispostas pelos mesmos Réus.

Conforme se prova, os 2os Réus (reconvintes), por si, pelos seus antepossuidores e anteproprietários, têm vindo a usufruir do espaço referido, dele retirando todos os rendimentos e proveitos, o que têm feito há mais de 20 ou 40 anos.

Ora, não sendo o referido espaço uma parte necessariamente comum do edifício – ninguém o defende – trata-se então de saber se se deve presumir comum ou se tal presunção foi ilidida.

Os recorrentes defendem, no essencial, que só pelo título constitutivo da propriedade horizontal se pode verificar se certa parte do prédio está ou não afecta ao uso exclusivo de um condómino.

E é bem verdade que o espaço em discussão não se encontra identificado no título constitutivo da propriedade horizontal, na escritura de aquisição da fracção «A» nem registado a favor dos réus, na competente conservatória.

Porém, tal não significa que se esteja perante uma parte comum. Seguir o raciocínio dos recorrentes seria em última análise retirar qualquer efeito prático à natureza indiscutivelmente presuntiva das coisas a que se refere a alínea e) do n.º 2 do artigo 1421.º, como de resto é posto em destaque pela sentença impugnada.

Como se lê no Ac. do STJ, de 08.02.2000, acima citado, «se bastasse confirmar a afectação pelo teor do título, estar-se-ia a limitar o preceito aos casos em que não haveria qualquer dúvida, pelo que não faria sentido falar em presunção que por definição, quando ilidível, é algo que pode ser afastado, ao contrário do que ocorre com o teor do título.

(…) Se fosse intenção do legislador considerar comuns todas as partes cuja afectação ao «uso exclusivo de um dos condóminos» não constasse do título, «então não faria sentido o n.º 2 falar em presunção, bastaria o preceito dizer: «são comuns, salvo menção em contrário no título constitutivo da propriedade horizontal(…).

Quer isto dizer que, não constando do título a afectação de certa parte ao uso exclusivo de um condómino, resulta daí, em face do disposto pela norma em apreço, que essa parte se presume comum, sendo que tal presunção poderá ser ilidida».

Neste sentido se pronunciam, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, quando afirmam que a presunção de compropriedade deve «considerar-se afastada em relação às coisas que, exorbitando das necessariamente comuns, não possam servir senão, pela sua destinação objectiva, um dos condóminos» (Código Civil, anotado, III Vol., 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1984: 419), e Abílio Neto este quando refere que a afectação ao uso exclusivo de um dos condóminos pode dar-se não apenas por via directa, através de negócio jurídico unilateral (constituição da propriedade horizontal) ou bilateral (modificação do título constitutivo), mas também em decorrência de uma afectação material ou destinação objectiva (Manual da Propriedade Horizontal, 3.ª ed., Ediforum, Lisboa, 2006: 134-136).

Ora, poderá in casu falar-se de uma afectação material com as características conducentes a ilidir a presunção de o espaço em causa ser parte comum?

Cremos que a resposta só pode ser afirmativa.

Quedou probatoriamente demonstrado que:

- por baixo da fracção “A” e ao lado da fracção “B” (cave) existe um espaço com uma área semelhante à da fracção “A”;

- o único acesso ao mencionado espaço ou cave é feito pela fracção “A”, através de um alçapão e com escadas de acesso;

- o espaço referido tem como único acesso o alçapão e as escadas mencionadas no, tendo no seu interior diversos bens e mercadorias do comércio dos 2os Réus;

- o espaço referido encontra-se sem ventilação e janelas e com chão em terra;

- o espaço referido foi sempre utilizado pelos proprietários da fracção “A”, a saber, a actual 1ª Ré (sendo tal uso exercido actualmente pelos 2os Réus enquanto locatários), bem como pelos anteriores proprietários da mesma;

- os 2os Réus electrificaram e colocaram diversas lâmpadas no espaço mencionado;

- quando a 1ª Ré adquiriu a fracção “A” já dispunha a mesma do alçapão e das escadas referidas;

- há mais de 40 anos que o alçapão e as escadas de acesso ao espaço mencionado já existem na fracção “A”;

- o referido espaço encontra-se murado e tapado por todos os lados, tendo unicamente acesso pelas escadas que dão para o estabelecimento dos 2os Réus;

- é um espaço dotado de energia eléctrica e que tem servido sempre como armazém para os produtos de venda no estabelecimento dos 2os Réus;

- os 2os Réus (reconvintes), por si, pelos seus antepossuidores e anteproprietários, têm vindo a usufruir do espaço referido, dele retirando todos os rendimentos e proveitos, o que têm feito há mais de 20 ou 40 anos;

- a escritura de constituição da propriedade horizontal data de dia 28 de Outubro de 1994.

Depois deste elenco, à luz da orientação que perfilhamos, não se pode deixar de concluir que houve uma afectação material e objectiva do ajuizado espaço à fracção “A”, e que, por conseguinte, foi afastada a presunção de comunhão contida no art. 1421º, nº 2, alínea e)”

 

11. A afectação material a que alude a referida alínea e) do n.º2 do artigo 1421.º do Código Civil  é “ uma afectação material - uma destinação objectiva - existente à data da constituição do condomínio” ( ver Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol II. 2ª edição, pág 423).

 

12. Se essa destinação objectiva não ocorre à data da constitituição do condomínio, dir-se-á que está “ consolidada” a cisão ao nível do condomínio entre partes comuns e as partes correspondentes às várias fracções.

 

13. Admitindo que uma destinação objectiva possa ocorrer em momento ulterior, independentemente do  acordo de todos os condóminos expresso em alteração do título constitutivo, ela relevará  para usucapião se houver inversão do título, mas não relevando o mero uso da coisa comum, pois, como prescreve, o artigo 1406.º/2 do Código Civil “ o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva  ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”; importa acentuar que não se afigura possível a aquisição por usucapião  de uma parte imperativamente comum, pois “ esta pressupõe uma posse exclusiva, isto é, incompatível com a possibilidade de gozo comum. Pela sua própria natureza, as coisas imperativamente comuns são insusceptíveis de aproprieação individual” (Sandra Passinhas, “ Partes Comuns na Propriedade Horizontal”, Ab Uno Ad Omnes, 1998, pág 641/660, designadamente páginas 648/654).

 

14. É fácil constatar que das assinaladas orientações, havidas por divergentes, a que apenas atribuía relevo à afectação do uso exclusivo de um dos condóminos de modo a excluir a coisa da parte comum desde que tal afectação constasse do título constitutivo, pretendia um critério susceptível de prevenir conflitos, permitindo uma mais equitativa repartição das despesas por saber antecipadamente cada condómino o que teria de pagar pela conservação e manutenção do prédio; tal critério, no entanto,  também excluía , como já se salientou, o alcance útil da presunção constante do artigo 1421.º/2 do Código Civil, levando a que fosse escamoteada uma realidade, a afectação objectiva ocorrida no passado, prolongada no tempo, valorizada as mais das vezes pelo adquirente  da fracção que não se representara a falta de correspondência entre essa realidade e o título constitutivo de propriedade horizontal.

 

15. Seja como for não é no plano das representações subjectivas que o critério distintivo deve operar, mas tão somente, atento o  estatuto real da propriedade horizontal, em função da prescrição constante das próprias regras que o tipificam.

 

16. Ora, à luz da aludida interpretação do artigo 1421.º/2, alínea e), continua a assegurar-se um critério distintivo válido e operante fundado no momento da constituição do condomínio por se considerar relevante a afectação objectiva ao uso exclusivo de um dos condóminos existente à data da constituição do condomínio, excluindo-se, portanto, do seu âmbito os casos em que a afectação se verifica ulteriormente, não deixando, assim, de subsistir um critério objectivo, impondo-se apenas averiguar se ocorria ou não uma afectação material objectiva anterior cujo ónus incumbe a quem pretende que seja reconhecido o seu exclusivo domínio sobre a coisa (artigo 342.º/1 do Código Civil).

 

17. Esta é a orientação que também promana dos Acs. do S.T.J. de 17-6-1993 (Araújo Ribeiro) C.J.,2, pág 158, de  14-10-1997 (Torres Paulo) C.J.,3, pág 80 , de 28-9-1999 (Machado Soares) B.M.J. 489-358, de 8-2-2000 (Garcia Marques) C.J.,1, 67. E, quanto a outros, a orientação contrária ou se funda numa realidade de facto diversa, tal o caso do Ac. do S.T.J. de 9-5-1991 (Tato Marinho), B.M.J. 407-545 em que  a afectação ocorreu depois de constituída propriedade horizontal, ou o caso do Ac. do S.T.J. de 31-10-1990 (Figueiredo de Sousa) B.M.J. 400-646 em que o proprietário construiu no edifício que depois constituiu em propriedade horizontal dependências em águas furtadas que não integraram o título como fracções autónomas nem tão pouco ficaram afectas ao uso exclusivo dos condóminos.

 

18. Apenas no caso do Ac. do S.T.J. de 23-3-1982 (Roseira de Figueiredo) B.M.J., 315-270 se tinha em vista um logradouro delimitado anteriormente à constituição do título, mas não se definindo, porém, se, com tal delimitação, estavámos diante de uma destinação objectiva na medida em que parece ter-se considerado que o facto de “ os condóminos do R/C estarem a usufruir uma parte separada do logradouro não é, por si só, suficiente para afastar a presunção do artigo 1421.,n.º2, alínea e) do Código Civil”, não sendo esta, aliás, a questão fundamental, a ratio decidendi,  porque estava aí em causa a demolição de construções que traduziram inovações, demolição que sempre se imporia, como se diz no aresto, por não serem lícitas, fosse ou não fosse a parcela do logradouro parte comum.

 

19. Cumpre referir, por último, que os pontos conclusivos da minuta de recurso, pontos 5, 6, 7 não têm expressão nos factos provados, isto independentemente da sua irrelevância para a questão a decidir; quanto à utilização do referido espaço, ela fica abrangida pelo destino da fracção em que se integra, razão por que não se acompanha a conclusão 4; seria, sem dúvida, o valor da fracção maior por maior ser a sua área e, naturalmente, maior a permilagem: uma vez aceite pelos demais conóminos que o referido espaço não é comum, seria abusivo que os AA se opusessem, ou omitissem a cooperação necessária, para que sejam praticados os actos necessários para que a fracção comparticipe nas despesas comuns na medida da sua efectiva área. Esta dificuldade é consequência do reconhecimento de que o referido espaço está afectado ao uso exclusivo de um dos condóminos, mas não é condição de não reconhecimento dessa afectação, pois isso traduzir-se-ia num contrasenso lógico: não releva igualmente o ponto 3 das conclusões. Os pontos 1 e 2 já foram já tratados anteriormente.

 

Concluindo:

 

I- A presunção a que alude o artigo 1421.º/2 do Código Civil é uma presunção juris tantum; por isso, pode o condómino interessado demonstrar - e dele é o ónus da prova (artigo 342.º/1 do Código Civil)- que um determinado espaço está afectado ao uso exclusivo da sua fracção (artigo 1421.º/2, alínea e) do Código Civil).

II- A afectação que se tem aqui em vista é uma afectação material - uma destinação objectiva - existente à data da constituição do condomínio.

III- O reconhecimento dessa afectação material, que leva ao afastamento da aludida presunção, pode verificar-se ainda que o espaço em litígio não se encontre identificado no título constitutivo da propriedade horizontal, na escritura de aquisição da fracção  nem registado na competente conservatória.

IV- Tal o caso da cave existente sob fracção em que o único acesso ao mencionado espaço ou cave, que não dispõe de ventilação e janelas e com chão em terra, é feito pela fracção, através de um alçapão e com escadas de acesso, espaço esse que foi sempre utilizado pelos proprietários da fracção bem como pelos anteriores proprietários da mesma, comprovando-se que há mais de 40 anos que já existem o alçapão e as escadas de acesso ao mencionado espaço.

 

Decisão: nega-se a revista

 

Custas pelo recorrente

 

Lisboa, 19 de Maio de 2009

 

Salazar Casanova (Relator)

 Azevedo Ramos

 Silva Salazar