Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
065497
Nº Convencional: JSTJ00004089
Relator: ARALA CHAVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO
ACÇÃO PENAL
CONDENAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
TRIBUNAL COMPETENTE
CASO JULGADO PENAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ197601280654971
Data do Acordão: 01/28/1976
Votação: MAIORIA COM 2 VOT VENC
Referência de Publicação: DR IS DE 1976/03/11, PÁG. 499 A 502 - BMJ Nº 253 ANO 1976 PÁG. 109
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA PLENO
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
DIR PROC CIV. DIR PROC PENAL.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 288 ARTIGO 497 N2 ARTIGO 660 ARTIGO 766 N3 ARTIGO 768 N3.
CPC39 ARTIGO 501 PARUNICO.
CPP29 ARTIGO 2 ARTIGO 29 ARTIGO 30 PAR2 ARTIGO 32 PAR3 ARTIGO 33 ARTIGO 34 PAR2 PAR3
ARTIGO 450 N5.
CE54 ARTIGO 67.
D DE 1910/11/18 ARTIGO 10.
CP886 ARTIGO 75 N3.
CCIV867 ARTIGO 2373.
CCIV66 ARTIGO 483 ARTIGO 494 ARTIGO 496.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1974/05/08 IN BMJ N237 PAG201.
ACÓRDÃO STJ DE 1971/10/29 IN BMJ N210 PAG131.
ACÓRDÃO STJ DE 1971/05/14 IN BMJ N207 PAG155.
ACÓRDÃO STJ DE 1971/10/15 IN BMJ N210 PAG116.
Sumário :
I - O tribunal civil e incompetente em razão da materia para a acção de indemnização proposta contra o condutor, e simultaneamente proprietario do veiculo, por danos resultantes de acidente de viação, quando na acção penal contra ele movida tenha sido proferida condenação a indemnizar.

II - A decisão penal constitui caso julgado, quanto a indemnização arbitrada, entre o condutor, ainda que simultaneamente proprietario do veiculo, e o lesado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, B e a "Sociedade Portuguesa de Seguros" recorreram para o tribunal pleno do acordão deste Supremo Tribunal, tirado em reunião conjunta das suas secções, de 8 de Maio de 1974, no processo n. 64651, por o acharem em contradição sobre as mesmas questões de direito com o acordão, tambem deste Supremo Tribunal e tirado em reunião conjunta das suas secções, de 29 de Outubro de 1971, publicado no Boletim, n. 210, pagina 131.
No acordão a que alude o artigo 766 do Codigo de Processo Civil, sobre a questão preliminar, considerou este Supremo Tribunal haver identidade nas situações de facto apreciadas nos dois arestos e caracterizada como segue: o condutor e simultaneamente proprietario do veiculo conduzido foi condenado na acção penal em indemnização, não houve pedido civel conjuntamente formulado nessa acção e consequentemente a Seguradora não foi nela havida como parte. E, entrando na apreciação dos dois julgados, concluiu serem contraditorios e tirados no dominio da mesma jurisdição: a) Porque num - o de 29 de Outubro de 1971 - se decidiu ser o tribunal civel incompetente em razão da materia para conhecer do pedido formulado contra o condutor e proprietario do veiculo causador do acidente, enquanto que no outro - o recorrido - se decidiu que o Tribunal civel e competente em razão da materia para conhecer, em acção autonoma, do pedido formulado contra o condutor e proprietario do veiculo causador do acidente; b) Porque no primeiro se decidiu que a sentença penal constituiu caso julgado entre o lesado e aquele reu, enquanto que no segundo se decidiu que a sentença penal não constitui, quanto a indemnização nela arbitrada, caso julgado entre os dois; e c) Porque no primeiro se decidiu que a Seguradora não pode ser condenada em indemnização de montante diferente daquele em que foi condenado o seu segurado, e portanto superior, devendo esse montante considerar-se fixado desde que, pelo menos, a Seguradora aceite paga-lo, ao passo que no segundo se decidiu que tambem a Seguradora pode vir a ser condenada na acção civel em montante diverso daquele que foi fixado na acção penal, aquele montante em que nessa acção vier a ser condenado o seu segurado.
Apreciado o pedido de aclaração do acordão tirado sobre a questão preliminar, formulado pela recorrida, e produzidas alegações pelas partes, teve vista o Ministerio Publico.
Pronunciou-se o Excelentissimo Senhor Procurador da Republica nos seguintes termos: a) Que se verifica efectivamente contradição de julgados quanto aos dois primeiros pontos: - o de saber se, arbitrada ao ofendido no processo penal determinada quantia como "reparação de perdas e danos", por virtude do crime resultante de acidente de viação, se verifica a incompetencia em razão da materia do tribunal civil para conhecer da acção de indemnização posteriormente intentada contra o condutor do veiculo causador, agora na qualidade de seu proprietario, e - segundo - o de determinar se a condenação definitiva proferida na acção penal constitui caso julgado quanto a "reparação" arbitrada, para o condutor do veiculo, ainda que ele seja demandado na acção de indemnização como seu proprietario; e b) Que não existe identica contradição quanto a ultima questão, pois, se e certo que o acordão de 8 de Maio de 1974 declarou expressamente não constituir a condenação do condutor caso julgado para a Companhia de Seguros sobre o montante da indemnização, o acordão de 29 de Outubro de 1971 não tomou posição no problema, baseando, sim, a condenação da Seguradora na natureza do contrato que a liga ao segurado-proprietario.
Quanto aos pontos de divergencia, pronunciou-se tambem o Excelentissimo Procurador da Republica, em termos que serão apreciados na discussão.
Cumpre apreciar e decidir:
I - Nos termos do disposto no n. 3 do artigo 766 do Codigo de Processo Civil, o acordão que reconheça a existencia da oposição não impede que o tribunal pleno, ao apreciar o recurso, decida em sentido contrario.
Importa, portanto, começar por analisar de novo a questão preliminar.
Não pode constituir motivo de fundada duvida a existencia de contradição dos julgados quanto aos dois primeiros pontos, decididos no dominio da mesma legislação.
Com efeito, o acordão de 29 de Outubro de 1971 decidiu ser o tribunal civel incompetente em razão da materia para conhecer do pedido formulado contra o condutor e proprietario do veiculo causador do acidente, enquanto que o acordão recorrido decidiu, pelo contrario, que o tribunal civel e competente em razão da materia para, em acção autonoma, conhecer do pedido formulado contra o condutor e proprietario do veiculo causador do acidente; e decidiu o acordão de 29 Outubro 71 que a decisão penal, quanto a indemnização arbitrada, constitui caso julgado entre o lesado e aquele reu, enquanto que o acordão recorrido decidiu que a sentença penal não constitui caso julgado entre o lesado e aquele mesmo reu.
Menos liquida e a questão relativamente ao terceiro ponto.
Quanto a atribuir a decisão penal eficacia de caso julgado contra a Seguradora, o acordão de 29 de Outubro de 1971 não tomou aberta posição. Escreveu-se nele que, "embora, contra o entendimento da Revista dos Tribunais (ano 74, pag. 27), se possa entender que tal condenação não constitui caso julgado para a seguradora, o certo e que esta, por virtude do contrato de seguro... não pode ser condenada em montante diferente, e, portanto, superior ao fixado para aquele".
No acordão recorrido tambem se aceita que a responsabilidade da Seguradora se mede pela do segurado:
"o segurador e demandado pelo pagamento da quantia coberta pela apolice para indemnização ao lesado, sendo o acto do segurado e o consequente prejuizo o risco que ele assumiu".
A diferença esta em que no acordão de 29 de Outubro de 1971, pressupondo o caso julgado formado pela decisão penal entre o segurado e o lesado, se entendeu que não poderia discutir-se novamente, em acção civel, a responsabilidade da Seguradora, pelo menos quando esta aceite tal responsabilidade, e no acordão recorrido, pressupondo, diversamente, que a decisão penal não constitui caso julgado entre o segurado (condutor e proprietario do veiculo causador do acidente) e o lesado, entendeu-se que a responsabilidade da Seguradora pode ser livremente discutida na acção civel autonoma.
Assim, a divergencia entre os dois arestos, no que concerne a este terceiro ponto, não estara no decidido, mas em certo pressuposto. E o pressuposto em causa - que e o de saber se a sentença penal constitui caso julgado entre o segurado (condutor e proprietario do veiculo causador do acidente) e o lesado - constitui o tema do segundo ponto em que a contradição dos arestos se verifica.
Resumindo e concluindo, decide-se que os acordãos de 29 de Outubro de 1971 e recorrido decidiram, no dominio da mesma legislação, opostamente apenas os seguintes pontos:
1 - Se o tribunal civel e competente em razão da materia para, em acção civel autonoma, conhecer do pedido formulado contra o condutor e proprietario do veiculo causador do acidente, no caso de haver ou ter havido contra este acção penal;
2 - Se, quanto a indemnização arbitrada, a sentença penal constitui caso julgado entre o condutor, simultaneamente proprietario do veiculo, e o lesado.
2. Nos termos do artigo 29 do Codigo de Processo Penal, o pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punivel, por que sejam responsaveis os seus agentes, deve fazer-se no processo em que correr a acção penal e so podera ser feito separadamente em acção intentada nos tribunais civis nos casos previstos neste codigo.
Estes casos são os do paragrafo 2 do artigo 30 - processo penal por infracção que dependa de participação ou acusação particular sem andamento por seis meses ou mais, sem culpa da parte acusadora, ou processo penal que tenha sido arquivado ou em que o reu tenha sido absolvido - e do artigo 33, que respeita a extinção da acção penal antes do julgamento.
E pelos artigos 29 a 34 do Codigo de Processo Penal que o artigo 67 do Codigo da Estrada manda regular o exercicio da acção civel em conjunto com a acção penal, o que dissipa qualquer possivel duvida sobre a actualidade daqueles preceitos.
Ora, Luis Osorio (Codigo de Processo Penal, volume I, pagina 323) considerou que a regra do artigo 29 tinha o precedente do artigo 10 do Decreto de 18 de Novembro de 1910. E acrescentou: "Desde que o juiz penal no processo crime devia sempre arbitrar ao ofendido a indemnização por perdas e danos, so excepcionalmente ao lesado devia ser permitido recorrer a acção civil".
Noutro passo (a pagina 329) escreveu o mesmo autor: " os casos em que se pode recorrer ao processo civil são determinados neste Codigo, e o presente artigo e muito claro com o emprego do adverbio "so", não sendo possivel ampliar as excepções".
Pode não se subscrever o absolutismo desta afirmação.
Certos casos, como os referidos no parecer do Ministerio Publico, apesar de não contemplados nas excepções consignadas no Codigo de Processo Penal, deverão ter-se por subtraidos ao rigor da regra legal, pois, na verdade, não se poderia compreender que a decisão penal esgotasse a reparação dos danos se estes ainda não existiam ou não eram conhecidos na oportunidade da acusação ou do julgamento penal.
Mas, com reconhecer que alguns desvios são de admitir ao absolutismo da regra do artigo 29 do Codigo de Processo Penal, para alem dos admitidos no proprio texto da lei, não fica justificado obnubilar o comando que deste preceito resulta e ter como dele subtraidos casos em que os pressupostos coincidem com os que enformam aquele mesmo comando.
Consagrou-se no artigo 29 o principio da interdependencia ou adesão das acções penal e civil, mas com vincada dependencia da acção civil a penal.
Importa, para se respeitar minimamente o sentido expresso na lei, ter presente que a regra e a da competencia do foro criminal para a reparação civil emergente de facto criminoso, como projecção do principio da suficiencia do processo penal, expresso no artigo 2 do mesmo Codigo. No foro criminal se arbitrara ao lesado indemnização, conforme o disposto nos artigos 34 e 450, n. 5, assegurando-se aos ofendidos a alternativa de requererem que a indemnização se liquide em execução de sentença, nos termos do paragrafo 3 do referido artigo 34, e outro termo de alternativa estara no exercicio de acção civil conjunta, permitida pelo artigo 67 do Codigo da Estrada.

Ora, nem no caso do acordão de 29 de Outubro de 1971, nem no caso do acordão recorrido, se verificam pressupostos que justifiquem, excepcionalmente, subtrai-los ao comando do artigo 29 do Codigo de Processo Penal, nomeadamente a inexistencia, na altura, de danos, ou o seu desconhecimento.
O que sucedeu, como na maioria das hipoteses afins, foi que os lesados negligenciaram, nos dois casos, a defesa adequada das suas pretensões no foro criminal, o que não justifica a derrogação da regra de competencia tão vincadamente expressa no artigo 29 do Codigo de Processo Penal.
O acordão recorrido, abonando-se com a autoridade do Professor Figueiredo Dias (conforme estudo publicado no Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, ano XVI, pagina 105) admitiu, para contrariar o anterior assento, que a indemnização arbitrada como consequencia de um facto criminoso constitui efeito penal da condenação, não tendo que coincidir, por isso, com a indemnização civil.
Mas, com o devido respeito, não se reconhece que no nosso direito tenha bom cabimento a distinção.
O artigo 34 do Codigo de Processo Penal alude expressamente a atribuição de uma quantia "como reparação de perdas e danos", o artigo 450, n. 5, do mesmo diploma refere igualmente a "indemnização por perdas e danos", e o artigo 75 do Codigo Penal, tratando dos efeitos não penais da condenação, alude, no n. 3, a obrigação
"de indemnizar o ofendido do dano causado".
Não se afigura, portanto, fundado atribuir a indemnização fixada na sentença penal, com tal objectivo, uma natureza ou uma finalidade diversas das que caracterizam a indemnização atribuida pela sentença civel para, nos termos do artigo 483 do Codigo Civil, indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação do seu direito.
Alias, a terem tais indemnizações diferente natureza deveria logicamente concluir-se que a indemnização fixada na sentença penal e independente e autonoma relativamente a indemnização atribuida na sentença civel, quando na realidade, sem qualquer duvida, o juiz penal não atribuira indemnização quando houver pedido formulado em acção civel, e se houver indemnização paga por força da sentença penal descontar-se-ia certamente na quantia que fosse atribuida no foro civel, se esta tivesse maior montante.
No sentido proposto e a doutrina nacional mais expressiva, so ultimamente contrariada pelos Professores Figueiredo Dias e Castanheira Neves (conferi, por necessidade de abreviar, as anotações do artigo 34 do Codigo de Processo Penal do Dr. Maia Gonçalves).
Não pode constituir argumento adjuvante que o reu condutor e simultaneamente proprietario do veiculo causador dos danos tenha no processo penal a qualidade de infractor e tenha no processo civil a qualidade de proprietario responsavel pelo risco. A demonstração esta convincentemente feita no parecer do Ministerio Publico, e sera objecto de discussão a proposito da questão do caso julgado.
Todavia, no mesmo bem elaborado parecer sustenta-se que o recurso ao tribunal civil não estara vedado, mas por outras razões:
1 - Porque o artigo 32, paragrafo 3, do Codigo de Processo Penal manda que as provas relativas a indemnização sejam oferecidas nos mesmos prazos em que o devam ser na acção penal, e pode acontecer que o lesado não disponha dessas provas quando o Ministerio Publico deduza acusação, e ate que não tenha conhecimento da dedução da acusação;
2 - Porque enquanto o direito de indemnização não prescreva não deve coarctar-se ao lesado a possibilidade de formular contra o responsavel o respectivo pedido, e para este não pode deixar de considerar-se competente o tribunal civil.
Cre-se que estas razões podem eventualmente ter valia para o direito a constituir, mas que não são eficazes em face do direito de que se dispõe.
Efectivamente, como antes se referiu, a nossa lei adoptou uma vincada expressão de dependencia da acção civil em relação a acção penal. A regulamentação estabelecida não se compadece com as considerações de mera razoabilidade que enformam os discutidos argumentos.
Alias, a questão da disponibilidade das provas põe-se igualmente para a acção penal e para a acção civil, em ambas sendo igualmente interessado o lesado, no caso de culpa do reu (se numa se apurara o dano, na outra apurar-se-a o facto causal).
Por outro lado, a lei que estabelece o prazo prescricional fixa o tempo maximo abstracto em que o direito pode ser exercido, e esse prazo cedera se alguma circunstancia o impuser: para ser indemnizado no caso de danos fundados em factos que são objecto da acção penal, exige-se do lesado um dever de diligencia que pode indirectamente sacrificar o prazo de prescrição, e talvez por isso se imponha ao juiz que fixe indemnização ainda que o lesado a não tenha requerido.
Para a validade do argumento seria essencial demonstrar
- e nem sequer se tentou - que o decurso do prazo prescricional tem para o criterio legal maior importancia do que a dependencia da acção civil em relação a penal ou do que o ressarcimento do lesado na acção penal.
Finalmente, dir-se-ia que não parece ter bom fundamento supor criterios divergentes para atribuir indemnização na acção penal e na acção civil.
O objectivo da indemnização e ressarcir danos e tem que estar presente, em termos identicos, ao juiz penal e ao juiz civil.
De resto, o paragrafo 2 do artigo 34 do Codigo de Processo Penal manda observar prudente arbitrio e atender a gravidade da infracção, ao dano moral e material por ela causado, a situação economica e a condição social do ofendido e do infractor, identicos sendo os factores a que a lei civil, nos artigos 483 e seguintes, manda atender.
Não se reconhece que deva haver, em materia de indemnização, um criterio penal e um criterio civil, distintos porque o primeiro deve considerar em primeira linha a gravidade da infracção. A circunstancia de a gravidade da infracção figurar em primeiro lugar na enumeração feita no paragrafo 2 do artigo 34 do Codigo de Processo Penal não assume significado especial que do texto possa inferir-se, e bem pode tomar-se como alusão ao grau de culpa, tambem atendivel no direito civil, e aos danos produzidos.
Em tais termos, entende-se que, havendo acção penal, o tribunal civel e absolutamente incompetente para conhecer do pedido de indemnização formulado contra o condutor que seja simultaneamente proprietario do veiculo causador do acidente.
3 - O caso julgado constituido pela sentença penal que fixou indemnização ao lesado não foi reconhecido no acordão recorrido, essencialmente porque a indemnização teria sido fixada no processo criminal em função do ilicito penal ou da culpa e sera fixada no processo civel em função do risco pelo condutor na sua qualidade de proprietario, e assim porque "os interesses causais em apreciação são diferentes nas duas hipoteses e a interpretação não pode deixar de dar satisfação a todos esses interesses que determinaram concretamente o comando juridico a observar".
Ora, afigura-se que a distinção entre o condutor-infractor e o condutor-proprietario não tem bom fundamento.
Ja no acordão de 29 de Outubro de 1971 se exarou, com toda a objectividade, que "tal alegação e inconsistente pois que a distinção, para efeito de responsabilidade, entre as duas qualidades - que a Revista dos Tribunais (ano 77, pagina 251) classificou de subtileza, por a qualidade juridica do condutor e do dono do automovel ser a mesma nos dois processos, visto em ambos lhe ser imputada a responsabilidade pelo acidente, assim coincidindo a identidade fisica com a juridica - não tem apoio na lei. Com efeito, no caso de culpa do condutor, que e o vertente, embora a lei estabeleça a responsabilidade dele e do proprietario pelo pagamento da indemnização devida ao lesado, tambem confere ao proprietario o direito de regresso pelo total dos danos contra aquele, o que significa ser subsidiaria ou de garantia a responsabilidade solidaria do proprietario, cujo fim e assegurar ao lesado a efectivação do seu direito de indemnização, visto o condutor poder não ter uma situação patrimonial que permita tal efectivação (Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 94, pagina 313)".
Justificadamente, tambem o excelentissimo representante do Ministerio Publico neste Supremo Tribunal repudiou a tese do acordão recorrido, observando que, sendo o condutor do veiculo e o seu proprietario uma e a mesma pessoa, "a responsabilidade do proprietario - precisamente porque ele e simultaneamente o condutor - e uma responsabilidade por facto ilicito e não uma responsabilidade pelo risco. E, porque os elementos a atender na fixação da indemnização são então coincidentes (Codigo Civil, artigos 494 e 496), não se ve que a mesma pessoa possa ser condenada em indemnizações diferentes".
Na verdade, infundado e admitir conclusão diversa, com base em especulação juridica que obnubila as realidades. E esquecendo tambem que a causa de pedir nas acções por acidente de viação e o complexo constituido pelo dano e pelos factos constitutivos da responsabilidade, sejam a culpa ou o risco (confere Professor Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2. edição, volume I, pagina 562,
Professor Vaz Serra, na Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 103, pagina 511, e os acordãos deste Supremo Tribunal, de 14 de Maio de 1971, no Boletim, n. 207, pagina 155, e de 15 de Outubro de 1971, no Boletim n. 210, pagina 116).
Para o Excelentissimo Senhor Procurador da Republica havera ou não caso julgado constituido pela sentença penal consoante tenha ou não sido formulado na acção penal o pedido de indemnização. Se não foi formulado um pedido, não havera a repetição de causas requerida pelo artigo
497 do Codigo de Processo Civil.
Não parece, todavia, que a tese esteja de acordo com os principios enformadores do nosso Codigo de Processo Penal, nos preceitos interpretandos.
Com efeito, seguramente por influencia da escola positiva, pressupõe-se que a reparação do dano causado ao lesado importa tambem, a sociedade, importa ao Estado, como meio de defesa social e de reposição do seu equilibrio. E dai que, estabelecido o principio da suficiencia do processo penal, conforme o disposto no artigo 2 daquele Codigo, se pretenda esgotar em tal processo a questão da reparação ao lesado - com a colaboração deste, se for diligente, ou por acção publica (atente-se, a proposito, na vincada expressão conferida ao artigo 29 pelo adverbio "so"). Muitas são, alias, as razões que militam para a preferencia quase absoluta dada ao foro criminal " alem de serem as que sempre influiram no criterio do nosso legislador" (conforme o artigo 2 373 do Codigo Civil de 1867 e o Comentario de Cunha Gonçalves, volume XII, paginas 644 e seguintes).

A formulação de um pedido pelo lesado não constitui, assim, pressuposto indispensavel de caracterização da repetição de causas. Bem podera ate entender-se que a formulação da acusação em processo penal, constituindo pedido de condenação do infractor, leva implicito o pedido de indemnização para o lesado, ja que a lei sempre a esta impõe em consequencia daquela.
De todo o modo, o que a excepção do caso julgado tem por fim e "evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior", como dispõe o artigo 497, n. 2, do Codigo de Processo Civil. E este e que constituira o escopo ou criterio que permitira a resolução das duvidas, como dispunha o paragrafo unico do artigo 501 do Codigo de Processo Civil de 1939 e tera de continuar a entender-se.
Ora, desde que o tribunal penal tem o dever de atribuir indemnização que repare os danos sofridos pelo lesado, necessariamente lhe compete investigar a extensão desses danos, discuti-los e fixar a reparação segundo os criterios legais.
A coincidencia, no fundamental, destes criterios (em processo penal e em processo civil), ja antes apontada, e bem assim da causa de pedir e do pedido não pode deixar de traduzir-se, para a acção civel, numa repetição da investigação, da discussão e da decisão, com a consequencia de repetir ou de contradizer a decisão proferida na acção penal.
Havera então uma verdadeira repetição de causas.
Nesta ordem de ideias se pronuncia tambem o Dr. Pinheiro Farinha (Codigo de Processo Penal, 2. edição, pagina 60) ao definir o regime legal nos seguintes termos: a indemnização devida pelo condutor ha-de ser fixada no processo crime quando ai for condenado. Tal indemnização e inalteravel quanto a ele em qualquer causa posterior, a que não pode ser chamado como parte.
Conclui-se, pelo exposto, que a sentença penal constitui caso julgado, quanto ao montante da indemnização, contra o lesado, tenha ou não formulado pedido civel, e contra o condutor, ainda que ele seja tambem proprietario do veiculo causador do acidente.
4 - Considerando o disposto nos artigos 660 e 288 do Codigo de Processo Civil, poderia concluir-se que, optando pela tese da incompetencia absoluta do tribunal civel, não haveria ja lugar a conhecer da excepção peremptoria do caso julgado.
Porem, o artigo 768, n. 3, do mesmo Codigo impõe a decisão do conflito de jurisprudencia " ainda que a resolução do conflito não tenha utilidade alguma para o caso concreto em litigio", o que se entende como prevalencia do objectivo de por termo ao conflito de jurisprudencia sobre o da resolução do caso concreto.
Acresce ser de certo modo fundado no caso julgado constituido pela sentença penal que se conclui pela incompetencia absoluta do tribunal civel, ou e tambem por esse fundamento que assim se conclui.
São estas as razões determinantes da discussão e da resolução dos dois temas.
5 - Nestes termos, revogando, em parte, o acordão recorrido, julgam o tribunal comum incompetente em razão da materia, absolvem o reu A da instancia e tiram o seguinte "assento":
"O tribunal civel e incompetente em razão da materia para a acção de indemnização proposta contra o condutor, e simultaneamente proprietario do veiculo, por danos resultantes de acidente de viação, quando na acção penal contra ele movida tenha sido proferida condenação a indemnizar.
A decisão penal constitui caso julgado, quanto a indemnização arbitrada, entre o condutor, ainda que simultaneamente proprietario do veiculo, e o lesado".
Custas pelos recorrentes, 1/3, e pela recorrida 2/3.

Lisboa, 28 de Janeiro de 1976

Eduardo Arala Chaves (Relator) - Daniel Ferreira - Jose Garcia da Fonseca - Jose Montenegro - Amadeu de Carvalho
- Eduardo Correia Guedes - Jose Antonio Fernandes - João Moura - Ferreira da Costa - Miguel Caeiro - Avelino Costa Ferreira Junior - Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos (Vencido. Votei que se firmasse assento no sentido em que decidiu o acordão de 8 de Maio de 1974 (Boletim, n. 237, pagina 201). Entendo que e diferente a qualidade juridica em que e chamada a mesma pessoa, como autor de um ilicito penal ou como criadora do risco da circulação de um veiculo automovel, sendo diferentes as fontes de que emergem o direito as respectivas indemnizações (culpa e risco); afiguram-se-me, tambem, diversos os objectos da acção penal e o da acção civel, finalmente, creio que a solução que defendemos asseguraria melhor o interesse dos lesados e evitaria a grave duvida que a doutrina agora imposta deixa em aberto, relativamente a exigencia do montante da indemnização a companhia seguradora, contra a qual não se ve possibilidade, nestes casos, de executar a sentença penal).
Oliveira Carvalho (Vencido pelas razões constantes do voto que antecede).