Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97A791
Nº Convencional: JSTJ00035543
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
EXAME À ESCRITA
REQUISITOS
RECUSA DE EXIBIÇÃO DE ESCRITA COMERCIAL
DIREITOS DOS SÓCIOS
DIREITO À INFORMAÇÃO
QUOTA SOCIAL
REGIME DE BENS DO CASAMENTO
COMUNICABILIDADE
Nº do Documento: SJ199803310007911
Data do Acordão: 03/31/1998
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 838/96
Data: 03/20/1997
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS. DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 1409 N2 ARTIGO 1410 ARTIGO 1497 N1.
CSC86 ARTIGO 8 N2 ARTIGO 21 N1 C ARTIGO 181 ARTIGO 214 N4 ARTIGO 225 ARTIGO 228 ARTIGO 288 ARTIGO 293.
CCIV66 ARTIGO 1722 N1 C ARTIGO 1726 N1 ARTIGO 1728 N1 ARTIGO 1733 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RP DE 1978/01/24 IN CJ ANOIII TI PAG135.
ACÓRDÃO STJ DE 1990/07/03 IN BMJ N399 PAG519.
ACÓRDÃO RL DE 1990/04/26 IN CJ ANOXV TII PAG166.
ACÓRDÃO RP DE 1990/09/25 IN CJ ANOXV TIV PAG220.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/04/23 IN CJSTJ ANOI TII PAG672.
Sumário : I - É exigida à requerente do exame da escrituração comercial e dos documentos concernentes às operações comerciais, a prova inicial da sua qualidade de "sócio", devendo acrescer os seguintes requisitos adicionais: ter-lhe sido recusado o exame e ter o direito de proceder a esse exame.
II - A solução que sacrifique a estrita legalidade à solução que se julgue, em cada caso, mais conveniente e oportuna, não pode dispensar a prova da qualidade de sócio e do requisito relativo à "recusa".
III - O direito à informação, sendo qualificado como um direito extra-patrimonial do sócio, exerce-se contra a sociedade, posto que seja o gerente quem, dentro da sociedade, deve prestar a informação.
IV - O pedido de informação à sociedade não obriga esta ao seu cumprimento se não for assinado pelo sócio requerente cuja assinatura possa ser identificável pelo destinatário.
V - A "quota social" é sobretudo um direito de participação numa sociedade, não competindo ao cônjuge do sócio mais direitos do que se reconhecem ao associado à quota.
VI - A "quota social, nos regimes de bens do casamento, só é comunicável quanto ao seu valor económico.
VII - O artigo 8º do Código das Sociedades Comerciais é uma norma interpretativa e, portanto, de aplicação retroactiva.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
A propôs acção especial de jurisdição voluntária de exame de escrituração e documentos, a que se referem os artigos 1497º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), contra B, pedindo que se ordene que a Ré lhe faculte para exame toda a sua escrituração, livros e documentos relativos aos anos de 1989 a 1994.
Alega para tanto que é sócia da Ré, em virtude do seu casamento com C, o qual foi dissolvido por divórcio, que, estando a correr inventário para partilha dos bens do casal, necessita de saber o valor real da quota que possui na dita Ré e que lhe foram negadas pelo sócio gerente da sociedade, seu ex-marido, as informações pretendidas.
Foi proferida sentença na qual se julgou a acção improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido.
Tendo sido negado provimento à apelação interposta pela A., esta, inconformada, trouxe a presente revista, que encerrou com as seguintes conclusões:

1º - O processo especial em causa é de jurisdição voluntária e, portanto, rege-se por critérios de equidade e não de legalidade estrita.
2º - Ora, é de toda a Justiça, de toda a Ética, que a recorrente possa examinar toda a escrituração, livros e documentos da Sociedade B, para apurar o valor real da quota e, assim, ficar capaz de defender os seus direitos e legítimos interesses no inventário facultativo para partilha dos bens do casal que constituiu com o seu ex-marido, C, a correr seus termos no Tribunal de Montijo.
3º - Exame esse que o sócio-gerente dessa Sociedade, C, seu ex-marido, lhe recusou por duas vezes, malevolamente e imoralmente, visando um locupletamento à custa da recorrente.
4º - Independentemente dessa suficiência, com base na Equidade, para a procedência da acção, a verdade é que a recorrente é, efectivamente, também sócia da Sociedade recorrida, face ao ditame expresso do artigo 1726º, nº 1 , do C. Civil, uma vez que a quota de 4000000 escudos é um bem comum, por ter sido adquirida onerosamente, na sua quase totalidade, depois do casamento, com dinheiro ou bens comuns.
5º - A quota social, numa sociedade por quotas, é um bem patrimonial comunicável ao cônjuge meeiro, comunicação essa que abrange, necessariamente, a qualidade de sócio.
6º - A comunhão de bens no casamento implica uma propriedade colectiva entre os dois cônjuges, com a existência de um único e indivisível direito.
7º - Acresce que o artigo 8º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais veio consagrar esse entendimento e, ainda a Jurisprudência e Doutrina correntes supracitadas, ao assinalar, expressamente, uma participação social (ou seja, uma quota social) comum aos dois cônjuges, por força do regime matrimonial de bens.
8º - De resto, esse artigo 8º é mesmo, incontestavelmente, uma norma interpretativa e, assim, de aplicação retroactiva.

Considerando assim, violados, designadamente, os artigos 1410º e 1497º e segs. do CPC, o artigo 1726º, nº 1, do Código Civil (CC), e os artigos 8º, nº 2, e 214º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), a recorrente pede a revogação do acórdão recorrido, e a acção julgada procedente.

Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Encontra-se apurada a seguinte matéria de facto:

1º - A requerente casou, em 29.5.82, sem convenção antenupcial com C;
2º - O casamento foi dissolvido por divórcio por sentença transitada em julgado em 7.6.91;
3º - No 1º Juízo do Tribunal da comarca do Montijo, com o nº 20/92, corre termos um inventário facultativo para partilha dos bens comuns do casal acima mencionado;
4º - C é sócio da requerida desde a sua constituição.
5º - À data da constituição da sociedade requerida a requerente e C ainda não tinham contraído casamento.
6º - A quota inicial do sócio C na requerida era de 50000 escudos.
7º - A quota deste sócio foi por várias vezes reforçada, na constância do casamento com a requerente, tendo actualmente o valor de 4000000 escudos.
8º - Na sede social da requerida, no dia 23.3.94, cerca das 11 horas, C, sócio-gerente daquela, recusou à requerente a consulta e inspecção da escrituração, livros e documentos da sociedade.
9º - No dia 9.6.94, cerca das 11.15 horas, esse sócio-gerente tornou a recusar à requerente o exercício do direito de examinar a escrituração, livros e documentos da sociedade.

Constam também dos autos certidões de Registo Comercial que, além do mais, provam ter a sociedade em causa sido constituída, aliás, com diferente denominação social, em 24 de Setembro de 1981 - cfr. fls. 11 e 15.
III
1. - Começa a recorrente por alegar, à semelhança do que já fizera na apelação, que, nas providências a tomar nos processos de jurisdição voluntária, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna - cfr. artigo 1410º do CPC.
Pretende, assim, que, em face da recomendada aplicação dos princípios da equidade, teria pleno cabimento o deferimento da respectiva pretensão.
No entanto, como bem sustenta o acórdão recorrido, o recurso aos princípios da equidade não dispensa uma apreciação dos pressupostos da acção com base em critérios de legalidade. Só depois, e desde que verificada a existência de tais pressupostos, é que se poderá fazer apelo à intervenção das razões de equidade.
É o que acontece com a verificação - ou não - da qualidade de sócio relativamente ao requerente.
Estabelece o artigo 1497º, nº 1, do CPC que "o sócio a quem seja recusado o exercício do direito que tenha de examinar a escrituração e os documentos concernentes às operações sociais pode requerer ao tribunal que o exame lhe seja facultado, indicando os factos que pretende averiguar, bem como a parte da escrituração e os documentos que deseja examinar".
Ou seja, surge como requisito condicionante do requerimento do exame ao tribunal que o mesmo seja apresentado por um sócio.
E não por qualquer sócio: é ainda mister que se trate de "sócio a quem seja recusado o exercício do direito que tenha de examinar a escrituração e os documentos". O que significa que, na literalidade do preceito, à qualidade de "sócio", deverão acrescer ainda os seguintes requisitos adicionais: ser-lhe recusado o exame; e ter direito de proceder a esse exame.
Portanto, carece de legitimidade para requerer o exame de escrituração e documentos a que se referem os artigos 1497º e seguintes do CPC, todo aquele que:
a) não seja sócio;
b) sendo sócio, não lhe tenha sido recusada a pretensão de proceder ao exame;
c) sendo sócio, não tenho o direito de proceder ao exame.
À requerente do exame da escrituração comercial e dos documentos a que se referem os artigos 1497º e seguintes do CPC é, assim, exigida a prova inicial da sua qualidade de sócio, "pois esta é um dos pressupostos necessários para poder requerer-se ao tribunal que seja facultado o pretendido exame, quando recusado" - cfr. o acórdão de 24 de Janeiro de 1978, da Relação do Porto, in C.J., Ano III, Tomo 1 - 1978 -, pág. 135.
O que significa que o disposto no artigo 1409º, nº 2, do mesmo Código, que permite ao tribunal uma livre apreciação dos factos e de coligir as provas, podendo mesmo o juiz recolher informações e ordenar inquéritos, bem como o estabelecido no artigo 1410º desse diploma, que sacrifica a estrita legalidade à solução que se julgue, em cada caso, mais conveniente e oportuna, não podem, no entanto, conduzir à dispensa da prova dos referidos pressupostos - da qualidade de sócio e do requisito relativo à "recusa", já que o artigo 1497º os exigem como indispensáveis para que o exame recusado ao sócio se efectue por ordem judicial.
Bem andou, pois, o acórdão recorrido ao considerar indispensável efectuar o percurso que habilitasse a concluir se a recorrente reunia, ou não, os requisitos necessários para o exercício do direito em apreço.
Vejamos se as conclusões atingidas são correctas ou se, pelo contrário, merecem algum reparo.
2. - Sobre o direito dos sócios à informação, o CSC contém, na Parte Geral, apenas o preceito do artigo 21º, nº 1, alínea c). Como observa Raul Ventura, "Sociedades por Quotas", Vol. I, 2ª Edição, 1989, págs. 279 e segs., justifica-se que a Parte Geral não vá mais longe, dada a forte diferença de regulamentação desse direito, consoante o tipo de sociedade. Assim, enquanto para as sociedades em nome colectivo e por quotas vigoram preceitos praticamente iguais (artigos 181º e 214º, respectivamente), para as sociedades anónimas aplicam-se os artigos 288º a 293º. Sobre a temática em apreço, regiam, anteriormente, os artigos 119º, nº 3, do C. Comercial e o artigo 34º, § 1º, da Lei de 11 de Abril de 1901, sobre Sociedades por Quotas.
Reflectindo acerca da caracterização deste "direito à informação", podemos sublinhar, acompanhando Raul Ventura, as seguintes notas:
- A informação aparece nos preceitos legais citados como "direito do sócio", só podendo ser exercido enquanto o sócio mantiver essa qualidade;
- O direito à informação exerce-se contra a sociedade, sendo esta o sujeito da obrigação correspondente ao direito do sócio, e não o gerente, que é, dentro da sociedade, o órgão ao qual funcionalmente compete o dever de prestar a informação;
- O direito á informação é geralmente qualificado como um direito extra-patrimonial do sócio, instrumental para o exercício de outros direitos, patrimoniais ou extra-patrimoniais.
O artigo 214º, nº 4, do CSC, resolve um problema delicado, procurando um equilíbrio entre interesses contrapostos. Com efeito, existe sempre o receio de que a consulta de livros e documentos duma sociedade por pessoa estranha a esta possa prejudicá-la, entendendo-se que os motivos justificativos da consulta pelo sócio não se estendem a uma abertura a qualquer estranho. Por força deste nº 4, a consulta de livros e documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, não sendo admitida representação ou delegação deste direito noutra pessoa, mesmo que se trate de outro sócio da sociedade. Desde que compareça pessoalmente na sede da sociedade para efectuar a consulta, o sócio pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito. Pode ainda o sócio usar da faculdade reconhecida pelo artigo 576º do Código Civil.
Atento o exposto, fácil é compreender o fundamento da decisão segundo a qual "dirigida por sócio carta à sociedade pedindo uma informação, não vindo assinada por sócio e contendo antes um P´ seguido de assinatura ilegível, não está a sociedade obrigada a prestá-la" - cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 1993, publicado na CJ, Acórdão do STJ, Ano I, Tomo II - 1993, pág. 72.

3. - A regulamentação das sociedades por quotas no CSC mantém a característica essencial que a tais sociedades atribui o primeiro traço personalista: a responsabilidade subsidiária de todos os sócios pela obrigação da entrada de cada um.
Olhando estas sociedades pelo prisma da manutenção de um aglomerado de sócios aceite por todos, o CSC acentua o carácter personalista do tipo legal. A regulamentação da transmissão da quota por morte do sócio, nos artigos 225º e seguintes, é toda permeada pela preocupação de, se os sócios o quiserem, não entrarem novas pessoas como sócios. A cessão de quotas está, em princípio, dependente do consentimento da sociedade - artigos 228º e seguintes. Este consentimento torna possível evitar a transmissão da quota para pessoa indesejada pelos outros sócios e até dirigi-la para pessoa escolhida por estes. Quando uma quota é perdida por um sócio remisso na sua obrigação de entrada, é dada aos outros sócios a faculdade de adquirir a quota.
Pode, pois, concluir-se, com Raul Ventura, que agora se acompanhou, que o CSC caminhou no sentido da pessoalidade das sociedades por quotas - loc. cit., págs. 37 e segs.
A constituição e o funcionamento de uma sociedade de estrutura personalizada dependem naturalmente dos laços de confiança que existam entre os sócios. Daí que sejam naturais as reservas á entrada de novos sócios ou à substituição de uns por outros, conduzindo tais reservas à existência, por força da lei, ou por iniciativa dos sócios, vertida na elaboração do pacto social, de cautelas, restringindo ou condicionando essa entrada.
Isso mesmo é patente relativamente à sociedade-ré, a cujo capital social, de 10000000 escudos, correspondem os seguintes sócios e quotas: C - 4000000 escudos; D - 3000000 escudod; E, casada com o anterior - 3000000 escudos - cfr. fls. 17 e 18. Com efeito, nos termos da alteração do pacto social, a que corresponde a inscrição constante de fls. 19, a cessão de quotas a estranhos ficou dependente do consentimento da sociedade, que reserva o direito de preferência na alienação. Passou também a ser permitida a amortização de quotas quando, em consequência de divórcio ou separação de bens, a quota seja adjudicada a pessoa diferente do respectivo titular (bem como em caso de falência ou insolvência do respectivo titular).
Trata-se de cláusulas cuja intencionalidade claramente aponta para preservar a confiança derivada da salvaguarda do núcleo constituído pelos sócios pré-existentes.

4. - Já se viu, atenta a matéria de facto dada como provada, que, à data da constituição da sociedade ré, onde o seu ex-marido adquiriu a qualidade de sócio, com a quota inicial de 50000 escudos, a autora ainda não era casada com aquele.
Todavia, na constância do casamento, celebrado no regime de comunhão de adquiridos (casamento sem convenção ante-nupcial), aquela quota sendo reforçada, de modo que o seu valor nominal atingiu o montante, já referido, de 4000000 escudos.
Terá, em consequência, advindo para a recorrente a qualidade de sócia da sociedade Ré? A resposta terá de continuar a ser negativa.
Atento o regime de bens existente, a quota adquirida antes da celebração do casamento é um bem próprio do ex-marido da requerente - artigos 1717º e 1722º, nº 1, alínea a), do CC.
No entanto, será que, do reforço da quota verificado na constância do casamento, resulta a sua comunicabilidade, por aplicação, como a recorrente pretende, do princípio constante do artigo 1726º, nº 1, do CC?

4.1. - A resposta, quanto à aplicação, in casu, do citado artigo 1726º, nº 1, do CC, deve ser negativa. Com efeito, supõe-se, na norma, uma situação distinta que consiste na aquisição, na vigência do casamento, de bens, em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e, noutra parte, com dinheiro ou bens comuns. Ou seja, em tais casos, os bens adquiridos revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações. Imagine-se a aplicação da norma - que teria de ser por analogia, ou, no mínimo, extensiva, à situação sub judice. Considerando que o reforço da quota social, realizado com mobilização de bens comuns, é mais valioso do que o montante inicial da mesma, concluir-se-ia que tal quota se teria transmutado in totum, de bem próprio do ex-marido em bem comum. Trata-se de uma consequência que, por carecer de falta de lógica, não podemos acompanhar.
A norma não pode aplicar-se a situações em que o título jurídico da aquisição da propriedade do bem era anterior ao casamento, sendo, por isso, próprio, porque trazido pelo cônjuge para o casal, o bem posteriormente valorizado na constância do casamento. Não importa que o valor da valorização - do reforço da quota - ultrapasse o da sua aquisição originária. O critério é de natureza jurídica e não de raiz económica.
Mas também não terá aplicação à situação da presente quota social o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 1722º do CC, segundo o qual são considerados próprios dos cônjuges "os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior".
Mais próxima estaria, porventura, a situação prevista no artigo 1728º, nº 1, do mesmo Código, quando estabelece que se consideram "próprios os bens adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios, que não possam considerar-se frutos destes". Situação que não se confunde com a da citada alínea c) do nº 1 e nº 2 do artigo 1722º. Como ensinam Pires de Lima/Antunes Varela, neste último caso, a aquisição assenta na concretização, conversão ou exercício de um direito ou expectativa (de um poder) anterior à celebração do casamento; no primeiro, ou seja, no caso do artigo 1728º, a aquisição não nasce de um direito anterior, mas de um direito posteriormente atribuído ao cônjuge, com base na relação de conexão existente entre os novos bens e os bens de que o cônjuge já era titular - cfr. "Código Civil Anotado", volume IV, 2ª edição, págs. 432 e segs.
Mas ainda aqui estamos situados no quadro da aquisição de novos bens.
O reforço da quota social não altera a sua identidade enquanto bem jurídico. Não foi adquirida outra quota social. A primitiva quota social, bem próprio do ex-marido da requerente, é que foi reforçada. A quota nunca saiu do património próprio do antigo cônjuge da recorrente. Daí que, não havendo dúvidas sobre a não comunicabilidade, não opere, no caso sub judice, a presunção do artigo 1725º do CC.
Sobre o ex-marido recai então o dever de compensar o património comum, relativamente aos reforços da quota social, verificados na constância do casamento - cfr., a título de lugares paralelos, os artigos 1722º, nº 2, e 1728º, nº 1, do CC. Ou seja, a requerente tem o direito a participar no acréscimo do valor patrimonial da referida quota, em consequência do seu reforço, na vigência do casamento.
Mas, como é claro, daqui não decorre para ela a aquisição da qualidade de sócia da sociedade Ré. E isto é que é decisivo para a sorte do presente recurso.

4.2. Poder-se-ia, no entanto, considerar uma tese mitigada, que se diria melhor corresponder ao espírito da lei, mormente no que se refere ao regime de comunhão de adquiridos. Assim, tendo, na vigência do casamento, com o contributo de ambos os cônjuges, sido reforçada, não só em valor absoluto, mas também em valor relativo, a quota social em referência, poder-se-ia defender que a parte da quota correspondente ao valor do reforço entrou na comunhão de bens do casal, mantendo-se a parte correspondente ao valor inicial como bem próprio do ex-marido. Caso em que, uma fracção - menor - da quota seria bem próprio do ex-marido e outra - bem maior - seria bem comum do casal. Solução que, se acolhida, não deixaria de ter consequências ao nível do inventário para partilha dos bens do casal.
Todavia, trata-se de questão que apenas poderá relevar, nesta sede, se dela decorrerem consequências diferentes quanto à sorte da presente revista. O que não é o caso, como se verá.

5.- A "quota social" não representa uma simples "coisa" ou um simples "direito de crédito", sendo, acima de tudo, um direito de participação numa sociedade. Abarca, por isso, um conjunto de direitos, poderes e deveres sociais - Raul Ventura, "Cessão de Quotas", 1967, pág. 10. A "quota" exprime um direito de conteúdo complexo, que tanto abrange direitos de natureza patrimonial, como direitos, poderes ou faculdades de ordem pessoal.
Ao dizer-se, por exemplo, que, em regime de comunhão geral, e ao abrigo do artigo 1732º do CC, o cônjuge do adquirente de uma "quota social" fica sendo meeiro dessa quota, tal é apenas admissível quanto ao âmbito patrimonial da quota.
A lei exceptua da comunhão prevista no referido artigo 1732º o complexo de vinculações de natureza estritamente pessoal relativo à "quota" - conforme resulta do artigo 1733º, nº 1, do CC, e do artigo 8º, nº 2, do CSC.
Recorde-se esta última norma: "Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisições posteriores ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal".

Segundo Ferrer Correia, na medida em que em determinada sociedade por quotas releve o intuitus personae, sócio é apenas o cônjuge por quem a quota tenha vindo ao casal. "Perante a sociedade - escreve o referido Autor -, unicamente esse cônjuge é sócio - só é sócio aquele que outorgou na escritura social ou que posteriormente adquiriu a quota. Certo, a quota entrou na comunhão - mas apenas como valor, não como síntese ou fonte de direitos e deveres corporativos, não como título de socialidade. Ao cônjuge do sócio não competem mais direitos do que os que se reconhecem ao associado à quota - e dele se pode dizer que: socii mei socius meus socius non est - cfr. cfr. parecer publicado na CJ, Ano XIV- 1989, Tomo IV, págs. 33 e segs.

6. - Sabe-se que a jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores considera o artigo 8º do CSC como uma norma interpretativa (cfr., verbi gratia, o acórdão do STJ de 3 de Julho de 1990, no BMJ, nº 399, pág. 519, e o acórdão da Relação de Lisboa, de 26 de Abril de 1990, na CJ, Ano XV, 1990, pág. 166), entendendo-se como tal aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado - cfr. Baptista Machado, "Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil", págs, 286 e segs. Assim sendo, considera-se integrada na lei interpretada, pelo que retroage os seus efeitos até á data da entrada em vigor da antiga lei.
Segundo Ferrer Correia, loc cit., pág. 35, o artigo 8º, nº 2, do CSC aplica-se não só a todas as situações jurídicas lá descritas, se constituídas após a entrada em vigor do referido Código, mas também às situações jurídicas criadas anteriormente, desde que digam respeito a uma pura sociedade de pessoas ou a uma sociedade de cunho personalista. E esclarece: "É que, nesta medida, o aludido preceito assume (...) feição análoga à de uma lei interpretaiva stricto sensu, integrando-se, portanto, na lei anterior. (Cód. Comercial e Lei de 11.4.1901)". "Assim vistas as coisas, nenhuma dúvida é cabida quanto a ser a norma do nº 2 do artigo 8º do CSC, na parte respeitante às sociedades em nome colectivo e àquelas sociedades por quotas que apresentem como característica relevante o intuito pessoal, uma lei interpretativa, como tal devendo aplicar-se mesmo aos actos e factos do passado: às aquisições de quotas e ao estabelecimento de situações de comunhão matrimonial de bens anteriores" - sabe-se ser diversa a posição de Raul Ventura, que não reconhece ao artigo 8º, nº 2, do CSC natureza interpretativa.
Na interpretação dominante na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, não é correcto que, em regime de comunhão geral, ou, sendo caso disso, em regime de comunhão de adquiridos, a quota de um cônjuge se comunique ao meeiro, em termos de este adquirir ex vi do regime de bens, a qualidade social. Em palavras extractadas de algumas dessas decisões: "A quota social, nos regimes de bens do casamento, só é comunicável quanto ao seu valor económico"; "A qualidade de sócio de uma sociedade por quotas não se comunica ao seu cônjuge, mesmo que casados sob o regime de comunhão geral de bens, já que é apenas um associado ou agregado a essa quota" (cfr. acórdãos da Relação de Lisboa, de 26 de Abril de 1990, e da Relação do Porto, de 25 de Setembro de 1990, na CJ, Ano XV, Tomos II e IV, a págs. 166 e 220, respectivamente).

O certo é que a própria recorrente alegou que o referido artigo 8º "é, incontestavelmente, uma norma interpretativa e, assim, de aplicação retroactiva" - cfr. conclusão 8ª.
Ora, mesmo que se aceite a construção defendida, nas alegações de recurso, pela recorrente, torna-se manifesta a improcedência da revista. Com efeito, defendendo ela a natureza interpretativa da referida norma e a sua aplicação ao caso dos autos, importará concluir que, ainda que se admita que a presente quota social entrou na comunhão de bens do casal, na parte correspondente aos reforços verificados durante a vigência do casamento, ainda assim a requerente nunca poderia ser considerada sócia da sociedade Ré para os efeitos do requerido exame da escrituração e documentos. Isto porque se está no âmbito das relações com a sociedade.

Termos em que se nega a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 31 de Março de 1998,
Garcia Marques,
Ferreira Ramos,
Lemos Triunfante, (Dispensei o visto).