Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5831/18.2T8VIS-A.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
SOCIEDADE
PRESUNÇÃO DE CULPA
CREDOR
CREDITO LABORAL
CRÉDITO SUBORDINADO
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONSTITUCIONALIDADE
REVISTA EXCECIONAL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I - É qualificável como culposa a insolvência da sociedade que, tendo perdido a licença administrativa para exercer a sua atividade (de empresa de trabalho temporário), não se apresenta atempadamente à insolvência, tendo tal omissão conduzido à sua incapacidade para satisfazer o crédito do seu ex-trabalhador requerente da insolvência, já que, entretanto, veio a receber uma quantia pecuniária que entregou a uma sociedade sua sócia.
II - Caso se tivesse apresentado atempadamente à insolvência, a quantia pecuniária que recebeu, 6 meses depois de ter perdido a licença para exercer a sua atividade (correspondente à devolução de uma caução), teria passado a integrar a massa insolvente e, consequentemente, a poder dar satisfação ao crédito do credor seu ex-trabalhador, que sempre seria graduado antes do eventual crédito da sua sócia (que seria crédito subordinado).
Decisão Texto Integral:

Processo n. 5831/18.2T8VIS-A.C1.S1

Recorrente: AA

[Revista excecional]

I. RELARÓRIO

1. A sociedade “TUVLUSA - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª” foi declarada em situação de insolvência por sentença proferida em 25.03.2019.

O administrador da insolvência apresentou parecer no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa e de ser afetado pela qualificação da insolvência o gerente da sociedade, AA. O Ministério Público emitiu parecer no mesmo sentido.

A insolvente não deduziu oposição à qualificação da insolvência.

AA opôs-se à qualificação da insolvência como culposa.

2. Realizada a audiência final foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«1. Qualificar como culposa a insolvência sociedade Tuvlusa – Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, pessoa coletiva n.º 510356699, com sede no Edifício Expobeiras -  Parque   Industrial de Coimbrões, em Coimbrões, freguesia de São João de Lourosa, concelho de Viseu.

2. Declarar afetado pela qualificação o requerido AA e, em consequência:

a) Decretar a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros pelo período de trinta meses;

b) Declarar AA inibido, pelo período de trinta meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

c) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA;

d) Condenar AA, até às forças do respetivo património, o que inclui todos os seus bens suscetíveis de penhora, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos

3. Inconformado com aquela decisão, AA interpôs recurso de apelação, mas o TR… veio a confirmar a sentença, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.

4. Inconformado com o acórdão do TR.., o apelante[1] interpôs recurso de revista, invocando o art. 14º do CIRE e o art. 672º do CPC, alegando que o acórdão recorrido estaria em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.07.2017 (relator Falcão de Magalhães), no processo n. 370/14.3TJCBR-A.C1 (transitado em julgado). Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:

«I. Nos presentes autos, o Tribunal de Primeira Instância considerou que os factos elencados na factualidade dada como provada são suscetíveis de demonstrar objetivamente a situação indicada no artigo 186° n. 2 d) e h) e n. 3 a) e b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tendo o Tribunal “a quo”, reiterado a aplicabilidade dos citados preceitos legais; o que não se pode aceitar.

II. No que concerne à alegada violação do artigo 186.° n 3 alínea a) do CIRE o Tribunal “a quo” sustentou a sua posição no disposto no n. 1 do artigo 18.° do CIRE do qual decorre que “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n. 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la”, bem como no artigo 19.° do mesmo diploma que “não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores”.

III. Tendo, com efeito, referido que “a sociedade Tuvlusa foi declarada em situação de insolvência, a pedido de um credor, o ora recorrente (gerente da Tuvlusa) só não teria incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência da sociedade por si administrada se, na data em que ela foi requerida [14 de dezembro de 2018], não conhecesse ou não devesse conhecer a situação de insolvência há mais de 30 dias. Em tal hipótese, poder-se-ia dizer que o ora recorrente, não fosse o pedido do credor, ainda poderia requerer a declaração de insolvência dentro do prazo previsto no nº.1 do artigo 18.º.”,

IV. E que “…há factos no processo que apontam claramente no sentido de que, quando foi requerida a declaração de insolvência, a sociedade já se encontrava nesta situação há vários meses e que o ora recorrente tinha conhecimento dela. Os factos são os seguintes. Em primeiro lugar, o facto de a licença concedida à sociedade para o exercício da sua actividade ter sido suspensa em 17 de Maio de 2017 e, depois, revogada em 28-11-2017. Com a suspensão e a revogação da licença, a sociedade deixou de poder exercer a sua actividade e de obter meios para cumprir as suas obrigações. Em segundo lugar, o facto de a sociedade ter passivo.”

V. Mais referiu o Acórdão proferido que: “destes factos, é legítimo extrair a ilação de que, depois de ser revogada a licença para o exercício da atividade da sociedade, esta ficou sem meios para cumprir a generalidade das suas obrigações e que o ora recorrente, enquanto gerente, tinha conhecimento desta situação, pelo que, como bem se afirmou na sentença, tinha o dever de requerer a declaração de insolvência até ao final de 2017, princípios de 2018.”.

VI. Por outro lado, temos que para o Tribunal de Primeira Instância, o nexo de causalidade, que preenche a previsão da alínea a) do artigo 186º do CIRE, reside na devolução, pela insolvente à sociedade “Tuvmetálica”, de parte do valor que esta lhe havia mutuado para que esta prestasse caução junto do IEFP.

VII. No que concerne à omissão da apresentação da recorrente TUVLUSA à insolvência, não se verifica nos autos que tal omissão tenha sido motivada pelo fim de ocultar quaisquer bens, ou evitar pagamentos aos respetivos credores, veja-se que conseguiu o Recorrente, num sector com uma severa e prolongada falta de trabalho, proceder ao pagamento dos créditos existentes aos seus trabalhadores, facto que ocorreu após 28.05.2018.

VIII. Adicionalmente temos que não resulta dos autos que a tardia declaração de insolvência, tenha contendido com quaisquer propósitos de ocultação ou dissipação de património, já que, como é sabido a Insolvente tinha como principal atividade comercial a cedência temporária trabalhadores para terceiros utilizadores, pelo que designadamente não tinha quaisquer stocks.

IX. Por outro lado e quanto ao nexo de causalidade invocado pelo Tribunal de Primeira Instância, e que alegadamente reside na devolução, pela insolvente à sociedade “Tuvmetálica”, de parte do valor que esta lhe havia mutuado para que esta prestasse caução junto do IEFP.

X. Temos que, conforme resulta do ponto 10 da matéria dada como provada, “Para o depósito da importância de € 68.048,75, relativa à constituição daquela caução, foi depositada na conta bancária da insolvente, que naquela data apresentava o saldo de € 35,84, a quantia de € 68.500,00 relativa a um cheque sacado sobre conta da sociedade Tuvmetálica, Lda.”.

XI. Entende o Recorrente  que  a  devolução  de  um  valor  em  dívida  a  um  credor, independentemente da sua categoria, não pode perfilhar uma situação de agravamento da insolvência, aliás, os valores em dívida à época a credores já existentes foram pagos pela insolvente, conforme já supra se referiu, nomeadamente a trabalhadores, conforme resulta do ponto 24 da matéria dada como provada, pois a insolvente entendia nada dever ao credor requerente desta insolvência, sendo certo que a sentença que a condenou ao pagamento respetivo de 28.06.2018 é ulterior aos factos supra referidos.

XII. Tendo em conta os demais elementos existentes nos autos temos que a verdade é que não resulta que existisse qualquer situação de incumprimento generalizado das obrigações da insolvente, mormente as previstas no artigo 20º n.1 al. g) do CIRE, e mesmo a existir tal conhecimento, este só poderia ser ulterior a 28.06.2018, pois não se conhecem outros credores da insolvente para além do seu requerente, inexistindo nestes autos qualquer reclamação de créditos.

XIII. Temos ainda que é certo que a partir de 28.06.2018 a insolvente não possuía qualquer bem, nem resulta destes autos que a partir desta data algum ativo existisse, o que acabou por resultar que a sentença que a declarou tivesse carácter limitado sem que nenhum credor tivesse peticionado o seu complemento, pelo que impossível seria que a não apresentação voluntária à insolvência a partir da predita data a tivesse criado e/ou agravado.

XIV. Temos, assim, que não se mostra evidenciado o nexo de causalidade entre a declaração de insolvência e o estado da insolvência, nessa medida e conforme resulta do Acórdão proferido no âmbito do processo n. 0754886, datado de 07.01.2008, pelo Tribunal da Relação do Porto, do relator Anabela Luna de Carvalho, o facto de o Recorrente “ter omitido o dever de requerer a insolvência da empresa não é suficiente para que se classifique esta (insolvência) como culposa.”, assim, torna-se bem evidente que não se encontra preterido, o disposto no artigo 186º n. 3 a) do CIRE.

XV. Já quanto ao alegado preenchimento da alínea b) do n. 3 do artigo 186° do CIRE, considerou o Tribunal “ a quo” que a sentença qualificou a insolvência ao abrigo da alínea b), é de manter porquanto provou-se que o ora recorrente não elaborou as contas relativas ao exercício económico de 2017, não cumprindo, assim, a obrigação que lhe é imposta pelo n.1 do artigo 65.º do Código das Sociedades Comerciais, e que não depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas do exercício de 2016, não cumprindo, agora, a obrigação que lhe é imposta pelo n. 1 do artigo 70.º do mesmo diploma e pelos artigos 3.º, n.1, alínea n), e 42.º, n.1, ambos do Código do Registo Comercial.

XVI. Não basta invocar o mero não depósito das contas para que se possa concluir pela existência de culpa grave em termos de qualificação de insolvência, e, para o justificar, reitera-se que, tratando-se “in casu” de uma presunção ilidível não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre o Recorrente recai.

XVII. Não faria qualquer sentido que, só porque não se procedeu ao depósito de contas de alguns anos se qualificasse a insolvência como culposa, com os efeitos nefastos e graves para as pessoas visadas, quando para mais é bem patente que este facto não teve qualquer influência na situação de insolvência.

XVIII. Como bem refere o supra citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto:

 “I - Para que uma falência seja qualificada como culposa é sempre necessário que seja a actuação (ou omissão) que se classificou como dolosa ou com culpa grave do devedor e não outra a concorrer, intercedendo em termos de causalidade, na criação ou agravamento da situação de insolvência. II - A não apresentação das contas anuais pelos seus administradores no prazo legal presume a existência de culpa grave. III - Mas para se qualificar a insolvência como culposa torna-se necessário que esse facto ou omissão tenha criado ou agravado a situação de insolvência, não bastando a mera constatação objectiva desse comportamento omissivo.”.

XIX. Torna-se assim bem evidente que não se encontra igualmente preterido na presente lide, o disposto no artigo 186º n. 3 als. a e b) do CIRE.

XX. Já quanto ao alegado preenchimento da alínea h) do artigo 186.° n. 2 do CIRE, entendeu o Tribunal “a quo” que “para a decisão do recurso está provado que, em relação ao exercício de 2017, o único documento da contabilidade que existe é o balancete relativo ao mês de Março. Faltam todos os outros documentos, designadamente os relativos às demonstrações financeiras. Ora, sem eles, não se consegue ter uma representação fiel da situação patrimonial e financeira da empresa e dos resultados da mesma em tal exercício. É, pois, de afirmar que o ora recorrente, enquanto gerente, incumpriu a obrigação de manter a contabilidade organizada no exercício de 2017.

XXI. Por outro lado, o Tribunal “a quo” considerou que “… nem tinha condições para cumprir tal dever, visto que a planificação, organização e coordenação da execução da contabilidade das entidades sujeitas ao regime fiscal da contabilidade organizada cabe a um contabilista certificado [n.º 1 do artigo 10.º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados] e a insolvente, a partir de Outubro de 2017, deixou de ter ao seu serviço um profissional com esta qualificação.”.

XXII. Tendo por fim considerado “… totalmente impertinente para afastar a aplicação ao caso da alínea h) do n. 2 do artigo 186.º a alegação do recorrente segundo a qual procurou ter a contabilidade organizada e que só não o conseguiu pelo facto de o anterior contabilista se ter recusado a tal e o Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas impedir a contratação de outro técnico. E é irrelevante porque, como se escreveu acima, verificada a situação prevista na alínea l) do n. 2 do artigo 186.º do CIRE, está vedado ao devedor ou ao respectivo administrador provar que o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada não procede de culpa sua.”.

XXIII. Entendimento contrário encontra-se perfilhado no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº 167/09.2TYLSB-C.L1-1 de 11.12.2019, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve:

“I. A contabilidade das empresas, através da escrituração, assume particular importância na medida em que, através das demonstrações geradas pela correlação dos respectivos dados, permite avaliar em cada momento a situação patrimonial e financeira da empresa e o seu comportamento negocial, quer por parte do empresário, quer por parte daqueles que se relacionam com a empresa, quer por parte do público em geral. II. Para que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada possa ser fundamento de qualificação da insolvência como culposa, nos termos da al. h) do n. 2 do art.º 186º do CIRE, ele tem de ser “em termos substanciais”. III. O incumprimento deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”. IV. E porque para o efeito em causa o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário, a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só pode ser tida em termos substanciais quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis.”

XXIV. Decorre ainda da fundamentação de tal Acórdão o seguinte:

Nessa disposição legal estão compreendidas três diferentes situações de facto: a) a prática de irregularidade contabilística com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; b) a manutenção de contabilidade fictícia ou de dupla contabilidade; c) incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada.

Enquanto fundamento de qualificação da insolvência como culposa o não cumprimento da obrigação de manutenção de contabilidade organizada só releva na medida em que esse incumprimento seja substancial; na medida em que põe em causa a essência ou os fundamentos da exigência de contabilidade. Assim, e como já se afirmou no acórdão da Relação de Coimbra de 08FEV2011 (proc. 1543/06.8TBPMS-O.C1), o incumprimento deve “considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”. A contabilidade das empresas, através da escrituração, assume particular importância na medida em que, através das demonstrações geradas pela correlação dos respectivos dados, permite avaliar em cada momento a situação patrimonial e financeira da empresa. Em primeiro lugar, revela ao empresário a situação económico financeira da empresa, permitindo-lhe aferir dos fluxos financeiros, das perdas, dos prejuízos, as actuações onde se geram factores negativos e positivos. Mas também para quem se relaciona com a empresa (sócios, credores, clientes), quer porque constitui garantia de quem com ela contrata, que se serve dos dados contabilísticos como meio de prova, quer porque evidencia perante terceiros a situação económica e patrimonial da empresa e a maneira de negociar do empresário, satisfazendo um geral interesse público.

Para os efeitos da alínea h) do n. 2 do art.º 186º do CIRE o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário pelo que a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só se pode ser tida em termos substanciais quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis.”

XXV. No caso dos autos não foi provado, nem tão pouco invocado por qualquer interveniente processual, qualquer facto, qualquer matéria que comprove que o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada, no exercício de 2017, tenha tido qualquer nexo de causalidade com a situação de insolvência da Devedora ou qualquer dificuldade de compreensão da sua situação patrimonial e financeira.

XXVI. Nem mesmo se verifica que tenha sido o aqui Recorrente AA que tenha incumprido em termos substanciais ou que tenha originado ou mesmo contribuído para tal atraso na entrega/obrigação de manter contabilidade organizada, ou até que tenha mantido uma contabilidade fictícia ou mesmo uma dupla contabilidade ou até praticado alguma irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

XXVII. Nessa medida, e à semelhança do decidido no Acórdão que supra se transcreve, temos que não se provou qualquer facto que estabeleça um nexo causal entre alegado incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada no exercício de 2017 e os pressupostos previstos na alínea h) do n. 2 do artigo 186º do CIRE!

XXVIII. Não fica, assim, demonstrado, conforme se impunha, que o facto de a Devedora ter em determinado período temporal - exercício de 2017 - alegadamente incumprido a obrigação de manter a contabilidade organizada, tenha dificultado ou impedido a análise da situação económico-financeira da devedora e das causas que levaram à sua insolvência e dos seus responsáveis, não resultando tão pouco que tenha o Recorrente AA ao agir de tal forma, tenha agido dolosamente ou com culpa grave!

XXIX. Veja-se que foi a própria insolvente quem pretendeu contratar um novo contabilista, em Janeiro de 2018 (conforme decorre do facto 23 da factualidade dada como provada), pelo que não tinha nem teve qualquer intenção de ocultar documentos e/ou desrespeitar as boas práticas contabilísticas para ocultar qualquer tipo de situação patrimonial e/ou financeira.

XXX. Aliás, o Douto Acórdão ora recorrido, preenche a predita alínea h) do n. 2 do artigo 186º do CIRE assente em meras suposições.

XXXI. Tendo em conta o previsto no artigo 186.º n. 1 sempre terá de ser provado um nexo de causalidade entre a criação ou agravamento da situação de insolvência e o incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter uma contabilidade organizada com prejuízo para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Insolvente, tal qual resulta aliás do ponto I do sumário do Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.01.2008 supra mencionado ou seja, “Para que uma falência seja qualificada como culposa é sempre necessário que seja a actuação (ou omissão) que se classificou como dolosa ou com culpa grave do devedor e não outra a concorrer, intercedendo em termos de causalidade, na criação ou agravamento da situação de insolvência” (sublinhado nosso).

XXXII. Com o devido respeito, que é muito, quer a Sentença proferida, quer o Douto Acórdão ora recorrido são totalmente omissos relativamente ao nexo de causalidade existente, entre às situações deparadas na contabilidade da insolvente e a criação e/ou agravamento da sua situação de insolvência, e são omissos porque, as irregularidades invocadas em nada poderiam criar ou agravar a situação de insolvência

XXXIII. Na esteira do exposto, atente-se o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 15.10.2007, no processo n. 6027/06.1TBSTS-A, disponível em www.dgsi.pt, que estabeleceu que “A qualificação da insolvência como culposa exige uma relação de causalidade entre a conduta do devedor e o estado de insolvência, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente, mas em nada ter contribuído para a “criação” ou “agravamento” da insolvência. Fora dos casos previstos no n. 2, deve ser provada a culpa e o nexo de causalidade. Pela via da presunção estabelecida no artigo 186º/2, al. b), fica provada a culpa grave. Falta provar o nexo de causalidade”. (sublinhado nosso). Para se qualificar a insolvência como culposa torna-se necessário que esses factos ou omissões tenham criado ou agravado a situação de insolvência, para o que não basta, como nos parece evidente, a simples verificação objectiva desses comportamentos omissivos.

XXXIV. Bem como ao referido pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.07.2017 “Por força da exigência plasmada no n. 1 do art. 186º do CIRE, quer as situações que se encontram prevenidas nas alíneas a), b), c), d), e), f) e g) do n. 2 desse artigo, quer as situações descritas nas alíneas do seu n.3 – v.g., a falta de apresentação tempestiva à insolvência e a omissão das obrigações discriminadas na al. b), atinentes às contas – embora fazendo presumir a culpa (grave, nos casos que se enquadrem no aludido n. 3) dos administradores, só autorizam a qualificar a insolvência como culposa se se evidenciar a existência de nexo de causalidade entre essas faltas e o estado de insolvência….”.

XXXV. “Nestas situações, sempre haverá, pois, não só de alegar-se a actuação culposa ou dolosa do devedor ou seus administradores, como alegar e comprovar o nexo de causalidade entre essa actuação e a situação da insolvência, nos termos em que o exige o n. 1 do artº 186º do CIRE.”[…]

XXXVI. Face a tudo quanto foi exposto, temos que a Lei não se basta com a enumeração das alíneas do n. 2 do artigo 186º do CIRE que se entendem estarem preenchidas como o bastante para desencadear a aplicação de uma insolvência como culposa, sendo antes exigido uma análise fundamentada e alicerçada em factos sólidos que constem do processo e que levem a uma conclusão, sem margem para dúvidas, de que a conduta do Recorrente prevista no aludido n. 2 do artigo 186º do CIRE, nos três anos anteriores ao processo de insolvência, agravou ou criou, com dolo ou culpa grave, a situação de insolvência.

XXXVII. Dos presentes autos não resulta, ainda que residualmente ou sequer ficou demonstrado, que o Recorrente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tivesse criado ou agravado a sua situação de insolvência em consequência de actuação dolosa ou com culpa grave de sua parte.

XXXVIII. Neste sentido veja-se a anotação 4., ao artigo 186.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Volume II, página 14, que dispõe que “Segundo o n.º 1, a insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor... Essa actuação deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.” (sublinhados nossos).

XXXIX. Em face do exposto, temos assim que, com o devido respeito, preencher o dito artigo, “agarrando-se” unicamente à presunção inilidível, para além de violar o próprio regime do artigo 186.º do CIRE “agride”, sem margem para dúvidas, os princípios e direitos constitucionais, entre os quais, o princípio do estado de direito democrático, o princípio da igualdade e o direito à tutela jurisdicional efetiva assim como os da legalidade e da proporcionalidade previstos nos artigos 3º, 18º nº 2, 202º nº 2 e 203º, todos da Constituição da República Portuguesa, tornando-se tal inconstitucional.

XL. Por outro lado, quanto ao alegado preenchimento do artigo 186.° n. 2 alínea d) do CIRE refere ainda a Sentença proferida que, “a conduta da insolvente relativa ao destino dado ao valor que lhe foi restituído pelo IEFP, I.P. (cfr. art. 23.º dos factos provados), também preenche a parte final da alínea d) do n. 2 do artigo 186.º, já que a sócia da insolvente só teria possibilidade de receber aquele valor depois de satisfeitos os credores garantidos, privilegiados e comuns”, posição perfilhada pelo Tribunal “a quo”, o que o Recorrente não pode aceitar.

XLI. O preceito em epígrafe dispõe que a insolvência é sempre culposa quando os seus administradores tenham “disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”.

XLII. Em primeiro lugar, dúvidas não podem restar que o valor em causa não se destinou ao proveito pessoal do Recorrente, e, dúvidas também não poderão restar que o valor em causa não destinou ao proveito pessoal de terceiros, também não foi para proveito próprio desta sociedade, pois a insolvente limitou-se a devolver parte do valor que aquela lhe havia anteriormente entregue para depósito desta mesma caução, e que resulta do facto 10 dado como provado.

XLIII. Com efeito, a sociedade “Tuvmetálica”, a quem se destinou este valor, não era um terceiro da insolvente, mas sim um seu credor, independentemente da categoria que tivesse.

XLIV. Existia, assim, um crédito anterior que foi parcialmente devolvido.

XLV. Acresce ao supra exposto e conforme supra relatado, que à data de tal devolução foram pagos todos os créditos em dívida a trabalhadores da insolvente, pelo que em momento algum pode a predita alínea ser enquadrada nos factos provados nesta lide.

XLVI. Temos assim que em face de todo o exposto igualmente neste ponto não se verifica o preenchimento do citado preceito legal, por tudo quanto foi já sobredito.

XLVII. Temos ainda que o Tribunal “a quo” manteve a Sentença proferida no que se refere ao facto dos Recorrentes serem condenados a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do respetivo património e pelo valor dos créditos incluídos na lista definitiva de credores, quando é certo que não resulta da matéria provada qualquer facto que pudesse originar o dano.

XLVIII. Atento todo o sobredito, e tendo em conta que pugnam os Recorrentes pelo não preenchimento do disposto nos artigos 186.º n. 2 al. d) e h) e n. 3 al. a) e b), todos do CIRE, temos que não poderão ser os Recorrentes condenados na extensão dos efeitos de uma declaração de insolvência culposa.

XLIX. No entanto, caso assim não se considere, sempre entendem os Recorrentes que a manutenção da sentença proferida, e designadamente do Acórdão ora em crise, no que à duração do período de inibição, bem como quanto à condenação do Recorrente AA a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, faz também aqui preterir os preditos princípios constitucionais.

L. Pois equivale à condenação ao pagamento de um valor sem provas, sem qualquer nexo de causalidade entre os factos apurados e o dano respectivo.

LI. Veja-se a este respeito o Comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 616/2018 efetuado por Rui Messias, Advogado Associado, Abreu Advogados, no qual refere que: [… da vasta jurisprudência constitucional atinente (nomeadamente os Acórdãos 658/06, 50/2009, 20/2010, 286/201 e 176/2013), e que apontam decisivamente no sentido da defesa do direito à tutela jurisdicional efetiva, em detrimento da simples celeridade processual, sendo que para se concluir nesse sentido há que recorrer ainda à análise do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18º da CRP. Conforme sustenta o aresto ora em análise, “[…] a admissibilidade da restrição de um direito constitucionalmente protegido (no caso, o direito acolhido no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) por uma norma que visa dar cumprimento a outro valor constitucionalmente relevante (no caso, a celeridade, referida no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição) só pode aferir-se mediante um juízo de proporcionalidade (cfr. o artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição). Nas palavras do Acórdão n.º 658/2006:“[…] Nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, se uma limitação interfere com um direito, restringindo-o, necessário se torna encontrar na própria Constituição fundamentação para a limitação do direito em causa como que esta se limite ‘ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’ – não podendo, por outro lado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, ‘diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais’. […]”. Impõe-se, pois, sujeitar a norma em análise a um controlo da proporcionalidade.”].

LII. Face a todo o acima exposto parece inequívoco que o Douto Acordão ora recorrido violou de forma flagrante o disposto no artigo 186º n. 2 al. d) e h); n. 3 a) e b) todos do CIRE bem como os artigos 3º, 18º n. 2, 202º n. 2 e 203º todos da CRP.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. suprirão, deverá presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, ser a decisão proferida pelo Tribunal a quo revogada e substituída por decisão que determine a classificação da insolvência como fortuita. Assim se fazendo a costumada justiça.»

5. Não sendo o art. 14º do CIRE aplicável ao presente apenso, foram os autos enviados à Formação a que alude o art. 672º, n.3 do CPC, a qual admitiu o recurso como revista excecional por existência de oposição de acórdãos.

Cabe apreciar.

APRECIAÇÃO DO RECURO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS:

1. Admissibilidade e objeto do recurso:

Como supra referido, o presente recurso foi admitido como revista excecional. E o seu objeto consiste em apurar se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do art.186º do CIRE, quando entendeu qualificar a insolvência da “TUVLUSA - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª” como culposa, afetando, em consequência, o seu sócio gerente, agora recorrente.

2. Factualidade provada:

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

«1. A insolvente, Tuvlusa - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, pessoa coletiva n. 510 356 699, com sede no Edifício Expobeiras - Parque Industrial de Coimbrões, em Coimbrões, freguesia de São João de Lourosa, concelho de Viseu, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número e a respetiva constituição foi registada pela Ap. 1/20120803.

2. Tem por objeto social a cedência temporária de trabalhadores, para utilização de terceiros utilizadores, podendo ainda desenvolver atividades de seleção, orientação e formação profissional, consultadoria e gestão na área exclusiva de recursos humanos.

3. Tem o capital social de € 10.000,00 (dez mil euros).

4. Tem como sócios AA e a sociedade Tuvmetálica, Lda, esta com uma quota de mil euros.

5. O único gerente da sociedade é o sócio AA.

6. A sociedade obriga-se com a assinatura de um gerente.

7. Na matrícula comercial da requerida só mostra depositada a prestação de contas dos exercícios de 2012 a 2015, e a data de encerramento do exercício é em 31 de dezembro.

8. A insolvente obteve autorização para o exercício da atividade de trabalho temporário por deliberação do Conselho Directivo do Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. de 30.04.2015, tendo obtido o alvará n.º …….15 de 05-08-2015.

9. Para o exercício da atividade de trabalho temporário a insolvente constituiu, a favor do Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P., uma caução no montante de € 71.417,50, através de depósito bancário.

10. Para o depósito da importância de € 68.048,75, relativa à constituição daquela caução, foi depositada na conta bancária da insolvente, que naquela data apresentava o saldo de €35,84, a quantia de €68.500,00 relativa a um cheque sacado sobre conta da sociedade Tuvmetálica, Ldª.

11. Por carta datada de 17-05-2017, o Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. comunicou à insolvente a suspensão da licença, relativa ao exercício de trabalho temporário, pelo período de dois meses, com fundamento na falta de requisitos para o exercício da atividade, em conformidade com o disposto no n.1 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 260/2009, de 25 de setembro.

12. A caução mencionada no artigo nono em 23.10.2017 foi acionada, a pedido do Instituto da Segurança Social, I.P., por dívida relativa a encargos com trabalhadores temporários, no montante de € 17.675,83.

13. Aquela licença foi revogada por deliberação de 28-11-2017 do Conselho Directivo do Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P., após suspensão da actividade por incumprimento dos deveres previstos no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 260/2009, de 25 de setembro.

14. Em 21 de Julho de 2017, a insolvente apresentou à Administração Fiscal a declaração anual de IES (Informação Empresarial Simplificada) relativa ao exercício de 2016, onde declarou, entre outros, os seguintes valores: i. Vendas e serviços prestados €56.414,44; ii. Subsídios à exploração € 3.851,60; iii. Fornecimentos e serviços externos € 5.915,94; iv. Gastos com o pessoal € 53.633,24; v. Outros gastos e perdas € 24,97; vi. Juros e gastos similares suportados € 82,08; vii. Resultado líquido do período € 609,81; viii. Activo € 192.257,53, que engloba investimentos financeiros [35.386,42], clientes [76.351,08], Estado e outros entes públicos [500,00], outros activos correntes [74.273,75], caixa e depósitos bancários [5.746,28]; ix. Capital próprio € 11.160,50, que inclui o capital realizado [10.000], resultados transitados [550,69] e resultado líquido do período [609,81]; x. Passivo € 181.097,03, que inclui financiamentos obtidos [11.829,45], outras contas a pagar [115.035,96 – estes dois valores correspondem a passivo não corrente], fornecedores [3.758,08], Estado e outros entes públicos [25.096,53], outros passivos correntes [54.231,66].

15. Os últimos dados contabilísticos da insolvente dizem respeito ao balancete relativo ao mês de marco de 2017 em que apresentava os seguintes valores: i. Activo - Caixa € 5.678,00; - Depósitos à ordem € 94.167,73; - Clientes € 69.580,72; - Investimentos Financeiros € 35.530,27; - Fornecimentos e serviços externos € 19.138,28; ii. Capital próprio e resultados líquidos € 11.160,50; iii. Passivo:  Clientes € 3.710,97; Fornecedores € 36.531,3; Pessoal € 21.229,00; Financiamentos obtidos € 100.112,19; outras contas a pagar € 50.643,85; Prestações de serviços € 2.079,64.

16. O valor do passivo relativo a financiamentos obtidos, incluía a importância de € 90.000,00 de um empréstimo com garantias pessoais concedido pelo Banco Popular em 09.03.2017.

17. Depois de 31.03.2017, além de comissões de manutenção e débito de juros, foram efectuados os seguintes movimentos na conta bancária da insolvente junto do Banco Popular:  i. 3-04-2017 transferência para a conta do valor de €479,64; ii. 6-04-2017: levantamentos e pagamentos € 499,43; 4-05-2017: transferência da conta do valor de €479,64; iv. 10-05-2017: depósito €9 00,00; v. 11-05-2017: pagamento € 559,47; vi. Maio de 2017: movimentos do cartão de crédito € 463,08; vii. 17 e 29 de Junho de 2017: pagamentos (274,62+243,10) viii. 23 e 29 de Junho de 2017: depósitos (20+260) € 280,00; ix. 7-07-2017: transferência da Tuvmetálica € 1 000,0; x. 7-07-2017: pagamento € 476,37; xi. Agosto de 2017: movimentos do cartão de crédito € 284,04; xii. 3-08-2017: transferência da Tuvmetálica € 1.000,00; xiii. 3-08-2017: transferência entre contas (crédito) € 1.048,77; xiv. 29-08-2017: pagamento do cartão Visa € 307,58; xv. 13-09-2017: transferência entre contas (crédito) € 1.000,00; xvi. 13-09-2017: transferência entre contas (débito) € 844,0; xvii. 20-09-2017: transferência da Tuvmetálica € 73.000,00; xviii. 20-09-2017: transferência para a Tuvmetálica € 9.000,00; xix. 20-09-2017: transferência para a Tuvmetálica € 16.000,00; xx. 22-09-2017: transferência para a Tuvmetálica € 9.000,00; 28-09-2017: transferência para a Tuvmetálica € 10.000,00; xxii. 29-09-2017: pagamento de impostos € 1.409,35; xxiii. 29-09-2017: transferência para a Tuvmetálica € 15.000,00; xxiv. 03-10-2017: débito em conta € 6.000,00; xxv. 04-10-2017: transferência para a Tuvmetálica € 3.500,00; xxvi. 04-10-2017: transferência para a Tuvmetálica € 1.500,00; xxvii. 06-10-2017: transferência para a T..... € 4.000,00; xxviii. 10-10-2017: transferência para a Tuvmetálica € 4.000,00; xxix. 12-10-2017: transferência para a Tuvmetálica € 2.000,00; xxx. 13-10-2017: débito em conta € 700,00.

18. No período de 02-10-2017 a 30-05-2018, nas contas bancárias da insolvente foram efetuados os movimentos descritos nos documentos n. 73 a 78, juntos pela insolvente ao processo principal, e de fls. 48 a 49 destes autos, juntos pelo requerido em 25-11-2019, cujo teor se dá por reproduzido.

19. A insolvente não dispõe de contabilista certificado desde outubro de 2017.

20. A insolvente deixou de exercer a atividade de trabalho temporário em data indeterminada de 2017, mas não posterior à notificação da revogação mencionada no artigo 13.º.

21. A última declaração de IES apresentada pela insolvente reporta-se ao exercício de 2016.

22. A contabilista certificada contratada pela insolvente, em janeiro de 2018, não aceitou executar os respetivos serviços pelo facto de existirem dívidas ao contabilista certificado anterior.

23. O remanescente da caução referida no artigo nono no montante de € 53.741,67 foi devolvido à insolvente por cheque precatório de 28.05.2018.

24. O montante mencionado no artigo anterior foi entregue à sociedade Tuvmetálica, Lda, que liquidou a importância de três mil euros a trabalhadores da insolvente.

25. O principal cliente da insolvente era a sociedade Tuvmetálica, Lda.

26. A partir de data indeterminada, mas ocorrida no período de outubro a novembro de 2016, a insolvente passou a exercer a sua actividade nos escritórios da sociedade Tuvmetálica Lda., sem pagar qualquer contrapartida pela utilização do espaço.

27. No processo n.º 1819/18….., que correu termos pelo Juízo do Trabalho …, Juiz …., intentado pelo requerente da insolvência contra a insolvente, por sentença proferida em 28 de junho de 2018, foi declarado(a):

- Que o requerente BB trabalhou por conta e sob as ordens da insolvente Tuvlusa Empresa de Trabalho Temporário, Lda. ininterruptamente desde 08/09/2016 até 26/02/2018, desempenhando as funções inerentes à categoria profissional de técnico administrativo;

- Que à relação laboral entre autor e ré é aplicável a Portaria das Condições de Trabalho nº 210/2012 de 12 de julho;

- A ilicitude do despedimento operado pela ré.

28. Em consequência, foi condenada a requerida a pagar ao requerente as seguintes quantias: 

€ 10.061,00 (dez mil e sessenta e um euros) a que acrescem juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação ocorrida em 15.05.2018 (sendo € 6.524,00 a título de créditos salariais, € 1.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais e a quantia de € 2.037,00 a título de indemnização em substituição da reintegração pelo despedimento ilícito);

O valor das retribuições vencidas e vincendas desde 13.03.2018 até ao trânsito em julgado da sentença, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a data do vencimento de tais retribuições, até efetivo e integral pagamento. A tais retribuições, terão que ser feitas as deduções previstas no n. 2, al.s a) e c) do art. 390º do CT, ou seja, ao montante apurado de tais retribuições são deduzidas as importâncias que o trabalhador aufira com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento, sendo que o montante do subsídio de desemprego atribuído ao trabalhador é deduzido na compensação, devendo a requerida entregar essa quantia à segurança social.

29. Em 14 de Dezembro de 2018, BB requereu a declaração de insolvência de Tuvlusa – Empresa de Trabalho Temporário, Lda, que, citada para o efeito, não deduziu oposição e foi declarada insolvente por sentença proferida em 25 de março de 2019, transitada em julgado.»

3. O direito aplicável:

Como supra enunciado, a questão a solucionar na presente revista é a de apurar se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do art.186º do CIRE, quando entendeu qualificar a insolvência da “TUVLUSA - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª” como culposa, afetando, igualmente, o seu sócio gerente, agora recorrente.

3.1. O acórdão recorrido confirmou a decisão da primeira instância, de qualificar a insolvência como culposa, tendo por base o preenchimento de várias presunções de culpa, concretamente a prevista na alínea a) do nº 3 do artigo 186.º e as previstas nas alíneas d) e h) do nº 2 do mesmo preceito.

3.2. Na tese do recorrente, não resulta dos autos que a tardia declaração de insolvência tenha contendido com quaisquer propósitos de ocultação ou dissipação de património. Entende também o recorrente que a devolução de um valor em dívida a um credor, independentemente da sua categoria, não pode perfilhar uma situação de agravamento da insolvência. Acrescenta que não faria qualquer sentido que, só porque não se procedeu ao depósito de contas de alguns anos se qualificasse a insolvência como culposa e que sempre terá de ser provado um nexo de causalidade entre a criação ou agravamento da situação de insolvência e o incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter uma contabilidade organizada com prejuízo para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Insolvente. Afirma ainda que o acórdão recorrido terá incorrido em aplicação de normas inconstitucionais.

3.3. Tratando-se de insolvência de devedor que não seja uma pessoa singular, como se verifica no caso concreto, o legislador tipificou várias hipóteses de comportamentos, cuja verificação faz presumir a existência de insolvência culposa.

Estabelece o artigo 186º do CIRE:

«1- A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º

3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;    

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

4 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.

 5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente

3.4. O art.186º, nº 3, alínea a) do CIRE presume a existência de culpa grave quando os administradores da sociedade devedora não cumpram o dever de requerer atempadamente a insolvência.

No caso concreto, a partir da revogação da licença administrativa, em novembro de 2017, a devedora deixou de poder exercer a sua atividade, pelo que, depois dessa ocorrência, terá deixado de ter capacidade financeira para cumprir as suas obrigações vencidas (art.3º, n.1 do CIRE), razão pela qual a devedora devia ter sido apresentada à insolvência pelo seu gerente (o aqui recorrente), no prazo de 30 dias a seguir à tomada de conhecimento da sua situação de insolvência, como decorre dos artigos 18º, nº 1 e 19º do CIRE.

Embora não seja possível saber qual a data exata em que a devedora se devia ter apresentado à insolvência, tal devia, certamente, ter acontecido antes de maio de 2018, pois a devedora foi citada, em 15.05.2018, para a ação que o credor lhe moveu no Juízo do Trabalho .… (vd. factos provados n.27 e 28), nos termos da qual veio a ser condenada. Por outro lado, como resulta dos factos provados n.23 e 24, depois de 28.05.2018 (ou seja, 6 meses depois de ter perdido a licença para o desenvolvimento da atividade de trabalho temporário), foi a T...... quem pagou a trabalhadores da devedora/insolvente a quantia de 3.000 Euros, o que demonstra a sua incapacidade, já nessa altura, para pagar os seus débitos.

Mesmo entendendo que entre a omissão do dever de apresentação à insolvência e a incapacidade do devedor para satisfazer os seus credores deve existir um nexo de causalidade, tal nexo de causalidade é objetivamente demonstrável no caso concreto.

Efetivamente, se a devedora se tivesse apresentado à insolvência antes de 28.05.2018, data em que o Instituto do Emprego e Formação Profissional lhe devolveu o remanescente da caução referida no artigo 9º dos factos provados, no montante de € 53.741,67 (facto provado n.23), esse montante teria passado a integrar a massa insolvente. Consequentemente, podiam os credores ter reclamado os seus créditos na insolvência (nos termos do art.128º do CIRE). Deste modo, o ex-trabalhador requerente da insolvência podia aí ter reclamado o crédito que lhe veio a ser reconhecido pelo Juízo do Trabalho …. O mesmo podia, eventualmente, ter acontecido com outros trabalhadores da insolvente a quem a T..... pagou os referidos 3.000 Euros. E a própria T....., sócia da insolvente, se tinha um crédito sobre esta, encontraria também aí o local próprio para reclamar o pagamento desse crédito.

Em tal cenário, sendo a T..... sócia da insolvente, o seu crédito seria um crédito subordinado, nos termos dos artigos 48º e 49º, n.2 do CIRE, pelo que seria um crédito graduado depois dos restantes créditos, concretamente depois do crédito do ex-trabalhador que requereu a insolvência.

3.5. Entregando o remanescente da caução diretamente à sua sócia T....., ainda que esta tivesse, anteriormente, mutuado esse valor à insolvente Tuvlusa (facto que não se encontra expressamente demonstrado no ponto 10 dos factos provados, provando-se apenas que a caução tinha sido paga com um cheque sacado sobre conta da T.....), quando já se encontrava objetivamente numa situação de insolvência (que não requereu), a T..... acabou por dispor de bens em proveito de terceiro, preenchendo, assim, a hipótese prevista na alínea d) do n. 2 do art. 186º, que corresponde a uma inilidível presunção de insolvência culposa.

3.6. Quanto à hipótese prevista na alínea h) do n. 2 do art.186º (incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada), e alínea b) do n. 3 (incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal) constata-se que, relativamente ao exercício de 2017, o único documento da contabilidade existente e é o balancete relativo ao mês de março. Assim, sem os demais elementos contabilísticos, designadamente os relativos às demonstrações financeira, não é possível ter uma representação fiel da situação patrimonial e financeira da empresa e dos resultados da mesma nesse período. Alega o recorrente que procurou cumprir a obrigação de ter a contabilizada, mas que tal não lhe foi possível pelo facto de o anterior contabilista se ter recusado a tal e o Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas impedir a contratação de outro técnico. Ora, ainda que as presunções consagradas naquelas alíneas admitissem prova em contrário, nunca o argumento invocado permitiria alcançar tal desiderato, porquanto a razão última de tal omissão é-lhe exclusivamente imputável. Para solucionar o problema, bastaria ter pago atempadamente ao contabilista.  

E ainda que tais hipóteses não se encontrassem demonstradas, já a situação de insolvência culposa resultaria do preenchimento das alíneas a) do n. 3 e h) do n. 2, e tal seria suficiente para demonstrar a existência de insolvência culposa no caso concreto.

3.7. Entende o recorrente que o acórdão recorrido, ao “agarrar-se” a presunções inilidíveis violou o art. 186º do CIRE e agrediu “os princípios e direitos constitucionais, entre os quais, o princípio do estado de direito democrático, o princípio da igualdade e o direito à tutela jurisdicional efetiva assim como os da legalidade e da proporcionalidade previstos nos artigos 3º, 18º n. 2, 202º n. 2 e 203º, todos da Constituição da República Portuguesa, tornando-se tal inconstitucional”. Na mesma linha, entende que “no que à duração do período de inibição, bem como quanto à condenação do Recorrente AA a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, faz também aqui preterir os preditos princípios constitucionais, pois equivale à condenação ao pagamento de um valor sem provas, sem qualquer nexo de causalidade entre os factos apurados e o dano respectivo”.

Ora, nenhuma violação de regras constitucionais se identifica na aplicação dos preceitos contidos no art. 186º nem 189º (com a redação dada pela Lei n. 16/2012) do CIRE, nem o recorrente demonstra, objetivamente, em que medida cada um dos preceitos invocados contrariaria disposições constitucionais. Efetivamente, não revelam essas normas qualquer contrariedade ao princípio da proporcionalidade, não se identificando ilegitimidade constitucional quanto aos fins prosseguidos por aquelas disposições legais, nem quanto aos meios utilizados[2]. São normas que visam a tutela da confiança do comércio em geral, e que conduzem a consequências, para o gerente da insolvente, temporalmente e patrimonialmente limitadas.

*

Em resumo, não existe fundamento para revogar o acórdão recorrido, o qual havia confirmado a decisão da primeira instância no sentido de:

1. Qualificar como culposa a insolvência da sociedade Tuvlusa – Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, pessoa coletiva nº. …., com sede no Edifício … -  Parque   …., em …, freguesia ….., concelho …...

2. Declarar afetado pela qualificação o requerido AA e, em consequência:

a) Decretar a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros pelo período de trinta meses;

b) Declarar AA inibido, pelo período de trinta meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública   ou cooperativa;

c) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA;

d) Condenar AA, até às forças do respetivo património, o que inclui todos os seus bens suscetíveis de penhora, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos.

DECISÃO: Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente

Lisboa, 23.02.2021

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

*A relatora declara que, nos termos do art. 15.º-A do DL n. 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL n. 20/2020, de 1 de maio, o presente acórdão tem voto de conformidade dos Conselheiros adjuntos.

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] O requerimento de interposição do recurso de revista foi apresentado também pela “TUVLUSA - Empresa de Trabalho Temporário, Ldª”. Todavia, o Sr. Desembargador Relator admitiu a subida do recurso apenas quanto ao recorrente AA, pois a TUVLUSA não tinha apelado da sentença.
[2] Vd. J. Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, p. 166.