Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S743
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: TRANSFERÊNCIA DE TRABALHADOR
MUDANÇA DE ESTABELECIMENTO
COMUNICAÇÃO
PREJUÍZO SÉRIO
RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
Nº do Documento: SJ20070705007434
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Enquanto o regime do art. 24.º da LCT estabelecia um princípio geral de proibição de transferência individual do trabalhador, fazendo prevalecer o interesse deste na «estabilidade geográfica» da prestação sobre as conveniências empresariais que apontam para a mobilidade do pessoal, o regime previsto no n.º 1 do art. 315.º do Código do Trabalho apresenta-se mais sensível aos interesses do empregador, conferindo-lhe, por norma, a faculdade de transferência individual do trabalhador.

II - Nesta situação, a existência de um «prejuízo sério» habilita o trabalhador a optar por: (i) permanecer no local de trabalho, desobedecendo a uma ordem que é ilegítima (a existência desse prejuízo constitui, então, um facto impeditivo do direito, por banda e no interesse do empregador, de alterar o local de trabalho); (ii) resolver de imediato o vínculo com o consequente direito à componente indemnizatória.

III - Em caso de transferência do trabalhador para outro local de trabalho, resultante da mudança, total ou parcial, do estabelecimento onde aquele presta serviço (n.º 2, do art. 315.º do CT), a única foram de oposição do trabalhador, caso se verifique o «prejuízo sério», reconduz-se à resolução do vínculo, acompanhada da respectiva indemnização.

IV - Na transferência colectiva, a lei presume «juris et de jure» um interesse funcional da empresa na mudança do estabelecimento, enquanto que na transferência individual do trabalhador, cabe à empresa alegar (na comunicação escrita) e provar (em juízo) que o faz por exigência organizativa objectivamente relevante.

V - Tanto na transferência individual como na transferência colectiva do trabalhador, o «prejuízo sério» constitui o necessário pressuposto de qualquer reacção que o trabalhador queira (ou possa) assumir de oposição a essa transferência, competindo-lhe, à luz do Código do Trabalho, o ónus da prova desse prejuízo.

VI - É de qualificar como transferência parcial do estabelecimento a mudança de todos os trabalhadores da entidade empregadora que laboravam nas secções encerradas, ainda que outras secções da mesma empregadora não tenham sido transferidas.

VII - Para que a transferência do trabalhador seja válida e eficaz exige-se também que o empregador cumpra o prazo legal de comunicação prévia previsto no art. 317.º do CT e indique, por escrito, o fundamento de gestão que o leva a implementar a transferência.

VIII - Porém, se o trabalhador, na carta em que comunica à empresa a resolução do contrato de trabalho não fundamenta esta na preterição das normas procedimentais a que deveria obedecer aquela comunicação, limitando-se a coligir os «prejuízos» decorrente da transferência, não pode a referida preterição sustentar a justa causa (subjectiva) de resolução do contrato de trabalho.

IX - O «prejuízo sério» exigido no art. 315.º, n.º 4 do CT para a resolução com justa causa do contrato de trabalho deve consubstanciar um dano relevante, que não se reconduza a simples transtornos ou incómodos.

X - Não constitui «prejuízo sério», para os efeitos do exercício do direito de resolução do contrato de trabalho com indemnização, o facto de com a mudança de local de trabalho o trabalhador passar a despender diariamente com as deslocações entre 1.00h a 1h15m e de perder uma situação de vantagem que resultava da relação de proximidade do anterior local de trabalho com a residência (almoçar em casa, dispor de mais tempo para a lide da mesma, e para descanso e acompanhamento familiar).
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1- RELATÓRIO

1.1.
AA intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra “BB – Comércio de Automóveis Ld.ª”, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe os créditos emergentes do contrato individual de trabalho que havia sido aprazado entre as partes, uma indemnização pela sua cessação com justa causa e os respectivos juros moratórios, alegando que a Ré, com prejuízo sério da Autora, mudou o seu local de trabalho de S. João da Madeira para Oliveira de Azeméis, mediante ordem verbal dada na véspera.
A Ré considera que o despedimento da demandante carece de justa causa e, porque não foi observado o prazo legal de aviso prévio, dela reclama a quantia de € 1.076,80, a compensar com a dívida de € 978,80, que reconhece ter para com a Autora.
1.2.
Instruída e discutida a causa, foi proferida sentença que, na procedência parcial da acção e na improcedência da reconvenção, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 1.774,89, acrescida de juros moratórios.
Esse montante reporta-se, tão apenas, a créditos salariais em dívida, pois a sentença considerou que a Autora não tinha justa causa para rescindir o vínculo laboral com a Ré.
Sob desatendida apelação da Autora, o Tribunal da Relação do Porto confirmou integralmente a decisão da 1ª instância.
1.3.
Mantendo-se irresignada, a Autora pede a presente revista, em cujo âmbito alinha o seguinte núcleo conclusivo:
1- o “non-liquet”, em relação a um qualquer facto integrante do direito que se pretende fazer valer, tem de ser valorado “contra” quem o invoca, não se podendo “pressupor” o que nem sequer é alegado e, muito menos, provado;
2- mostra-se violado o art. 342º do C.C., quer no seu n.º 1, se for entendido que a iminência do perigo de caírem as placas do tecto são integrantes do direito de a demandada operar a transferência nos termos em que o fez, sem quaisquer formalidades e da tarde de um dia para a manhã do dia seguinte, quer do seu n.º 2, se se entender que a referida iminência rechaça a arguição da A. de transferência ilícita. A boa interpretação deste preceito impediria de todo a expressa “pressuposição”, levada a cabo pelo Acórdão recorrido, da actuação em prol da integridade física, saúde e segurança dos trabalhadores;
3 - não pode ser tido como mudança total ou parcial do estabelecimento uma transferência para outras instalações, mantendo o anterior estabelecimento aberto e a funcionar, ali permanecendo trabalhadores para o efeito;
4- mostram-se erradamente interpretados os n.ºs 1 e 2 do art.º 315º do C.T., ao ter-se enquadrado a transferência no n.º 2, quando devia tê-lo sido naquele n.º 1;
5- o dispêndio de mais 70 minutos por dia no percurso de ida e volta, praticamente mais um dia de trabalho por semana, com prejuízo para a sua vida pessoal, familiar e tempo de descanso, com a agravante do maior desgaste e cansaço que tal deslocação esse iria acarretar, o facto de a recorrente ver prejudicada a possibilidade de ir a casa na hora de almoço, período que dedicava às lides domésticas e à família, perdendo assim, igualmente, a possibilidade de fazer em casa as suas refeições, com inerente prejuízo patrimonial, prejuízo igualmente resultante dos custos com os transportes públicos, e evidente perda de qualidade de vida , tendo aqui também em conta que a A. estava prestes a completar 51 anos de idade, do que resulta uma menor resistência física para aguentar uma alteração de horários, hábitos de vida, os conhecidos incómodos da utilização de transportes públicos e uma diminuição dos tempos de descanso, consubstancia prejuízo suficiente para integrar o conceito de prejuízo sério”, a que alude o art.º 315º n.º 1 do C.T. que, por errada interpretação, se mostra violado;
6- a singela declaração da recorrida de que “iria resolver essas questões”, quando interpelada pela recorrente para saber como iria ser resolvido o problema do almoço e das deslocações, é manifestamente insuficiente, face às exigências procedimentais impostas ao empregador pelo art.º 317º do C.T. e para dar cumprimento à obrigação, também imposta ao empregador pelo art.º 315º n.º 5 do mesmo Código, de custear as despesas impostas pela transferência, mostrando-se igualmente violados, desse modo, os preceitos supra referidos;
7- o ónus da prova da inexistência do prejuízo sério, mesmo no caso de uma transferência temporária, impendia sobre a recorrida. Ao não lograr provar que iria proceder às necessárias adaptações de horário de trabalho e tratar da logística das deslocações, como correctamente alegar, a transferência operada pela R. terá de ser julgada ilícita, como decorre dos já citados art.ºs 315º n.º 1 e 342º n.º 1, de cuja conjugação resulta ser de julgar inexistente o direito a que a R. se arrogava;
8- a recorrida não observou qualquer das formalidades previstas para a comunicação da decisão de transferência, não o tendo feito por escrito, não observando o prazo de pré-aviso legal e, mesmo considerando a transferência temporária, não indicou o prazo previsível da alteração, do que resulta a total ilicitude da transferência operada – art. 317º do C.T.;
9- os problemas da degradação das instalações em S. João da Madeira iniciaram-se em 2002, sendo que a R. se manteve ali por mais 2 anos e mantém aberto, nas mesmas instalações, o stand de automóveis, onde entram e saiam vendedores, clientes e carros, não se provando, porque nem sequer alegado, que existisse qualquer perigo iminente a obrigar uma transferência de um dia para o outro com omissão de todas as formalidades legais. Tal facto, integrante da legalidade da transferência, teria de ser alegado e provado pela R., sendo que o Acórdão, ao entender o contrário, violou os citados art.ºs 317º e 342º n.º 1;
10- a modificação unilateral do local de trabalho só pode ocorrer se for pautada pela estrita observância do princípio da boa fé, que se manifesta, desde logo, na observância das formalidades e condições legais, bem como nos deveres acessórios de esclarecimento e lealdade. Toda a atitude da R., desde o assinalado incumprimento até à reunião individual com cada um dos trabalhadores, a poucas horas da transferência, é reveladora de um carácter impositivo e opressivo e, logo, da falta de lealdade com que actuou em todo o processo;
11- a justa causa de resolução do contrato de trabalho, por iniciativa do trabalhador, tem de ser apreciada nos mesmos termos da justa causa do despedimento, promovido pelo empregador – art.ºs 441º n.º 4 e 396º n.º 2 do C.T. .
Segundo aquele 1º preceito, constitui justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, “a violação culposa das garantias legais ou convencionais do trabalhador”, bem como, nos termos da sua al. E), “a lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador”.
A gravidade do comportamento, culposo, da R., que se deixou demonstrado, impossibilita a subsistência da relação laboral, atingindo, de forma séria e definitiva, garantias essenciais da A., enquanto trabalhadora e que, inclusivamente, as normas constitucionais visam garantir como fundamentais.
12- mostram-se igualmente violados aqueles dois últimos preceitos.
1.4.
Não foram apresentadas contra-alegações.
1.5.
A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer, que a recorrente censurou, no sentido de ser negada a revista.
1.6.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2- FACTOS

As instâncias deram pacificamente como assente a seguinte factualidade:
1- a A. foi admitida ao serviço da R. em 2/12/87 para trabalhar sob as suas ordens, direcção e fiscalização, nas suas instalações sitas à Rua ..........., ....., em S. João da Madeira;
2- a A. tem a categoria de escriturária de 1ª e, em 2004, auferia a retribuição mensal de € 533,90;
3- a A. sempre foi uma trabalhadora honesta, zelosa, diligente, cumpridora das suas obrigações laborais e não sofreu, ao serviço da R., qualquer sanção disciplinar;
4- no dia 2/6/04, da parte da tarde, o representante da R., Eng. CC, acompanhado dos Engs. DD e EE, compareceram na sede da R., em S. João da Madeira e reuniram separadamente com cada um dos trabalhadores, entre eles a A., comunicando-lhes que a oficina e o escritório iam encerrar para realização de obras no edifício, que se encontrava em grave estado de degradação, ficando aberto apenas o Stand de vendas de automóveis e que, no dia seguinte, deviam comparecer nas instalações da R. em Oliveira de Azeméis;
5- nessa reunião, tendo a A. colocado o problema do almoço e das deslocações, foi-lhe dito que a R. iria resolver essas questões;
6- no dia 3/6/04, pelas 9,00h, a A. Compareceu, como de costume, nas instalações da R. em S. João da Madeira, constatando que estavam encerradas;
7- ainda no dia 3/6/04, a A. remeteu à R. a carta inserta a fls. 11 a 13 dos autos;
8- o horário da A. em S. João da Madeira era das 9,00 às 12h30 e das 14h00 às 18h15;
9- a A. reside a cerca de 100 metros das instalações da R. em S. João da Madeira, gastando cerca de 5 minutos na deslocação;
10- com a transferência para Oliveira de Azeméis, a A. passaria a fazer cerca de 20 Kms diários, no percurso de ida e volta;
11- para se deslocar para S. João da Madeira de comboio, “o vouguinha”, de manhã teria de o apanhar às 7h30, saindo de casa às 7h25, e chegava a Oliveira de Azeméis às 7h52. No final do dia, tinha comboio pelas 18h19 e chegava a S. João da Madeira pelas 18h34;
12- deslocando-se de autocarro, existe uma carreira semi-directa, que parte de S. João da Madeira pelas 8h20 e chega a Oliveira de Azeméis pelas 8h40, tendo depois de efectuar um percurso de cerca de 15 minutos a pé para chegar às instalações da R.;
13- com os referidos transportes, despenderia mensalmente cerca de € 46;
14- a A. não tem carro próprio, sendo que o marido é reformado e tem veículo automóvel que, normalmente, utiliza para se deslocar a Arouca, onde cultiva alguns terrenos;
15- a A. almoçava diariamente em casa e, em virtude da mudança de local de trabalho, teria de passar a almoçar fora;
16- e, passando a gastar mais tempo em viagens nas deslocações casa/trabalho e vice-versa, veria prejudicado o tempo para tratar da lide da casa, das limpezas, da preparação das refeições, da realização de compras e para descansar e acompanhar a família;
17- a A. ficou triste e abalada pela forma como a R. lhe comunicou a mudança de local de trabalho;
18- a A. nasceu em 10/7/53;
19- a R. não pagou dois dias de trabalho do mês de Junho;
20- e também não lhe pagou as férias e os subsídios de férias e de Natal relativas ao trabalho prestado em 2004;
21- as instalações da R. em S. João da Madeira estão em grave estado de degradação e a R., depois de fazer diligências infrutíferas junto dos proprietários do prédio, está a tentar resolver o problema com um processo administrativo na Câmara de S. João da Madeira, para que esta lhe autorize a realização de obras, com posterior desconto do dispêndio na renda mensal;
22- a permanência dos trabalhadores nas instalações poderia originar ofensas à sua integridade física, pois que, já no decurso de 2002, caíram algumas placas do tecto;
23- a R. não tinha, nem tem, outras instalações em S. João da Madeira, que permitissem aos trabalhadores manterem-se nesta cidade, e decidiu encerrar as referidas instalações, com excepção do Stand de vendas, até à realização das obras a suas expensas, estando a aguardar a respectiva autorização da Câmara Municipal, tendo, para o efeito já apresentado dois orçamentos;
24- após a reunião do dia 27/6, a A. voltou a dirigir-se à R. no final do mês, tendo sido recebida pelo Dr. FF, ao qual solicitou a declaração da situação de desemprego – Modelo 346 – e, tendo-lhe o mesmo entregue um impresso sem a indicação do motivo da cessação do contrato, a A. reclamou, por escrito, uma declaração completa, junta a fls. 73;
25- a R. necessitava da A. nas instalações de Oliveira de Azeméis e foi obrigada a colocar outra trabalhadora a desempenhar as suas funções;
26- a R. respondeu à comunicação da A., datada de 3/6, através da carta inserta a fls. 34 e 35, cujo teor aqui se dá por reproduzido e que a mesma recebeu em 2/7, dando-lhe resposta por nova carta de 5/7, junta a fls. 60 e 61 dos autos;
27- devido aos compromissos assumidos com a “Ford”, a R. mantém o Stand de vendas aberto nas instalações de S. João da Madeira, onde se encontram veículos e vendedores e entram clientes, mas as instalações não oferecem condições de segurança.
São estes os factos.

3- DIREITO
3.1.
A questão essencial em debate nos autos, tal como ela ficou circunscrita com o recurso de apelação e se mantém na presente revista, traduz-se em saber se a Autora tinha, ou não, “justa causa” para resolver o contrato de trabalho que a ligara à Ré, com repercussão exclusiva na componente indemnizatória que a demandante vem reclamando desde a propositura da acção.
As instâncias convergiram negativamente na resposta a essa questão, sustentando, em suma, que a ordenada transferência da Autora – de S. João da Madeira para Oliveira de Azeméis – não era susceptível, à luz da factualidade assente, de lhe causar o “prejuízo sério” que a lei elege como necessário pressuposto desse invocado motivo rescisório.
A Autora discorda, afadigando-se em coligir os prejuízos pessoais, familiares e económicos que dessa transferência necessariamente lhe advinham.
Mas, para além dessa censura global, a Autora questiona ainda o tipo de transferência em causa – que considera “individual” e não “colectiva” (como entenderam as instâncias), bem como a preterição das formalidades legalmente impostas ao empregador na produção do acto de comunicação da transferência.
Assim, a problemática equacionada na revista reconduz-se à análise das seguintes questões:
1ª- “mobilidade geográfica” modalidades e pressupostos;
2ª – formalidades da comunicação da ordem de transferência e consequências da sua eventual preterição;
3ª- qualificação da transferência ordenada pela Ré;
4ª- “justa causa” – subjectiva e objectiva – de relação contratual por parte da Autora.
3.2.
No caso dos autos, atenta a data em que se operou a resolução do vínculo laboral – 3/6/04 – o complexo normativo atendível é o que emerge do Código do Trabalho (a que pertencem todos os preceitos a citar sem menção específica).
No âmbito dos seus poderes de conformação da prestação de trabalho, assiste ao empregador o direito de “localizar” essa prestação, ou seja, de definir em que lugar há-de a mesma ser desenvolvida.
Porém, como elemento decisivo que é para o estatuto sócio-profissional do trabalhador – por um lado, a “dimensão espacial” condiciona o vínculo de subordinação jurídica e, por outro, constitui a referência para que o trabalhador organize o seu “modus vivendi” – o local de trabalho decorre, ainda que por mera adesão, do acordo celebrado entre as partes, aquando da vinculação recíproca.
Corporizando, por via disso, um interesse primordial do trabalhador, o direito à manutenção do local de trabalho impede a entidade patronal, por via de regra, de transferir os seus empregados “… para outro local de trabalho, salvo nos casos previstos neste Código e nos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, ou quando haja acordo” – art.º 122º al. F).
Em consonância com esse princípio geral de inamovibilidade, também o art.º 154º n.º 1 dispõe que “… o trabalhador deve, em princípio, realizar a sua prestação no local de trabalho contratualmente definido, sem prejuízo do disposto nos artigos 315º a 317º”.
Estes preceitos normativizam, por seu turno, os desvios consentidos “ope legis” ao assinalado princípio.
Aquele art.º 315º prevê as duas situações em que – afora a transferência temporária – é admitida a mudança de local de trabalho por determinação da entidade patronal.
De acordo com o seu n.º 1, “o empregador pode, quando o interesse da empresa o exija, transferir o trabalhador para outro local de trabalho, se essa transferência não implicar prejuízo sério para o trabalhador”(sublinhado nosso).
Trata-se da chamada “transferência individual”, que pressupõe a simples mudança de um posto de trabalho, permanecendo imutável o complexo físico da organização empresarial.
Enquanto o regime de pretérito – art.º 24º da L.C.T. – estabelecia, neste domínio, um princípio geral de proibição da transferência – fazendo prevalecer o interesse do trabalhador na “estabilidade geográfica” da prestação sobre as conveniências empresariais que apontam para a mobilidade do pessoal – o regime vigente parece mais sensível aos interesses do empregador, visto que lhe confere, por norma, a faculdade de transferência individual (cfr. Monteiro Fernandes in “Direito do Trabalho”, 12ª ed., pág. 423).
Ainda assim, a existência de um “prejuízo sério” habilita o trabalhador, nesta modalidade de transferência, a optar por:
- permanecer no seu local de trabalho, desobedecendo a uma ordem que é ilegítima: é que a existência desse prejuízo constitui, então, um facto impeditivo do direito, por banda e no interesse do empregador, de alterar o local de trabalho;
- resolver de imediato o vínculo, com o consequente direito à componente indemnizatória.
Por seu turno, o n.º 2 do citado art.º 315º dispõe que “o empregador pode transferir o trabalhador para outro local de trabalho, se a alteração resultar da mudança, total ou parcial, do estabelecimento onde aquele presta serviço”: nessa hipótese, “o trabalhador pode resolver o contrato se houver prejuízo sério, tendo neste caso direito à indemnização prevista no n.º 1 do artigo 443º” – n.º 4 daquele art.º 315º (sublinhado nosso).
Ao contrário do que sucede na transferência individual, o único meio de resistência, consentido aqui ao trabalhador, reconduz-se à resolução do vínculo, necessariamente acompanhada da respectiva indemnização.
Mas, para isso, torna-se também incontornável a existência do “prejuízo sério”.
E, no domínio probatório desse prejuízo, o regime actual, no confronto com a anterior, estabelece uma relevante diferença:
- enquanto o mencionado art.º 24º da L.C.T. reconhecia ao trabalhador, nesta modalidade de transferência, a faculdade de romper o vínculo, “… salvo se a entidade patronal provar que da mudança não resulta prejuízo sério para o trabalhador” (n.º 2 – parte final – sublinhado nosso), o regime vigente eliminou essa presunção e o consequente ónus infirmativo a cargo do empregador.
As alterações produzidas vieram aproximar o regime das duas modalidades de transferência, no que concerne ao critério de repartição do ónus da prova.
Continuando a ser exacto que o “prejuízo sério” constitui o necessário pressuposto de qualquer reacção que o trabalhador queira (ou possa) assumir – resolução contratual com indemnização (nas duas modalidades); resolução ou desobediência (na transferência individual) – parece que o Código actual comete sempre ao trabalhador a responsabilidade pela prova desse pressuposto.
Salienta, a este propósito, Monteiro Fernandes:
“Em suma, o art.º 342º do C. Civil implica, tanto na transferência individual como na colectiva, a atribuição do ónus da prova dos factos (que servirão de suporte à apreciação das consequências expectáveis) ao trabalhador em homologia, de resto, com o que se constatou a propósito do ónus de alegação” (ob. cit., pág. 429).
Mas, ainda quando seja de entender que cabe ao empregador alegar e provar todos os pressupostos que legitimam a ordem, sempre será forçoso reconhecer que, neste particular, a alegação se basta com a inexistência de “prejuízo sério” para o trabalhador (cujas condições de vida não é aquele obrigado a conhecer), competindo ao trabalhador provar o referido prejuízo para se escusar ao cumprimento da ordem (cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho in “Direito do Trabalho”, Parte II, pág. 415).
Como quer que seja, subsiste uma diferença notória entre as duas modalidades: é que a transferência individual só é admissível se o interesse da empresa o exigir.
É claro que a transferência colectiva também pressupõe um interesse funcional da empresa: só que, neste caso, a lei presume-o “de júris ed de jure”, conferindo uma protecção absoluta ao interesse organizativo e gestionário do empregador.
Assim, se a empresa quiser transferir singularmente um seu trabalhador, cabe-lhe alegar (na comunicação escrita) e provar (em juízo) que o faz por exigência organizativa objectivamente relevante, sem o que essa pretensão não deixará, desde logo e sem mais, de se assumir como intoleravelmente ilegítima.
Só depois de reconhecer esse interesse da empresa é que cabe ao tribunal avaliar os prejuízos reclamados para o trabalhador, o que não deixará, apesar disso, de exigir um confronto entre esses dois interesses conflituantes.
3.3.1.
Vejamos agora as formalidades da comunicação, a cargo do empregador.
Dispõe o art.º 317º:
“Salvo motivo imprevisível, a decisão de transferência de local de trabalho tem de ser comunicada ao trabalhador, devidamente fundamentada e por escrito, com 30 dias de antecedência, nos casos previstos no artigo 315º, ou com 8 dias de antecedência, nos casos previstos no artigo 316º”.
Como se vê, a legalidade” da ordem de transferência não se basta com os requisitos substanciais já enumerados supra (3.2.): a par deles, exige-se também que o empregador observe os requisitos procedimentais e de forma plasmadas no preceito transcrito.
Torna-se imperioso, em suma, que o empregador cumpra o prazo legal e indique, por escrito o fundamento de gestão que o leva a implementar a transferência.
Pretende-se alcançar, com o comando do art.º 317º, um duplo objectivo:
- por um lado, permitir que o trabalhador atempadamente impugne a motivação apresentada e, mesmo que o não faça, disponha ao menos, de tempo mínimo para adequar a sua vida ao novo contexto prestacional;
- por outro, permitir que o Tribunal, se for caso disso, exerça o necessário controlo sobre a motivação da transferência – recorde-se que o “interesse da empresa” constitui requisito substancial basilar na modalidade de transferência individual – sendo de entender que o empregador não pode utilizar em juízo outros argumentos para além dos que tenha enunciado na ordem estrita (cfr. Júlio Gomes in “Direito do Trabalho”, vol. I, 2007, pág.649).
Se houver preterição das regras assinaladas, o trabalhador pode legitimamente recusar a mudança ordenada, ao abrigo do princípio da inamovibilidade (cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., pág. 418).
É dizer que a ordem será ineficaz, “… não logrando alterar o local de trabalho, como o lugar em que a prestação de trabalho deve ser executada, e podendo ser ignorada pelo trabalhador – será o empregador que entrará em mora se não aceitar a prestação oferecida no local de trabalho, que não foi eficazmente alterado …” (Júlio Gomes, ob. cit., pág. 649).
Do mesmo passo, também não poderá deixar de se entender que é consentido ao trabalhador resolver o contrato com “justa causa” subjectiva, fundada na violação culposa das suas garantias legais ou convencionais – art.º 441º n.º 2 al. B).
Daqui já resulta que não podemos acompanhar a tese da 1ª instância – a motivação da Relação sobre a matéria é diferente e dela cuidaremos mais adiante – quando qualifica as exigências do art.º 317º como formalidades “ad probationem”, cuja inobservância não teria a virtualidade de conduzir à nulidade (ou ineficácia) da ordem.
3.3.2.
Pretende a recorrente que a Ré não observou qualquer das transcritas regras procedimentais, de onde decorre, desde logo, a ilicitude da ordem que lhe foi imposta.
A factualidade provada conforta em absoluto a tese da recorrente no que respeita à assinalada preterição: a ordem foi transmitida verbalmente e na véspera da sua concreta implementação.
Ademais, a Ré guarda completo silêncio nos articulados sobre o motivo dessa preterição, o que logo afasta a eventual concorrência de alguma causa justificativa do procedimento adoptado.
É justamente aqui que reside, por seu turno, a nossa divergência relativamente à posição assumida pela Relação: embora a Ré tenha logrado provar que a mudança foi motivada pelo estado de degradação das suas instalações em S. João da Madeira, susceptível de por em risco a integridade física dos seus trabalhadores, - factos n.ºs 21 e 22 – nada, na factualidade assente, permite “pressupor” que também tenha sido esse o motivo que a levou a preterir as regras procedimentais que lhe eram impostas, tanto mais – já o vimos – que nem sequer vem produzida, pela interessada, qualquer alegação nesse sentido.
3.3.3.
Mas a questão não se esgota aqui: cabe analisar agora as consequências que essa preterição envolve no concreto dos autos.
Dispõe o art.º 442º n.º 1 que “A declaração de resolução deve ser feita por escrito, com indicação sucinta dos factos que o justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento desses factos”.
E, segundo o art.º 443º n.º 3, “Na acção em que for apreciada a ilicitude da resolução, apenas são atendíveis para a justificar os factos constantes da comunicação referida no n.º 1 do artigo 442º”.
O regime enunciado nestes preceitos coincide substancialmente – afora a dilatação do prazo de 15 para 30 dias – com aquele que já constava do art.º 34º da L.C.C.T.: também aí se falava em “indicação sucinta dos factos”, como se prescrevia que apenas seriam atendíveis, “… para justificar judicialmente a rescisão os factos indicados na comunicação” (n.ºs 2 e 3, respectivamente).
Cabe apreciar, pois, se a Autora integrou a falada preterição procedimental na sua motivação resolutiva: ainda que a questão não se mostre suscitada nos autos – sob impulso das partes ou, oficiosamente, pelas instâncias – trata-se de matéria em que nos podemos mover sem constrangimentos, uma vez que a mesma se insere no domínio puro da indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art.º 664º do Cod. Proc. Civil.
Examinando a carta de resolução do vínculo laboral – fls. 11 a 13 – verifica-se que a Autora começa por fazer um relato sobre a transferência comunicada na véspera, a que se segue um outro relato sobre os prejuízos que, na sua óptica, essa transferência e uma hipotética mudança de funções lhe iriam causar, para, a final, explicitar o motivo concreto da resolução.
Esse motivo vem explanado como segue:
“Assim, porque a alteração que me querem impor, quer do local de trabalho, quer de horário, quer de funções, sem qualquer aumento salarial ou ajudas de custo com as deslocações que seria obrigada a efectuar, com a agravante do aumento do horário de trabalho, é altamente lesiva dos meus interesses patrimoniais, pessoais e familiares, sendo por mim insustentável, é assim justificada a apresentação do meu despedimento, nos termos dos art.ºs 441º n.º 2 al. B) e E) e 442º do Código do Trabalho …”.
Como se vê, a sistematização da carta inclui dois “relatos” e uma “conclusão” – coincidindo esta com a motivação resolutiva.
Sucede que a Autora não levou ao elenco dessa motivação qualquer factualidade que, directa ou indirectamente, se relacionasse com a preterição das normas procedimentais a que deveria obedecer a comunicação da Ré, limitando-se a coligir os “prejuízos” que enunciara no segundo relato.
Consequentemente – e à luz do mencionado art.º 443º n.º 3 – também lhe está vedado vir fazê-lo agora em juízo, para sustentar uma pretensa causa subjectiva de resolução, sendo irrelevante tudo o que, nesse contexto e a seu favor, se veio efectivamente a provar.
3.4.
Segundo a recorrente, a transferência operada pela Ré revestiu carácter individual e não colectivo.
Em abono desse seu entendimento, refere que o estabelecimento de S. João da Madeira se manteve aberto e a funcionar, ali permanecendo trabalhadores para o efeito.
O argumento não colhe, tanto quanto é certo que não tem a necessária correspondência na factualidade provada.
Com efeito, evidencia-se que:
- o referido estabelecimento integra três secções – o escritório, oficina e stand – sendo que a transferência implicou o encerramento daqueles dois primeiros departamentos, conforme a Ré anunciara (factos n.ºs 4 e 6);
- o stand manteve-se aberto devido a compromissos assumidos com a “Ford” (facto n.º 27).
É de todo evidente que se tratou de uma mudança parcial do estabelecimento – com transferência de todos os trabalhadores que laboravam nas secções encerradas – cuja modalidade é expressamente consentida pelo n.º 2 do art.º 315º e em nada se confunde com a transferência individual.
3.5.
Ainda que o trabalhador se não possa opor a uma ordem legítima de transferência, a lei confere-lhe a possibilidade de resolver o contrato, com direito a indemnização, se essa transferência por susceptível de lhe causar “prejuízo sério” – art.º 315º n.º 4.
Trata-se de uma das modalidades de resolução contratual com justa causa objectiva, segundo o elenco taxativamente enunciado nas três alíneas do art.º 441º n.º 3.
Releva no caso, a previsão da alínea B):
“Alteração substancial e duradoura das condições de trabalho no exercício legítimo de poderes do empregador”.
O “prejuízo sério”, exigido pelo artigo 315º n.º 4, encontra directa correspondência na alteração “substancial”, pressuposta na alínea transcrita.
Esse prejuízo deve consubstanciar dano relevante, que não se reconduza a simples transtornos ou incómodos: torna-se mister que a alteração ordenada afecte, substancialmente e de forma gravosa, a vida pessoal e familiar do trabalhador visado.
A prova desse prejuízo – também já o dissemos – compete ao trabalhador.
De harmonia com a factualidade assente, a transferência em causa implicava que a Autora:
- passasse a sair de casa, utilizando o comboio, às 7h25 (quando anteriormente o fazia às 8h55) e regressasse às 18h40 (quando anteriormente o fazia às 18h20);
- se utilizasse o autocarro na viagem de ida teria de o apanhar às 8h20, efectuando um percurso de cerca de 15 minutos a pé desde o local de chegada até às instalações da Ré;
- passasse a almoçar fora, quando o fazia sempre em casa;
- visse diminuído o tempo de que dispunha para a lide da casa, preparação de refeições, compras, descanso e acompanhamento familiar.
Não se recusando que o acervo factual coligido comportasse transtornos e incómodos para a Autora, já não se aceita, contudo, que fosse susceptível de configurar um prejuízo gravoso.
O que verdadeiramente releva é o dispêndio de tempo com as deslocações: porém, esse dispêndio – entre 1h a 1h15 por dia – não é superior àquele que a generalidade dos trabalhadores dos grandes centros urbanos também suporta diariamente.
Por outro lado, a Ré estava obrigada a custear as despesas da Autora com as sobreditas deslocações – art.º 315º n.º 5.
Não se alcança, deste modo, que a Autora tivesse motivo bastante para operar a resolução do contrato que a ligava à Ré.
Resta confirmar, por isso, o Acórdão impugnado.

4- DECISÃO

Em face exposto, acordam em negar a revista, confirmando a decisão da Relação, ainda que com fundamentação parcialmente diversa.

Custas pela recorrente.
Lisboa, 05 de Julho de 2007
Sousa Grandão (Relator)

Pinto Hespanhol
Vasques Dinis