Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2100/11.2T2AGD-A.P2.S2
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: REVISTA EXCEPCIONAL
REVISTA EXCECIONAL
FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
PARTILHA DA HERANÇA
ENCARGO DA HERANÇA
QUINHÃO HEREDITÁRIO
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÕES EM GERAL / LIQUIDAÇÃO DA HERANÇA / PAGAMENTO DOS ENCARGOS APÓS A PARTILHA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL.
Doutrina:
- ABEL DELGADO, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, Petrony, 5.ª Edição, p. 208 e 209;
- CARVALHO FERNANDES, Lições de Direito das Sucessões, Quid Juris, p. 297 e 301;
- FERNANDO BRANDÃO FERREIRA PINTO, Direito das Sucessões, Editora Internacional, p. 185;
- INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Sucessões – Parte Geral, Coimbra, p. 107, 108, 109, 113, 136 e 137 ; Direito das Sucessões – Noções Fundamentais, 6.ª Edição, Coimbra, p. 187;
- JACINTO RODRIGUES BASTOS, Direito das Sucessões segundo o Código Civil de 1966, Petrony, p. 190;
- JORGE AUGUSTO PAIS DO AMARAL, Direito da Família e das Sucessões, 3.ª Edição, Almedina, p. 347;
- PAMPLONA CORTE-REAL, Direito da Família e das Sucessões, vol. II, Lex, p. 146;
- PEREIRA COELHO, Direito das Sucessões, Coimbra, p. 282;
- PINTO FURTADO, Títulos de Crédito, Almedina, p. 154;
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra, p. 159, 160, 161 e 164;
- RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra, p. 110, 118 e 169.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2098.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 672.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 19-03-1992, IN BMJ, N.º 415, P. 658;
- DE 20-03-2014, PROCESSO N.º 278/09.4TVPRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-09-2015, PROCESSO N.º 3525/11.9TBVNG.P1.S1, IN SASTJ, CIVEL 2011, WWW.STJ.PT;
- DE 11-04-2019, PROCESSO N.º 622/08.1TVPRT.P2.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - No âmbito da revista excepcional, os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do art. 672.º do CPC. Se assim não fosse, afrontar-se-ia o cariz restritivo da admissibilidade da revista subjacente à instituição da dupla conforme e contornar-se-ia o respectivo regime legal.

II - Após a partilha, a responsabilidade de cada herdeiro pelas dívidas do autor da sucessão é unicamente aferida em função da respectiva quota subjectiva que lhe coube na partilha, sendo, para o efeito, irrelevante que o seu quinhão hereditário haja sido preenchido com bens cujo valor exceda a medida dessa quota.

III - A disciplina vertida no art. 2098.º, n.º 1, do CC não inculca a necessidade de, em relação a cada dívida hereditária, apurar, individualizadamente, se a sua satisfação se conteve nos limites da quota de cada herdeiro.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 2100/11.2T2AGD-A.P2.S2[1]
*

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório

AA, residente na ..., deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa, em processo comum, que lhe foi movida por BB, residente na ..., pedindo a extinção da execução, na parte que lhe respeita, decretando-se o levantamento das penhoras ordenadas.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

A sua responsabilidade pelo pagamento de dívidas da herança aberta por óbito de seu pai, CC, já foi consumida pelo pagamento de outros encargos da herança que em muito excedem o valor do seu quinhão hereditário.

Após a partilha, a herança dissolve-se e deixa de ter existência jurídica, por integração dos bens que a compõem no património pessoal dos herdeiros.

Os credores da herança poderão ainda exigir o cumprimento dos seus créditos directamente aos herdeiros, mas a responsabilidade pelas dívidas da herança mantém-se estritamente limitada ao valor dos bens que cada um dos herdeiros recebeu por sucessão.

Assim, o valor dos bens herdados por cada um dos herdeiros determina-se pela divisão do valor global dos bens da herança pela quota-parte que cabe concretamente ao herdeiro, nos termos da lei ou do testamento, não relevando, para este efeito, o valor patrimonial dos bens móveis ou imóveis adquiridos pelo herdeiro através da partilha, mas apenas o valor a que ele teve direito por sucessão, pois tudo o que exceda a sua quota-parte da herança é adquirido por transmissão onerosa decorrente do pagamento de tornas aos restantes herdeiros.

Como já suportou o pagamento de dívidas da herança de valor superior ao que recebeu por sucessão, entende, assim, que nada mais lhe pode ser exigido.

O exequente/embargado contestou, alegando que não resulta da sentença que serve de título executivo que a responsabilidade dos herdeiros de CC, incluindo o oponente, tenha ficado limitada ao valor da quota que cada um recebeu, sendo antes solidária a sua condenação no pagamento da indemnização ao exequente, e que existem na herança bens mais do que suficientes para satisfazer o seu crédito, pois para aferir o valor dos que integram a quota de cada herdeiro deve atender-se ao valor real dos bens à data da morte do autor da herança. No caso concreto da partilha da herança deixada pelo pai do oponente, os valores declarados pelos interessados na escritura são anormalmente baixos, sem a mínima correspondência com os valores reais dos bens à data em que foram herdados, pelo que o oponente age em claro abuso de direito e, subsidiariamente, sendo a partilha um negócio simulado no que respeita aos valores dos bens adjudicados aos herdeiros.

Dispensada a realização da audiência preliminar e elaborado despacho saneador, foi apreciada parcialmente a pretensão do oponente quanto à extensão da responsabilidade do herdeiro por encargos da herança após a partilha, tendo-se decidido que a responsabilidade é na exacta medida da proporção da quota que ao herdeiro coube na herança (cfr. fls. 163 a 165).

Dispensada a selecção da matéria de facto, prosseguiram os autos para audiência de discussão e julgamento, à qual se procedeu, após o que foi proferida sentença que julgou a oposição improcedente.

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3 de Dezembro de 2013, foi anulada essa sentença a fim de se proceder à avaliação dos bens que integram o património deixado por óbito de CC, por forma a que se apurasse o valor total do património hereditário para então se determinar o valor real do quinhão do apelante à data da partilha, e não à data da abertura da sucessão como havia sido interpretado na sentença censurada.

Realizadas as diligências tidas por convenientes, foi proferida nova sentença, onde foi exarada decisão que, julgando parcialmente procedente a oposição à execução, ordenou que a execução prosseguisse os seus ulteriores termos para a cobrança da quantia de € 39.221,44, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação do oponente para os termos da acção declarativa, bem como acrescida da sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A, nº 4, CC, desde o trânsito em julgado da sentença dada à execução.

Inconformado, apelou o exequente/embargado BB para a Relação do Porto que, por acórdão de 23/10/2018, julgou a apelação improcedente confirmando a sentença recorrida.

Continuando irresignado com esse acórdão, o exequente/embargado dele interpôs recurso de revista excepcional para este STJ, a qual foi admitida pela “Formação”, por acórdão de 11/4/2019, de forma definitiva (cfr. art.º 672.º, n.º 4, do CPC), com base no fundamento invocado – a al. a) do n.º 1 do citado art.º 672.º.

            O recorrente apresentou as suas alegações com as conclusões que, apesar de extensas, aqui se transcrevem:

«A. O presente recurso é interposto ao abrigo da al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, por estar em causa, no entender do Recorrente, "uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".

B. De facto, no acórdão de que ora se recorre, o Tribunal da Relação do Porto decidiu confirmar a sentença de 1ª instância, entendendo que o Recorrido AA é titular de um quinhão hereditário correspondente a 1/6 do valor do acervo hereditário, independentemente do pagamento de tornas,

C. O que perfaz, de acordo com aquelas instâncias, o montante de € 214.342,94, sendo por este valor, no entender daquela instância, que se deve aferir a responsabilidade daquele herdeiro pelas dívidas da herança.

D. Com efeito, de acordo com a segunda instância, "a título hereditário o apelado integrou no seu património a quantia de € 214.342,94, e não a quantia de € 1.025.170,00".

E. Conclui, nessa medida, o Tribunal da Relação que “é esse o limite da sua responsabilidade, pois o restante valor integrou o seu património em contrapartida de tornas, já pagas ou não" (realce acrescentado).

F. Para chegar às conclusões a que chega, a Relação do Porto interpreta incorrectamente os princípios que enformam o Direito Sucessório português e, de um modo particular, as normas constantes dos artigos 2068.º, 2069.º, 2071.º e 2098.º do Código Civil, bem como do artigo 32.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.

G. O acórdão recorrido labora, pois, em pressupostos errados e que não têm substrato ou correspondência no texto e na ratio da lei:

H. Por um lado, a argumentação esgrimida pelo acórdão de que se recorre pressupõe que a distribuição equitativa dos quinhões, em caso de pluralidade de herdeiros, não depende do pagamento de tornas.

I. Por outro lado, baseia-se no entendimento de que o facto de um herdeiro pagar encargos em excesso, sem que exista qualquer acordo subjacente, pode ser oposto aos credores, limitando a responsabilidade desse herdeiro perante os credores.

J. Ora, estas interpretações e assunções colidem frontalmente com a letra e com a ratio daquelas normas jurídicas.

K. Contendem, além disso, com matérias que foram objecto ainda de um reduzido tratamento jurisprudencial e que, nessa medida e atentas as consequências nefastas que a interpretação em causa comporta, carecem e justificam um maior aprofundamento e clarificação jurisprudenciais.

L. Com efeito, a prevalecer uma interpretação neste sentido, permite-se um desvio inaceitável à regra constante do artigo 2068.º do CC, nos termos do qual "a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados" (realce acrescentado);

M. Uma inadmissível excepção ao âmbito da responsabilidade do herdeiro, prevista no artigo 2071.º do CC;

N. Desvirtuando ostensivamente o regime que o legislador pretendeu instituir ao prever, no n.º 1 do artigo 2098.º, que "efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança".

O. Vem, além do mais, legitimar uma divisão que não respeite a igualdade dos herdeiros, fazendo com que os credores fiquem menos garantidos com a sucessão do que previamente à morte do de cujus.

P. Contrariamente ao que se defende no acórdão da Relação do Porto de que ora se recorre, o regime da responsabilidade dos bens da herança pelas dívidas da herança pretende, do ponto de vista dos credores, garantir que não existe diferença para estes últimos entre ser ressarcido antes ou após a sucessão.

Q. E uma vez feita a partilha, o regime legal pressupõe que a divisão do património do de cujus tenha sido feita de forma equitativa entre os herdeiros, de modo que seja indiferente para o credor ser pago pela quota-parte de cada um dos herdeiros, ou pela herança como um todo.

R. Tal só sucede, porém, quando os bens são de diferente valor, se houver lugar ao pagamento de tornas.

S. Se o objectivo que preside à partilha é a igualação dos quinhões hereditários e não houve pagamento de tornas, os quinhões não são iguais.

T. E se não são iguais, a responsabilidade dos herdeiros também não pode ser idêntica!

U. Como se determina no artigo 2068.º, n.º l, o que responde pelas dívidas da herança são os bens da herança - a partilha dos bens nunca poderá pôr esta regra basilar em crise.

V. Estas questões, além de inéditas, têm ainda a alarmante possibilidade de dar azo, ou legitimar, futuros abusos como o que sucedeu no caso que subjaz aos presentes autos.

W. Para se eximirem das suas responsabilidades perante os credores, os herdeiros atribuem frequentes vezes ao património a adjudicar um valor muito inferior ao real (e com o qual os primeiros contavam quando o mesmo estava nas mãos do devedor originário, ou seja, do autor da herança), diminuindo assim, como que por magia, o "valor" das suas quotas e, consequentemente, a sua respectiva responsabilidade.

X. A acrescer, e para limitar - ainda mais - a sua responsabilidade, apoderando-se e escondendo património de uma execução pelos credores, adjudicam a maior parte do património do de cujus a um dos co-herdeiros, desproporcionando as quotas, declarando, ficticiamente, que houve lugar ao pagamento de tornas.

Y. Desta forma, a fazer-se fé numa escritura de partilha fictícia (e já vimos que parte das declarações ali prestadas são falsas - as declarações, e não o acto notarial, que apenas espelhou o que as partes declararam, e por isso não foi invocada a falsidade da escritura), o herdeiro que recebeu a maioria do património que respondia pelas dívidas escuda-se, então, no princípio da limitação da responsabilidade à quota recebida para pagar os encargos que lhe cabem.

Z. Salvando-se, desta forma, o património da herança que devia responder pelos encargos.

AA. Subjacente a todo o regime legal está, pois, o pressuposto de que os bens que compunham a herança tenham sido integrados nos patrimónios de cada um dos herdeiros, seja sob a forma dos próprios bens, seja sob a forma de tornas pagas por um dos herdeiros a quem tenham sido adjudicados bens cujo valor excede o que lhe caberia.

BB. Sendo, assim, indiferente ao credor ser ressarcido pela herança, ou pela quota parte de cada um dos herdeiros.

CC. Finalmente, e conforme acima se adiantou, para as consequências identificadas, de diminuição da garantia patrimonial e limitação indevida da responsabilidade do herdeiro pelas dívidas da herança, contribui também a interpretação errónea que a Relação do Porto fez do artigo 32.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, de acordo com a qual “se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra";

DD. Bem como a incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo 2069.º do CC, nos termos do qual "Fazem parte da herança: a) Os bens sub-rogados no lugar de bens da herança por meio de troca directa; b) O preço dos alienados; c) Os bens adquiridos com dinheiro ou valores da herança, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição; d) Os frutos percebidos até à partilha".

EE. Ora, a admitir-se que as execuções identificadas nas alíneas k) e o) da matéria de facto assente configuram dívidas da herança - hipótese que se configura meramente a benefício de raciocínio e sempre sem conceder -, o certo é que o de cujus e, posteriormente, o Oponente, foi executado na qualidade de avalista,

FF. Pelo que aquela dívida converteu-se, necessariamente, com o pagamento, num crédito da herança de igual montante sobre o subscritor da livrança.

GG. Por outras palavras, uma correcta interpretação daquela regra jurídica leva inexoravelmente à conclusão de que da herança nunca saíram, respectivamente, os valores de € 66.393,54 e € 73.266,64, pagos no âmbito daquelas acções executivas.

HH. Daí que não seja correcto afirmar-se, como se afirmou no acórdão recorrido, que o Oponente já "suportou" aqueles encargos - o património por si recebido permanece intacto quanto ao seu valor.

II. Em linha com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.6.2010, disponível em dgsi.pt, o presente recurso visa, precisamente, tutelar interesses ligados à melhor aplicação do Direito, ou, por outras palavras, a reparação de uma interpretação feita ao arrepio da ratio legis das respectivas normas, bem como da posição defendida, em geral, na ciência jurídica.

JJ. Trata-se, tanto quanto o Recorrente tem conhecimento, de uma questão que "pelo seu ineditismo", deve "ser apreciada para sedimentação futura" e é relevante por condicionar uma melhor aplicação do Direito.

KK. Com efeito, as consequências da eventual manutenção incontestada na ordem jurídica de um entendimento como o que é preconizado no acórdão de que se recorre são de tal amplitude e gravidade que podem pôr em crise um determinado segmento da ordem jurídica, no caso em concreto do direito sucessório, bem como das regras relativas aos títulos de crédito.

LL. Termos em que se considera estar preenchida a previsão da al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, sendo o presente recurso admissível e tempestivo.

MM. Da conjugação dos preceitos dos artigos 2068.º e 2071.º do Código Civil resulta a regra, pacífica e inquestionável, de que a responsabilidade dos herdeiros encontra-se limitada às forças da herança.

NN. Pretendeu o legislador separar o património pessoal do herdeiro, do património hereditário, não sacrificando aquele para além do que efectivamente recebeu em herança, por dívidas que pertenciam ao de cujus, e pelas quais os credores hereditários também não seriam satisfeitos se o autor da herança não tivesse morrido.

OO. O que a lei não previu e não pretendeu avalizar foi um aproveitamento ilegítimo e abusivo, por parte de um ou mais herdeiros, assente numa distribuição artificial dos bens, sem qualquer contrapartida por via de tornas, defraudando as legítimas expectativas dos credores, no caso, do Recorrente.

PP. Ora, foi justamente o que sucedeu no caso presente, sendo que, a manter-se a interpretação e decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, é precisamente essa a indicação que se vai transmitir para a ordem jurídica: a de que, afinal, é possível limitar a responsabilidade da herança e dos herdeiros perante os credores, fugindo às regras imperativas do Código Civil.

QQ. Ao Recorrido AA foram adjudicados, na partilha por óbito do seu pai CC, 13 (treze) bens imóveis, correspondentes às Verbas nºs 1, 2, 3, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16 do documento complementar à escritura de partilha, bens esses cujo valor (global e real), ascendia, à data da partilha (6/5/1999), à quantia de € 1.025.170,00 (um milhão vinte cinco mil cento e setenta e sete euros) - bem superior ao valor que os herdeiros falsamente declararam na escritura de partilha.

RR. Desses bens, 4 (quatro) imóveis estão ainda na propriedade do referido Nelson, concretamente os que se encontram penhorados na execução da qual nasceram os presentes autos de oposição e cujo valor ascendia, à data da partilha, a € 671.808,00 (seiscentos e setenta e um mil oitocentos e oito euros).

SS. Tudo visto e somado, temos que, do património global de € 1.286.057,62, foram adjudicados bens ao Executado AA, ora Recorrido, no valor global de € 1.025.177,00, tudo por referência aos valores à data da partilha - conforme resulta da matéria assente, constante do acórdão recorrido.

TT. Ou seja, o equivalente a 80 por cento da totalidade da herança (!!!), e seguramente a totalidade daquilo que tinha e tem ainda hoje, realmente valor, se atentarmos no valor nulo ou reduzido das sociedades e no facto de parte dos outros bens imóveis não adjudicados ao executado AA terem sido também vendidos em execuções.

UU. Ficou, pois, provado nos presentes autos que ao Opoente, aqui Recorrido, foi adjudicado um valor patrimonial muito superior ao que foi declarado por si e pelos restantes herdeiros na partilha.

VV. E entre estas - mais que duvidosas - declarações, inclui-se a de que o Oponente, como contrapartida pelo património que levou a mais na partilha, teria, alegadamente, pago tornas aos co-herdeiros.

WW. O que está provado, isso sim, é que o Oponente declarou na partilha que pagou tornas, e os restantes herdeiros declararam na partilha que as receberam.

XX. Não está provado, porém, - longe disso - que essas tornas tenham sido efectivamente pagas.

YY. Dúvidas não restarão de que cabia ao Oponente, aqui Recorrido, e só a ele, fazer prova desse facto.

ZZ. Isso mesmo preceitua a regra basilar do ónus da prova, prevista no n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, nos termos do qual "Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado".

AAA. Não tendo demonstrado esse facto, não pode o mesmo valer em benefício do Oponente, pelo que, para todos os efeitos, temos que o Oponente não pagou tornas aos co-herdeiros, tendo, assim sido bafejado por uma distribuição do património iníqua e dispondo, pois, de uma quota bem superior à dos demais herdeiros.

BBB. O princípio a que obedece o nosso Direito sucessório, havendo pluralidade de herdeiros, é o da distribuição equitativa do património do de cujus.

CCC. O pagamento de tornas é condição sine qua non de uma distribuição equitativa dos quinhões hereditários, sobretudo quando se verifica uma desproporção tão notória entre o que fica a caber a cada herdeiro.

DDD. Enquanto não se proceder ao pagamento de tornas, porém, as quotas dos herdeiros não são idênticas, sendo também, em consequência, forçosamente díspares as respetivas responsabilidades pelos encargos da herança.

EEE. Isso mesmo se tem de concluir do disposto no n.º 1 do artigo 2098.º do CC.

FFF. Temos assim, portanto, que a quota efetivamente recebida pelo Oponente, tanto quanto está provado, integra bens no valor de € 1.025.177,00 já referido, sendo, por isso, por referência a esse mesmo montante que se terá de aferir a sua responsabilidade pelos encargos.

GGG. O n.º 2 do artigo 2071.º do CC, ao prever que "Sendo a herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados", pressupôs, naturalmente, que não haveria diferença entre o valor do somatório de cada quota e o valor da herança antes de ser partilhada

HHH. Tal conclusão é ainda mais clara quando se conjuga esta norma com a constante do artigo 2068.º, nos termos do qual, "A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados" (realce nosso).

III. O valor da "quota" que a cada um dos herdeiros haja cabido na herança, não pode senão aferir-se pelo valor real que foi herdado, já que foi esse valor, e não outro, que passou a integrar o património do herdeiro.

JJJ. É o que resulta com clareza da letra da lei, sendo que o intérprete deve "presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (art. 9.º CC).

KKK. Mas o intérprete, diz o mesmo art. 9º CC, não deve cingir-se à letra da lei e deverá procurar reconstituir o pensamento do legislador.

LLL. Ora, parece claro que o legislador procurou um equilíbrio entre os legítimos direitos e expectativas, de um lado, dos herdeiros e, do outro, dos credores do autor da sucessão.

MMM. Nem os herdeiros devem ser responsabilizados por encargos que excedam as forças da herança; nem os credores podem ser prejudicados, e ficar perante a contingência de os herdeiros virem a declarar na partilha valores anormalmente baixos para os bens herdados.

NNN. A prevalecer o sentido do acórdão recorrido, e uma vez que o Oponente integrou no seu património, de facto, 80% da herança, teremos que um credor que podia razoavelmente contar com um património de € 1.286.057,94 para ressarcimento do seu crédito - que excede em muito, neste momento, o montante de € 219.564,02 indicado no requerimento executivo -, corre o sério risco de receber, eventualmente, a módica quantia de € 39.221,44.

OOO.  Com a estatuição das regras legais em apreço nunca pretendeu o legislador desproteger os credores da herança, muito menos quis possibilitar aos herdeiros a possibilidade de diminuírem a garantia daqueles através da redução artificial do valor da herança.

PPP. Com efeito, o credor não pode ficar menos protegido após a partilha da herança do que no momento que a antecede.

QQQ. É ao herdeiro que incumbe provar que não existem na herança valores suficientes para cumprimento dos encargos.

RRR. Subjacente a todo o regime legal está, pois, o pressuposto de que os bens que compunham a herança tenham sido integrados nos patrimónios de cada um dos herdeiros, seja sob a forma dos próprios bens, seja sob a forma de tornas pagas por um dos herdeiros a quem tenham sido adjudicados bens cujo valor excede o que lhe caberia.

SSS. Sendo, assim, indiferente ao credor ser ressarcido pela herança, ou pela quota parte de cada um dos herdeiros.

TTT. Resulta, pois, de forma cristalina, que com o regime legal concretizado, nomeadamente, nas normas constantes dos artigos 2068.º, 2071.º, bem como do artigo 2098.º, todos do Código Civil, nunca pretendeu colocar os credores do de cujus numa posição mais desfavorável do que aquela em que se encontravam antes da morte daquele.

UUU. Não assiste razão ao Tribunal da Relação quando refere que "a resposta não pode deixar de ser a que deu a 1.ª instância: a título hereditário o apelado integrou no seu património a quantia de € 214.342,94".

VVV. A Relação incorre em erro outrossim quando defende que "o efectivo pagamento de tornas é uma questão que apenas diz respeito aos herdeiros, sem prejuízo de, se algum credor se sentir lesado, poder fazer valer os seus direitos na sede própria" - que, diga-se, é precisamente o que o Recorrente tem procurado fazer ao longo deste processo -,

WWW. E quando afirma que "no confronto com o apelado, o não pagamento de tornas não prejudica o apelante".

 XXX. O Oponente integrou, efectivamente, no seu património um valor total e global de € 1.025.177/00, sendo esse o valor da sua quota, porquanto não houve lugar ao pagamento de tornas.

YYY. O Recorrente mantém a sua posição quanto a não ter ficado demonstrado que os pagamentos por parte do Oponente, referidos nas alíneas k), o) e s) da matéria de facto assente, corresponderam a encargos da herança.

ZZZ. E apesar de no presente recurso não estar em causa a decisão quanto à matéria de facto, o certo é que, pelo menos quanto a duas das despesas ali identificadas, a consideração por parte das duas instâncias de que aquelas configuram dívidas da herança decorre de uma errada interpretação e aplicação do Direito que urge reformar.

AAAA. Mais concretamente, está em causa uma interpretação desconforme da norma constante do artigo 32.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, nos termos do qual "se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra" (realce acrescentado),

BBBB. Bem como a incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo 2069.º do CC, nos termos do qual "Fazem parte da herança: a) Os bens sub-rogados no lugar de bens da herança por meio de troca directa; b) O preço dos alienados; c) Os bens adquiridos com dinheiro ou valores da herança, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição; d) Os frutos percebidos até à partilha".

CCCC. Ora, a admitir-se que as execuções identificadas nas alíneas k) e o) da matéria de facto assente configuram dívidas da herança - hipótese que se configura meramente a benefício de raciocínio e sempre sem conceder -, o certo é que o de cujus e, posteriormente, o Oponente, foi executado na qualidade de avalista,

DDDD. Pelo que aquela dívida converteu-se, necessariamente, com o pagamento, num crédito da herança de igual montante sobre o subscritor da livrança.

EEEE. Por outras palavras, uma correcta interpretação daquelas regras jurídicas leva inexoravelmente à conclusão de que da herança nunca saíram, respectivamente, os valores de € 66.393,54 e € 73.266,64, pagos no âmbito daquelas acções executivas.

FFFF. Daí que não seja correcto afirmar-se que o Oponente já "suportou" aqueles encargos - o património por si recebido permanece intacto quanto ao seu valor.

GGGG. Por outro lado, mesmo admitindo que aquelas despesas constituem dívidas da herança - novamente sem conceder -, a verdade é que a lei não permite que se deduza todo aquele montante à quota do Oponente e Recorrido AA, como entendeu o Tribunal da Relação.

HHHH. Para chegar a este entendimento, o Tribunal da Relação procedeu a uma incorrecta interpretação da norma constante do n.º 1 do artigo 2098.º, segundo o qual "Efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança".

IIII. O Recorrente desconhece, nem tem de conhecer, por que razão o Oponente e Recorrido decidiu, por sua iniciativa, alegadamente pagar mais do que lhe caberia segundo a sua quota naquelas execuções.

JJJJ. Mas se pagou mais do que devia, essa circunstância não é oponível aos credores, que nunca poderão ser prejudicados por esse excesso de despesa.

KKKK. De resto, não só não pode opor esse facto a um credor, como a lei e a jurisprudência até o impedem de o fazer junto dos demais herdeiros.

LLLL. Ou seja, ainda que se pudesse considerar como encargos, estes apenas poderiam ser considerados na proporção da quota do Oponente, ou seja, em 1/6.

MMMM. A interpretação ora defendida pelo Recorrente é a única compatível com a norma constante do n.º 1 do artigo 2098.º do Código Civil, de acordo com a qual "Efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança".

NNNN. E a única interpretação que impede um herdeiro de abusivamente se eximir do pagamento ao credor da dívida pela qual responde o património que recebeu.

TERMOS EM QUE deve o presente recurso proceder, considerando-se válida a argumentação exposta e, em consequência, ser revogado o acórdão proferido, determinando-se a sua substituição por outro que interprete e aplique em conformidade as normas constantes dos artigos 2068.º, 2069.º, 2071.º, 2098.º, do Código Civil e 32.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.»

Não foram apresentadas contra-alegações.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
É sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente – não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, que aqui não relevam – e que se apreciam questões (e não razões ou meros argumentos).
Nessa medida, apesar da profusão conclusiva, elencam-se as seguintes questões decidendas que consistem em saber se:
1. a responsabilidade do recorrido/oponente pela satisfação dos encargos da herança de CC se limita, ou não, à proporção do valor nominal da respectiva quota (conclusões F. a U., W a BB., MM. a UU., BBB. a XXX.);
2. a responsabilidade do recorrido/oponente se encontra limitada, ou não, pela prévia realização de pagamentos nas execuções aludidas nos pontos n.ºs 14 e 15 do elenco dos factos provados (conclusões CC. a HH. e YYY. a NNNN.).

Não se enunciou, propositadamente, a questão colocada nas conclusões VV. a AAA., atinente à demonstração do pagamento de tornas por parte do recorrido.
O acórdão da formação de apreciação preliminar, supra aludido neste relatório, apenas identificou as questões que “(…) respeitam ao direito sucessório e mais particularmente ao alcance a dar ao disposto no art. 2068º do C.Civil (responsabilidade da herança pelo pagamento da dívidas do falecido) e ao disposto no art. 2071º (responsabilidade do herdeiro pelas mesmas dívidas), quando relacionados com o determinado no art. 2098° (pagamentos dos encargos da herança após a partilha), designadamente na parte em que este dispositivo determina que "efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança" (n.º 1) (…)” como sendo “(…) temas com pouca laboração jurisprudencial, complexos e que não são isentos de dúvidas e interrogações (…)” e relativamente às quais se entendeu ser “(…) adequado a intervenção do STJ com vista a uma melhor aplicação do direito.”.
Ora, tem vindo a entender-se, neste Supremo Tribunal de Justiça, que, nos casos de admissão excepcional da revista, “(…) os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do artigo 672.º do Cód. Proc. Civil. É que, se assim não fosse, afrontar-se-ia o cariz restritivo da admissibilidade da revista subjacente à instituição da dupla conforme e contornar-se-ia o respectivo regime legal. Consequentemente, o objecto do recurso, assim delimitado, não abarca quaisquer outras questões que, cumulativa e paralelamente, hajam sido enunciadas na revista e contornar-se-ia o respectivo regime legal. (…)”[3].

Nessa conformidade e não tendo sido reconhecida, quanto àqueloutra questão, a verificação de qualquer um dos pressupostos de que depende a admissibilidade da revista excepcional, há que considerar que a mesma está excluída do âmbito da revista, atento o cariz definitivo daquele aresto (n.º 1 do artigo 620.º e n.º 4 do artigo 672.º, ambos do Código de Processo Civil).

Impõe-se, em consonância, enjeitar o conhecimento desse segmento do objecto da revista [alínea b) do n.º 1 do artigo 652.º e n.º 1 do artigo 655.º, ambos do Código de Processo Civil].

II. Fundamentação


1. De facto

No acórdão recorrido foram reproduzidos os factos dados como provados pela 1.ª instância e que são os seguintes[4]:
1. O falecido era marido da executada DD e pai dos executados AA e EE;
2. A herança de CC foi aceita pura e simplesmente;
3. Os imóveis identificados em 12. são quatro dos treze prédios que ficaram adjudicados ao oponente na partilha a que se procedeu por óbito de CC ocorrido em 14 /05/1998;
4. Na referida partilha, foram relacionados os bens do de cujus a partilhar que constam do documento complementar, e que faz parte integrante da referida escritura, conforme cópia do instrumento de partilha que se acha junto a fls. 25 a 39 destes autos, tendo sido atribuído ao património comum e indiviso do finado com a executada DD o valor de esc. 66.571.964$00 (332.059,00€), total que resultou do somatório das verbas constante daquela relação;
5. A executada DD ficou com o direito a receber a quantia de 44.381.309$00 (221.373,00€), a título de meação e respectivo quinhão hereditário;
6. E a cada um dos outros herdeiros, o oponente e seu irmão Eugénio, a quantia de € 55.343,26, tendo os respectivos quinhões sido preenchidos em conformidade com o que consta da referida escritura de partilha;
A)        Ao oponente AA foram adjudicadas as verbas 1, 2, 3, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16 do documento complementar à mencionada escritura de partilha;
B) A adjudicação dos imóveis foi levada a registo pela AP. 14 de 1999/05/14;
7. O valor dos imóveis que integram o acervo patrimonial da herança aberta por óbito de CC é de 1.133.146,96€, por referência à data de 06/05/1999 (data da partilha);
8. O quinhão hereditário do recorrido foi integrado por bens no valor global[5] de em € 1.025.170,00.
9. O valor da quota social de CC relativa à sociedade “FF Lda.” é um valor nulo; o valor da quota social de ---, CC, --- e --- na mesma sociedade comercial é um valor nulo; em qualquer dos casos, por referência a 06/05/1999;
10. O valor da quota social de --- na sociedade “GG Lda.”, e que foi adjudicada ao oponente, tem o valor contabilístico de 65.179,00€, por referência à data mais próxima que foi possível apurar (31/12/1998); o valor da quota social de GG na sociedade GG Lda., e que foi adjudicada ao oponente, tem o valor contabilístico de 65.179,00€, por referência à data mais próxima que foi possível apurar (31/12/1998);
11. A quota de CC na sociedade “HH Lda.” tem o valor contabilístico de 22.552,66€, por referência à data mais próxima que foi possível apurar (31/12/1998), perfazendo o montante global de 1.286.057,62€;
12. Foi dada à execução a sentença proferida na Acção de Processo Ordinário que correu termos pelo Juízo de Grande Instância Cível - Juiz 3, da Comarca do Baixo Vouga, com o n.º 357/09.8T2AVR, que condenou “os RR. “FF, Ld.ª”, --- e, na qualidade de sucessores de CC, até ao limite da herança deixada por este, os RR. DD, EE e AA, a pagarem ao A., BB, a quantia de € 144.651,39 euros, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento (…)”;
13. Nos autos principais de execução, foram penhorados quatro imóveis, pertencentes ao executado AA:
1.º- Prédio composto por ..., destinado a comércio e habitação sito na Rua ..., inscrito na matriz predial urbana da Freguesia da ... sob o artigo 3070, o qual se acha descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 544;
2.º- Terra lavradia sita na ... inscrita na matriz predial rústica da ... sob o artigo 1530, o qual se acha descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 545;
3.º- Terra de cultura sita na ..., inscrita na matriz rústica da Freguesia da ... sob o artigo 1165, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2594;
4.º- Prédio misto composto por casa de habitação com rés-do-chão e 1.º andar, com terreno de cultura contíguo, sito na Rua ..., inscrito na matriz da Freguesia da ... sob os artigos 2221 Urbano e 1164 Rústico, prédio que se acha descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2593;
14. Os autos referidos em 16. foram instaurados pela “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., CRL” contra a executada “FF, Ld.ª”, DD e marido CC, entre outros;
15. A livrança dada àquela execução havia sido avalizada pelo falecido pai do oponente, CC;
16. Feita a habilitação dos sucessores do falecido, a ali exequente indicou à penhora dois imóveis que ao executado ficaram a pertencer em partilha de seu pai, correspondentes às verbas n.ºs 11 e 13;
17. Nos autos de Execução Ordinária n.º 45/1999 que correram termos pelo extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., pagou o oponente as quantias de 62.349,74€ e 4.043,80€ em 09.04.2002 e 18.09.2002, respectivamente, por conta da quantia exequenda, juros e custas devidas;
18. Nos autos de Execução Ordinária que correram termos pelo extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ... com o n.º 46/99, veio o oponente a pagar as quantias de 68.757,35€ e 4.509,29€ em 05.04.2002 e 08.07.2002, respectivamente;
19. Em 1 de Abril de 2002, AA e ---, com os NIF ..., respectivamente, na qualidade de devedores, e --- e ---, na qualidade de credores, declararam por escrito ajustar entre si o seguinte acordo: “Os devedores supra referenciados declaram-se devedores do montante de 131.107,09 Euros a --- e ---, cuja dívida resultou de um empréstimo para pagamento do processo da CCAM n.º 45/1999 e 46/1999.
Os devedores acordam dar a ... e ... em dação em cumprimento, todo o recheio existente nos prédios, sito na rua professor ... inscrito na Conservatória de ... sob o número urbano 2221 e rústico 1164. E também na mesma rua .... Inscrito na conservatória de ... sob o n.º 3070. E ainda o recheio existente no prédio sito na ... Inscrito na conservatória de Ílhavo sob n.º 2494 bem como o direito da habitação do mesmo, por ambos, a partir desta data, o qual aqui se descreve em lista anexa” , conforme documento junto a fls. 97 a 104 destes autos, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido; No mesmo escrito particular, os credores declararam que “dar o seu assentimento a esta dação em cumprimento”.
20. A acrescer às execuções acima referidas, o oponente veio também a ser executado, por reversão, no processo de Execução Fiscal n.º ..., pendente no Serviço de Finanças de ..., instaurado contra a “FF, Ld.ª”;
21. Nesses autos, a Fazenda Pública penhorou e vendeu, em 2006, a JJ, em arrematação por proposta em carta fechada, e pelo preço de 133.007,00€, a moradia sita na praia da ..., Freguesia da ..., imóvel inscrito na matriz da referida Freguesia sob o artigo 2494.º, tendo a respectiva aquisição sido registada pela AP. 1 de 2006/09/06;
22. Sendo que a dívida fiscal e respectivas custas pagas pelo produto da venda daquele imóvel ascendeu a € 35.461,32, e o remanescente da dita venda (€ 97.545,68) foi entregue ao oponente AA em10/11/2011;
23. O prédio acima identificado constituía a verba n.º 3 da Relação de Bens integrante da escritura de partilha, a qual havia também ficado a pertencer ao oponente.
24. Dão-se por inteiramente reproduzidos os dizeres da escritura de compra de venda outorgada em 18 de Março de 2002, que se encontra junta a fls. 322 e ss. destes autos.

2. De direito

2.1. Da limitação da responsabilidade do oponente pela satisfação dos encargos da herança à proporção do valor nominal da respectiva quota

Como flui das conclusões recursórias acima transcritas, a cabal compreensão da norma vertida no n.º 1 do art.º 2098.º do Código Civil[6] constitui um aspecto axial para a resolução desta questão solvenda.

Dispõe assim aquele preceito:

Efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.

Como é sabido, o conteúdo das relações jurídicas patrimoniais que são transmissíveis por força do decesso de uma pessoa compreende, em regra, as situações passivas de que a mesma seja titular ao tempo do respectivo óbito.

Nessa medida, percebe-se que, como informa o art.º 2068.º, a herança seja, ademais, integrada pelas “dívidas do falecido”.

Importa assim avaliar como se materializa a responsabilização da herança (cujo âmbito objectivo é delimitado, de forma não exaustiva, no art.º 2069.º), pela satisfação das dívidas que a oneram, i.e. a sua liquidação. Nesse âmbito, os herdeiros actuam como verdadeiros liquidatários da herança[7].

Em princípio, a liquidação da herança, como universalidade de direito que é, apenas deveria ocorrer após a sua partilha.

No entanto, ciente de que a partilha pode tardar e tendo em conta que podem existir encargos que se vão vencendo até à partição e que é do interesse dos credores e dos herdeiros a sua pontual e atempada satisfação[8], a lei dispõe, distintamente[9], sobre a responsabilidade da herança indivisa e sobre a responsabilidade da herança partilhada (cfr., respectivamente, o disposto nos artigos 2097.º e 2098.º[10]).

Nos casos em que existe uma pluralidade de herdeiros, a partilha surge assim como um momento marcante na efectivação da responsabilidade pelos encargos da herança[11].

O relevo desse momento é facilmente entendível se tomarmos em consideração que, por intermédio da partilha, se coloca termo à comunhão no património hereditário e à indeterminação inerente à qualidade de herdeiro[12], integrando-se no património desses sucessores os bens que pertenceram ao de cujus. Em suma, compõe-se o “quinhão concreto de cada herdeiro[13], uma vez fixada, se for caso disso, a meação do cônjuge.

Vejamos mais em detalhe como se exercita essa relevância.

Até à partilha, a responsabilidade pela liquidação dos encargos da herança reporta-se a todos os bens[14] da herança indivisa (é esse o sentido a atribuir à expressão “respondem colectivamente” contida no art.º 2097.º) e o correspondente direito creditício deve ser exercido contra todos os herdeiros (n.º 1 do art.º 2091.º), na qualidade de co-titulares do património hereditário[15]. Tal disciplina coaduna-se perfeitamente com a indivisão característica da comunhão hereditária.

Ao invés, após a conclusão das operações que integram materialmente a partilha, a responsabilidade passa a respeitar, individualmente, a cada um dos herdeiros directamente como titulares das respectivas universalidades jurídicas constituídas pelos conjuntos de bens que integram a quota hereditária que lhes coube na partilha[16] .

Paralelamente e por efeito directo da partilha, modifica-se igualmente a incidência objectiva da responsabilidade pelos encargos da herança, já que esta passa a recair sobre as forças dos bens que, especificadamente, foram recebidos pelo herdeiro[17].

Na falta de acordo em contrário[18], a responsabilidade do herdeiro acha-se cingida à proporção da quota que lhe tenha cabido na herança. Mais concretamente, tem-se preconizado que essa referenciação deve ser feita por reporte ao valor da quota[19].

O n.º 1 do art.º 2098.º mostra-se assim perfeitamente congruente com as decorrências patrimoniais da finalização da partilha.

Adquiridos estes basilares esclarecimentos, é tempo de regressar ao caso em apreço.

São, em suma, os factos que aqui relevam.

O recorrido é, conjuntamente com a sua mãe e irmão, herdeiro de CC, tendo aceite pura e simplesmente a sua herança.

À herança daquele e ao património indiviso com a mãe do recorrente foi, na partilha extrajudicial a que aqueles procederam, atribuído o valor de € 332.059,00. Nesse âmbito, o quinhão do recorrido cifrou-se no valor de € 55.343,26.

Contudo, apurou-se que, à data da partilha, o acervo hereditário de CC perfazia o valor global de € 1.286.057,62. Acresce que o quinhão hereditário do recorrido foi integrado por diversos bens no valor global e pericialmente avaliados em € 1.025.170,00.

O recorrente/oponido/exequente deu à execução sentença condenatória proferida contra, entre outros, o recorrido na qualidade de sucessor de CC, estando este adstrito, nessa medida e qualidade, ao pagamento da quantia nela titulada.

Vejamos.

A interpretação do disposto no n.º 1 do art.º 2098.º inculca a necessidade de se atender à “relação numérica com o conjunto” e à necessidade de dividir o “conjunto em tantas partes quantos os herdeiros[20] que são inerentes à noção de quota.

Daí que se perceba que, no caso e em concreta aplicação do que evola do n.º 1 do art.º 2139.º, as instâncias tenham limitado a responsabilidade do recorrido pela satisfação da quantia exequenda (que, indubitavelmente, integra o conceito de dívidas da herança) a um 1/3 do valor dos bens deixados por CC, o que, uma vez subtraído o valor da meação da viúva deste, corresponde à quantia de € 214.342,94, repetidamente aludida na revista.

Esse foi, em concreto, o resultado a que, considerando o valor real dos bens deixados por CC[21], se chegou na partilha extrajudicial, pelo que, inerentemente, esse é o valor da quota que coube ao recorrido na herança de seu pai.

Não podem, razoavelmente, subsistir dúvidas de que o n.º 1 do art.º 2098.º, ao aludir à “(…) proporção da quota que lhe tenha cabido na herança”, pretende que, para delimitar a responsabilidade do herdeiro por dívida da herança, se atenda, unicamente, à medida da porção da herança – i.e. à sua quota subjectiva – que veio a caber a cada herdeiro em decorrência da aplicação das normas que disciplinam a repartição dos bens entre os herdeiros, de que é exemplo, mormente, o falado o art.º 2139.º.

Nem, de resto, teria cabimento entender-se diferentemente. Se a medida da responsabilidade de cada herdeiro ficasse na dependência, como parece preconizar o recorrente, do desfecho de cada partilha, gerar-se-ia uma tal incerteza e inseguridade que seriam patentemente desconformes com o grau de previsibilidade e confiabilidade que deve ser incutido pelo Direito na comunidade que é destinatária das suas normas.

É essa a expressão do equilíbrio encontrado pelo legislador entre os diferentes interesses em confronto. Por um lado, o interesse do credor em ser pago pelas forças dos bens do devedor originário, por outro, o interesse do herdeiro em ver restringida a respectiva responsabilidade e por outro lado, ainda, o interesse em saber, de antemão, quais os limites aplicáveis, na hipótese, assaz frequente, de inexistir qualquer estipulação entre todos os herdeiros.

A consideração da aludida consequência não envolve, ao invés do que se alega, qualquer diminuição da garantia creditícia. É que, em decorrência do princípio intra vires hereditatis e mesmo num caso em que a herança é, como no caso sucedeu, aceite de forma pura e simples (n.º 1 do art.º 2052.º)[22], as dívidas do de cujus continuam a responsabilizar os bens que integraram o acervo patrimonial de que o mesmo era titular em vida (cfr. art.º 601.º)[23].

Desse modo, a valia global daqueles bens – que, no caso, se cifra em € 643.028,81[24] – não é afectada nem diminuída pelo facto de o recorrido ter recebido mais bens do que aqueles que eram necessários para integrar a sua quota, sendo plenamente viável ao recorrente fazer-se pagar pelo respectivo valor. Basta que, para tanto, demande, de resto como fez, todos os herdeiros, de modo a que a soma das respectivas partes permita a integral satisfação do seu crédito, não se divisando em que medida tal represente um tratamento de desfavor para o credor[25].

Por isso, desde já se aduz que o modo como se efectivou a partilha não modifica este dado objectivo, tendo apenas, neste conspecto e como já se disse, a virtude[26] de individualizar, definitivamente, os bens herdados por cada um dos executados que responderão pelas dívidas do autor da sucessão e de pessoalizar essa responsabilização.

Nessa medida, atenta a estreita correlação entre o preceituado no n.º 1 do art.º 2098.º e as normas que regem a partilha, não se surpreende qualquer necessária ligação entre a maior ou menor “equidade” empregue pelos herdeiros nas atribuições patrimoniais dela decorrentes e a medida da responsabilização individual pelas dívidas da herança.

Com efeito, fora do contexto da existência um expresso compromisso nesse sentido[27], o facto de, em virtude da partilha, um dos herdeiros ter recebido bens em medida que exceda o necessário para compor o seu quinhão e de, como tal, passar a ser devedor de tornas perante os demais herdeiros, não determina um incremento da medida da sua responsabilidade pelo passivo hereditário[28].

A extensão da quota subjectiva de cada herdeiro mantém-se assim inalterada (até em atenção ao mencionado valor da segurança jurídica), devendo-se aqui observar que as tornas apenas são por aquele devidas porque lhe foram atribuídos bens cuja valia excede a sua quota e que somente possuem relevo como modo de composição dos quinhões hereditários.

Por isso, decidiu-se com acerto ao sustentar-se que o pagamento de tornas (ou a sua alegada indemonstração)[29] é patentemente alheia às premissas e enquadramento em que se deve dirimir a questão solvenda, respeitando, única e exclusivamente, aos herdeiros que delas sejam credores e/ou devedores.

Neste encadeamento, importa não confundir a quota subjectiva com a concreta valia que a mesma assume no confronto com a globalidade dos bens herdados[30]. A expressão quantitativa dos bens integrantes da quota e/ou do seu excesso – que no caso, corresponde, aos frequentemente iterados € 1.025.170,00 – é, por opção legislativa (cuja bondade não cabe aqui discutir, atento os princípios ínsitos no n.º 2 do art.º 8.º e no n.º 3 do art.º 9.º), irrelevante para delinear a responsabilidade pelas dívidas da herança. O concreto valor que o herdeiro integrou no seu património não é, como decorre de uma interpretação da lei à luz dos cânones do art.º 9.º, a medida pela qual se afere e mede essa responsabilização.

Nesta medida, jamais se poderia corroborar o que se inscreveu na conclusão DDD., perfilando-se a mesma como um erro de raciocínio que inquina todo o pensamento do recorrente. Com efeito, e por todas as razões vindas de enunciar, não se pode partir do desfecho de uma partilha extrajudicial e da eventual indemonstração do pagamento de tornas pelos herdeiros que receberam bens que excedem a sua quota para, a posteriori, determinar a medida da respectiva responsabilidade pelas dívidas que onerem o acervo patrimonial.

Não se pode, é certo, olvidar que os intervenientes numa partilha extrajudicial dispõem da possibilidade de, por via da atribuição de valores diminutos ou irrisórios aos bens a partilhar[31], limitarem, substancialmente, a medida em que cada um dos herdeiros deve responder pela liquidação dos encargos da herança.

A legítima reacção daqueles que se têm por prejudicados, porém, não pode passar por uma interpretação enviesada de um texto legislativo em que, expressis verbis, se confina a medida da responsabilidade à quota subjectiva apurada na partilha[32]. É que a lei faculta aos interessados (e, mormente, aos credores) a invocação da simulação da partilha extrajudicial (artigos 240.º e 2121.º[33]) e essa é a via pela qual, com a devida propriedade e o indispensável enquadramento fáctico (que, de resto, jamais foi aventado nos presentes autos), se deve concitar a flagrante disparidade existente entre o valor atribuído aos bens partilhados e o seu efectivo valor na data da partilha e, bem assim, o intuito defraudatório que, na óptica do recorrente, lhe terá estado subjacente.

Por isso, não se pode deixar de observar que as alusões à mencionada eventualidade surgem absolutamente deslocadas no contexto da questão solvenda em apreço. Dito de outra forma, essa discrepância não altera os dados da resposta que lhe deve ser dada.

Nessa medida, cumpre responder positivamente à primeira questão solvenda.


2.2. Da limitação da responsabilidade do oponente pela prévia satisfação dos encargos da herança em função dos pagamentos feitos

A segunda questão solvenda está relacionada com os pagamentos efectuados pelo recorrido nas acções executivas aludidas nos pontos n.os 14 e 15 do elenco factual. Tratava-se de execuções para pagamento de quantia certa que haviam sido instauradas contra, ademais, CC com base em avais por este apostos nas livranças[34] que constituíam, respectivamente, os títulos dados à execução.

Sustenta, porém, o recorrente que os referidos pagamentos não devem ser considerados, na medida em que não dizem respeito a dívidas da herança e que, em todo o caso, os mesmos representam um crédito da herança sobre o subscritor das livranças, razão pela qual sustenta que as quantias para o efeito empregues “da herança nunca saíram”. Mais aventa que, em todo o caso, lhe é inoponível o facto de o recorrido ter pago mais do que lhe caberia segundo a medida da sua quota.

Vejamos cada um dos pontos em que se desdobra a argumentação.

Em primeiro lugar, urge considerar que o dador de aval é, perante o portador da livrança, responsável pelo seu pagamento como se fosse o seu subscritor, podendo ser chamado a cumprir a obrigação avalizada, independentemente de qualquer ordem e sem benefício do regime da excussão prévia (cfr. o primeiro parágrafo do art.º 32.º e os dois primeiros parágrafos do art.º 47.º, ambos da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças[35] [36])

Assim, parece ser preclaro que a instauração das mencionadas execuções contra CC (que, indubitavelmente, constitui uma interpelação para cumprir a obrigação avalizada) implica que as quantias tituladas pelas livranças avalizadas devam ser consideradas como débitos que oneravam o património por ele deixado. Daí que, perante a míngua de argumentação ex adverso, se prefigure como indiscutível a sua qualificação como dívidas da herança na acepção do art.º 2068.º. 

Aqui chegados, cabe notar que, como decorre da factualidade provada, tais pagamentos foram efectuados pelo recorrido após a partilha extrajudicial[37].

Nesta sequência, impõe-se a constatação de que o exercício do direito de sub-rogação que é conferido ao avalista “contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra” (cfr. parágrafo 3 do art.º 32.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças) não integra o acervo de bens que compunham a herança.

É que, como vimos, a partilha tem como efeito a cessação da comunhão hereditária que é inerente à noção de herança[38]. Ora, se assim é, o exercício desse direito creditício contra os co-responsáveis pelo pagamento da livrança, não pode, logicamente, achar-se integrado no elenco de bens que, nos termos do art.º 2069.º, compunham a partilhada herança.  

Por outro lado, e como facilmente se intui, tal direito apenas poderá, numa correcta ordenação das coisas, ser reconhecido ao recorrido. Foi ele que, na qualidade de sucessor do avalista, liquidou as quantias tituladas pelas livranças, pelo que é inviável considerar que esse direito integra uma qualquer outra esfera patrimonial.

Assim, perfila-se como errónea a consideração de que os montantes pagos à entidade portadora das livranças dadas à execução nunca “saíram da herança”.

Quanto ao remanescente da argumentação acima sumariada, há desde logo a notar que, como apuraram as instâncias, a soma dos montantes pagos nas referenciadas execuções não excede a valia da quota subjectiva do recorrido nos bens herdados.

Com efeito, considerando o valor atendível da quota (€ 214.342,94) e subtraindo-lhe aqueles montantes (e, bem assim, a importância mencionada no ponto n.º 22 do elenco factual), remanesce a quantia de € 39.221,44. Por outro lado, desconhece-se, em absoluto, se os montantes pagos correspondiam à totalidade das quantias exequendas e respectivos acréscimos.

A medida da quota do recorrido (estabelecida, como se disse, em 1/3) pela satisfação das dívidas de seu pai não se acha, pois, excedida. Por isso, com propriedade, não se pode assentir que foi pago pelo recorrido “mais do que lhe caberia segundo a sua quota naquelas execuções.”.

Essa constatação revela-se decisiva para afastar a pertinência da argumentação do recorrido, não se divisando, pois, qualquer “abuso” de satisfação de dívidas hereditárias como parece sustentar o recorrente.

E, em todo o caso, é premente observar que o disposto no n.º 1 do art.º 2098.º apenas estabelece a medida da responsabilidade de cada herdeiro pela liquidação da totalidade dos débitos que oneram a herança. Mais uma vez, rememora-se, a noção de quota exprime uma relação com o todo e, em particular, com o passivo hereditário.

A disciplina nele vertida não inculca, por isso e ao invés do que preconiza o recorrente, a necessidade de, em relação a cada dívida hereditária, apurar, individualizadamente, se a sua satisfação se conteve (ou não) nos limites da quota de cada herdeiro.

Acresce ainda que, mesmo que um dos herdeiros haja liquidado dívidas hereditárias em medida superior à sua quota (o que, como vimos, nem sequer sucede no caso em apreço), tal não desobriga os restantes herdeiros da obrigação de responderem pelos remanescentes débitos nas medidas das respectivas quotas.

Desse modo, não se divisa em que mesura a tutela dos interesses dos credores do autor de sucessão reclame solução diversa.

Assim, pese embora se perceba a preferência do recorrente em ser pago pelos imóveis que vieram a ser adjudicados ao recorrido, não se pode, também neste conspecto, reconhecer-lhe razão.

Cabe, pois, responder afirmativamente à segunda questão solvenda.

3. Das custas

Porque vai vencido, as custas da presente revista serão suportadas pelo recorrente (n.º 1 e n.º 2 do art.º 527.º do Código de Processo Civil).

Sumariando em jeito de síntese conclusiva:

I - No âmbito da revista excepcional, os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do art.º 672.º do CPC. Se assim não fosse, afrontar-se-ia o cariz restritivo da admissibilidade da revista subjacente à instituição da dupla conforme e contornar-se-ia o respectivo regime legal.

II – Após a partilha, a responsabilidade de cada herdeiro pelas dívidas do autor da sucessão é unicamente aferida em função da respectiva quota subjectiva que lhe coube na partilha, sendo, para o efeito, irrelevante que o seu quinhão hereditário haja sido preenchido com bens cujo valor exceda a medida dessa quota.

III - A disciplina vertida no art.º 2098.º, n.º 1, do CC não inculca a necessidade de, em relação a cada dívida hereditária, apurar, individualizadamente, se a sua satisfação se conteve nos limites da quota de cada herdeiro.

III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar o presente recurso de revista improcedente e confirmar o acórdão recorrido.

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Custas desta revista pelo recorrente.

*

Lisboa, 19 de Junho 2019

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[1] Do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Execução de Ovar.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães

[3] Cita-se o recentíssimo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2019, proferido no processo n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1 e acessível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido, pode-se consultar a recensão de arestos citados nesse acórdão.
[4] Aqui dispostos em ordenação lógica e cronológica, tendo a sua redacção sido alterada na estrita medida das necessidades dessa nova arrumação.


[5] Cfr. o relatório pericial de fls. 227, rectificado a fls. 331 e 332.
[6] Diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem outra menção.
[7] Cumpre rememorar que, neste domínio, vigora o princípio intra vires hereditatis - segundo o qual os herdeiros apenas respondem dentro das forças da herança -, ainda que a herança haja sido aceite pura e simplesmente. A este respeito, v. PAMPLONA CORTE-REAL, Direito da Família e das Sucessões, vol. II, Lex, pág. 146 e FERNANDO BRANDÃO FERREIRA PINTO, Direito das Sucessões, Editora Internacional, pág. 185.
[8] A este respeito, v. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra, pág. 159 e INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Sucessões – Parte Geral, Coimbra, págs. 107 e 108.
[9] A distinção traçada pela lei corresponde, no dizer de PEREIRA COELHO – Direito das Sucessões, Coimbra, pág. 282 –, a uma perspectiva dinâmica do modo como se efectiva a responsabilidade dos bens da herança pelos encargos que a oneram. Salientando, precisamente, a necessidade desta distinção, v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2014, proferido no processo n.º 278/09.4TVPRT.P1.S1 e acessível em www.dgsi.pt.
[10] A redacção actual do n.º 1 do artigo 2098.º provém da 2.ª revisão ministerial do anteprojecto da autoria de INOCÊNCIO GALVÃO TELLES. Naquele anteprojecto, o correspondente preceito (o artigo 71.º) possuía a seguinte redacção:
Art. 71.º (Pagamento dos encargos após a partilha)
§ 1.º Depois de feita a partilha, cada co-herdeiro só responde em proporção da parte que lhe tiver cabido na herança. (…)”.
[11] Assim, CARVALHO FERNANDES, Lições de Direito das Sucessões, Quid Juris, pág. 297 e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., pág. 160.
[12] Cfr. a respectiva noção, constante do n.º 2 do artigo 2030.º.
[13] A expressão pertence a INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., pág. 113; no mesmo sentido, pode-se consultar PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., pág. 164.
[14] Assim JACINTO RODRIGUES BASTOS, Direito das Sucessões segundo o Código Civil de 1966, Petrony, pág. 190.
[15] Assim, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra, pág. 110; note-se, no entanto, que, nessa qualidade, os herdeiros não podem ser condenados a satisfazer os encargos da herança, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Março de 1992, B.M.J. n.º 415, pág. 658.
[16] Cita-se RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, ob. cit., pág. 118; no mesmo sentido se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2015, proferido por esta Secção no processo n.º 3525/11.9TBVNG.P1.S1 e sumariado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2011.pdf.
[17] Assim PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., págs. 160 e 161 e INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., pág. 109.
[18] Nos termos delineados pelo n.º 2 do artigo 2098.º, matéria de que não se cuidará por manifesta desnecessidade, atento o teor do elenco factual.
[19] Perfilham este entendimento CARVALHO FERNANDES, ob. cit., pág. 301 e JORGE AUGUSTO PAIS DO AMARAL, Direito da Família e das Sucessões, 3.ª Edição, Almedina, pág. 347, entre outros.
[20] Citam-se expressões de INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Sucessões – Noções Fundamentais, 6.ª Edição, Coimbra, pág. 187.
[21] Conforme lapidarmente se escreveu no acórdão proferido pela Relação do Porto a fls. 469 e ss. “não se pode impor aos credores de dívidas constituídas pelo de cujus o valor acordado pelos herdeiros numa escritura a que aqueles são totalmente alheios, pois estes [os herdeiros] poderiam conluiar-se para os lesar [os credores]. Assim, para efeito de determinar qual o valor por que responde o herdeiro perante os credores de dívidas constituídas pelo de cujus tem de se atender ao valor real. A garantia patrimonial dos credores assenta no património efectivamente herdado, e não no valor que é declarado na escritura de partilha, por acordo dos interessados, eventualmente - ou normalmente - desconforme coma realidade.”.
Recorde-se que o acórdão vindo de citar resolveu, ademais, a questão de saber se a valia dos bens deixados por CC deveria ser aferida por reporte à data do seu decesso (como primeiramente se decidira em 1.ª instância) ou por referência à data em que foi efectuada a partilha. Tal acórdão acha-se pacificamente transitado em julgado, sendo, como tal imodificável, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 619.º e da primeira parte do artigo 621.º, ambos do Código de Processo Civil. Paralelamente, há a notar que este aspecto está excluído do objecto da revista, tal como ele surge delimitado pelas conclusões recursórias acima mencionadas.

[22] Nota 8.
[23] Com o privilégio acrescido que decorre da preferência conferida pelo n.º 1 do art.º 2070.º.
[24] E não em € 1.286.057,62, como repetidamente se alega. Importa notar que, como deflui dos factos provados, este valor corresponde à soma do valor dos bens integrantes da herança deixada por CC com o valor da respectiva meação no acervo patrimonial do dissolvido casal.
[25] Recorde-se que, após a partilha, a responsabilidade dos herdeiros pela satisfação das dívidas não é solidária (cfr. artigo 513.º), como se vem acentuando. Assim, v., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Novembro de 1996, proferido no processo n.º 087275 e sumariado em www.dgsi.pt.
[26] Não assistindo, pois, qualquer razão ao recorrente ao sustentar (conclusões BB. e SSS.) que é (ou deva ser) indiferente que a dívida da herança seja liquidada antes ou depois da partilha.
[27] O que seria admissível em vista do n.º 2 do art.º 2098.º.
[28] Perante diferente contexto, expendeu-se, no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2015 e reportando-se à valoração de uma confissão judicial atinente que suportou a demonstração da real valia dos bens partilhados que esta “(…) nunca poderia adulterar [sublinhado nosso] a quota hereditária de cada um dos partidores, sendo certo que ela só responde na medida da sua proporção face ao todo da herança. (…)”.
[29] Questão que, como se disse, escapa ao delimitado objecto da presente revista.
[30] No mesmo sentido mas perante diferente contexto, v. o mesmo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2015.
[31] Como salienta RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA - ob. cit., pág. 169 - no contexto de uma partilha extrajudicial, a atribuição da totalidade dos valores dos bens a partilhar depende somente do acordo unânime dos partilhantes.
[32] Sendo aqui, de notar, no entanto que a menção à “parte” constante do anteprojecto de INOCÊNCIO GALVÃO TELLES (supra, nota 11) era mais bem expressiva.
[33] Como aponta INOCÊNCIO GALVÃO TELLES – Sucessões, págs. 136 e 137 –, a partilha extrajudicial, enquanto contrato que é, está sujeita ao regime geral do negócio jurídico, constante dos artigos 217.º a 294.º.
[34] Cfr., quanto à acção executiva mencionada no ponto n.º 15 do elenco factual, o teor da certidão judicial de fls. 73 e ss.
[35] Preceitos aplicáveis às livranças por força do disposto no primeiro e no último parágrafo do artigo 77.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças.
[36] Assim, PINTO FURTADO, Títulos de Crédito, Almedina, pág. 154 e ABEL DELGADO, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, Petrony, 5.ª Edição, págs. 208 e 209.  
[37] A escritura pública que corporizou a partilha extrajudicial a que vimos aludindo foi celebrada em 14 de Maio de 1998 e os pagamentos em causa foram efectuados nos meses de Abril, Junho e Setembro de 2002.
[38] Daí que seja inevitável notar que as constantes referências à herança aduzidas a este respeito padeçam de evidente impropriedade terminológica.