Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19/16.0YGLSB-N
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ESCUSA
JUIZ CONSELHEIRO
JUIZ ADJUNTO
JUIZ PRESIDENTE
IMPARCIALIDADE
SUSPEIÇÃO
DESPACHO
INQUÉRITO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :
I - A presidência da diligência de buscas, domiciliária e no escritório de advogado então arguido, pela natureza e extensão do ato praticado, não constitui uma situação séria, grave e irrefutavelmente denunciadora de que a Ex.ma Juíza Conselheira deixou de oferecer garantias de imparcialidade e de isenção na audiência de julgamento do Proc. n.º X, a que, pela distribuição, irá presidir.
II - Da natureza das questões objeto dos recursos respeitantes a matéria disciplinar e da extensão das decisões tomadas nos acórdãos da Secção de Contencioso do STJ, não pode um cidadão médio e os próprios destinatários, concluir que a intervenção da ora Requerente nessas decisões a comprometeu antecipadamente a uma tomada de decisão sobre o mérito do processo, de culpabilidade ou não dos arguidos A e B, ou dos outros arguidos, no Proc. n.º X, antes do momento próprio, que é após a produção da prova na audiência de julgamento.
III - Os despachos proferidos pela Requerente, como JIC, na fase de inquérito do presente processo, respeitantes à constituição de assistente, à consulta do processo e obtenção de cópias dos apensos, à declaração da excecional complexidade dos autos, à prorrogação do prazo de apresentação do requerimento de abertura da instrução e ao levantamento parcial de arresto, não constituem tomadas de posição irrefutavelmente denunciadoras, perante os seus destinatários diretos e a comunidade em geral, de que, como juiz natural, deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 19/16.0YGLSB-N

Escusa

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. A Ex.ma Juíza Conselheira AA, a exercer funções no Supremo Tribunal de Justiça, ... Secção Criminal, veio requerer a sua escusa de intervir no proc. n.º 19/16.0YGLSB, ao abrigo do disposto no art.43.º, n.ºs 1 e 4 do Código de Processo Penal, apresentando para o efeito requerimento entrado neste Supremo Tribunal em 24 de janeiro de 2023, com o seguinte teor (transcrição):

2. A 21.01.2023, foi objeto de distribuição o processo n.º 19/16.0YGLSB para julgamento em 1.ª instância no Supremo Tribunal de Justiça; o processo foi distribuído ao Senhor Conselheiro BB, que integra a ... Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.

De acordo com jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, plasmada de forma expressa na decisão do Pleno das secções criminais de 13.12.2020, no processo n.º 9/15.0YGLSB.S2-D, onde se considerou que, aquando de julgamentos em 1.ª instância no Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art.435.º, do Código de Processo Penal (CPP), em audiência, o Tribunal é constituído pelo presidente da secção, pelo relator e pelos juízes adjuntos.

Tendo o processo n.º 19/16.0YGLSB sido distribuído a um Senhor Juiz-Conselheiro em funções na ... Secção, a audiência deveria ser presidida pelo Presidente da ... Secção.

O Presidente da ... Secção é o Senhor Juiz Conselheiro CC que, todavia, se encontra impedido nestes autos e conforme declaração que se integra no processo, por força do disposto no art.39.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal (CPP).

E por força do disposto nos arts. 65.º e 64.º, n.º 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.08, LOSJ) – este aplicado por analogia –, a sua substituição caberia ao Juiz Conselheiro mais antigo na secção e que é a aqui requerente.

Mas ainda que assim se não entenda, e porque estamos no âmbito de um julgamento em 1.ª instância, nos termos do art. 46.º, do Código de Processo Penal, a substituição poderá caber ao Juiz Conselheiro que deva substituir o juiz impedido; ora, nos termos do art. 56.º, n.º 2, da LOSJ, a intervenção dos juízes de cada secção no julgamento faz-se segundo a ordem de precedência, e tratando-se da presidência, caberá ao Juiz Conselheiro mais antigo aquela substituição. Tanto mais que as disposições do Código de Processo Civil, maxime, disposto nos arts. 116.º, nº 4 e 217.º, referindo-se aos tribunais superiores apenas respeitam a impedimentos dos relatores ou de juízes-adjuntos.

Assim sendo, a intervenção da aqui requerente poderá ocorrer como Presidente do coletivo.

Mas mesmo que assim se não entenda, tendo em conta a ordem de precedência e sendo o Senhor Juiz Conselheiro BB o mais novo a integrar a composição da ... Secção e sendo a aqui requerente a mais antiga, sempre interviria no coletivo como juiz-adjunta.

É a intervenção nestes autos, quer numa qualidade quer noutra, que pode ser considerada suspeita, pelas razões que a seguir se invocam e que fundamentam este pedido de escusa.

3. A requerente só agora faz este pedido de escusa, por só agora se vislumbrar a possibilidade de nele intervir; não tendo, pois, usado da faculdade, que lhe estava legalmente atribuída entre 21.03.2022 e 01.08.2022, de se declarar impedida por força do disposto no art.40.º, n.º 1, al. a), do CPP, na redação dada pela Lei n.º 94/2021, de 21.12 (que entrou em vigor 90 dias após a publicação nos termos do art. 16.º) – “1 - Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver: a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º” – que esteve em vigor no período referido. O dispositivo referido obteve a redação que tem atualmente com a Lei n.º 13/2022, de 01.08, que entrou em vigor a 02.08.2022.

4. Deve desde já declarar-se que o conhecimento dos factos em julgamento, resultante de diversas intervenções em outros processos e em momentos anteriores deste mesmo processo, não compromete minimamente a imparcialidade e rigor da requerente se houver que prosseguir a sua intervenção no processo supra referido. Todavia, o rigor, o escrúpulo e a cautela impõem a realização deste requerimento.

Na verdade, tendo presente o disposto no artigo 43.º, número 1, do Código de Processo Penal, não poderíamos deixar de apresentar o presente requerimento dado o risco de ser considerada suspeita a intervenção da requerente no julgamento em causa, por existir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz pelos membros da comunidade.

Todo o contacto anterior com o processo n.º 19/16.0YGLSB e com os recursos, decididos na secção de contencioso deste Supremo Tribunal de Justiça e onde a requerente assumiu as funções de Juiz Relatora e Juiz adjunta, de deliberações tomadas pelo Conselho Superior da Magistratura no âmbito dos processos disciplinares de dois dos arguidos destes autos, em tempos de grande escrutínio mediático da justiça, poderá vir a suscitar dúvidas ou insinuações (para não falar em rumores) que, não chegando a manchar aquela, podem plausivelmente gerar ruído na comunicação social. Na atualidade, impõe-se que seja evidente publicamente a imparcialidade na atuação judiciária. Este pedido de escusa baseia-se na aquisição de pré-juízos e prévio conhecimento de diversos factos que vão agora a julgamento, a gerar melindre e delicadeza na situação.

São os seguintes os fundamentos do pedido de escusa:

- participação na realização das buscas que ocorreram em 30.01.2018;

- intervenção como relatora e adjunta em recursos, de deliberações do Conselho Superior da Magistratura no âmbito de processos disciplinares a dois dos arguidos destes autos, decididos na secção de contencioso deste Supremo Tribunal de Justiça;

- intervenção como juiz de instrução criminal durante a fase de inquérito, onde proferiu diversos despachos neles se evidenciando o conhecimento da acusação, como se demonstrará infra.

Estes fundamentos irão determinar por parte da comunidade um sério juízo de suspeita sobre a imparcialidade da intervenção da requerente por se considerar que antes do julgamento teve já oportunidade, a partir dos diversos elementos que consultou dos autos principais e apensos e a partir dos recursos em que participou na secção de contencioso, de formar diversos pré-juízos e de ter uma visão sobre os acontecimentos.

Analisemos cada umas das três situações referidas acima:

4.1. Por despacho de 24.01.2018, do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Senhor Juiz Conselheiro DD, e por solicitação do Juiz de Instrução que na altura exercia funções no proc. n.º 19/16…, foi determinado: “em função da necessidade de designação de seis Senhores Juízes Conselheiros para coadjuvarem na realização de diligências no Inquérito em referência, tenho a honra de comunicar que, na sequência de sorteio expressamente efetuado, a que presidi, designo os Senhores. Juízes Conselheiros EE, FF, GG, HH e II.” (Cf. fls. 3406 dos autos)

Nesta sequência, foi emitido mandado de busca e apreensão (a 26.01.2018, para realização a 30.01.2018) para que “com observância das formalidades legais e, através de elementos da Polícia Judiciária, se proceda a busca no local abaixo indicado, com vista a apreensão de documentos em suporte de papel e armazenados nos seus sistemas informáticos e/ou outros suportes digitais ou a sistemas acedíveis a partir daqueles, independentemente da sua localização, com a indiciada atividade ilícita sob investigação, susceptíveis de integrarem indiciação da prática de crimes de corrupção/recebimento indevido de vantagem, p. e p. nos art° 372°, 373° e 374°, do C. Penal, de branqueamento, p. e p. no art° 368°-A, n° 1 e 2, do C.Penal, de tráfico de influência, p. e p. no art° 335°, n° 1, al. a), do C. Penal e de fraude fiscal, p. e p. nos art° 103°, n° 1, al. b) e 104°, n° 2, al. b), do RGIT.-

Autoriza-se ainda, no âmbito da busca a realizar, a desactivação de sistemas de vigilância electrónicos, o acesso a todos os anexos e dependências (abrangendo garagens, parqueamentos e arrecadações), bem como caixas de correio da residência e viaturas na disponibilidade do visado, tudo com recurso, caso tal se mostre necessário, ao escalamento ou arrombamento de quaisquer obstáculos”.

A requerente presidiu como JIC à realização da busca da residência e escritório do então arguido JJ.

Poder-se-á argumentar que a simples participação nestas diligências sem outra intervenção nos autos poderia não consubstanciar fundamento para o presente pedido de escusa, dada a pouca informação a que se teve acesso. Porém, a requerente não pode olvidar que, no âmbito do processo n.º 4/20.... (relativo a ação de impugnação da deliberação, do Conselho Superior da Magistratura, que deliberou a aposentação compulsiva de uma arguida destes autos), que correu termos no âmbito da secção de Contencioso deste Supremo Tribunal de Justiça, os Senhores Conselheiros HH e II apresentaram igualmente pedido de escusa, com fundamento na participação, no mesmo dia 30.01.2018, em buscas realizadas no âmbito do proc. nº 19/160YGLSB e no disposto no art. 119.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (“outras circunstâncias ponderosas [o requerente] entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade”) — ambos os pedidos foram deferidos (nos autos citados – proc. n.º 4/20....) por decisões de 14.09.2020 e 28.10.2020, respetivamente.

Acresce ainda referir que o Senhor Presidente da ... Secção, Senhor Juiz Conselheiro CC, enquanto Procurador-Geral Adjunto participou igualmente nas diligências ocorridas a 30.01.2018, e por isso se declarou impedido nos termos do art.39.º, n.º 1, al. C), do CPP. Tratou-se também de uma intervenção pontual sem que, todavia, o legislador entenda que não constitui fundamento de impedimento.

4.2. A requerente participou em diversos processos quando integrou a secção de contencioso do Supremo Tribunal de Justiça:

- foi Juíza Relatora do acórdão de 30.04.2020, no processo n.º 17/19...., onde o arguido KK apresentou recurso da deliberação que prorrogou o prazo de instrução do procedimento disciplinar. Foi, então, decidida a inutilidade superveniente da lide por posteriormente ao início da ação ter ocorrido a deliberação do Conselho Superior da Magistratura que, na sequência do procedimento disciplinar, aplicou ao arguido referido a pena única de demissão, pela prática de uma infração disciplinar, na forma continuada, consubstanciada na violação dos deveres de prossecução do interesse público, no sentido de criação no público de confiança no sistema judicial, de imparcialidade e isenção e ainda dos deveres de integridade, retidão e probidade inerentes às funções de magistrado judicial, ao abrigo dos arts. 82.º, 85.º, n.º 1, al. g), 90.º, n.º 2, 95.º, n.º 1, al. b), 96.º, 99.º e 107.º, do EMJ e do art. 73.º, n.º 2, als. a), b) e c) e n.ºs 3, 4 e 5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), ex vi do artigo 131.º, EMJ;

- foi Juiz Adjunta no proc. n.º 91/18.... que, por acórdão de 25.09.2019, decidiu sobre a impugnação da deliberação de conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar contra o aqui arguido KK, tendo sido julgada improcedente; neste decidiu-se igualmente sobre a alegada prescrição do procedimento disciplinar tendo a aqui requerente apresentado declaração de voto divergindo quanto ao momento a partir do qual deveria ser contado o prazo de prescrição, quanto ao prazo em si e quanto à ratificação pelo plenário do Conselho Superior da Magistratura em medida superior ao ato ratificado;

- foi Juiz Adjunta no proc. n.º 18/19.... que, por acórdão de 24.10.2019, decidiu sobre o indeferimento, pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), da reclamação, apresentada por KK, da deliberação que ratificou o despacho do Senhor Vice-Presidente do CSM que prorrogou a instrução do procedimento disciplinar pelo facto de, nomeadamente, após em sucessivas convocatórias para audição do interessado e não tendo este comparecido (pelo motivos que invocou), se tornar necessária a prorrogação daquele prazo para que se procedesse à audição do interessado;

- foi Juiz Adjunta no proc. n.º 90/18.... que, por acórdão de 10.12.2019, decidiu sobre a impugnação da deliberação do CSM que determinou a conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar contra a aqui arguida LL; estava em causa, segundo alegado, a prescrição do direito de instaurar procedimento disciplinar que se iniciou, como se refere no acórdão, “perante o conhecimentos dos factos apurados nos autos de inquérito criminal n.º 19/16.0YGLSB” e, subsidiariamente, a nulidade da conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar;

- foi Juiz Adjunta no proc. n.º 10/19.... que, por acórdão de 30.04.2020, decidiu sobre nova prorrogação do prazo de instrução do procedimento disciplinar contra o aqui arguido KK;

- foi Juiz Adjunta no proc. n.º 27/19.... que, por acórdão de 30.04.2020, decidiu o recurso, apresentado pela aqui arguida LL, das deliberações do CSM sobre “a inadmissibilidade legal da prorrogação da suspensão preventiva; a incompetência orgânica para o exercício da ação disciplinar; a absoluta inadmissibilidade legal da atribuição de efeito meramente devolutivo às reclamações”; estava em causa, nomeadamente, a prorrogação da suspensão preventiva do exercício das funções de magistrada da aqui arguida já depois de lhe ter sido aplicada e revogada a medida de coação de suspensão de exercício de funções, no âmbito do inquérito criminal n.º19/16.0YGLSB; de entre os factos relevantes para a decisão a tomar neste acórdão consta o seguinte:

“1. Em 02-02-2018, o Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura proferiu despacho com o seguinte teor:

“Cumpre apreciar a proposta de suspensão preventiva da Senhora Juíza Desembargadora LL, apresentada pelo Senhor Inspetor Judicial Extraordinário no relatório final do presente inquérito.

1. Com relevo, está indiciado nos autos o seguinte:

a) Nos autos de inquérito 19/16.0YGLSB investiga-se a prática de factos susceptíveis, em abstracto, de integrar crimes de tráfico de influência, p. e p. nos termos do artº 335º, n.º 1 do Cód. Penal, de fraude fiscal, p. e p. nos termos do artº 103º e 104º do RGIT, branqueamento, p. e p. nos termos do artº 368-A do Cód. Penal, corrupção/recebimento indevido de vantagem, p. e p. nos termos do artº 373º, nº 1, 372º, nº 1 e 374º, nº 1 e 2, ambos do Cód. Penal.

[…]

d) Igualmente está indiciado que a ocultação e conversão das vantagens auferidas com a actividade supra referida através da facturação de serviços fictícios e utilização de contas bancárias de terceiros comparticipantes, entre os quais a Senhora Desembargadora LL, com ulterior levantamento e entregas e realização de novos depósitos em numerário num conjunto de novas contas-ecrã tituladas por indivíduos próximos do Senhor Desembargador KK, ou a conversão de tais vantagens mediante o pagamento de despesas várias de terceiros indivíduos, entre os quais a Senhora Desembargadora LL.

[…]

g) Encontra-se indiciado nos autos que a Senhora Desembargadora agiu em comunhão de esforços e na concretização de plano prévio e comum com o Senhor Desembargador KK, sendo conhecedora da ilicitude das condutas que desenvolveu actuando de modo livre, deliberado e consciente.

[…]

A gravidade dos factos em causa, aliada a perturbação e alarme social gerados, determina que a suspensão deva ser de imediato determinada com posterior ratificação pelo Conselho Plenário.

4. Tudo visto, e depois de ouvidos todos os membros do Conselho, determina-se a imediata suspensão preventiva da Juíza Desembargadora LL do exercício das suas funções, a executar de imediato, por imperativo de relevante interesse público, pelo período de 60 dias.

[…]

No prazo de 30 dias, deverá o Senhor Inspector Judicial informar da necessidade eventual de prorrogação da suspensão ora determinada».”

Ainda que a requerente pudesse intervir nos autos em que se insere este pedido de escusa, cumprindo escrupulosamente as suas funções, certo é que a sua intervenção, em todas estas decisões, suscita aos olhos da comunidade suspeita séria sobre a sua imparcialidade. Num processo, como o presente, que tem sido e será minuciosamente escrutinado pela opinião pública, em particular através dos órgãos de comunicação social, será difícil explicar, de forma compreensível, à comunidade, que a aqui requerente já não formou alguns pré-juízos sobre os factos sob escrutínio, assim se colocando em perigo o prestígio e dignidade da função que a aqui requerente venha a exercer nestes autos.

4.3. Mas a requerente teve ainda intervenção, como juiz de instrução criminal, na fase de inquérito destes autos. Nestas funções proferiu diversos despachos, entre eles:

- a 06.11.2020 deferiu o requerimento do arguido KK decidindo que

a) O arguido tem direito a obter cópia dos apensos para fins do exercício do seu direito de defesa, que poderá ser através de cópia material, ou digital, consoante o que conseguir lograr de modo mais célere. b) Caso já exista cópia digitalizada dos apensos, deve ser entregue. c) Quanto ao mais, decide-se manter o despacho do MP, ou seja, o arguido tem direito a examinar na secretaria as conversações e comunicações resultantes das interceções, e, posteriormente, deverá requerer em relação às não transcritas, as que pretende transcrever, e quanto às transcritas, motivo justificado para a nova transcrição.”;

- a 30.11.2020 proferiu despacho a determinar a excecional complexidade dos autos e concedendo uma prorrogação de prazo para apresentação de requerimento de abertura de instrução; para tanto teve que analisar os autos, em particular a acusação, constatando que tinha sido

“deduzida acusação contra dezassete arguidos, estando em causa a prática de mais de 3 dezenas de crimes, sendo uns desses, entre outros, o crime de corrupção passiva e ativa para ato ilícito, agravado, previsto e punido nos art. 373.ºe 374.º-A, do Código Penal (CP), e o crime de branqueamento, previsto e punido no art. 368.º-A, n.º1 e 2, do CP, que se integram no conceito de criminalidade altamente organizada se atentarmos à al. m), do art. 1.º do CPP.(…)

Acresce que o despacho de acusação tem 4956 artigos (composta por cerca de 900 páginas), tendo ali sido indicadas 76 testemunhas. O processo principal é composto por dezenas de volumes e dezenas de Apensos (alguns dos quais com vários volumes).

Se atentarmos à prova indicada na acusação, verificamos que é a vasta a documentação recolhida durante a fase de investigação, sendo que a prova documental constante da acusação, reportada aos autos principais, é a constante do Vol. I ao Vol. XXXVIII, a que acresce mais de duas dezenas de Apensos, compostos, por sua vez, por dezenas de volumes, sendo de diversa natureza; são vários os apensos relativos a perícias, a buscas, a escutas telefónicas, a certidões. No despacho de acusação são ainda indicados vários dados bancários, recolhidos sobre múltiplas contas bancárias, tendo sido referidos na acusação 29 Apensos bancários.

Atendendo a tudo o exposto e considerando, especialmente, o significativo número de arguidos, o elevado número de testemunhas indicadas na acusação e atento ainda o elevado número de prova documental e já integrando os autos notória quer quanto ao volume, integrando atualmente mais de 46 volumes (nos autos principais), e ainda considerando os tipos de crimes cuja prática é imputada na acusação, como, entre outros, o de corrupção (passiva e ativa) para ato ilícito e o de branqueamento, correspondendo tais crimes a criminalidade altamente organizada, de acordo com o disposto no art.1.º, al. m), do CPP, declara-se a excecional complexidade do presente processo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 215.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.”

Também aqui, entende a requerente que existe motivo sério e grave para que se gere na comunidade fundada suspeita sobre a sua imparcialidade dada a sua intervenção “em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º” (cf. art. 43.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPP);

- na mesma data, decidiu pela prorrogação do prazo de apresentação do requerimento de abertura de instrução tendo considerado que

Conforme resulta do inquérito o mesmo iniciou-se em 2016, sendo que os factos estiveram em investigação pelo Ministério Público durante cerca de quatro anos, para além de, conforme acima fizemos referência, a acusação ser integrada por 4956 artigos (composta por cerca de 900 páginas) e alicerçando a prova, para além das declarações de cerca de 76 testemunhas, em vasta documentação recolhida, que é composta por dezenas de volumes e dezenas de Apensos (alguns dos quais com vários volumes) e de diversas naturezas, nomeadamente em dezenas de buscas, de escutas telefónicas, perícias e em dados bancários recolhidos sobre múltiplas contas bancárias (composto por 29 Apensos bancários).

Dado que a fase da instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, para os arguidos que pretendam requerer a abertura de instrução impõe-se analisar criteriosamente as provas indicadas na acusação que servem de suporte aos factos que lhe são imputados, sendo tal tarefa, de preparação de defesa, bastante significativa.(…)

Assim, dada a dimensão da prova existente nos autos e dos factos imputados na acusação, afigura-se-nos adequado e proporcionado conceder um prazo muito próximo do prazo máximo previsto na lei, para a preparação/apresentação do requerimento de abertura de instrução, pelo que nos termos do art. 107.º, n.º 6, do CPP concedo o período de 25 (vinte cinco) dias a acrescer aos 20 dias, previsto no art. 287.º do CPP.”

- a 09.11.2020, decidindo sobre o requerimento de constituição de assistente de MM, que foi deferido apenas no que respeita aos crimes de corrupção e de abuso de poder, foram tidos em consideração, expressamente, os factos narrados na acusação (na decisão refere-se expressamente “É certo que inexiste qualquer referência à intervenção do cidadão MM nos factos narrados na acusação”, e ainda “também é certo que a legitimidade do requerente MM para se constituir assistente, resulta apenas de estarem suficientemente indiciados nos presentes autos (e por isso no âmbito da acusação) a prática de alguns dos crimes especificados na al. e) do n.º 1 do art. 68.º do CPP, mais concretamente o crime de corrupção e o crime de abuso de poder.”)

- a 13.01.2021, deferindo o pedido de constituição de assistente da Ordem dos Advogados quanto ao crime de usurpação de funções, referiu expressamente “nem se diga que o facto de a infração ter sido levada a cabo por agente sem inscrição ou estágio validados pela Ordem dos Advogados afasta a sua natureza de ato relacionado com o exercício da profissão de advogado que representa (cf. art. 49.º, da Lei n.º 2/2013), por não ter sido praticado por um dos seus membros.”, assim evidenciando mais uma vez um conhecimento dos autos para lá de um simples contacto superficial;

- e neste mesmo despacho de 13.01.2021 indeferiu um primeiro requerimento de constituição de assistente de NN porquanto:

“Posto isto, não vemos em que medida NN seja titular do(s) interesse(s) diretamente protegido(s) na(s) incriminação(ões) penal(ais) em causa, nestes autos.

Pois, compulsado o despacho de encerramento de inquérito (despacho de arquivamento e acusação), NN não figura como ofendido, e não se consegue descortinar e concluir, dos factos imputados aos vários arguidos, que NN seja o sujeito passivo de qualquer uma das incriminações penais em causa nestes autos, para efeitos da al. a) do n.º 1 do art. 68.º, do CPP.”

- a 11.02.2021, prolatou despacho decidindo, entre outras questões, sobre o requerido levantamento parcial do arresto imposto à arguida LL, mantendo a medida de garantia patrimonial imposta, porquanto:

“O arresto decretado nestes autos visa assegurar o pagamento do valor das vantagens que não foi possível apropriar em espécie, e que tendo em consideração o constante na acusação quanto aos valores apurados no âmbito da perda clássica, serve para garantia do pagamento do valor de 1.016. 813, 24 € (um milão e dezasseis mil oitocentos e treze euros e vinte e quatro cêntimos).

O objetivo desta garantia patrimonial é que os valores/bens arrestados se mantenham conservados e à disposição da Justiça, apenas podendo ser reduzidos/levantados nos casos especialmente previstos na lei e mediante o preenchimento rigoroso dos seus requisitos, que no caso concreto a Requerida não alegou nem provou.”

- a 04.05.2021, prolatou despacho decidindo, entre outros, sobre o requerimento de constituição de assistente de C..., S.A e OO, admitindo ambos, e referindo expressamente no despacho que

“No caso concreto, verifica-se que efetivamente os requerentes, e para o que releva a C..., S.A, expõem de facto e de direito os seus interesses na participação ativa neste processo. Se aludirmos aos factos contidos na acusação mormente nos seus arts. 755.º a 877.º e aos factos descritos em 7. a 17. pelos requerentes, no seu requerimento de pedido de constituição de assistentes, resulta claro em que contexto estes pretendem uma intervenção e colaboração com o Ministério Público nestes autos (referente à intervenção no processo n.º 755/13...., que iniciou os seus termos na ... Vara Cível de ..., em que o arguido KK era Autor e os requerentes Réus).

A legitimidade dos requerentes, C..., S.A e OO para se constituírem assistentes, resulta apenas da circunstância de estarem indiciados nos presentes autos a prática dos crimes de corrupção e de abuso de poder (crimes especificados na al. e) do n.º 1 do art. 68.º do CPP).”

“assim se demonstrando um estudo cuidado dos autos sem que tivesse prolatado tais despachos com um conhecimento esporádico dos autos.

5. A garantia de imparcialidade do juiz impõe “uma intervenção judicial equidistante, desprendida e descomprometida em relação ao objeto da causa e a todos os demais sujeitos processuais. O princípio da imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada, neutral isenta. (...) [O] que interessa, convém acentuar, não é tanto o facto de, a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança na comunidade nas decisões dos seus magistrados” [1]. Trata-se além disto de assegurar a imparcialidade como dimensão essencial da estrutura acusatória do processo e enquanto preservação de um direito fundamental a um juiz imparcial[2].

A necessidade de confiança comunitária nos juízes, que se faz sentir sobremaneira no âmbito do processo penal, constitui fundamento para os impedimentos consagrados no art. 39.º, do CPP. Mas, para além disto, o legislador consagrou no artigo 40.º uma cláusula geral de suspeição com vista a “prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade. Para que a suspeição se atualize num afastamento do juiz não é, com efeito, necessário demonstrar uma sua efetiva falta de isenção e imparcialidade, sendo suficiente, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial”[3] . Assim, quando ocorra uma intervenção do juiz em fases anteriores do processo ou em outros processos que não determine um impedimento nos termos do art.40.º, do CPP, admitiu o legislador que possa ser fundamento de suspeição, nos termos do art.43.º, n.º 2, do CPP.

O elenco de intervenções e decisões que a requerente apresentou supra suscitarão aos olhos da comunidade uma dúvida objetivamente fundada quanto à inexistência de uma précompreensão sobre as imputações que são dirigidas a diversos arguidos destes autos. Na verdade, aqueles intervenções e decisões ocorreram não só no âmbito destes autos, mas em outros processos onde se analisaram questões diretamente relacionadas com as existentes nestes autos, assim podendo levantar-se suspeições quanto à perda de equidistância que o exercício da função judicial impõe.

Cremos que a enumeração das diversas situações referidas demonstra, de forma evidente, que se obteve um conhecimento, por razões funcionais, dos factos que não se pode entender como sendo um conhecimento superficial e pontual, o que aos olhos da comunidade constituirá um indício evidente de parcialidade na decisão que possa vir a ser tomada. Perante a comunidade, a isenção e objetividade que se impunha parecerá comprometida tendo em conta este conhecimento prévio; ainda que juridicamente, nos meios restritos do sistema judiciário, se possa considerar que se tratou de um mero conhecimento ainda distante do que ocorrerá aquando do julgamento, aos olhos da comunidade sempre sobressairá que a requerente já chegou ao julgamento com um pensamento maculado pelas diversas intervenções anteriores em processos distintos e neste processo.

Assim sendo, consideramos que surgirão facilmente dúvidas sobre a isenção da requerente quanto à condução dos trabalhos de julgamento, quanto à apreciação da produção de prova, quanto à decisão final que vier a ser tomada; facilmente se duvidará das condições de objetividade e imparcialidade da requerente.

Este contexto constitui, pelo menos no plano das representações da comunidade, um motivo sério e grave suscetível de gerar desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que venha a ser tomada, e nessa mesma medida desconfiança no sistema de justiça globalmente considerado.

Uma última nota: a requerente prolatou, no proc. n.º 19/16.0YGLSB, os despachos referidos, e outros, já após a acusação. Tivessem os autos já sido distribuídos como instrução e o juiz que os tivesse prolatado estaria impedido nos termos do art. 288.º, n.º 2, do CPP. Nos termos deste dispositivo, quando “a instrução pertencer ao Supremo Tribunal de Justiça” está “impedido de intervir nos subsequentes atos do processo” o “instrutor”. Ou seja, o impedimento aqui consagrado é mais lato do que o previsto no art. 40.º, n.º 1, al. b), do CPP, que apenas prevê um impedimento para o juiz que tiver presidido a debate instrutório. Assim sendo, se a requerente tivesse realizado os atos descritos (e outros constantes dos autos) após a distribuição dos autos como instrução, mas não tivesse presidido a debate instrutório, estaria impedida por força do art.288.º, n.º 2, do CPP. Se assim o entende o legislador, não restam dúvidas que considerou que a intervenção como instrutor após a prolação da acusação é motivo para afastar o juiz dos subsequentes atos do processo.

Em face do exposto, ao abrigo do estabelecido no artigo 43.º, n.ºs 1 e 2, ex vi artigo 43.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, requer a Vossa Excelência que se digne escusar a requerente de intervir no presente processo seja em que qualidade for.

2. Foram colhidos os vistos.

3. Cumpre decidir.

*

II – Fundamentação

4. A independência dos tribunais, consagrada constitucionalmente no art.203.º, implicando a sujeição dos juízes apenas à lei, bem como a inamovibilidade e a irresponsabilidade, com as exceções previstas na lei, é complementada com a imparcialidade dos juízes, pois só assim fica assegurada a confiança geral na objetividade da jurisdição.

O princípio da imparcialidade, na realização da justiça, postulando uma intervenção equidistante, desprendida e descomprometida, repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada.[4]

A imparcialidade implica, pois, que o juiz não seja parte no conflito ou tenha nele um interesse pessoal em virtude de uma ligação a algum dos sujeitos processuais nele envolvidos.

Como assertivamente esclarece Cavaleiro de Ferreira, não importa que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial, mas sobretudo considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. É este o ponto de vista que o próprio juiz deve adotar para voluntariamente declarar a sua suspensão, ou seja, deve declarar a sua suspeição se admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem o fundamento de suspeição. [5]

Também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicável na nossa ordem interna por força do art.8.º da Constituição da República Portuguesa, consagra a imparcialidade do juiz, como exigência fundamental de um processo equitativo, ao estabelecer no seu art.6.º, n.º1, que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei...».

O que está em jogo é a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar no público e, acima de tudo, nos sujeitos processuais.

As garantias de imparcialidade do juiz, geradoras de abstenção de julgar, são estruturadas no art.39.º e seguintes do Código de Processo Penal, de três modos:

- impedimentos, taxativamente enumerados na lei;

- recusa, desencadeada pelo Ministério Público, arguido, assistente ou pelas partes civis; e

- escusa, desencadeada pelo próprio juiz.

Os impedimentos verificam-se por força da própria lei e os factos que os determinam, encontram-se tipificados nos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal.

Fora dos casos dos impedimentos, complementarmente, como proteção da garantia da imparcialidade do juiz, prevê a lei a categoria das suspeições, que podem assumir a natureza de recusas e escusas.

Sobre recusas e escusas estatui o art.43.º do Código de Processo Penal, nomeadamente, o seguinte:

«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

 2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art.40.º.

4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.».

Não estando o juiz autorizado a recusar-se a si próprio, declarando-se voluntariamente suspeito, é-lhe, não obstante, conferida a possibilidade de suscitar perante outro tribunal a suspeição que admite que possa recair sobre si, para assim ser dispensado de intervir no processo – uma suspeição que a lei qualifica como escusa (art.43.º, n.º 4 do C.P.P.).

Na articulação entre os princípios do juiz natural - que encontra expressão no art.32.º, n.º 9 da C.R.P.: «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior» - e da imparcialidade do juiz (e do tribunal), aquele princípio deve ceder quando existam circunstâncias sérias, no sentido de ponderosas, cuja verificação não se coaduna com a leviandade de um juízo, e graves, porque de forte relevo na formulação do juízo de desconfiança.

No dizer do acórdão do STJ de 5 de abril de 2000, as circunstâncias muito rígidas e bem definidas, ou seja, sérias e graves, devem ser “…irrefutavelmente denunciadoras de que o juiz natural deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.”.[6]

No entanto, não é necessário demonstrar uma efetiva falta de isenção e imparcialidade do juiz peticionante da escusa, bastando, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial.

A jurisprudência dos nossos tribunais tem sido constante no sentido de se exigir a alegação de factos concretos que constituam motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança, não se bastando com simples generalidades. [7]

Na interpretação deste art.43.º do C.P.P. importa atender ainda ao art.6.º, § 1.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estatui que o direito a que a causa seja decidida por um tribunal imparcial.

Tem sido uma constante da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que a imparcialidade deve apreciar-se segundo critérios subjetivos e objetivos. [8]

Jurisprudência também seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente, nos acórdãos de 6 de setembro de 2013 (proc. n.º 3065/06), de 13 de fevereiro de 2013 (proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1), de 2 de dezembro de 2021 (proc. n.º 324/14.0TELSB-AA.L3-A.S1) e de 24 de novembro de 2022 (proc. n.º 38/18.1TRLSB-A).[9]

No respeitante ao primeiro critério, a questão circunscreve-se a saber se a convicção pessoal do julgador em dada ocasião, oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima.

Nesta perspetiva, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integra o tribunal, pensa no seu foro íntimo perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão.

Por princípio, impõe-se que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjetiva presume-se até prova em contrário.

A imparcialidade vista pelo segundo critério circunscreve-se a saber se, independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis autorizam a suspeitar da sua imparcialidade.

E, embora nesta matéria, mesmo as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta a ótica do acusado, sem, todavia, desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objetivamente justificadas.

O que conta é a natureza e extensão das medidas tomadas pelo juiz.

É necessário indicar, com a devida precisão, factos verificáveis que autorizem a suspeita.

O TEDH, como o Supremo Tribunal de Justiça, têm entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário.[10]

Em suma, a lei confere ao juiz a faculdade de pedir escusa quando, por circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se, duvidar-se, da sua imparcialidade, mas não basta um convencimento subjetivo por parte do juiz para que seja deferida a escusa, é objetivamente que, na escusa, tem de ser considerada a seriedade e gravidade do motivo de suspeição invocado, causador da desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

De um modo geral, pode dizer-se que a causa da suspeição há de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com alguns dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o processo.

Enquanto os motivos de impedimento mencionados nos artigos 39.º e 40.º do C.P.P. afetam sempre a imparcialidade do juiz, que deve declará-lo imediatamente nos autos por despacho irrecorrível, ficando-lhe vedada a intervenção no processo, no caso de escusa tudo depende das concretas razões de suspeição invocadas pelo juiz que admite o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade no processo.    

5. Retomando o caso concreto.

5.1. A Ex.ma requerente indica três fundamentos do pedido de escusa.

Seguindo a ordem pela qual são apresentados, impõe-se apreciar e decidir se a intervenção da Ex.ma requerente no proc. n.º 19/16.0YGLSB, designadamente, na audiência de julgamento, na qualidade de Presidente da ... Secção, Presidente do Coletivo ou como Juíza Conselheira-adjunta, corre o risco de ser considerada suspeita por existir “motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade”.

Estará aqui em apreciação, particularmente, a sua imparcialidade segundo critérios objetivos, pois a própria declara que a sua imparcialidade subjetiva não se mostra afetada com as intervenções processuais a que alude, na medida em que consigna que “…o conhecimento dos factos em julgamento, resultante de diversas intervenções em outros processos e em momentos anteriores deste mesmo processo, não compromete minimamente a imparcialidade e rigor da requerente se houver que prosseguir a sua intervenção no processo supra referido.”

      

5.1.2.  Da participação na realização das buscas que ocorreram em 30.01.2018

A propósito desta participação, resultam do Requerimento de escusa, em síntese, os seguintes factos:

- Por solicitação do Juiz de Instrução que exercia funções no inquérito n.º 19/16.0YGLSB, de que fossem designados seis Juízes Conselheiros para coadjuvarem na realização de diligências no inquérito, o Ex.mo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, após prévio sorteio, comunicou à ora Requerente, por despacho de 24-01-2018, que foi uma das designadas para coadjuvar na realização de buscas nesse processo;

- Do mandado de busca e apreensão emitido a .../.../2018, a efetuar através de elementos da Polícia Judiciária, constam, no essencial, os elementos a apreender e os crimes de que se mostram indiciadas as pessoas visadas na diligência;

- A Requerente presidiu, no dia 30-01-2018, como JIC, à realização da busca da residência e escritório do então arguido JJ.     

Vejamos.

As buscas são meios de obtenção de prova, ordenadas ou autorizadas, quando houver “indícios” de que o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público (art.174.º, n.º2 do C.P.P.). Em regra, as buscas domiciliarias são ordenadas ou autorizadas por Juiz (art.177.º, n.º1 do C.P.P.) e quando efetuadas em escritório de advogado são presididas pessoalmente por juiz, sob pena de nulidade  (art.177.º, n.º5, do C.P.P.).        

Da factualidade ora descrita resulta, em primeiro lugar, que o despacho que apreciou os pressupostos das buscas, domiciliária e em escritório de advogado do arguido JJ, ordenando ou autorizando as mesmas, não foi proferido pela ora Requerente.

A participação da ora Requerente traduziu-se na deslocação à residência e ao escritório de advogado do arguido JJ e, aí, presidir à diligência de busca, que de acordo com o mandado de busca e apreensão, seria realizada através de elementos da Polícia Judiciária, tendo em vista a apreensão de documentos suscetíveis de integrarem a indiciação da prática de crimes de corrupção/recebimento indevido de vantagem, p. e p. nos art° 372°, 373° e 374°, do C. Penal, de branqueamento, p. e p. no art.368°-A, n° 1 e 2, do C.P., de tráfico de influência, p. e p. no art.335°, n° 1, al. a), do C. Penal e de fraude fiscal, p. e p. nos art.103°, n° 1, al. b) e 104°, n° 2, al. b), do RGIT.

Nem a natureza do ato processual, nem a extensão do ato praticado pela ora Requerente , traduzida na presidência pessoal nas buscas domiciliária e no escritório de advogado então arguido, para que foi designada pelo Ex.mo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de uma anterior solicitação de coadjuvação nas diligências pelo J.I.C., são de molde a gerar a um cidadão médio, de modo sério e grave, uma suspeita sobre a imparcialidade da atuação da ora Requerente se vier a intervir no julgamento do proc. n.º 19/16.0YGLSB, que irá decorrer neste Supremo Tribunal.

Acresce, em segundo lugar, que não pode aqui proceder, para efeitos de escusa, o facto de que os Juízes Conselheiros HH e II apresentaram pedido de escusa no proc. n.º 4/20...., que correu termos no âmbito da secção de Contencioso do S.T.J., relativo a ação de impugnação da deliberação, do Conselho Superior da Magistratura, que deliberou a aposentação compulsiva de uma arguida destes autos, com fundamento na participação, no mesmo dia 30.01.2018, em buscas realizadas no âmbito do proc. nº 19/160YGLSB e no disposto no art.119.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tendo os pedidos sido deferidos por decisões de 14.09.2020 e 28.10.2020.

É que o então arguido JJ, a cujas buscas, domiciliária e no escritório de advogado, a ora Requerente presidiu, não foi acusado pelo Ministério Público, nem pronunciado, no proc. n.º 19/16.0YGLSB, tendo sido proferido despacho de arquivamento em 08-09-2020, conforme informação prestada pela secretaria da Secção Criminal do S.T.J., não existindo, assim, paralelismo nas duas situações de facto ora descritas.

O pedido de escusa no proc. n.º 4/20.... referenciado pela ora Requerente, tinha como arguida, no inquérito penal e no processo disciplinar objeto de recurso para a Secção de Contencioso do S.T.J., a mesma pessoa.

No caso, embora o buscado tenha sido arguido no inquérito penal, deixou de o ser, pelo que afastada fica a necessidade de a ora Requerente tomar já qualquer posição sobre a sua responsabilidade penal na fase processual que se vai seguir.

Por fim, a circunstância do Ex.mo Juiz Conselheiro CC, Presidente da ... Secção do Supremo Tribunal de Justiça, que participou enquanto Procurador-Geral-Adjunto nas diligências ocorridas no dia 30-01-2018, ter-se declarado impedido por força do disposto no art.39.º, n.º1, alínea c) do C.P.P., não é, salvo o devido respeito, um argumento válido no sentido de que essa declaração, para um cidadão médio, deve ser extensível à ora Requerente, sob pena de passar a recair sobre ela, de modo sério e grave, uma suspeita sobre a sua imparcialidade da sua atuação futura.

Conforme já se consignou, os motivos de impedimento mencionados nos artigos 39.º e 40.º do C.P.P. afetam sempre a imparcialidade do juiz, pelo que o juiz que tiver qualquer impedimento dos taxativamente enumerados deve declara-o imediatamente por despacho nos autos (art41.º, n.º1 do C.P.P.).

No art.39.º, n.º1, al. c), do C.P.P., o legislador estabeleceu que nenhum juiz pode exercer a sua função num processo penal quando tiver intervindo no processo como representante do Ministério Público.   

O Magistrado que intervém no inquérito em representação do Ministério Público, praticando nele qualquer ato processual - como aconteceu com o então Procurador-Geral-Adjunto CC, que participou nas diligências que tiveram lugar no dia 30-1-2018 -, está legalmente impedido, por norma expressa, de participar no mesmo processo, designadamente no julgamento, nas vestes de Juiz. É o que sucede com o agora Juiz Conselheiro CC, Presidente da ... Secção do Supremo Tribunal de Justiça.

Esta situação, específica, que o legislador considerou suscetível de afetar a imparcialidade do Juiz, não se verifica relativamente à ora Requerente, pois manteve no processo, desde sempre, a qualidade de Juíza Conselheira.

A afetação da sua imparcialidade, no que respeita ao julgamento dos arguidos, depende apenas das concretas razões de suspeição que invoca e, não, de um qualquer impedimento taxativamente enumerado na lei.

Em conclusão, numa visão comunitária e de homem médio inserido na comunidade, a presidência, no dia 30-1-2018, pela ora Requerente, da diligência de buscas, domiciliária e no escritório de advogado do então arguido JJ, pela natureza e extensão do ato praticado, não constitui uma situação séria, grave e irrefutavelmente denunciadora de que a Ex.ma Juíza Conselheira deixou de oferecer garantias de imparcialidade e de isenção no presente processo.

5.1.3. Da intervenção em recursos de deliberações do Conselho Superior de Magistratura.

Resultou apurado, a este respeito, que a Requerente participou, como relatora e adjunta, em recursos decididos na Secção de Contencioso do S.T.J., de deliberações do Conselho Superior de Magistratura, relativamente aos arguidos KK e LL.

Relativamente ao arguido KK, a ora Requerente interveio:

 - No proc. n.º 17/19...., em que este apresentou recurso da deliberação do C.S.M. que prorrogou o prazo de instrução do procedimento disciplinar, o S.T.J., por acórdão de 30.04.2020, decidiu declarar a inutilidade superveniente da lide, porquanto posteriormente ao recurso aquele Conselho deliberou aplicar ao arguido a pena única de demissão, pela prática de uma infração disciplinar, na forma continuada.

Este é o único processo em que a ora requerente exerceu as funções de relatora.

- No proc. n.º 10/19...., ainda por acórdão datado de 30.04.2020, o S.T.J. decidiu negar ao arguido KK nova prorrogação do prazo de instrução do procedimento disciplinar.

- Por acórdão de 25.09.2019, proferido no proc. n.º 91/18...., o S.T.J. decidiu julgar improcedente a impugnação da deliberação de conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar contra o aqui arguido KK, tendo a ora Requerente, sobre a alegada prescrição do procedimento disciplinar apresentado declaração de voto, divergindo quanto ao momento a partir do qual deveria ser contado o prazo de prescrição, quanto ao prazo em si e quanto à ratificação pelo plenário do Conselho Superior da Magistratura em medida superior ao ato ratificado.

- No proc. n.º 18/19...., por acórdão de 24.10.2019, o S.T.J. decidiu sobre o indeferimento, pelo Conselho Superior da Magistratura, da reclamação apresentada por KK da deliberação que ratificou o despacho do Senhor Vice-Presidente do CSM que prorrogou a instrução do procedimento disciplinar pelo facto de, nomeadamente, após em sucessivas convocatórias para audição do interessado e não tendo este comparecido (pelo motivos que invocou), se tornar necessária a prorrogação daquele prazo para que se procedesse à audição do interessado.

Relativamente à arguida LL a ora Requerente interveio como adjunta em dois processos:

- No proc. n.º 90/18...., por acórdão de 10.12.2019, o S.T.J. decidiu sobre a impugnação da deliberação do CSM que determinou a conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar contra esta arguida, estando em causa a prescrição do direito de instaurar procedimento disciplinar que se iniciou, “perante o conhecimentos dos factos apurados nos autos de inquérito criminal n.º 19/16.0YGLSB” e, subsidiariamente, a nulidade da conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar.

- Por fim, no proc. n.º 27/19...., por acórdão de 30.04.2020, o S.T.J. decidiu o recurso apresentado por esta arguida das deliberações do CSM sobre “a inadmissibilidade legal da prorrogação da suspensão preventiva; a incompetência orgânica para o exercício da ação disciplinar; a absoluta inadmissibilidade legal da atribuição de efeito meramente devolutivo às reclamações”, estava em causa, nomeadamente, a prorrogação da suspensão preventiva do exercício das funções de magistrada da aqui arguida já depois de lhe ter sido aplicada e revogada a medida de coação de suspensão de exercício de funções, no âmbito do inquérito criminal n.º19/16.0YGLSB.

Vejamos.

Começando pela natureza das intervenções processuais da ora Requerente, impõe-se realçar que não estão aqui em causa acórdãos proferidos pelos S.T.J. em processo penal, mas em recursos decididos pelo S.T.J. na Secção de Contencioso, de deliberações do Conselho Superior de Magistratura, relativamente aos arguidos KK e LL.

Em segundo lugar, quanto à extensão da intervenção dos acórdãos em causa, da Secção do Contencioso, em que a ora Requerente desempenhou uma vez as funções de Juíza Conselheira relatora e outras vezes as de Juíza Conselheira adjunta, anotamos que incidiram particularmente sobre incidentes e questões processuais suscitadas nos processos disciplinares.

Assim:

-  no dia 30.04.2020, no proc. n.º 17/19...., estando em causa um recurso do arguido KK sobre uma questão de prorrogação do prazo de instrução do procedimento disciplinar, a Secção de Contencioso do S.T.J., decidiu, por acórdão, declarar a inutilidade superveniente da lide; no proc. n.º 10/19...., a Secção de Contencioso do S.T.J., decidiu negar, ao arguido KK, nova prorrogação do prazo de instrução do procedimento disciplinar; e no proc. n.º 27/19...., a mesma Secção, proferiu acórdão em que “estava em causa, nomeadamente, a prorrogação da suspensão preventiva do exercício das funções de magistrada da aqui arguida [LL] já depois de lhe ter sido aplicada e revogada a medida de coação de suspensão de exercício de funções, no âmbito do inquérito criminal n.º19/16.0YGLSB”. No dia 25.09.2019, no proc. n.º 91/18...., a Secção de Contencioso do S.T.J o S.T.J. decidiu julgar improcedente a impugnação da deliberação de conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar contra arguido KK, e decidiu uma questão respeitante a uma alegada prescrição do procedimento disciplinar. No dia 24.10.2019, no proc. n.º 18/19...., a mesma Secção do S.T.J. decidiu por acórdão, mais uma questão processual, apresentada por KK, relativa a uma deliberação que ratificou o despacho do Senhor Vice-Presidente do CSM que prorrogou a instrução do procedimento disciplinar. E, no dia 10.12.2019, no proc. n.º 90/18...., por acórdão da Secção de Contencioso, o S.T.J. decidiu, mais uma vez, uma questão processual, no caso, respeitante à prescrição do direito de instaurar procedimento disciplinar relativamente à arguida LL e, subsidiariamente, a nulidade da conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar.

É certo que no proc. n.º 91/18...., a Secção de Contencioso do S.T.J. decidiu julgar improcedente a impugnação da deliberação do CSM de conversão do processo de inquérito em procedimento disciplinar contra arguido KK. Mas a decisão da Secção de Contencioso não tem qualquer significado em termos de pronúncia sobre o desenvolvimento formal do procedimento disciplinar; só o teria se a improcedência do recurso do arguido KK se fundasse num juízo antecipado, de mérito, sobre a existência da correspondente responsabilidade disciplinar, o que não resulta dos elementos trazidos ao processo de escusa pela ora Requerente.   

Dificilmente esse, como os restantes acórdãos da Secção do Contencioso, ora em causa, proferidos no âmbito de recursos interpostos de deliberações do CSM sobre matérias disciplinares, poderiam conter juízos antecipados sobre a responsabilidade criminal dos arguidos no proc. n.º 19/16.0YGLSB, pois estes são autos de excecional complexidade, como o indicam, desde logo, o elevado número de volumes, as cerca das 900 páginas da acusação, o número de arguidos e de provas indicadas.

E, efetivamente, dos segmentos dos acórdãos em causa trazidos pela ora Requerente aos presentes autos de escusa, um cidadão médio, não retira quaisquer juízos antecipado, de mérito, sobre a existência da responsabilidade penal dos arguidos, no proc. n.º 19/16.0YGLSB.

Um cidadão médio, e os próprios destinatários, conhecendo a natureza das questões objeto dos recursos respeitantes a matéria disciplinar e a extensão das decisões tomadas nos acórdãos da Secção de Contencioso do S.T.J., não pode concluir delas que a intervenção da ora Requerente nessas decisões comprometeu-a antecipadamente a uma tomada de decisão sobre o mérito do processo, de culpabilidade, ou não, dos arguidos KK e LL, ou dos outros arguidos, no proc. n.º 19/16.0YGLSB, antes do momento próprio, após a produção da prova na audiência de julgamento.      

5.2.3. Da intervenção como JIC na fase de inquérito

Os despachos proferidos pela ora Requerente, como JIC, na fase de inquérito, no proc. n.º 19/16.0YGLSB, que integram este fundamento do pedido de escusa, respeitam, à constituição de assistente, à consulta do processo e obtenção de cópias dos apensos, à declaração da excecional complexidade dos autos, à prorrogação do prazo de apresentação do requerimento de abertura da instrução e sobre o levantamento parcial de arresto.

Mais concretamente:

- Por despacho de 09.11.2020, deferiu o requerimento de constituição de assistente de MM, apenas no que respeita aos crimes de corrupção e de abuso de poder; por despacho de 13.01.2021, deferiu o pedido de constituição de assistente da Ordem dos Advogados quanto ao crime de usurpação de funções, e indeferiu um primeiro requerimento de constituição de assistente de NN porquanto não descortinou dos factos imputados aos vários arguidos, fosse o sujeito passivo de qualquer uma das incriminações penais em causa nestes autos; e, por  despacho de 04.05.2021 admitiu como assistentes “C..., S.A” e OO, relativamente aos crimes de corrupção e de abuso de poder;

- Por despacho de 06.11.2020, deferiu o requerimento do arguido KK de obtenção de cópias dos apensos e manteve o despacho do arguido poder examinar na secretaria as conversações e comunicações resultantes das interceções, e, posteriormente, deverá requerer em relação às não transcritas, as que pretende transcrever, e quanto às transcritas, motivo justificado para a nova transcrição;

- Por despacho de 30.11.2020, declarou a excecional complexidade dos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.215.º, n.ºs 3 e 4, do C.P.P. e concedeu uma prorrogação de prazo para apresentação de requerimento de abertura de instrução; e

- Por despacho de 11.02.2021, indeferiu o levantamento parcial do arresto imposto à arguida LL, mantendo a medida de garantia patrimonial imposta.

Afirma a ora Requerente, que a prolação dos despachos proferidos no inquérito demonstra um estudo cuidado dos autos.

Embora se aceite sem reservas esta afirmação, até porque é inerente a todas as decisões judiciais, sujeitas ao dever de fundamentação, entendemos que o estudo cuidado dos autos pelo JIC para proferir os vários despachos não é, só por si, motivo sério e grave a gerar a sua suspeição na fase de julgamento.    

O que é relevante, para efeitos de suspeição, é, antes do mais, a natureza e a extensão do comprometimento do JIC, expresso nas decisões proferidas no inquérito.

No caso concreto, para decidir do deferimento ou não da constituição de assistente, tem o JIC de atender, fundamentalmente, à legitimidade, à tempestividade, à representação do ofendido por advogado e ao pagamento da taxa de justiça.

 A legitimidade será o requisito que levanta mais dificuldades, mas ainda assim, não exige ao JIC qualquer comprometimento futuro sobre a responsabilidade penal dos arguidos.

Regra geral, esse requisito é aferido pela simples leitura dos factos e crimes imputados aos arguidos, designadamente na acusação, verificando o requerente é um dos ofendidos desses crimes.

Mas casos há, de crimes imputados em que “qualquer pessoa” se pode constituir assistente, como é o caso, entre outros, dos crimes enunciados no art.68.º, n.º1, al. e) do C.P.P., entre os quais se incluem os de corrupção e de abuso de poder.

Nos despachos suprarreferidos, vários dos pedidos de constituição de assistente têm até como fundamento os crimes corrupção e de abuso de poder imputados aos arguidos.

O despacho de 06.11.2020, sobre obtenção de cópias dos apensos, de exame dos autos e outras consultas, não compromete, também, em termos objetivos, a imparcialidade de quem o proferiu.

Também o despacho de 30.11.2020, que declarou a excecional complexidade dos autos, não é adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da ora Requerente, uma vez que para esse efeito se limitou a realçar, descritivamente e a partir da leitura da acusação, que estão em causa um significativo conjunto de fatores, como sejam: o número de arguidos (16), o número de crimes (dezenas), o número de folhas e de artigos da acusação (900 páginas, com 4956 artigos) a vasta prova documental e testemunhal indicada na acusação (reportada aos Volumes I a XXXVIII dos autos principais e mais de duas dezenas de Apensos contendo outras provas de diversa natureza, como perícias, buscas, escutas telefónicas e certidões, sem deixar de considerar, ainda, que alguns desses imputados crimes integram o conceito de criminalidade altamente organizada, de acordo com o art.1.º, al. m), do C.P.P..          

É, ainda, na dimensão da prova existente nos autos, realçada no mesmo despacho, que a então JIC prorrogou, nos termos da lei, o prazo de apresentação do requerimento de abertura da instrução.

Por fim, não se reconhece existir, também, um motivo sério e grave de suspeição da ora Requerente no despacho de 11.02.2021, pelo facto de não ter deferido o levantamento parcial do arresto imposto à arguida LL, com o fundamento de que os valores/bens apenas podem ser reduzidos/levantados nos casos especialmente previstos na lei e mediante o preenchimento rigoroso dos seus requisitos, que no caso concreto esta não alegou nem provou.

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Fora dos três fundamentos do pedido de escusa, invoca a ora Requerente, como “uma última nota”, o disposto no art.288.º, n.º 2 do C.P.P. e o facto de ter proferido despachos já depois de deduzida a acusação.

O art.288.º do C.P.P., sob a epígrafe «Direção da instrução» dispõe o seguinte:

«1 - A direção da instrução compete a um juiz de instrução, assistido pelos órgãos de polícia criminal.

2 - As regras de competência relativas ao tribunal são correspondentemente aplicáveis ao juiz de instrução.

3 - Quando a competência para a instrução pertencer ao Supremo Tribunal de Justiça ou à relação, o instrutor é designado, por sorteio, de entre os juízes da secção e fica impedido de intervir nos subsequentes atos do processo.».

O n.º3 do art.288.º do C.P.P. deixa claro que o Juiz Conselheiro, designado por sorteio, para proceder à instrução, fica impedido de intervir nos subsequentes atos do processo,

Só com a abertura da instrução se abre a fase de instrução, que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.286.º do C.P.P.).

A instrução é formada, obrigatoriamente, por um debate instrutório (art.289.º, n.º1 do C.P.P.) e, encerrado o mesmo, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia (art.307.º do C.P.P.).

A razão do impedimento do Juiz que realiza a instrução é o seu comprometimento profundo com o objeto do processo, pois, por via de regra, compete-lhe verificar se foram “recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” (art.308.º do C.P.P.), manifestando, a sua posição sobre a forte probabilidade de condenação do arguido, caso seja submetido a julgamento.

Compreende-se, por essa razão, que a partir da tomada da prolação de um tal despacho deixe o Juiz de Instrução de poder ser encarado como estando habilitado a intervir em condições de plena neutralidade e isenção, nas fases subsequentes do processo.

A ora requerente não foi sorteada para realizar a instrução no proc. n.º 19/16.0YGLSB, nem a realizou, tendo apenas participado como JIC na fase de inquérito e, pelas razões já expostas, todos os despachos proferidos pela ora Requerente, mesmo depois de deduzida a acusação, pela sua natureza e extensão, não denunciam posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do cidadão médio e em particular dos seus destinatários, possam  provocar receio, objetivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra os arguidos.

Com o devido respeito, a visão pessoal da ora Requerente, de preventiva preocupação relativamente à sua atuação futura, na perspetiva de terceiros, que a levam a referir que “o rigor, o escrúpulo e a cautela impõem a realização deste requerimento”, não merece acolhimento, na medida em que as posições tomadas nas várias decisões em que teve intervenção, não são irrefutavelmente denunciadoras, perante os seus destinatários diretos e a comunidade em geral,  de que, como juiz natural, deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.

Assim sendo, conclui-se pelo indeferimento do pedido formulado.

III - Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de escusa da Ex.ma Juíza Conselheira AA, de intervir no proc. n.º 19/16.0YGLSB, que corre no Supremo Tribunal de Justiça.

Sem custas.

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(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.). 

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Lisboa, 2 de fevereiro de 2023

Orlando Gonçalves (Relator)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

Leonor Furtado (Adjunta) com declaração de voto: vencida, porquanto concederia a escusa pedida pela Senhora Juiz Conselheira, com fundamento na sua intervenção nos processos de recurso contencioso, por virtude de a matéria neles contida respeitar à mesma realidade fáctica, embora no âmbito e domínio do ilícito administrativo disciplinar, não sendo excessivo supor que possa já ter uma posição sobre os factos.

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[1] Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Direito Processual Penal — Os sujeitos processuais, Coimbra: Gestlegal, 2022, p. 38-39
[2] Idem, p. 39-40
[3] Idem, p. 61-62
[4] Neste sentido, Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal” , Texto de apoio ao estudo curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016), Coimbra, 2015, e Mouraz Lopes, inA Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português”, Coimbra Ed. , 2005, págs. 66 e segs.
[5] Cf. “Curso de Processo Penal”, Reimpressão da Univ. Católica, Lisboa, 1981, pág.237.

[6] Cf. CJ, ano VIII, 2.º, pág. 243.

[7] Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 5 de abril de 2000, já citado, e de 29 de Março de 2006, in C.J., n.º 189, e o acórdão da Relação de Coimbra, de 2 de dezembro de 1992, in C.J., ano XVII, 5.º,pág. 92.
[8]  Cf. entre outros, o acórdão de 13 de novembro de 2012 no caso Hirschhorn c. Roménia, Queixa n.º 29294/02 e o acórdão de 26/07/2007, no caso De Margus c. Croácia, Queixa n.º 4455/10.
[9] In www.dgsi.pt.  
[10] Cf. acórdão do TEDH de 21 de dezembro de 2000, no caso Wettstein c. Suíça e citado acórdão do STJ de 10 de julho de 2008, in www.dgsi.pt