Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1546/15.1T8CTB.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ASSUNÇÃO RAIMUNDO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
PROCURAÇÃO
MANDATO
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
NEGÓCIO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO / REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / MANDATO / NOÇÃO.
Doutrina:
- Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 2002, p. 421 a 423.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 238.º, 262.º E 1157.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-11-2006, PROCESSOS N.º 06A3592;
- DE 05-07-2007, PROCESSO N.º 07A1465;
- DE 23-09-2008, PROCESSO N.º 08B3923;
- DE 07-07-2009, PROCESSO N.º 63/2001.C1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - No confronto entre “procuração” e “mandato”, a procuração inclui sempre e apenas poderes de representativos, ao passo que o mandato, ligado à ideia de agir por conta doutrem, pode ou não envolvê-los.

II - A procuração é um negócio jurídico formal e unilateral, que outorga poderes de representação (art. 262º do Código Civil), cuja interpretação está sujeita às regras definidas pelo art. 238º do Código Civil.

III - Devido a esta diferença conceptual e juridicamente regulada (arts. 262º e 1157º do Código Civil) temos que, da procuração, em si mesma, não resulta nenhuma obrigação de prestar contas, tal como não decorre, nenhuma obrigação de praticar os atos para os quais foram concedidos poderes ao procurador.

IV - A concessão de poderes de representação através de procuração, sendo um ato unilateral, nunca poderá ser considerado um mandato com ou sem representação que é uma figura contratual, logo bilateral.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório:

Na Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Cível, Juiz 1, AA moveu contra BB, uma ação de prestação de contas, pedindo que o réu seja condenado a prestar contas referentes à administração do património de CC, na pendencia da procuração por esta outorgada. Pediu ainda que, caso se viesse a apurar saldo a favor da massa hereditária, o réu fosse condenado ao pagamento do respetivo montante.

Alega, em síntese, que em ... faleceu CC, fazendo parte do acervo hereditário, entre o mais, os montantes das contas bancárias que possuía na DD, S.A. e na EE da Beira Baixa (Sul), CRL.

A referida CC, em 02 de Setembro de 2009, passou procuração a BB, conferindo-lhe, entre outros, os poderes para movimentar qualquer conta à ordem ou a prazo de que aquela fosse titular junto das instituições bancárias “DD, S.A. e/ou EE da Beira Baixa (Sul), CRL, requerer e assinar cheques ou fazer levantamentos de qualquer importância em dinheiro, requerer e assinar extratos bancários e cadernetas de depósitos.

Tendo-se procedido à habilitação dos herdeiros de CC, a cabeça de casal, ora autora, vem aos autos com o referido pedido.

O réu contestou, tendo-se defendido por exceção e por impugnação, negando a obrigação de prestar contas.

Foi realizada a audiência prévia, onde foi julgada improcedente a arguida ineptidão da petição e se fixou o valor da causa em € 521 278,21, identificando-se o objeto do litígio e os temas da prova.

Após julgamento, foi proferida a sentença com a seguinte decisão:

“«[…]  julga-se procedente a pretensão da Autora, AA e das Chamadas, FF e GG, no sentido da obrigatoriedade de prestação de contas, por parte do Réu, BB, àquelas, da administração dos bens de CC, no período compreendido entre 02 de setembro de 2009 e ....”

Inconformado com a decisão, o réu interpôs recurso de apelação no Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou o recurso procedente e, em consequência, revogou a sentença recorrida, julgou a ação improcedente e absolveu o réu do pedido

Tal decisão mereceu voto vencido da Exmª Desembargadora, 2ª Adjunta.

Inconformadas, a autora e a chamadas vieram interpor recurso de revista formulando as seguintes conclusões:

I. O presente recurso interposto do douto Acórdão que decidiu revogar a sentença recorrida, julgando a acção improcedente, absolvendo o réu do pedido, isto é, que o Réu (ora Recorrido) não tem que prestar contas às Autoras (ora Recorrentes) nos termos previstos no artigo 941.º do Código de Processo Civil, no período compreendido entre 02 de Setembro de 2009 e ....

II. Os fundamentos do douto acórdão ora recorrido são os que constam das páginas 14 a 18 e que passamos a transcrever:  (…)

III. Contudo, as ora recorrentes não concordam com a posição do douto acórdão ora recorrido, na medida em que se é verdade que o mandato se extingue por morte do mandante, nos termos do artigo 1174.º, a), do Código Civil (CC), não é menos verdade que o termo do mandato seja porque motivo for não extingue a obrigação do procurador prestar contas (artigo 1174.º, e), do CC).

IV. Por outro lado, a morte do mandante não extingue o direito dos herdeiros legais exigirem a prestação de contas ao procurador, sob pena daquele ficar com “um cheque em branco” no caso de sobreviver ao mandante, o que certamente iria dar acolhimento legal e subverter o espírito que preside ao contrato de mandato em caso de morte do mandante.

V. Ou seja, o entendimento sustentado no acórdão ora recorrido, conduz à solução, no nosso entendimento perversa e insustentável de dar guarida a gestões danosas do procurador em caso de morte do mandante, visto que o procurador está isento de prestar contas a quem quer seja e fica a salvo de qualquer gestão danosa ou menos séria dos poderes que lhe foram conferidos, solução que sem dúvida defraudada e muito a teleologia do contrato de mandato.

VI. Com efeito, as recorrentes não podem estar mais de acordo com a posição de voto vencido da Sra. Desembargadora Sílvia Pires, referindo a este propósito na sua declaração de voto vencido (cfr. páginas 19 e 20 do acórdão ora recorrido) o seguinte:

 “Aliás, a prestação de contas pelo mandatário ocorre habitualmente no termo do mandato, como aliás refere expressamente a referida alínea d), do art.º 1161º, do C. Civil, pelo que caducado o contrato de mandato, pela morte da mandante, sobre o mandatário continua a recair o dever de prestar contas do mandato exercido, o qual deve ser feito perante os herdeiros do mandante, ou apenas perante o cabeça de casal, face aos poderes deste na administração da herança. Estamos perante a transmissão de um direito patrimonial do mandante para os seus sucessores, a que corresponde uma situação de pós-eficácia das obrigações, relativamente ao mandatário.

Daí que não haja obstáculo a que as herdeiras da mandante falecida exijam do mandatário a prestação de contas relativas a mandato por este exercido.

Seria, aliás, incompreensível que a morte da mandante viesse a isentar o mandatário do dever de prestar contas do mandato exercido”.

VII. Neste sentido,  dir-se-á  ainda  que  o  dever  de  prestar  contas  não   se  extingue  com término do contrato de mandato, nem mesmo nos casos em que se extingue por morte, sob pena de nestes casos em concreto o procurador ficar isento deste dever e, sabendo antecipadamente disso, poder defraudar o seu mandato de gerir o património com o maior zelo possível e exigível no interesse do mandante, pois sabe de antemão que caso sobreviva ao mandante jamais terá que justificar – leia-se prestar contas – a quem quer seja os actos de mérito ou danosos que provocar ao mandante (ou seus herdeiros) em benefício do próprio procurador ou terceiros que não o mandante, o que manifestamente é uma solução jurídica abstrusa e que defrauda os princípios básicos e finalidades do contrato de mandato, pelo que no caso em concreto o Recorrido/Réu tem a obrigação de prestar contas às Recorrentes Autora e Intervenientes.

VIII. Ademais, também não colhe o segundo argumento do acórdão ora recorrido, segundo o qual o Recorrido/Réu não é obrigado a prestar contas nos casos em que o mandato não tenha tido reflexos no património do mandante.

IX. No caso vertente, e mais uma vez de encontro ao expendido pela Sra. Desembargadora Sílvia Neves, parece-nos evidente que o mandato em questão ao permitir a movimentação de contas bancárias e tendo sido alegado e demonstrado que houve vários levantamentos das contas bancárias da mandante, teve óbvios reflexos no património da mandante, importando apurar em que termos foram movimentadas tais contas, para perceber do mérito ou não desses movimentos no interesse e satisfação das necessidades da mandante. Nesse sentido acompanha-se a posição da Sra. Desembargadora Sílvia Neves que na sua declaração de voto vencido refere (cfr. página 2 do acórdão ora recorrido):

“Contudo, esse reflexo existe quando, tendo sido concedidos poderes para o mandatário movimentar contas bancárias da mandante, no âmbito de um mandato de administração do património desta, o mandatário procedeu ao levantamento de diversas quantias dessas contas, uma vez que desses levantamentos resultou um empobrecimento do património da mandante, tendo o mandatário o dever de informar onde foram gastas tais quantias, de modo a apurar-se a existência de um saldo relativo à administração desses montantes.

A alternativa apresentada por este acórdão no sentido de que devem as herdeiras da mandante interpor uma ação pedindo a restituição das quantias que o mandatário fez suas com tais levantamentos, esquece que a legítima pretensão das Autoras - herdeiras da mandante - é a de que lhes sejam apresentadas as contas relativas ao destino dado aos montantes levantados, não lhe podendo ser exigido que proponham uma ação que elas desconhecem se tem ou não fundamento, uma vez que não sabem se as quantias levantadas foram ou não aplicadas na satisfação de despesas da mandante. Só após a prestação de contas pelo mandatário é que as Autoras estão em condições de saber se este tem a obrigação de restituir qualquer montante” (negritos e sublinhados nossos).

X. No decurso lógico da posição ora transcrita, a alternativa para as Recorrentes saberem se existe algum direito de crédito sobre o procurador no âmbito da sua gestão do património da mandante, é proporem uma ação “às escuras” sem saberem se tem qualquer fundamento a propor uma ação a reclamar créditos sobre o procurador, bem como sem saberem o montante desses mesmos eventuais créditos.

XI. A ação de prestação de contas no presente aresto é precisamente para aferir e elucidar as ora recorrentes se existe motivo ou não para o recorrido restituir ao património da mandante (neste caso à sua massa hereditária) e, nessa medida, decidirem em conformidade se existe matéria e em que termos quantitativos para propor uma ação de restituição de montantes do procurador ao património da mandante.

XII. Deste modo, entendem as ora recorrentes que deve ser revogado o acórdão da Relação de Coimbra, devendo o Recorrido prestar contas às recorrentes nos termos propugnados na sua petição inicial e que foram secundados pela decisão de primeira instância.

XIII. Pelo exposto, o acórdão da Relação de Coimbra ora recorrido, interpretou e aplicou erroneamente os artigos 941.º do Código de Processo Civil e artigos, 1161, alíneas e) e d), 2079.º e 2088.º do Código Civil, devendo tal decisão ser revogada por outra que obrigue o Recorrido a prestar contas às Recorrentes.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO O ACÓRDÃO ORA RECORRIDO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER O ORA RECORRIDO CONDENADO A PRESTAR CONTAS ÀS ORA RECORRENTES NOS TERMOS DOS ARTIGOS 941.º E SEGUINTES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O réu contra-alegou e concluiu pela manutenção da decisão recorrida.

Cumpridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – Factos:

Encontra-se fixada a seguinte matéria de facto[1]:

1. Em ..., faleceu CC.

2. Foi aberta a respetiva sucessão e efetuada habilitação de herdeiros e consequente partilha, uma vez que [o] de cujus deixou testamento.

3. Na referida habilitação, ficou nomeada Cabeça-de-Casal a Autora.

4. Da partilha resultaram vários bens a partilhar, nomeadamente, vários montantes em contas bancárias nas seguintes instituições, a saber, da DD, S. A. e EE.

5. Ambas as contas estavam nas dependências de Idanha-a-Nova.

6. Sucede que, desde o dia 02 de Setembro de 2009, BB passou a ser o Procurador d[o] de cujus.

7. Da aludida Procuração resultava que BB tinha poderes para movimentar qualquer conta à ordem ou a prazo de que [o] de cujus fosse titular junto das instituições bancárias “DD, S. A. e/ou EE da Beira Baixa (Sul), CRL, requerer e assinar cheques ou fazer levantamentos de qualquer importância em dinheiro, requerer e assinar extractos bancários e cadernetas de depósitos.”.

8. A Procuração visava a administração dos bens d[o] de cujus no interesse desta porquanto esta encontrava-se internada num lar e sem possibilidade de efectuar as tarefas de administração ordinária do seu património.

9. Após a obtenção dos extractos bancários referentes às contas d[o] de cujus nas instituições bancárias “DD, S. A. e ou EE da Beira Baixa (Sul) CRL”, acima referidas, a Autora constatou vários movimentos, sem aparente justificação para os mesmos.

10. Porquanto [o] de cujus tinha uma vida frugal e não tendo qualquer despesa para além do Lar cujo pagamento era suportado pela sua pensão mensal.

11. Não obstante os referidos movimentos, designadamente levantamentos e transferências de montantes das contas, não se verificou qualquer incorporação ou mais-valia para o património d[o] de cujus.

12. Foram atribuídos poderes de representação da falecida CC ao Réu, por Procuração outorgada em 02 de Setembro de 2009, pois sempre teve muita confiança e carinho por este, o qual é seu afilhado e cresceu na sua casa.

13. CC, apesar de estar instalada num Lar de Terceira Idade, esteve sempre lúcida.

14. A Mandante do Réu tinha de pagar os impostos, designadamente IRS, IMI, IS, etc.

15. Despesas com pessoal e a manutenção das suas extensas propriedades rústicas e urbanas tais como limpeza de terrenos rústicos, edifícios e seus logradouros, reparações e construção de vedações, reparações em edifícios arrendados, electricidade, água, gás, despesas de carácter pessoal, etc.

III - O Direito:

De acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso determina-se em face das conclusões da alegação do recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas, como resultava dos arts. 684 nº3 e 685-A nº1 do Cód. Proc. Civil, anterior à reforma introduzida pela Lei 41/2013 de 26 de junho, e continua a resultar das disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4, 637º, nº2 e 639º, ex vi art. 679º, todos do Código de Processo Civil.

Nos termos do preceituado nos arts. 608º nº 2, 635º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal.

Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar o seguinte ponto:

- A relação estabelecida entre a falecida CC e o réu, criou sobre este ultimo o dever de prestar contas aos herdeiros daquela.

O acórdão recorrido avocou à sua fundamentação de direito a transcrição da fundamentação de direito do Acórdão da Relação de Lisboa, de 28/04/2015[2], citado pelo Apelante e que versa uma situação idêntica à dos presentes autos.

Para o conhecimento de direito, vejamos o que os factos nos oferecem, analisando, previamente, a situação jurídica estabelecida entre o réu e a falecida CC.

Conforme se retira da factualidade provada:
i. Foram atribuídos poderes de representação da falecida CC ao Réu, por Procuração outorgada em 02 de setembro de 2009, pois sempre teve muita confiança e carinho por este, o qual é seu afilhado e cresceu na sua casa.;
ii. Da aludida Procuração resultava que BB tinha poderes para movimentar qualquer conta à ordem ou a prazo de que [o] de cujus fosse titular junto das instituições bancárias “DD, S. A. e/ou EE da Beira Baixa (Sul), CRL, requerer e assinar cheques ou fazer levantamentos de qualquer importância em dinheiro, requerer e assinar extratos bancários e cadernetas de depósitos.”.
iii. A Procuração visava ainda a administração dos bens d[o] de cujus no interesse desta porquanto esta encontrava-se internada num lar e sem possibilidade de efetuar as tarefas de administração ordinária do seu património.
iv. A CC, apesar de estar instalada num Lar de Terceira Idade, esteve sempre lúcida, vindo a falecer em ....

Dos factos provados, resulta com evidencia que a falecida CC deu poderes ao réu para a prática de vários atos, tendo para o efeito passado uma procuração por si assinada, nos referidos termos (Documento junto a fls. 11 e 12).

Como se sabe, o Código Civil de 1966 distingue claramente procuração – ato unilateral mediante o qual se concedem poderes de representação voluntária (art. 262º) – e mandato – contrato através do qual uma das partes (o mandatário) se obriga a praticar atos jurídicos por conta de outrem (o mandante) - art. 1157º.

Podem coexistir os dois atos, e haverá um mandato com representação – arts. 1178º e seg. do Código Civil, ou não, e existirá eventualmente ou um mandato sem representação – arts. 1180º e segs., ou uma procuração relacionada com qualquer outro ato jurídico, diverso do mandato. Como se observa no acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de julho de 2007 - em www.dgsi.pt, Proc. 07A1465 -, “a procuração encontra-se sempre integrada num negócio global, não operando de modo independente”.

Com efeito, a concessão de poderes de representação através de procuração, sendo um ato unilateral, nunca poderá ser considerado um mandato com ou sem representação que é uma figura contratual, logo bilateral.

Se a procuração acompanhar um mandato, é por força do contrato de mandato que o mandatário/procurador está obrigado a praticar os atos jurídicos que tiverem sido acordados[3]. O efeito da procuração projeta-se antes na circunstância de tais atos se haverem como praticados pelo mandante, no sentido de que os respetivos efeitos se produzem imediatamente na sua esfera jurídica.

Porque o mandatário se obriga a praticar atos jurídicos por conta de outrem, ou seja, no interesse do mandante (é esta a característica essencial do mandato), a lei impõe-lhe que preste contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir – cfr. al. d), do art. 1161º do Código Civil - caso a execução do mandato tiver repercussões nas relações patrimoniais entre as partes.

Trata-se de uma obrigação própria de quem gere ou administra interesses alheios.

O mandato é, assim, um contrato de prestação de serviços em que o prestador é o mandatário. Este age de acordo com as indicações e instruções do mandante quer quanto ao objeto quer quanto à própria execução; os serviços são prestados de acordo com o querido e programado pelo mandante; ao mandatário só é permitido deixar de executar o mandato ou afastar-se das instruções recebidas nos casos previstos no art. 1162º do Código Civil – cfr. Januário Gomes, em Trib. Just., 1º, nºs 8/9-14, citado em Código Civil, Abílio Neto, janeiro/2016, anotação ao art. 1157º.

No confronto entre “procuração” e “mandato”, a procuração inclui sempre e apenas poderes de representativos, ao passo que o mandato, ligado à ideia de agir por conta doutrem, pode ou não envolvê-los – Cfr. Inocêncio Galvão Telles, em Manual dos Contratos em Geral (refundido e atualizado) Coimbra Editora, 2002, págs. 421 a 423.

Devido a esta diferença conceptual e juridicamente regulada (arts. 262º e 1157º do Código Civil) temos que, da procuração, em si mesma, não resulta nenhuma obrigação de prestar contas – tal como não decorre, nenhuma obrigação de praticar os atos para os quais foram concedidos poderes ao procurador.

A procuração é um negócio jurídico formal e unilateral, envolvente da outorga de poderes de representação (arts. 262º, nº 2 e 875º do Código Civil), cuja interpretação está sujeita às regras definidas pelo art. 238º do Código Civil.

Constituindo jurisprudência corrente deste Supremo Tribunal de Justiça que a interpretação das declarações negociais constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, cabendo a este mesmo Tribunal exercer censura sobre o resultado interpretativo quando, tratando-se da situação prevista no art. 236º, nº1, do Código Civil, tal resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante, ou tratando-se de situações contempladas no art. 238º, nº1, do citado Código Civil, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expressa – cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7-7-2009, Proc. 63/2001.C1.S1 e de  23-9-2008, Proc. 08B3923, ambos em www.dgsi.pt., há que retirar da procuração dos autos o sentido que dela resulta.

A Relação entendeu, ao invocar o acórdão citado, que os termos da procuração permitiam concluir que se está perante um contrato de mandato.

A verdade, todavia, é que tal sentido implicaria retirar do documento junto aos autos que os poderes conferidos ao réu se destinavam a ser exercidos no interesse da mandante e que o réu tinha assumido, por acordo com ela, a obrigação de assumir os encargos consignados na procuração, o que não tem qualquer correspondência no texto da mesma. Igualmente seria imprescindível, para se concluir que a procuração estava associada a um contrato de mandato, que tivessem sido provados (alegados) factos que traduzissem que a procuração dos autos era um instrumento de concretização dum contrato de mandato, pelo qual o mandatário/procurador estava obrigado a praticar os atos jurídicos que tinham sido acordados, como vontade real das partes (art. 238º do Código Civil).

Não é por constar da procuração que foram conferidos ao recorrido “… os poderes necessários para, com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os seus bens… podendo deliberar como entender, assinando as respetivas atas… podendo celebrar contratos… movimentar livremente qualquer conta à ordem ou a prazo de que ela seja titular junto das instituições bancárias …” que se pode concluir como o acórdão recorrido. A concessão desses poderes traduz a própria procuração; nada no texto respetivo revela sequer que deveriam ser exercidos no interesse da mandante, inviabilizando que seja possível concluir que aqueles poderes foram concedidos como meio de permitir a execução de um mandato.

É certo, repete-se, que o mandato, diversamente da procuração, não é um contrato formal e poderia ter sido provado por qualquer meio de prova, mas nem sequer foram alegados factos aptos a demonstrar um acordo das partes com esse significado.

Na verdade, o que ficou provados nos factos 14 e 15 é que “A Mandante do Réu tinha de pagar os impostos, designadamente IRS, IMI, IS, etc. Despesas com pessoal e a manutenção das suas extensas propriedades rústicas e urbanas tais como limpeza de terrenos rústicos, edifícios e seus logradouros, reparações e construção de vedações, reparações em edifícios arrendados, electricidade, água, gás, despesas de carácter pessoal, etc.” (sublinhado nosso)

Ora tais afazeres, seriam o que o réu, por força da procuração que lhe fora passada, poderia ter feito, nada resultando, em concreto, que tivesse assumido essa obrigação mediante acordo (art. 1157º do Código Civil) com a falecida CC.

Não pode, pois, concluir-se no sentido da verificação da obrigação do réu prestar contas, razão pela qual a revista terá de improceder.

IV – Decisão:

Nega-se provimento à revista, confirmando o acórdão recorrido, embora com fundamento diferente.

Custas pelas recorrentes.

                                                                                                                      Lisboa, 10-9-2019

Assunção Raimundo  (Relatora)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida (vencido conforme declaração que junto)

_________________________


Com o devido respeito, discordo da decisão que fez vencimento e da respectiva fundamentação; por razões formais e substanciais.

Por um lado, em contrário do que se enunciou –"as conclusões da alegação do recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal", entre outras afirmações com o mesmo cariz – há um claro desfasamento entre o objecto que se decidiu – no fundo, a existência de mandato – e o objecto que constava das conclusões da revista, que se cingia a uma questão nuclear, com autonomia e situada a jusante daquela: a obrigação de prestar contas, tendo em atenção os actos jurídicos praticados pelo réu no interesse e por conta de CC, pressupondo, portanto, a existência desse contrato de mandato, celebrado entre aquele e esta.
O objecto da revista limitava-se, assim, a tal questão – art. 635º, nºs 2 e 4, do CPC –, que se decompunha em duas sub-questões (os dois fundamentos utilizados no acórdão recorrido para afastar essa obrigação): – se, com a extinção do mandato (falecimento da mandante), o réu não tinha de prestar contas aos herdeiros da mandante; – se o mandato teve reflexos patrimoniais no património da mandante.

Ora, como é patente, no presente Acórdão não se aprecia, nem se decide, nenhuma destas questões, antes se concluindo que não ficou demonstrada a existência do contrato de mandato.
Esta conclusão contraria, porém, o que havia sido afirmado expressamente pelas autoras e confessado pelo réu e, bem assim, o que foi também reconhecido, quer na sentença, quer no acórdão recorrido.
Não se tratava, por conseguinte, de questão controvertida neste processo e que devesse ser decidida neste recurso, que é de mera reponderação. Nessa medida, existe excesso de pronúncia.
Aliás, parece que, no âmbito dessa concreta questão, existe até dupla conforme (uma vez que o voto de vencido não abrange essa questão), o que impediria a sua apreciação neste recurso (art. 671º, nº 3, do CPC).

Assim, não foi colocado, nem estava em causa, um problema de qualificação jurídica que abrangesse a relação estabelecida entre CC e o réu. De todo o modo, importa notar que, mesmo que se desconsidere o sentido que resulta da conjugação dos factos 8, 14 e 15 – se a mandante estava internada num lar e sem possibilidade de administrar o seu património, os actos aí indicados teriam de ser, como foram, executados pelo procurador (réu) –, o próprio réu confessou a execução de actos de administração na qualidade de mandatário (art. 32º da contestação).
Repare-se também que o próprio réu não nega que tivesse o dever de prestar contas; o que ele afirma é que, na qualidade de mandatário, as prestou já à mandante (cfr. arts. 33º a 35º da contestação), facto que não logrou provar, como se salientou na sentença.

Diz-se no presente Acórdão que "tais afazeres" – os dos factos 14 e 15 – "seriam os que o réu, por força da procuração que lhe foi passada, poderia ter feito, nada resultando, em concreto, que tivesse assumido essa obrigação mediante acordo (art. 1157º do CC) com a falecida CC".
Ora, o réu estava realmente legitimado a praticar esses actos em nome da representada, por via da procuração (art. 262º do CC); esta visava a administração dos bens da de cujus no interesse desta (facto 8); e o certo é que o réu passou a executar efectivamente esses actos de administração do património da representada e fê-lo durante mais de cinco anos.
Existe, pois, sem qualquer dúvida, mandato com representação (arts. 1157º e 1178º do CC).
Não se compreende, por isso, como pode pôr-se em causa a existência do mandato, reconhecida por ambas as partes e dada como assente, como se disse, nas decisões recorridas.

Resta acrescentar, em breve apontamento, quanto às questões efectivamente colocadas na revista, que, com todo o respeito, não subscrevo a fundamentação adoptada no acórdão recorrido, antes aderindo às razões que constam da declaração de voto de fls. 160.
Com efeito, apesar da caducidade do mandato, o mandatário mantém o dever de prestar contas (art. 1161º, nº 1, al. d), do CC) perante os herdeiros da mandante, por sucederem na titularidade das relações jurídicas patrimoniais desta (art. 2024º do CC), no que pode considerar-se um caso de pós-eficácia das obrigações (cfr. Januário Gomes, Contrato de Mandato, 132; Menezes Cordeiro, Estudos de Direito Civil, Vol. I, 195).
Por outro lado, tendo em atenção os actos praticados pelo réu, mandatário, mesmo que se considerem apenas os confessados levantamentos bancários e cobrança de rendas, parece indiscutível a sua repercussão no património da mandante, a implicar o dever de prestar contas.

Concederia, por isso, a revista, revogando o acórdão recorrido e repristinando a decisão da 1ª instância.

(Pinto de Almeida)

________________________
[1] Procedemos, apenas, à renumeração da factualidade, tendo, ainda, aposto os elementos interpolados de molde a observar o rigor linguístico, mantendo a escrita sem observação do Acordo Ortográfico.
[2] Acórdão proferido nos autos de recurso de Apelação nºs 806/13.0TVLSB.L1-7, in www.dgsi.pt,  relatado pela Exmª Desembargadora, Dra. Graça Amaral, atualmente Conselheira deste Supremo Tribunal de Justiça e desta secção cível.
[3] Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Novembro de 2006, www.dgsi.pt., Proc. nº 06A3592.