Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A076
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: CASAMENTO CATÓLICO
ASSENTO PAROQUIAL
FRAUDE
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: SJ2008041700761
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I. O Estado Português reconhece valor e eficácia ao casamento celebrado segundo os cânones canónicos e competência aos Tribunais e repartições eclesiásticas para conhecer das causas ou vícios que afectem o matrimónio canónico e respectivos efeitos, desde que os casamentos tenham sido efectivamente celebrados e estejam transcritos no registo civil.
II. Estando alegado que determinado matrimónio canónico não existiu enquanto acto, e que a sua transcrição no registo resultou de fraude veiculada ao Conservador através do Assento Paroquial cujos dizeres encerram falsidades, é aos Tribunais portugueses que cabe a competência para a apreciação dessa questão.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA e marido BB
e CC
intentaram acção declarativa, com processo ordinário
contra:
DD,
EE,
FF
e GG,
pedindo que, julgada a acção procedente, o Tribunal declare:
a)Que não existiu, nem foi celebrado qualquer casamento entre a Ré DD (já falecido), designadamente, em 14 de Agosto de 1978;
b)Ser falso, por não ter acontecido, o facto/casamento entre a Ré DD e o GG, a que se reporta o registo/assento, lavrado pelo R Padre EE, em 14 de Abril de 2002;
c)A nulidade do registo de casamento, entre a Ré DD e o falecido HH, a que se refere o assento n.º 68, do ano 2002, do Livro respectivo da Conservatória do Registo Civil de Chaves;
d)Que, consequentemente, seja ordenado o cancelamento desse registo;
e)A nulidade da habilitação de herdeiros, a que se reporta a escritura, lavrada no Cartório Notarial de Valpaços, em 2 de Maio de 2002, a fls. 56 e ss., do Livro 122-D, na qual, a Ré DD se declarou única e universal herdeira de HH, na qualidade de cônjuge sobrevivo;
f)Nulas e de nenhum efeito todas e quaisquer disposições de bens móveis e imóveis, integrantes da herança, que se abriu por óbito de HH, e a que a ré DD procedeu, ou venha a proceder, com base na alegada qualidade de sua única e universal herdeira;
g)Que sejam mandados cancelar todos e quaisquer registos e inscrições de factos aquisitivos de bens da aludida herança, decorrentes de eventuais alienações operadas ou a operar pela Ré DD.

Todos os RR. contestaram por excepção, deduzindo a incompetência absoluta do Tribunal, e impugnando parte da materialidade fáctica alegada.
Os co-RR. FF e GG deduziram também a excepção da sua própria ilegitimidade.


No Saneador foram julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade dos co-RR. FF e GG e a da incompetência absoluta do Tribunal, declarando-se este (Tribunal de Chaves) competente em razão da matéria.

Procedeu-se em seguida à condensação do processo, com a indicação dos factos assentes e organizando-se a base instrutória.

Os Réus DD e outros, agravaram da decisão que julgou improcedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal, sendo o recurso admitido para subir conjuntamente com o recurso da decisão que, depois dele interposto, houvesse de subir imediatamente.
Os AA. contra-alegaram.

Seguiu-se a instrução do processo e a audiência de discussão e julgamento, vindo no seu termo a ser proferida Sentença.

Esta julgou a acção integralmente procedente, nos exactos termos peticionados.

Inconformados, voltaram a recorrer os RR., declarando manter interesse na apreciação do agravo retido.
Este recurso foi admitido como apelação e com efeito suspensivo.
Alegaram os RR. e contra-alegaram os AA.

O Tribunal da Relação do Porto, usando do disposto no art. 713.º-5 e 6 veio a negar provimento ao agravo e a julgar improcedente a apelação, e, assim, mantendo a decisão em que se considerava competente, confirmou também a Sentença .

Recorreram o R. EE e a Ré DD (fls. 340 e 366), classificando-os como Agravos.
O R. EE requereu desde logo, aquando da interposição de recurso, que este fosse admitido como Agravo em 2.ª instância com intervenção do Plenário para uniformização de jurisprudência, porquanto – segundo alegou – o Acórdão recorrido está em manifesta contradição com outros, indicando a título exemplificativo, como referência,
- o Ac. do STJ de 1978.06.29, BMJ, 278-228;
- o Ac. do STJ de 1983.02.22, BMJ, 324-540;
- o Ac. do STJ, de 94.02.22, CJ do STJ 1994, ano II, tomo I-115
- e o Ac. da Relação de Lisboa de 1992.12.03, in ITIJ, RL199212030059592 (n.º convencional JTRL00012102, processo 0059592.

Os recursos foram admitidos pela Relação, mas qualificados como Revistas.
Só o R. EE veio a alegar, pelo que a Relação julgou deserto o recurso da Ré DD.

Remetidos os autos a este Tribunal, o Ex.mo Senhor Procurador Geral-Adjunto emitiu douto Parecer, no sentido de se lhe afigurar como inidónea a Revista ampliada.
O Relator proferiu despacho justificando por que razões entendia não se verificarem os pressupostos para a revista ampliada (1) , ordenando a ida dos autos ao Excelentíssimo Senhor Conselheiro Presidente deste Tribunal, tendo este concordado com a posição do Relator.
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II. Âmbito do recurso

O recorrente EE apresentou as seguintes conclusões nas alegações de recurso que apresentou para este Tribunal:
“I. Na presente acção pede-se que o Tribunal Comum declare que não existiu nem foi celebrado qualquer casamento entre a ré DD e HHa, designadamente em 14 de Agosto de 1978, por tal facto jurídico (casamento) ser falso - alíneas a) e b) do pedido, sendo que nas restantes alíneas em que os autores subdividiram o pedido, pede-se, tão só, o reconhecimento dos efeitos jurídicos que a procedência do pedido efectuado nas alíneas a) e b) necessariamente acarretaria.
II. Não estamos, assim, em face de uma cumulação real de pedidos, mas meramente aparente, porquanto o pedido é, na verdade, único.
III .Dispõe o artigo 1625° do Código Civil que o conhecimento das causas respeitantes à nulidade do casamento católico é reservado aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes, disposição legal que corresponde ao primeiro parágrafo do artigo XXV da Concordata com a Santa Sé, de 7 de Maio de 1940 e ao artigo 24° do Decreto-Lei n.o 30615, de 25 de Julho de 1940.
IV .O capítulo V do Titulo I do Livro IV do Código Civil, que se estende até ao artigo 1646°, trata da invalidade do casamento, para abranger as hipóteses da ineficácia, da nulidade e da anulabilidade do casamento católico, que tem um regime totalmente distinto da invalidade do casamento civil, conforme se proclama no cânone 1671 do "Codex Juris Canonici".
V. O Codex Juris Canonici não admite a figura da inexistência jurídica do casamento, tendo-se confinado ao regime da nulidade.
VI. O artigo 2° do Protocolo adicional de 15 de Fevereiro de 1975 expressamente manteve em vigor o primeiro parágrafo do artigo XXV da Concordata, ao qual corresponde o citado art. 1625.º do CC., e segundo Antunes Varela não é credível”que os constituintes, um ano volvido sobre a assinatura do Protocolo que solucionou uma questão particularmente delicada entre o Governo Português e a Santa Sé, pretendessem alterar unilateralmente posição tão nevrálgica como a da jurisdição dos tribunais eclesiásticos em matéria de casamento(católico) Direito de Família, ed de 1987, pgs. 151 e 152.
VII. Por outro lado, a reforma do Código Civil, operada pelo Decreto-Lei n. 496/77, de 25 de Novembro, teve em vista harmonizar esse diploma legal com os princípios da Constituição da República Portuguesa, e essa reforma deixou intacto aquele artigo 1625°, indício de que o legislador continuou a considerá-lo em vigor.
VIII. Portanto, excepto o que concerne à capacidade matrimonial dos nubentes, a decisão sobre as questões da existência e nulidade do casamento católico e da sua forma, é da competência dos tribunais eclesiásticos e não dos tribunais comuns portugueses.
IX. Ninguém colocou em causa que DD e HH não estivessem dotados da capacidade matrimonial exigida na lei civil para, nas circunstâncias espaciais e temporais referidas no assento de casamento e na consequente transcrição, celebrar tal convénio católico.
X DD e HH, que tiveram um filho e sempre viveram como marido e mulher que eram, consorciaram-se catolicamente.
Termos em que, revogando-se o douto Acórdão recorrido, considerando-se o Tribunal Comum (Tribunal Judicial da Comarca de Chaves) absolutamente incompetente, em razão da matéria, para julgar o presente pleito, anulando-se todo o processado posterior à elaboração do despacho saneador, designadamente a audiência de discussão e julgamento, e, na procedência daquela excepção dilatória, absolvendo-se os réus da instância se fará JUSTIÇA!
Sempre aquele Acordão haveria de ser revogado, porquanto DD e DD contraíram entre si casamento católico, nas circunstâncias referidas nos respectivos assentos canónico e de registo civil.”

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Da leitura destas conclusões vemos que a questão que se coloca é a da competência material para apreciação da declaração de inexistência de matrimónio canónico quando foi apresentado ao registo civil de Chaves, para transcrição, um assento paroquial, atacado de falso pelos ora AA. quanto aos dizeres nele contidos no tocante à aí indicada celebração do próprio acto - matrimónio.
Importa saber se para tal conhecimento são competentes os Tribunais civis portugueses ou os Tribunais eclesiásticos (dependentes do Estado da Santa Sé).
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III. Fundamentação

III. – A) Os factos

Foram considerados assentes e/ou provados na primeira instância os factos seguintes, que a Relação manteve inalteráveis:
- HH faleceu no dia 2002.02.21, na freguesia d Moreiras, concelho de Chaves (cfr. certidão narrrativa de óbito junta a fls. 8). - al. A)
- Na certidão narrativa de óbito emitida pela Conservatória do Registo Civil de Chaves em 2002.05.17 e junta a fls. 8 diz-se nomeadamente:
“Certifico que no livro de assentos de óbito nesta Conservatória referente ao ano de 2002 existe um registo n.º 140, do qual consta:
Nome do falecido: HH
Idade: 73 anos
Estado: solteiro (…)” (cfr. documento junto a fls. 8 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). – al. B)
- HH faleceu sem testamento nem descendentes ou ascendentes vivos. – al. C)
- Quer HH quer os AA. AA e CC são filhos de M. P. e I. de J. (cfr. fotocópias dos assentos de nascimento juntos a fls. 9 e 10. – al. D)
- Em 2002.04.30 foi lavrado por transcrição na Conservatória do Registo Civil de Chaves, assento de casamento, sob o n.º 68, no qual se fez constar que:
“(…) em 1978.08.14 HH casara com DD”, ora Ré…
“(…) os nubentes declararam celebrar de livre vontade o seu casamento perante o Padre L. A. A. R., pároco da dita Moreiras (…)”
“Menções especiais: duplicado paroquial entregue pelo dito Pároco em 2002.04.18 (cfr. fotocópia do assento de casamento n.º 68 e averbamento constante do documento junto a fls. 11 e 12) – al. E)
- No documento junto a fls. 14 consta nomeadamente:
“Às oito horas do dia 14 de Agosto de 1978 perante Padre L. A. A. R., pároco da freguesia de Moreiras, concelho de Chaves, na igreja paroquial desta paróquia e freguesia de Moreiras, concelho de Chaves, diocese de Vila Real, compareceram os nubentes HH e DD, ele de cinquenta anos, no estado de solteiro, natural do lugar e freguesia de Moreiras, concelho de Chaves, onde foi baptizado e residente no lugar e freguesia de Moreiras. Concelho de Chaves, filho de M. P. e de Isabel de Jesus, e ela de quarenta e seis anos, no estado de solteira, natural da freguesia de santa Leocádia, concelho de Chaves, onde foi baptizada e residente no mesmo lugar e freguesia de Moreiras, dita. Filha de A. P. e de M. das N. (…)
“NB. Em virtude de se ter extraviado o Assento deste casamento, eu, Padre EE, actual Pároco da dita freguesia de Moreiras, no dia 2002.04.14, na presença das testemunhas e da nubente, tendo já falecido o oficiante e o nubente, lavrei este assento que depois de lido e conferido vai ser assinado pela nubente, pelas testemunhas e por mim (…)” (cfr. doc. junto a fls. 14). – al. F)
- Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Valpaços em 2002.05.02 lavrada a fls. 56 do livro 122-D, DD, ora Ré, declarou ser “a única e universal herdeira e viúva de HHa” (cfr. fotocópia junta a fls. 15 a 17) – al. F)
- Na cédula pessoal n.º 386486 de II cuja cópia certificada se encontra junta a fls. 33 e 34 consta nomeadamente:
Nome: II, filha de HH, natural de Moreiras, concelho de Chaves e de DD, natural de santa Leocádia, concelho de Chaves, nasceu na freguesia de Chaves, concelho de Chaves aos 1975.02.13, assento n.º 186 do ano de 1975, Chaves, 1975.03.16 (…)” outros assentos faleceu na freguesia de Moreiras dia 1975.03.31 (cfr. doc. junto a fls. 33 a 35) – al. H)

- A afirmação constante do documento referido na al. E) da matéria assente, datada de 2002.04.14 levada a efeito pelo Padre EE, ora R., de que “o assento de casamento celebrado pela Ré DD e o falecido HH, em 1978.08.14 se extraviou” é uma inverdade. – resp. ao q. 2.º da b.i.
- A Ré DD, conluiada com os RR. FF dos santos e mulher deste GG prestaram declarações ao R: EEs que este aceitou como boas e verdadeiras, as quais serviram de substracto e levaram este R. à elaboração do documento cuja cópia se encontra junta a fls. 14 e aludido na alínea E) da matéria assente. – resp. ao q. 3.º da b.i.
- Os intervenientes DD, FF e mulher GG a conluiaram-se, pactuaram e mancomunaram para conceber um documento inventando um facto inexistente a saber: “o do casamento da DD com HH”(sic) – resp. ao q. 4.º da b.i.
- A concepção do referido documento foi levada a efeito pelos intervenientes DD, FF e mulher GG com intenção de enganar e induzir em erro terceiros (a Conservatória do Registo Civil de Chaves) – resp. ao q. 5.º da b.i.
- Com a criação do documento referido em F) a Ré DD a visou prejudicar os AA.- resp. ao q. 6.º da b.i.
- Desde 1973 até 2002.02.21 a Ré DD viveu com HH em comunhão de cama, mesa e habitação – resp. aos qs. 7.º, 13.º e 21.º da b.i.
- Após 2002.02.21 a Ré DD declarou em varias circunstâncias ter o estado civil de solteira – resp. ao q. 8.º
- A Ré DD após a morte de HH (2002.02.21) consultou advogado em Chaves a quem pediu parecer e conselho sobre eventuais direitos, que lhe assistiam, na qualidade de pessoa solteira, que viveu vários anos em comunhão de cama, mesa e habitação com o referido HH. – resp. ao q. 9.º da b.i.
-Em vida HH dizia, quando solicitado, que não era casado. – resp. ao q. 10.º
- Nos bilhetes de identidade de HH e de DD a sempre fizeram constar que eram solteiros – resp. ao q. 11.º
- HH dizia publicamente que “trabalhava” para os irmãos e sobrinhos para quem “iria” o que era seu. – resp. ao q. 12.º

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III-B) Análise do recurso

Entendem os recorrentes que a presente causa é de exclusiva competência dos Tribunais eclesiásticos porque nos termos do art. 1625.º do CC. (2) “O conhecimento das causas respeitantes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado é reservado aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes.”
Em seu entender, os Tribunais portugueses seriam apenas competentes para apreciar a capacidade matrimonial dos nubentes, situação que no caso presente ninguém pôs em causa.

Salvo o devido respeito, partes os recorrentes de um claro equívoco:

Não se trata aqui de apreciar a nulidade ou anulabilidade de um casamento canónico, para cuja apreciação se reconhece que são efectivamente competentes os tribunais e repartições eclesiásticas dependentes do Estado Pontifício da Santa Sé, assentes na Concordata de 1940, ou, se quisermos, na actual, de 2004. (3)
O que aqui está em causa é a apreciação de uma fraude num documento apresentado ao registo civil para transcrição de um acto que não aconteceu, pois vem alegado que não houve qualquer acto de casamento.
Pois bem:
O que o Estado Português reconhece aos Tribunais e repartições eclesiásticos é o conhecimento das causas de nulidade ou da anulabilidade do casamento canónico ou a dispensa de casamento rato e não consumado.
Ora, essas situações são as que vêm previstas nos cânones 1055.º a 1150.º do Código do Direito Canónico (Codex Juris Canonici), das quais destacamos, em linguagem canónica (cujos conceitos, nem sempre são correspondentes aos conceitos civilísticos do direito português) a existência de impedimentos dirimentes gerais (cânones 1073.º a 1082.º) ou impedimentos dirimentes especiais (cânones 1083.º a 1094.º), os relativos ao consentimento (incapacidade, erro, dolo, violência, medo grave, vontade, procuração) (cânones 1095.º a 1107.º), os respeitantes à forma de celebração (cânones 1108.º a 1123.º e 1130.º a 1133.º), os atinentes aos matrimónios mistos (ou seja entre membros com disparidade de culto, um dos quais baptizado e o outro não- cânones 1124.º a 1129.º), àqueles casos que a Igreja considera como sendo matrimónio rato e não consumado, e a outros casos especiais que possam demandar a dissolução do vínculo (1141.º a 1155.º).
Todas estas situações pressupõem a existência do acto “matrimónio”.
Ou seja, o Estado Português, nos termos da Concordata, reconhece competência à Santa Sé para examinar os vícios do acto (matrimónio canónico), recebendo e reconhecendo na ordem jurídica nacional efeitos civis às decisões que essas entidades profiram ou venham a proferir sobre tais matérias, uma vez observados os trâmites processuais no tocante à sua transcrição registral.
Ora não pode confundir-se a competência para examinar as causas/vícios do matrimónio, com a inexistência do próprio acto casamento.
Não se confunda, por outro lado, inexistência jurídica com inexistência do acto. (4)

Sai-se fora do âmbito do art. 1625.º do CC., e portanto, por arrastamento também das normas da própria Concordata, ao pretender alargar-se aos tribunais e repartições eclesiásticas a competência para a apreciação de fraudes nos documentos que serviram de suporte aos actos registrais.
De acordo com o disposto no art. 1587.º-2 do CC., o Estado português reconhece valor e eficácia de casamento ao matrimónio católico nos termos das disposições seguintes inseridas nesse diploma, e reconhece também aos Tribunais e repartições e eclesiásticos a competência para decidir sobre a invalidade do matrimónio, ou seja, sobre as causas ou vícios que afectem o matrimónio efectivamente celebrado e suas repercussões (efeitos jurídicos) na ordem jurídica nacional, mas de forma alguma abdicou ou cedeu parte da sua soberania para reconhecer a um Estado estrangeiro (nesta caso a Santa Sé), para apreciar e julgar os vícios de documentos fraudulentos apresentados nas repartições nacionais para comprovar um facto que nunca existiu.

No caso em presença, a questão que se colocava era de tratar de avaliar se o documento apresentado para registo do casamento canónico constituía uma fraude, por alegadamente – como se veio a provar – nunca ter chegado a haver matrimónio católico.
Esta situação não se encontra contemplada no âmbito da Concordata.

Ora, ao Estado cabe, por outro lado, assegurar a validade e a fé pública dos documentos.
A fé pública dos documentos autênticos é apenas um corolário dos interesses de ordem pública que o Estado Português visa prosseguir.
Bem aplicada aqui a expressão mais eloquente da separação entre a Igreja e o Estado:
“A César o que é de César, a Deus o que é Deus”.

À laia de conclusão:
Se o acto não existe, não pode ter causas. Donde, bastaria esta simples constatação para se concluir que o Estado Português não incluiu nas cedências de soberania ao Estado da Santa Sé o direito de julgar as fraudes documentais onde se alicerça o registo do estado das pessoas e suas eventuais alterações.

Reforçando tudo quanto foi afirmado, tem interesse em trazer à colação a actual redacção do art. 13.º-1 da Concordata de 2004:
O Estado Português reconhece efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas, desde que o respectivo assento de casamento seja transcrito para os competentes livros do registo civil.
Mais uma vez, para que não fiquem dúvidas:
“(…) efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas (…)”
A Igreja católica nunca admitiu nem admite a existência de matrimónio sem a sua celebração (acto). Mesmo nos considerados casamentos “in articulo mortis” ou nos matrimónios “de consciência”, tem que haver o acto “celebração”, ainda que falte parte das formalidades normalmente exigidas para os demais matrimónios ou a ele não presida o oficial celebrante que em condições normais a ele deveria presidir.
Assim, versando toda a questão aqui colocada sobre a inexistência desse acto, toda a problemática se coloca a montante da questão da competência concordatada que o Estado Português estabeleceu com o Estado da Santa Sé.
E, quanto a essa competência não houve qualquer abdicação de soberania exclusiva por parte do Estado Português. (5)
.
…………………….

Em face do exposto, o recurso não pode proceder.
A Revista terá de ser negada.
…………………….

IV. Decisão

Na negação da Revista, confirma-se o Acórdão recorrido, embora não exactamente pelas mesmas razões nele apontadas.
Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 17 de Abril de 2008


Mário Cruz (Relator)
Garcia Calejo
Mário Mendes
________________________
1- Escreveu-se então o seguinte:
“Concorda-se inteiramente com o douto Parecer do Il.mº Senhor Procurador Geral-Adjunto, dando aqui por reproduzidas as razões invocadas que levam a não enquadrar o presente recurso como elegível para a Revista ampliada.
Na verdade, 1) não foi feita nas conclusões de recurso (apresentadas com as alegações) qualquer referência à contradição de julgados que viessem a postular a necessidade de revista ampliada, sendo certo que é nesta sede que o âmbito dos recursos é delimitado (arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC); 2) Nenhum dos Acórdãos citados como fundamento tem como núcleo essencial a “inexistência de acto matrimónio” e a “falsidade de documento” que se destinaria a servir de base ao assento por transcrição no registo civil, à sua suposta existência; 3) no Acórdão recorrido não é posta em causa a vigência do art. 1625.º do CC. ou sua inconstitucionalidade, sublinhando-se que o que está aqui em causa não é a competência dos Tribunais eclesiásticos para a apreciação da nulidade do acto casamento ou a dispensa de casamento rato e não consumado, mas sim a sua própria inexistência, fundada em suposta fraude certificada em documento paroquial como suporte à respectiva transcrição, sendo falso quer o acto de casamento quer os dizeres certificados na certidão paroquial que terá servido à transcrição no registo civil.
Face ao exposto, entendo que efectivamente o Acórdão a produzir não tem condições de elegibilidade para merecer Revista ampliada, acrescendo ainda o facto de se não vislumbrar como a decisão recorrida tenha estado em oposição com qualquer outro Acórdão – tirado sob o domínio da mesma legislação – sobre a mesma questão fundamental de direito.
Vão no entanto os autos à consideração do Excelentíssimo Senhor Presidente deste Supremo Tribunal, para, nos termos do art. 732.º-A, n.º 1 do CPC proferir decisão.”
2- que transcreve “ipsis verbis”, o art. XXV § 1.º da anterior Concordata com a Santa Sé, de 1940.05.07 e o artigo 24° do Decreto-Lei n.o 30615, de 25 de Julho de 1940 e que se manteve inalterável com o Protocolo adicional de 15 de Fevereiro de 1975,,
3- Esta última, foi assinada em 16 de Maio de 2004, aprovada por Resolução n.º 74/2004 da Assembleia da República em 2004.09.30, ratificada por Decreto do Presidente da República n.º 80/2004, de 03 de Novembro, publicada no DR-I-A de 2006.11.16 e trocados os respectivos instrumentos de ratificação, entre ambos os Estados em 2004.12.18, consoante Aviso n.º 23/2005, de 07 de Janeiro, do Ministério dos Negócios Estrangeiros , publicado no DR-I-A de 26 de Janeiro
4- As situações de inexistência jurídica que o Código Civil prevê respeitam a situações que admitem a produção do acto, mas lhe não reconhecem qualquer efeito, podendo ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo, independentemente de declaração judicial. – art. 1630.º-2 do CC..
São elas as seguintes, tipificadas no art. 1628.º:
a) o casamento celebrado perante quem não tinha competência funcional para o acto, salvo tratando-se de casamento urgente;
b) o casamento urgente que não tenha sido impugnado;
c) o casamento em cuja celebração tenha faltado a declaração de vontade de um ou de ambos os nubentes, ou do procurador de um deles;
d) o casamento contraído por intermédio de procurador, quando celebrado depois de terem cessado os efeitos da procuração, ou quando esta não tenha sido outorgada por quem nela figura como constituinte, ou quando seja nula por falta de concessão de poderes especiais para o acto ou de designação expressa do outro contraente;
e) o casamento contraído por duas pessoas do mesmo sexo.
Nessas situações de inexistência jurídica houve pelo menos o acto consistente na celebração do casamento.
5- A nova Concordata veio no art. 16.º-1 dar um passo num sentido de maior laicização, ao colocar as decisões dos Tribunais eclesiásticos, dependentes do Estado da Santa Sé, em pé de igualdade com as decisões proferidas por tribunais de outros países estrangeiros no tocante ao estado das pessoas, exigindo que tais decisões passem a ser revistas e confirmadas pelo Tribunal competente do Estado Português (Tribunal da Relação territorialmente competente), derrogando-se assim o simples “Exequatur.” que até então existia na anterior Concordata .