Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
038546
Nº Convencional: JSTJ00004339
Relator: SOUSA MACEDO
Descritores: PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
REGIME APLICAVEL
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ198902150385463
Data do Acordão: 02/15/1989
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IS 1989/03/17, PÁG. 1149 A 1152 - BMJ Nº 384 ANO 1989 PÁG. 163
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP886 ARTIGO 125 PAR4 ARTIGO 358 PAR1 PAR2 PAR4 ARTIGO 421 N4 ARTIGO 453.
CP82 ARTIGO 2 N4 ARTIGO 118 N1 N2 N3 ARTIGO 119 ARTIGO 120.
CONST82 ARTIGO 29 N4.
CPC67 ARTIGO 766 N1 ARTIGO 767 N2.
DL 184/72 DE 1972/05/31.
CCIV66 ARTIGO 13 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1984/01/19.
ACÓRDÃO STJ DE 1986/04/02.
ACÓRDÃO STJ DE 1975/04/02 IN BMJ N240 PAG49.
ASSENTO STJ DE 1975/11/19 IN BMJ N251 PAG75.
Sumário :
Em materia de prescrição do procedimento criminal deve aplicar-se o regime mais favoravel ao reu, mesmo que no momento da entrada em vigor do codigo Penal de 1982 estivesse suspenso o prazo de prescrição por virtude de acusação deduzida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça em tribunal pleno:
I - Na comarca de Coruche foram pronunciadas A, B e C por um crime previsto e punido pelo artigo 358, paragrafo 1, 2 e 4, do Codigo Penal de 1886. Em audiencia de discussão e julgamento foi requerido que se considerasse prescrito o procedimento criminal, o que alcançou decisão favoravel.
Recorreu o magistrado do Ministerio Publico, tendo obtido provimento. A re Filipa recorreu para este Tribunal, pondo a questão nestes termos:
Entre a data das primeiras declarações da arguida (12 de Agosto de 1975) e a data em que foi notificada do despacho de pronuncia (29 de Maio de 1981) decorreram mais de cinco anos;

O prazo de prescrição para o crime de aborto no novo Codigo Penal e de cinco anos;
Segundo o n. 4 do artigo 2 do novo Codigo Penal, a norma que estabelece regime concretamente mais favoravel ao agente e de aplicação retroactiva, salvo sentença com transito;
Quando este preceito se refere a disposições penais, não exclui as que regem a prescrição do procedimento criminal;
O n. 4 do artigo 29 da Constituição tambem estabelece a aplicação retroactiva das leis penais quando de conteudo mais favoravel ao arguido;
Assim, deve aplicar-se ao caso o regime mais favoravel do novo Codigo Penal e declara-se extinta, por prescrição, a responsabilidade criminal.
Por Acordão deste Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 1984, com transito em julgado a 30 de Janeiro de 1984, decidiu-se que o novo regime não era aplicavel por não estar a correr o prazo de prescrição do procedimento criminal quando entrou em vigor o novo Codigo Penal, pois fora deduzida querela provisoria pelo Ministerio Publico em 15 de Janeiro de 1976. Aceita que nada impediria a aplicação imediata do novo regime, mais favoravel, se o problema de prescrição não estivesse, assim, afastado.
II - Na comarca de Evora foi julgado prescrito o procedimento criminal contra D, acusado pelo crime previsto e punido nos termos dos artigos 453 e 421, n. 4, do Codigo Penal de 1886. A Relação de Evora confirmou a decisão e o magistrado do Ministerio Publico recorreu, alegando que a partir do exercicio tempestivo da acção penal não correu qualquer prazo prescricional, não havendo que fazer renascer a questão da prescrição.
Por Acordão, tambem deste Supremo Tribunal, de 2 de Abril de 1986, entendeu-se que a acusação em juizo foi desvalorizada ou descaracterizada pela nova lei, para efeitos interruptivos da prescrição, tudo se passando como se não tivesse tido lugar. Considera que, face a um procedimento criminal em curso, por não ter sido atingido pela prescrição de acordo com a lei anterior, deve aplicar-se o regime da lei nova por ser mais favoravel ao agente, tornando mais facil a consumação da prescrição.
Interposto recurso para tribunal pleno pelo Excelentissimo

Procurador-Geral-Adjunto, invocando a oposição entre estes dois acordãos, foi ele admitido, sendo apresentada alegação tendente a demostrar a oposição.

III - A Secção Criminal, em julgamento da questão preliminar, de harmonia com o artigo 766, n. 1, do Codigo de Processo Civil, decidiu existir a oposição que e fundamento do recurso.


Apresentou o Excelentissimo Magistrado do Ministerio Publico a alegação prevista no n. 2 do artigo 767 do Codigo de Processo Civil, renovando a demonstração do conflito de jurisprudencia entre os dois arestos, examinando a questão de fundo e propondo a formulação de assento nos seguintes termos:


Em materia de prescrição do procedimento criminal deve aplicar-se o regime mais favoravel ao reu, mesmo que no momento da entrada em vigor do Codigo Penal de 1982 estivesse suspenso o prazo de prescrição.
Não houve apresentação de alegações por parte do arguido e foram tomados os vistos.


IV - Questão preliminar.


Como questão preliminar, ha que apreciar de novo a oposição entre as duas decisões, sendo certo que a primeira destas transitou em julgado.
Foram os dois acordãos em confronto proferidos no dominio da mesma legislação a considerar - em um e outro caso os factos passaram-se quando vigente o Codigo Penal de 1886 e a decisão foi proferida quando vigente o Codigo Penal de 1982.


Ambos os arestos versam a mesma questão fundamental: se a acusação deduzida na vigencia do Codigo Penal de 1886 continua a ser relevante para efeito de suspensão do prazo prescricional quando se conheça do curso deste em decisão a proferir na vigencia do novo Codigo.
No primeiro acordão entendeu-se que, deduzida acusação na vigencia do Codigo Penal de 1886, antes de atingido o prazo prescricional do procedimento, não corria aquele prazo a data da entrada em vigor do Codigo Penal de 1982, pelo que não se colocava o problema de sucessão de leis no tempo, isto e, não se perdia o efeito suspensivo decorrente da acusação.
Diferentemente se decidiu no segundo aresto, pois considerou-se que a acusação deduzida na vigencia do Codigo Penal de 1886 foi desvalorizada ou descaracterizada pelo novo Codigo Penal.


Ha tambem identidade objectiva da situação de facto: correndo o prazo de prescrição do procedimento criminal (nos dois casos de cincos anos, aplicando o Codigo Penal de 1982), foi proferida acusação antes de este se completar, ainda que existindo um espaço temporal superior entre as primeiras declarações dos arguidos e a notificação da pronuncia.
Devera reconhecer-se a existencia de oposição entre os acordãos invocados, havendo que produzir assento.


V - Conhecimento de fundo.


Convem proceder a uma correcta identificação do ponto de divergencia entre os dois acordãos.


Este não se situa na aplicação retroativa da lei nova para a determinação do prazo prescricional. O assento de 19 de Novembro de 1975 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 251, pagina 75) formulou a doutrina de que a lei reguladora da prescrição do procedimento criminal que estabeleça prazo mais curto tem aplicação imediata.


Ambos os arestos recolhem este ensinamento.


Onde se situa a oposição e quanto ao regime de contagem do prazo de prescrição - o da lei nova ou ainda aquele da lei vigente no momento da ocorrencia dos factos suspensivos ou interruptivos do prazo?
Ja no Acordão deste Supremo Tribunal de 2 de Abril de 1975 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 240, pagina 49) fora identificado e tratado o problema, decorrente então da mudança de regime de contagem com a publicação do Decreto-Lei n. 184/72, de 31 de Maio. Nele se escreveu:
Trata-se de determinar a forma como se conta o prazo de prescrição; este prazo corria ao abrigo da lei vigente respectiva e, portanto, nos termos por ele estabelecidos.


VI - Pela lei em vigor a data das suas acusações, a sua dedução não interrompia, mas suspendia, o curso do prazo prescricional.

No preambulo do Decreto-Lei n. 184/72, de 31 de Maio, e tal
caracterização claramente afirmada, ao escrever-se:

Na disciplina juridica das causas de extinção do procedimento criminal importava fixar o prazo de prescrição do procedimento por contravenções [..] e por termo as duvidas que longamente se manifestaram quanto a interrupção da prescrição do procedimento criminal.


Optou-se, neste particular, pela supressão de causas de interrupção da prescrição, regulamentando-se somente, por isso, a suspensão do prazo de prescrição. Assim, não se admite uma causa de interrupção que imponha nova contagem do prazo de prescrição; o prazo de prescrição e que não corre quando se verifique uma causa que determine a sua suspensão.
Nesta conformidade, o artigo 125, paragrafo 4 , do Codigo Penal tomou a seguinte redacção:


A prescrição do procedimento criminal conta-se desde o dia em que foi cometido o crime.


A prescrição do procedimento criminal não corre:


1. A partir da acusação em juizo e enquanto estiver pendente o processo pelo respectivo crime;


2. Apos a instauração da acção de que dependa a instrução do processo criminal e enquanto não passe em julgado a respectiva sentença.
VII - O regime de contagem do prazo de prescrição estabelecido pelo Codigo novo e mais complexo, tendo assento em tres artigos - 118, 119 e 120.
O artigo 118 indica o inicio do prazo, o artigo 119 preve a suspensão e o artigo 120 regula a interrupção.


O n. 1 do artigo 118 contem a regra sobre o inicio da contagem do prazo: corre desde o dia em que o facto se consumou. Os ns. 2 e 3 preveem casos particulares que não importa agora considerar.
A suspensão da prescrição tambem não interessa considerar, por não ser aplicavel a hipotese versada.


A prescrição do procedimento criminal interrompe-se, entre outras situações, com:


A notificação para as primeiras declarações para comparencia ou interrogatorio do agente, como arguido, na instrução preparatoria;
A notificação do despacho de pronuncia ou equivalente.


Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo.


São estes os dois regimes em confronto.


VIII - O n. 4 do artigo 2 do Codigo Penal de 1982 veio estabelecer:
Quando as disposições penais vigentes no momento da pratica do facto punivel foram diferentes das estabelecidas em leis posteriores, sera sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais favoravel ao agente, salvo se este ja tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.
Deste preceito ha que reter duas determinações

:
A escolha devera fazer-se entre regimes;


A determinação de qual o regime mais favoravel devera fazer-se em concreto.
Relativamente ao "projecto" de 1963, substituiu-se a expressão "normas mais favoraveis" por "regime que concretamente se mostre mais favoravel".
A referencia a "regime", em vez de "normas", implica a ideia de que não se pode escolher de cada umas das leis os preceitos isolados que forem mais favoraveis ao agente, mas ha que aplicar uma so lei, prescrevendo um conjunto normativo (bloco) definidor do regime do instituto ou infracção, que constitui o regime do instituto ou infracção.

Assim, não e licito construir regimes particulares pela conjunção de elementos retirados de uma e outra lei, com o perigo da quebra de coerencia e a obtenção de um resultado aberrante, ainda que concretamente vantajoso, para o agente. Proibe-se o que, em expressão curiosa, ja se designou por "aplicação simbiotica das leis penais". Aqui se toma a lição dos autores Beleza dos Santos, Lições, 1936, paginas 194, Cavaleiro de Ferreira, Lições, 2 edição, pagina 121, e Direito Penal Portugues, I, edição pagina 124, e Eduardo Correia, Direito Criminal, I, pagina 139.
Na linguagem sintetica do primeiro destes autores:
Convem dizer que devera aplicar-se na sua integridade a lei antiga ou nova e não simultaneamente as disposições mais favoraveis de uma e outra.
O modo de operar deve ser este: aplica-se a lei antiga e, a seguir, a lei nova, uma e outra integralmente; comparam-se os resultados e determina-se, casuisticamente, qual a mais favoravel para o agente, optando-se por esta.
IX - No primeiro dos acordãos em confronto entendeu-se que a acusação dada na vigencia da lei antiga tinha, face a esta, o efeito de suspender o curso do prazo prescricional, efeito que havia de respeitar-se.
Coloca-se o problema dos limites da retroactividade, que e expressamente considerado no Codigo Civil, artigo 13, seu n. 1: ficando salvos os efeitos ja produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de analoga natureza.
Como se sabe, as regras da aplicação da lei no tempo inscritas no Codigo Civil foram inspiradas por Enneccerus, fonte da qual retiramos a seguinte passagem (in Derecho Civil - Parte General, edições esp., I, pagina 233):
O juiz tem que aplicar a lei ditada com força retroactica [...] como se o seu conteudo fosse valido ja antes [...] e, portanto, aos litigios em aberto. Respeitar as relações definitivamente fixadas ou desenvolvidas em virtude de sentença firme, transacção, renuncia, reconhecimento, cumprimento, compensação, etc., que portanto deva destruir-se a posteriori o seu estado definitivo.
Procurando dar uma ideia geral das situações que são ou não atingidas pela lei retroactiva, podemos dizer que esta abrange todos os casos que se encontram ainda em aberto, por não haver uma sentença com transito em julgado ou negocio juridico definidor.
Procedendo a adaptação destes ensinamentos ao ambito penal, que temos como validos em sua essencia quando a lei penal ganhe efeito retroactivo decorrente da aplicação do principio da lex favorabilia, cremos que, enquanto a prescrição for questão em aberto, isto e, enquanto puder ser declarada, o que significa ate haver decisão condenatoria definitiva, deve aplicar-se a lei nova retroactiva.
Nesta conformidade, considerar-se-iam sem qualquer valor, para o efeito e suspensão ou interrupção da prescrição, actos judiciais que o tinham antes claramente definido pela lei vigente na altura em que foram praticados.
Sintetizando: o regime da prescrição do procediumento criminal estatuido em lei nova e aplicavel retroactivamente em bloco quando seja mais favoravel: o regime da prescrição integra o prazo, o seu processo de contagem e as causas de suspensão e de interrupção; so a sentença com transito em julgado obsta a aplicação da lei nova retroactiva.
X - Termos em que se decide:
Confirmar a decisão recorrida;
Firmar-se o seguinte assento:
Em materia de prescrição do procedimento criminal deve aplicar-se o regime mais favoravel ao reu, mesmo que no momento da entrada em vigor do Codigo Penal de 1982 estivesse suspenso o prazo de prescrição por virtude de acusação deduzida.
Sem custas.
-


Lisboa,15 de Fevereiro de 1989

Pedro de Lemos e Sousa Macedo - Adelino Barbosa de Almeida - Jose Alexandre de Paiva Mendes Pinto - Vasco Eduardo Crispiano C. de Lacerda Abrantes Tinoco - João Solano Viana - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny - Silvino Alberto Villa-Nova - Antonio Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Augusto Tinoco de Almeida - Julio Carlos Gomes dos Santos - Jose Alfredo Soares Manso Preto - Manuel Augusto Gama Prazeres - Jose Manuel Meneres Sampaio Pimentel - Alberto Baltazar Coelho - Antonio Alexandre Soares Tome - Salviano Francisco de Sousa -
- Joaquim Jose Rodrigues Gonçalves - Cesario Dias Alves -
- Abel Pereira Delgado - Jorge de Araujo Fernandes Fugas -
- Jose Saraiva - Jose Isolino Enes Calejo - Jose Manuel de Oliveira Domingues - Eliseu Rodrigues Figueira Junior -
- Alberto Carlos Antunes Ferreira da Silva - Flavio Parreira da Trindade Pinto Ferreira - Fernando Heitor Barros de Sequeiros - Jorge da Cruz Vasconcelos - Antonio de Almeida Simões - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - Jose Henriques Ferreira Vidigal - Mario Sereno Cura Mariano - Claudio Cesar Veiga da Gama Vieira - João Alcides de Almeida - Mario Augusto Fernandes Afonso -
- Licinio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - João de Deus Pinheiro Farinha (votei o assento. Entendo, porem, que não se pode dizer "aplica-se a lei antiga e, a seguir, a lei nova [...]".
E que não se podem aplicar duas leis incompativeis; pondera-se o segundo facto face as duas leis e aplica-se a mais favoravel - esta e so esta).