Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1923/14.5TBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FALSAS DECLARAÇÕES DO SEGURADO
DECLARAÇÕES DOLOSAS
EXTENSÃO SUBJECTIVA DO RECURSO
RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA OU DE SUBSIDIARIEDADE
CONTRATO DE SEGURO DE VIDA ASSOCIADO A CONTRATO DE MÚTUO
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA AUTORA E PROCEDENTE A REVISTA DO RÉU
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / RAMO VIDA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª ed., 89 a 92.
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. V, 299.
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., 140.
- Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro - Estudos, 13 e 14.
- Noronha Silveira, Pluralidade das Partes na Fase dos Recursos em Processo Civil.
- Romano Martinez, Lei do Contrato de Seguro, 109 e ss..
- Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 502 e 503.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 634.º, N.ºS1 E 2, AL. B), 662.º, N.º4, 674.º, N.º3.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 429.º.
DEC. LEI N.º 72/08, DE 16-4 (LCS): - ARTIGOS 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 177.º, 188.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 17-11-05, CJSTJ, TOMO III, 120.
-DE 11-7-06, CJSTJ, TOMO I, 151.
-DE 30-10-07, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 27-5-08, CJSTJ, TOMO II, 81.
-DE 2-12-08, CJSTJ, TOMO III, 158.
-DE 8-6-10,EM WWW.DGSI.PT .
-DE 9-9-10, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 6-12-12, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 2-12-13, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 27-2-14, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 27-3-14, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 3-4-14.
-DE 11-2-16, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 10-3-16, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. Ao celebrar o contrato de seguro, o segurado deve declarar com exactidão as circunstâncias que conheça e que se mostrem significativas para a apreciação do risco que pretende garantir (art. 24º da LCS).

II. Conhecendo o segurado a existência de uma massa abdominal que mais tarde veio a ser identificada como “adenocarcinoma do pâncreas”, ainda que não estivesse diagnosticada a sua natureza e gravidade, deveria ter informado a Seguradora daquele facto e de que estava em processo de averiguação clínica o respectivo diagnóstico.

III. É dolosa a actuação do segurado que, no âmbito das diligências que precederam a adesão ao contrato de seguro do Ramo Vida que estava associado a um contrato de mútuo bancário, omitiu deliberada e intencionalmente à Seguradora circunstâncias relevantes atinentes ao seu estado de saúde, como o eram a existência da referida massa abdominal e as diligências que estavam em curso com vista ao apuramento da sua natureza e gravidade.

IV. Accionado o contrato de seguro na sequência do óbito do tomador causado pelo “adenocarcinoma do pâncreas”, é legítimo à Seguradora invocar a anulabilidade do contrato de seguro para recusar o pagamento do capital seguro, nos termos do art. 25º da LCS.

V. A tal não obsta o facto de a Seguradora, antes da celebração do contrato de seguro, ter tido conhecimento de que o segurado padecia da patologia da diabetes e de, com base nessa informação, ter excluído a da garantia do seguro “invalidez total e definitiva” do segurado, uma vez que aquela informação, por si, não faria supor a coexistência do “adenocarcinoma do pâncreas”.

VI. Em regra, nos casos de litisconsórcio voluntário ou de coligação, o recurso apenas aproveita ao recorrente, mas é extensivo ao comparte não recorrente se o interesse deste estiver numa relação de dependência ou de subsidiariedade relativamente ao interesse do recorrente (art. 634º, nº 2, al. b), do CPC).

VII. Nos termos e para efeitos do art. 634º, nº 2, al. b), do CPC, o interesse do Banco que celebrou um contrato de mútuo associado a um contrato de seguro do Ramo Vida no qual o Banco foi indicado como beneficiário, para garantia do pagamento do capital e juros remuneratórios é dependente do interesse da Seguradora com a qual o mutuário celebrou este contrato de seguro.

VIII. Declarando a sentença de 1ª instância, por um lado, a condenação da Seguradora a entregar ao Banco o capital máximo que em dívida na data do óbito do segurado e, por outro lado, a condenação do Banco a restituir ao mutuário as prestações que, a partir daquela data, foram descontadas, o posterior acórdão da Relação que, no âmbito de recurso interposto pela Seguradora, veio declarar a anulação do contrato de seguro e revogar aquela condenação aproveita também ao Banco, apesar de não ter interposto recurso da sentença.

Decisão Texto Integral:

I - AA propôs a presente acção contra Caixa de Crédito Agrícola Mútuo BB, CRL (doravante CCA Mútuo, CRL), e contra CC - Comp. de Seguros, S.A. (doravante CA CC, SA) pedindo:

O reconhecimento de que a 2ª R.:

- Celebrou um seguro do ramo vida com a apólice nº 505…com DD;

- Que a tomadora e, por isso, a beneficiária desse seguro, por força de um seguro de grupo celebrado entre a 2ª e a 1ª R., era e é a R. Caixa de Crédito Agrícola;

- Que por morte de DD, é accionado automaticamente o referido seguro, no montante que faltava pagar da dívida à 1ª R., na altura do seu falecimento, nos termos do ponto 4 da cláus. 3ª, cláus. 22ª, nº 1, al. a), e cláus. 23ª, nº 1, das condições gerais do seguro de vida grupo em apreço;

Pediu a condenação da 2ª R. a pagar à 1ª R., como beneficiária do seguro, o montante do capital máximo mutuado que estava em dívida após o falecimento de DD, a 30-12-11, cujo montante se desconhecia com exactidão, sabendo-se que o valor do mútuo era o de € 195 000,00;

Pediu a condenação da 1ª R. a reconhecer que, após a morte de DD, imediata e automaticamente foi accionado o contrato de seguro celebrado entre o falecido e a 2ª R. e por consequência era a 1ª R. a beneficiária do referido seguro, pelo que deveria reclamar, nessa qualidade, à 2ª R. o montante de todo o capital mutuado em dívida após o falecimento de DD;

Pediu a condenação da 1ª R. a devolver e a reembolsar a A. de todas as quantias que lhe tenham sido cobradas, relativas às prestações mensais de amortização do capital mutuado, bem como todas as importâncias a título de juros do capital mutuado, impostos e comissões, que lhe foram cobradas, desde o falecimento do seu marido, no valor global de, pelo menos, 29 867,77 até à presente data, acrescidas dos juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

Pediu a condenação da 1ª R. a não efectuar mais nenhum desconto na(s) conta(s) bancária(s) da A., relativo a prestações das amortizações do empréstimo do contrato de mútuo com hipoteca com o processo casa pronta nº 23326/2011, em apreço;

E pediu ainda a condenação da 1ª R. a devolver e a reembolsar a A. de todas as prestações vincendas mensais de amortização de capital mutuado, bem como todas as importâncias que por esta venham a ser pagas a título de juros do capital mutuado, impostos e comissões, após a data de interposição desta acção e até à data da prolação da sentença final, quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento, valores cuja determinação se requer relegada para liquidação posterior, nos termos dos arts. 358º, nº 2 e 609º, nº 2, do CPC.

Em abono das suas pretensões alegou, em síntese, que ela e o seu marido, DD, celebraram com a 1ª R., em 8-4-11, um contrato de mútuo com hipoteca, no montante de € 195 000,00, pelo prazo de 324 meses, a contar da data da escritura de mútuo e que para garantir o reembolso do empréstimo, em caso de morte, o marido da A. celebrou com a 2ª R. um contrato de seguro de vida.

O marido da A. faleceu em 30-12-11, com adenocarcinoma do pâncreas, sendo que a 2ª R. não pagou à A. o capital mutuado que estava em dívida.

Que para evitar a execução hipotecária, a A. continuou a pagar as prestações do empréstimo, juros e demais encargos.   

As RR. contestaram, alegando a 1ª R. que, antes de celebrar o contrato de seguro, o marido da A. padecia da doença que veio a ser causa directa e necessária do seu falecimento; que este facto era do conhecimento do casal; que não se mostrava preenchido qualquer dos pressupostos processuais que permitiam à autora accionar o contrato de seguro nos termos pedidos na petição inicial.

A 2ª R. alegou que a A. era parte ilegítima e que deveria ser julgado nulo o contrato de seguro de vida, uma vez que o marido da A., aquando do preenchimento do questionário clínico e da assinatura da declaração individual de adesão ao seguro, omitiu deliberada e intencionalmente as preocupações, sintomas e alterações do seu estado de saúde, bem como consultas e exames que já havia efectuado e que ainda previa efectuar e que vieram a demonstrar a existência de adenocarcinoma do pâncreas.

No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade arguida pela 2ª R. e, depois do julgamento, foi proferida sentença em que se decidiu:

- Reconhecer a celebração do contrato de seguro do Ramo Vida com a R. CA CC, SA, qual é beneficiária a R. CCA Mútuo, C.R.L. e que tal contrato é accionado automaticamente por morte de DD;

- Condenar a R. CA CC, SA, a pagar à R. CCA Mútuo, C.R.L., o montante do capital máximo mutuado que estava em dívida após o falecimento de DD, em 30-12-11;

- Reconhecer que, por morte de DD, foi imediata e automaticamente foi accionado o contrato de seguro, cabendo à R. CCA Mútuo, CRL, reclamar o montante do capital em dívida à R. CA CC, SA;

- Condenar a R. CCA Mútuo, C.R.L., a devolver e a reembolsar a A. de todas as quantias que lhe foram cobradas, relativas às prestações mensais de amortizações do capital mutuado, e aos juros, impostos e comissões desde o falecimento do marido, no valor global de, pelo menos, € 29,867,77, acrescidas de juros à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento;

- Condenar a R. CCA Mútuo, C.R.L., a não efectuar mais nenhum desconto na(s) conta(s) bancária(s) da A., relativo a amortizações do mútuo em causa;

- Condenar a R. CCA Mútuo, C.R.L., a devolver e a reembolsar a A. de todas as prestações vincendas mensais de amortização do capital mutuado, juros, impostos e comissões, após a data da interposição da presente acção e até à presente data, quantias essas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, até efectivo pagamento.

Desta sentença apenas a R. CA CC recorreu de apelação, pedindo a sua revogação e impugnando ainda, ao abrigo do nº 3 do art. 644º do CPC, a decisão proferida no despacho saneador que julgou a A. parte legítima.

A Relação julgou improcedente o recurso de apelação na parte respeitante à excepção de ilegitimidade e procedente o recurso quanto ao mérito da acção, declarando anulado o contrato e absolvendo a R. CA CC do pedido de condenação desta Seguradora na entrega à R. CCA Mútuo do capital que se encontrava em dívida na data do óbito de DD.

A A. interpôs recurso de revista em que suscitou as seguintes questões essenciais:

- Questionou a modificação da decisão da matéria de facto operada pela Relação, considerando que deveria manter-se a decisão da 1ª instância por se encontrar devidamente fundamentada, por não resultar da prova produzida decisão diversa e pelo facto de a alteração exigir prova irrefutável em sentido inverso, o que não existia, tendo sido violado o art. 662º, nº 1, do CPC;

- No que concerne à matéria de direito entende que:

- A Seguradora não pode prevalecer-se das alegadas omissões do segurado, uma vez que não lhes atribuiu relevância antes da celebração do contrato;

- A actuação do segurado integra-se na negligência, não existindo elementos para qualificar a existência de conduta dolosa;

- A invocação da anulabilidade do contrato de seguro integra uma situação de abuso de direito, uma vez que a R. Seguradora aceitou a celebração do contrato e só depois de comunicado o sinistro veio invocar a anulabilidade.

Do acórdão também a R. CCA Mútuo interpôs recurso de revista, alegando que, apesar de não ter interposto recurso de apelação da sentença da 1ª instância, lhe aproveita o recurso de apelação que foi interposto pela Co-R. CA CC, atenta a relação de dependência, nos termos do art. 634º, nº 2, al. d), do CPC, devendo considerar-se também absolvida do pedido de condenação na entrega à A. das prestações do mútuo vencidas e vincendas desde a data do óbito do tomador do seguro.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II - Factos provados:



III – Decidindo:

1. Quanto ao recurso de revista interposto pela A.:

1.1. A A. insurge-se contra o acórdão da Relação, na parte em que procedeu à modificação da decisão da matéria de facto apurada pela 1ª instância. Considera que não existiam motivos para tal, atenta a fundamentação apresentada pela 1ª instância, as provas que foram produzidas e a ausência de prova irrefutável determinante da referida modificação.

A pretensão da recorrente não pode ser acolhida, pois que, como decorre do acórdão recorrido, as modificações operadas pela Relação foram motivadas por uma diversa valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, como o são os depoimentos testemunhais, conjugados com documentos que foram juntos e que não detinham força probatória plena.

Atento o disposto no art. 662º, nº 4, do CPC, de uma tal decisão assim sustentada e balizada não cabe recurso de revista, o que bem se compreende, na medida em que a Relação, ao reapreciar a decisão da 1ª instância, actua no desempenho de uma função de valoração de meios de prova que é exclusiva das instâncias, a qual, nesta perspectiva, não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Em sede da delimitação da matéria de facto provada e não provada, o Supremo está largamente condicionado pelas regras que constam do art. 674º do CPC, de tal modo que, para além da verificação do cumprimento das regras de direito adjectivo, apenas pode intervir quando haja ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinados meios de prova.

No caso, a Relação agiu dentro dos poderes definidos no art. 662º do CPC e, além disso, manteve-se nos limites da livre apreciação de meios de prova, não se verificando motivo algum para questionar nem o modo como foi exercido aquele poder, nem o juízo probatório que foi formulado.

Trata-se de entendimento jurisprudencial uniforme e que emerge de numerosos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, alguns dos quais subscritos pelo ora relator e adjuntos.


1.2. Dir-se-á ainda que a ampliação dos poderes da Relação, no que concerne à reapreciação da decisão da matéria de facto que foi consagrada na Reforma de 1995/96, reforçada na Reforma de 2007 e confirmada com a Reforma de 2013, foi o corolário de um longo processo no sentido de implantar no terreno um efectivo segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.

Na medida em que passou a ser feito o registo das audiências de julgamento, designadamente com gravação dos depoimentos testemunhais, não parece legítimo que, agora, perante decisões que desembocam na alteração da matéria de facto provada e não provada, sejam subscritas alegações que procuram retirar à 2ª instância a capacidade – anteriormente reclamada - de modificar a decisão da matéria de facto quando esta envolva a reapreciação de meios de prova submetidos à livre apreciação e, por isso, fora do âmbito de aplicação nº 3 do art. 674º do CPC.

Ora, as concretas alegações incorrem nesse vício, atribuindo a este Supremo Tribunal o poder de sindicar o modo como a Relação reapreciou os meios de prova em que se baseou para alterar a decisão da matéria de facto, como se à Relação não coubesse modificar tal decisão em face da convicção criada a partir da reapreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação.

Parece evidente que a este Supremo Tribunal não cabe reapreciar os depoimentos testemunhais, nem interferir nas regras de experiência que foram tidas em consideração pelas instâncias, nem modificar a decisão da matéria de facto que esteja relacionada com meios de prova sujeitos à libre apreciação.

Por conseguinte, improcede a revista na parte referente à decisão da matéria de facto alterada pela Relação.


1.3. No que concerne à matéria de direito, a A. considera que a R. Seguradora CA CC não podia prevalecer-se da existência de declarações inexactas ou de omissões para declarar a anulação do contrato de seguro, uma vez que no dia 28-3-11 um seu agente (Director Clínico da R.) teve conhecimento de uma alteração de valores de glicémia indiciadores de alterações pancreáticas que depois vieram a confirmar-se.

Vejamos a sequência de factos essenciais, por tal se revelar importante para a apreciação do caso:

- Em 18-3-11, o falecido segurado subscreveu a “Declaração Individual de Adesão” ao contrato de seguro associado a um contrato de mútuo veio a ser celebrado em 8-4-11.

- O questionário apresentado pela Seguradora ao segurado foi por este preenchido em 5-3-11 visando o esclarecimento do seu estado de saúde, a fim de a Seguradora avaliar o risco a segurar.

- Nessa data e aquando da subscrição da adesão ao seguro, em 18-3-11, o segurado respondeu “sim” à questão sobre se gozava de boa saúde e “não” à pergunta sobre se tinha ou já tinha tido doenças, distúrbios do aparelho digestivo como úlcera (estômago e duodeno), icterícia, hepatite, cirrose, litíase biliar, hemorragias digestivas, diverticulose, colite, gastrite e doenças no pâncreas, etc.

- Na questão do “quadro das doenças” constante do questionário clínico, o falecido DD, respondeu: “aparelho digestivo: úlcera (estomago e duodeno), icterícia, hepatite, cirrose, litíase biliar (pedra na vesícula), hemorragias digestivas, (sangue pela boca ou pelas fezes), diverticulite, colite, gastrite e doenças no pâncreas, etc.” e “não” relativamente a “tumores: malignos ou benignos”.

- Em 18-3-11, com vista à celebração do contrato de seguro, foi ainda dada resposta a um “exame médico geral” preenchido por médico, no qual, relativamente às questões sobre se existiam queixas de dispepsia, úlcera, icterícia, doença de fígado, doença das vias biliares, obstipação, diarreia, emagrecimento, perda de apetite, hemorróidas ou outros, respondeu a médica negativamente; e quanto à caracterização dos dados positivos, foi respondido: “sem alteração aparente”.

- Mas afinal a médica que preencheu este exame já sabia da existência de uma massa abdominal que, no entanto, não mencionou pelo facto de o falecido a ter informado que consultara médico da especialidade de cirurgia, que considerou tratar-se de lipoma, doença esta benigna.

- No âmbito das diligências preparatórias do contrato de seguro, a médica de família do segurado preencheu em 28-3-11 um questionário da diabetes, sendo esta doença comunicada à R. Seguradora que aceitou celebrar o contrato de seguro mas com a exclusão das garantias “invalidez total e definitiva”.

- Em data não apurada, isto é, sem que se saiba se foi antes ou depois da celebração do contrato de seguro, a mesma médica que respondera ao questionário clínico já referido, tendo tido informação de que o segurado iria fazer uma biópsia a uma massa abdominal que lhe havia sido detectada, comunicou telefonicamente tal situação ao Director Clínico da 1ª R., já que isso poderia levar a que fossem questionadas as informações clínicas que exarara no exame médico, por, designadamente, existirem suspeitas de alterações pancreáticas,


O processo negocial estava viciado desde o início, uma vez que, afinal, como também se apurou:

- Apesar de o segurado apenas ter tido conhecimento do diagnóstico exacto da massa abdominal após 21-4-11, na sequência da elaboração de relatório de exame anátomo-patológico, já fora a uma consulta médica em 31-1-11, por ter constatado a presença da referida massa abdominal, sendo-lhe prescrita uma ecografia abdominal.

- Na sequência desta ecografia, o segurado submeteu-se a consulta da sua médica de família no dia 3-2-11, sendo logo encaminhado para a realização de TAC abdominal no Hospital de S. Teotónio, o qual foi realizado em 4-2-11, sendo diagnosticada uma formação linfomatosa cujo apuramento deveria ser esclarecido através de biópsia

- Enfim, para rematar o que de verdadeiramente relevante ocorreu no processo negocial, aquando do preenchimento do questionário clínico e da declaração de adesão, o segurado omitiu deliberada e intencionalmente as preocupações, sintomas e alterações que já conhecia, bem como as consultas e exames que já efectuara e que ainda previa efectuar, designadamente a TAC que realizara em 4-2-11.


1.4. A A., viúva do segurado, nem sequer coloca em crise a existência de falsas declarações, procurando evitar os efeitos que daí decorrem com a alegação de que não houve comportamento doloso e de que a R. tivera conhecimento das circunstâncias relevantes para a aceitação da adesão ao contrato de seguro, não tendo legitimidade para a invocação do vício de anulabilidade.

Tal argumentação não procede, sendo de confirmar os fundamentos expostos pela Relação em redor dos factos apurados e das normas jurídicas aplicáveis.

As normas que essencialmente determinam o resultado da presente lide são as dos arts. 24º e 25º da LCS (Dec. Lei nº 72/08, de 16-4): a primeira a prever que o segurado tem o dever de, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, o qual é aplicável ainda a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito; a outra noma a prescrever o direito potestativo de invocação da anulabilidade do contrato de seguro que e caso de incumprimento doloso daquele dever.

Quer o dever de informação, quer as consequências que poderiam ser extraídas encontravam-se também inscritos no clausulado geral do contrato de seguro que o segurado subscreveu.

Ora, ainda que o falecido, antes da outorga do contrato e designadamente aquando do preenchimento do formulário e da apresentação do questionário clínico, não tivesse a certeza de que já padecia de “adenocarcinoma do pâncreas”, omitiu deliberada e intencionalmente as preocupações, os sintomas e as alterações que então conhecia, fruto da sua observação e das consultas e exames que já efectuara, tal como sonegou à R. Seguradora o facto de entretanto ter realizado exame de TAC (tomografia axial computorizda) para apurar a natureza da massa que lhe surgira na zona do abdómen.

Situações semelhantes têm sido objecto de frequentes decisões deste Supremo, quer ao abrigo do novo regime, quer no âmbito do revogado art. 429º do Cód. Comercial, sendo disso exemplo os seguintes que já foram expostos no Ac. do STJ, de 11-2-16 (www.dgsi.pt), relatado pelo ora relator:

- Ac. do STJ, de 11-7-06, CJSTJ, tomo I, pág. 151: omissão do segurado de que sofria de angina de peito;

- Ac. do STJ, de 27-5-08, CJSTJ, tomo II, pág. 81: omissão do segurado de que sofria de hipertensão arterial;

- Ac. do STJ, de 2-12-08, CJSTJ, tomo III, pág. 158: omissão do segurado de que sofria da diabetes;

- Ac. do STJ, de 8-6-10 (www.dgsi.pt): omissão da existência de malformação cardíaca congénita, ainda que sem consciência da gravidade e o carácter incapacitante que dessa malformação poderia advir;

- Ac. do STJ, de 9-9-10 (www.dgsi.pt): omissão do segurado de que padecia de hemofilia;

- Ac. do STJ, 27-3-14 (ww.dgsi.pt): omissão do segurado de que tinha graves patologias cárdio-circulatórias e que fora já sujeito a tratamentos médico-cirúrgicos.

Com especial afinidade com o caso concreto, cabe destacar o Ac. do STJ, de 2-12-13 (www.dgsi.pt), em que se considerou ser determinante da anulação do contrato o facto de o tomador ter silenciado no formulário de adesão uma doença do foro oncológico de que sofria.

Solução diversa da que foi ditada no Ac. do STJ, de 6-12-12 (www.dgsi.pt), relatado pelo ora relator, em que não foi encontrado qualquer nexo de causalidade entre a falta de informação que foi prestada (omissão de que tinha sofrido um acidente de trabalho) e a causa do accionamento do contrato de seguro (doença do foro psíquico). Ou ainda no Ac. do STJ, de 11-2-16 (www.dgsi.pt), também relatado pelo ora relator, sobre um caso em que não foi achada nexo de causalidade entre o que padecia o segurado e a espondilite anquilosante que surgiu depois e com base na qual foi declarado o sinistro.

Ou do Ac. do STJ, de 17-11-05, CJSTJ, tomo III, pág. 120, em que foi imputada à Seguradora a falta de diligência na averiguação dos factos relevantes para efeitos de aceitação do contrato de seguro, numa situação em que o segurado já sofria de uma patologia que lhe afectava a visão.

Ora, atento o seu relevo, as referidas informações não poderiam de modo algum ser ocultadas da R. Seguradora, uma vez que eram relevantíssimas para efeitos de ponderação do risco a assumir, maxime do risco da ocorrência de morte do tomador do seguro susceptível de despoletar o accionamento da garantia que se pretendia constituir em benefício da entidade mutuante.

Além de outros reflexos desencadeados no processo negocial, prevê-se no art. 177º da LCS que “sem prejuízo dos deveres de informação a cumprir pelo segurado, a celebração do contrato pode depender de declaração sobre o estado de saúde e de exames médicos a realizar à pessoa segura que tenham em vista a avaliação do risco”, declaração esta cuja veracidade se revela essencial para delimitar a obrigação assumida pela Seguradora, deve ser prestada de acordo com as regras da boa fé negocial.

Como tal não ocorreu, sendo, aliás, dolosa a conduta do segurado, é legítima a recusa de pagamento do capital seguro com fundamento na arguida anulabilidade do contrato.


1.5. O actual regime do contrato de seguro assenta na pré-existência de um questionário contendo diversos items aos quais o segurado deve responder com verdade, clareza e suficiência. Diversamente do que ocorre noutros ordenamentos jurídicos, o legislador não foi ao ponto de prescrever um sistema sustentado num questionário fechado limitador da posterior invocação de meios de defesa por parte da seguradora relativamente a omissões ou falsidades reveladas na resposta a cada uma das questões. Optou o legislador nacional por um modelo de questionário aberto que, apesar de preenchido pelo segurado, não retira relevo a eventuais omissões, falsidades ou insuficiências relacionadas com outros aspectos com os quais o tomador não foi directamente confrontado, mas que eram do seu conhecimento (sobre o modelo existente cfr. Romano Martinez, Lei do Contrato de Seguro, págs. 109 e segs., assim como a crítica de Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro - Estudos, pág. 13 e 14).

O contrato de seguro revela com frequência uma assimetria informativa que tanto pode afectar o segurado como a própria Seguradora.

As Seguradoras, exercendo uma actividade a que são inerentes factores aleatórios, deterão naturalmente informação específica sobre os riscos inerentes aos diversos contratos, sendo estes profissionalmente avaliados em função da probabilidade estatística da sua ocorrência e da gravidade em face dos dados que lhe sejam comunicados ou a que tenha acesso (dados actuariais).

A contraparte não detém, em regra, o mesmo nível de informação, mas acaba por ter conhecimento de circunstâncias que não são imediatamente percepcionáveis pelas Seguradoras.

É da confluência destes dois blocos informativos que decorrem as obrigações pré-contratuais previstas na legislação sobre seguros. Sendo a Seguradora obrigada a esclarecer o segurado, nos termos dos arts. 22º e 23º da LCS, cabe a este também prestar informações verídicas sobre os factores de risco susceptíveis de influir na outorga ou no conteúdo do contrato, nos termos que decorrem dos arts. 24º e 25º, sem embargo do direito que é reconhecido à Seguradora de condicionar a aceitação ou o conteúdo do seguro à realização de exames, designadamente de exames de natureza médica nos casos de seguros do Ramo Vida.


1.6. No caso concreto, não foi formulada pela Seguradora qualquer questão específica sobre a existência de sintomas de “adenocarcinoma do pâncreas” que mais tarde veio a ser diagnosticado. Todavia, foram colocadas outras questões a que o segurado deveria ter respondido com verdade, tendo por base a informação de que já dispunha.

Tendo sido inquirido acerca da existência de alguma preocupação referente à sua saúde ou se notava algum sintoma ou alteração merecedora de uma resposta verídica, não se ajustava obviamente uma pura e simples resposta negativa. Tal como não se justificava declarar que, em lugar de meros exames médicos de rotina a que estaria a ser sujeito, estava afinal num processo de averiguação da natureza e gravidade de uma massa abdominal, não sendo de aceitar também uma seca a resposta negativa a uma pergunta singela acerca de sintomatologia relacionada com “tumores: malignos ou benignos. Também não encontra justificação plausível a resposta negativa à pergunta acerca de alguma das diversas patologias relacionadas com o “aparelho digestivo”.

Do comportamento pré-negocial do segurado ressalta iniludivelmente o incumprimento grave do dever de prestar informações verídicas e completas sobre o seu estado de saúde, não sendo admissíveis as respostas inverídicas ou evasivas que deu a questões cruciais que constavam do formulário de adesão e do inquérito médico cuja análise conjunta foi determinante para a aceitação da pretendida adesão ao contrato de seguro (vide a este respeito o Ac. do STJ, de 30-10-07, em www.dgsi.pt).

Faltou à verdade quanto a questões relacionadas com o seu estado de saúde em geral e sobre o acompanhamento médico que já existia, segundo uma linha de actuação que pretendia evitar a recusa da Seguradora quanto à outorga do contrato de seguro.

Situação que nem sequer foi corrigida depois de se ter apurado que afinal sofria da “diabetes”. Esta doença foi comunicada pela referida médica que assistia o segurado mas, ainda assim, com ocultação da existência da massa tumoral na zona abdominal (sob o pretexto de que não teria relevo essa informação!) que, a ser conhecida, poria naturalmente a Seguradora de sobreaviso quanto aos riscos cuja transferência se procurava através do contrato de seguro.

Afinal, nas respostas que foram dadas pelo segurado no formulário de adesão não foi deixado sinal algum de qualquer patologia relevante para efeito de avaliação do risco, a qual, por outro lado, também não foi comunicada pela médica de família aquando do preenchimento do questionário médico, apesar de esta ter tido acesso a alguns elementos que indiciavam a existência de uma anomalia no que respeita aos valores relevantes para efeitos da detecção da diabetes.

Neste contexto, de nada vale à A. acentuar alguma deficiência da parte da Seguradora na análise das respostas ao questionário clínico que lhe foi enviado, nem brandir com a suficiência de elementos relacionados com a “diabetes”. Para além de aqueles elementos não sugerirem minimamente a existência da patologia fatal que veio a ser posteriormente confirmada, não era legítimo exigir que a indução da sua existência fosse feita a partir de elementos que eram típicos de uma patologia menos grave como a “diabetes”.

Constatando-se a existência de uma conduta dolosa da parte do segurado no sentido de sonegar à R. Seguradora informação relevantíssima acerca de um grande risco para a saúde que existia para além da “diabetes” que foi devidamente salvaguardada, nem sequer seriam relevantes eventuais falhas da Seguradora no processo de averiguação pré-negocial, tendo em conta o que dispõe o art. 24º, nº 3, da LCS (omissão de resposta a pergunta do questionário, resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos, incoerência ou contradição evidente nas respostas ao questionário, conhecimento por parte do representante de facto que saiba ser inexacto ou que tenha sido omitido ou mesmo circunstâncias conhecidas do segurador, em especial quando são públicas e notórias).

Verifica-se, pois, que era legítima a recusa de entrega do capital seguro com fundamento na anulação do contrato que foi declarada pela R. CA CC.


1.7. Em 28-3-11, a médica de família do tomador a médica de família do falecido DD preencheu o questionário da diabetes cuja cópia está junta a fls. 150 e 151, o qual lhe foi solicitado pela R. Seguradora na sequência das análises que o Segurado realizara.

Apesar de então ter tido conhecimento de que o segurado sofria dessa doença, a R. não recusou a aceitação do contrato de seguro, o qual, contudo, foi formalizado com exclusão das garantias “invalidez total e definitiva”, mediante comunicação de 4-4-2011.

Já no que se reporta conhecimento de factos relacionados com o “adenocarcinoma do pâncreas” que mais tarde veio a ser diagnosticado, os autos revelam que, enquanto a 1ª instância concluiu que o conhecimento de alterações pancreáticas ocorreu antes da outorga do contrato, já a Relação, depois de reapreciar os meios de prova, não identificou uma data precisa, concluindo que a informação que foi transmitida pela médica assistente do segurado ao Director Clínico da Seguradora (e não pelo segurado, malgrado este ter conhecimento, ao menos, da existência de uma massa anómala na zona abdominal) ocorreu em data não apurada.

Foi, aliás, esta uma alteração significativa introduzida pela Relação na decisão da matéria de facto que, associada à assunção de um comportamento doloso do segurado, determinou a inversão do resultado que fora declarado pela 1ª instância.

Essa informação não está datada, desconhecendo-se se ocorreu antes ou depois da outorga do contrato de seguro (atenta a alteração da decisão da matéria de facto operada pela Relação), sendo a mesma indiferente para efeitos de delimitação do direito da Seguradora no que concerne à invocação da anulabilidade do contrato.

De todo o modo, ainda que porventura tivesse sido anterior à outorga do contrato de seguro, a informação relacionada com a “diabetes”, sendo importante para a aceitação ou condicionamento do contrato (cfr. neste mesmo sentido o Ac. do STJ, de 2-12-08, CJSTJ, tomo III, pág. 158), não era suficientemente reveladora da existência de “adenocarcinoma do pâncreas”, não podendo impedir a posterior invocação do vício que existiu na formação da vontade e que foi motivado pela grave omissão do segurado relativamente aos sintomas da doença que eram por si conhecidos e às diligências que estavam a ser feitas, desde Fevereiro, no sentido do diagnóstico da referida massa abdominal.

Para efeitos de apreciação das circunstâncias que eram relevantes para a aceitação da proposta de adesão ao contrato de seguro, não existe qualquer equivalência entre o conhecimento de alterações no nível de glicémia que seriam indiciadores de alterações pancreáticas (compatível com a patologia da “diabetes”) e o conhecimento de que o segurado apresentava, então, uma volumosa massa abdominal, cuja natureza e gravidade mereciam melhor averiguação, antes da aceitação do contrato ou da fixação de outra exclusão específica por parte da Seguradora.

Além disso, tal conhecimento apenas seria relevante se se tratasse de omissões ou de insuficiências do segurado devidas a negligência, situação bem diversa da que ocorreu e que se traduziu na ocultação dolosa de informação pertinente para a Seguradora na fase pré-negocial (art. 25º da LCS).


1.8. Nada na matéria de facto apurada permite concluir pela existência de uma actuação em abuso de direito, seja qual for a modalidade em que este se possa manifestar.

Agindo o segurado com manifesta má fé, não é visível semelhante atitude na actuação da contraparte, pois que os serviços clínicos da R. Seguradora não souberam a tempo da existência dos sintomas de um tumor pancreático que se veio a comprovar e que foi a causa do óbito.

A recusa da assunção da responsabilidade foi comunicada à A. quando esta confrontou a Seguradora com os elementos de facto que lhe foram dolosamente sonegados e cujo conhecimento antecipado teria sido relevante para a aceitação condicional ou para a recusa do contrato de seguro.

Trata-se de uma situação paralela à que foi apreciada no Ac. deste STJ, de 2-12-1 (www.dgsi.pt), onde se concluiu que não configurava abuso do direito da seguradora o facto de, num dado momento inicial e sem qualquer verificação sobre informações do segurado, ter aceite o contrato de seguro e só depois de lhe ter sido comunicado um sinistro ter investigado as referidas informações, detectando então omissões e falsas omissões, e recusando o pagamento do capital seguro contratado, hipótese prevista no art. 188º, nº 1, da LCS. Muito diferente, aliás, da que foi apreciada no Ac. do STJ, de 10-3-16 (www.dgsi.pt), em que foi afirmada a existência desse impedimento à invocação da anulabilidade do contrato.


1.9. Nenhum efeito se projecta também a partir das considerações feitas pela recorrente quanto à admissibilidade da integração na matéria de facto apurada de um facto instrumental que a 1ª instância aditou.

Tal facto respeitava à comunicação da “diabetes” que a médica assistente do tomador teria feito à Seguradora no dia 28-3-2011, antes da outorga do contrato.

Ora, pronunciando-se sobre tal facto em sede de impugnação a Relação considerou que tal comunicação ocorreu em dia não apurado, desconhecendo-se se antes se depois do contrato ter sido celebrado.

Perdendo qualquer relevo a questão da admissibilidade da inserção oficiosa de factos de natureza instrumental resultantes da discussão da causa, é indiferente a qualificação daquele facto (comunicação no dia 28-3-2011) como facto instrumental, como defende a A., ou como facto essencial, como afirmou a Relação.


2. Quanto ao recurso de revista interposto pela R. CCA Mútuo, CRL:

2.1. Questiona a recorrente CCA Mútuo, CRL, o facto de ter sido mantida a sua condenação nos pedidos que contra si foram formulados, apesar de ter sido dado provimento ao recurso que foi interposto pela R. CA CC. Considera que, apesar de não ter interposto recurso de apelação da sentença da 1ª instância, lhe aproveita o recurso interposto pela co-R CA CC, atenta a relação de dependência dos interesses que estavam em causa na presente acção.


2.2. Elementos a ponderar:

A A. demandou ambas as RR. em regime de litisconsócio voluntário passivo.

a) Quanto à R. Seguradora CA CC, SA, formulou os seguintes pedidos:

- Reconhecimento de que celebrou um seguro do Ramo Vida com DD;

- Reconhecimento de que a tomadora e beneficiária desse seguro é a R. CCA Mútuo, CRL;

- Reconhecimento de que, por morte de DD, é accionado automaticamente o referido seguro, no montante que faltava pagar da dívida à 1ª R., na altura do seu falecimento;

- Condenação da R. CA CC, SA, a pagar à R. CA Mútuo, CRL, o montante do capital máximo mutuado que estava em dívida após o falecimento de DD, a 30-12-11, cujo montante se desconhecia com exactidão, sabendo-se que o valor do mútuo era o de € 195.000,00.

Ou seja, na prática, a pretensão fundamental correspondente ao interesse patrimonial que a A. pretendia fazer valer contra a R. Seguradora foi a de condenação desta no pagamento à R. CCA Mútuo do capital que se encontrava em dívida aquando do falecimento de seu marido DD.


b) Relativamente à R. CCA Mútuo, CRL, formulou os seguintes pedidos:

- Reconhecimento de que, após a morte de DD, imediata e automaticamente foi accionado o contrato de seguro celebrado entre o falecido e a R. CA CC, SA, e por consequência era a R. CCA Mútuo a beneficiária do referido seguro, pelo que deveria reclamar, nessa qualidade, à R. CA CC, SA, o montante de todo o capital mutuado em dívida após o falecimento de DD;

- Condenação a devolver e a reembolsar a A. de todas as quantias que lhe tenham sido cobradas desde o falecimento do seu marido, no valor global de, pelo menos, 29.867,77;

- Condenação a não efectuar mais nenhum desconto na(s) conta(s) bancária(s) da A.;

- Condenação a devolver e a reembolsar a A. de todas as prestações vincendas mensais de amortização de capital mutuado.

Isto é, o conteúdo material da pretensão é integrado pela condenação da R. CCA Mútuo, CRL, na restituição à A. das prestações cobradas à A. após o falecimento do seu marido DD (atento o accionamento do contrato de seguro e a imputação da responsabilidade pelo pagamento à Seguradora CA, CC, SA) e condenação a abster-se de proceder ao desconto de prestações vincendas.


Na acção foi proferida sentença em que se decidiu:

a) Condenar a 2ª R. CA CC – Comp. de Seguros, SA, a:

I - A reconhecer a celebração do contrato de seguro do Ramo Vida alegado, do qual é beneficiária a R. CCA Mútuo, C.R.L.;

II - A reconhecer que tal contrato é accionado automaticamente por morte de DD;

III - A pagar à R. CCA Mútuo, C.R.L., o montante do capital máximo mutuado que estava em dívida após o falecimento de DD em 30-12-11.

Emerge deste segmento decisório a condenação da R. CA CC, SA a pagar à R. CCA Mútuo, CRL o montante do capital máximo mutuado que se encontrava em dívida na data do falecimento do seu marido.

b) Condenar a R. CCA Mútuo, C.R.L.:

I - A reconhecer que, por morte de DD, foi accionado o contrato de seguro em questão, cabendo à referida R. reclamar o montante do capital em dívida à R. CA CC, SA;

II - Devolver e reembolsar a A. de todas as quantias que lhe foram cobradas desde o falecimento do marido, no valor global de, pelo menos, € 29,867,77, acrescidas de juros à taxa legal, desde a citação;

III - Não efectuar mais nenhum desconto na(s) conta(s) bancária(s) da A., relativo a amortizações do mútuo;

IV - Devolver e a reembolsar a A. de todas as prestações vincendas mensais de amortização do capital mutuado, juros, impostos e comissões, após a data da interposição da presente acção e até à presente data, quantias essas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, até efectivo pagamento.

Em termos práticos, decorre deste segmento decisório a condenação da R. CCA Mútuo, CRL, a pagar à A. as quantias correspondentes às prestações mensais vencidas e vincendas do mútuo posteriormente à morte do seu marido.

Traduzindo em termos objectivos a sentença, depois de saneada dos segmentos sem efectivo relevo e tendo em conta a improcedência da excepção de anulabilidade que foi invocada pelas RR., dela resultou:

a) A condenação da R. Seguradora CA CC, SA, a pagar à A. o montante do capital máximo mutuado que estava em dívida após o falecimento de João Carlos em 30-12-11;

b) A condenação da entidade bancária R. CCA Mútuo, CRL, a devolver à A. as prestações do empréstimo vencidas e vincendas desde a data do óbito do seu marido que lhe foram descontadas.

Dessa sentença apenas a R. Seguradora CA CC, SA, interpôs recurso de apelação, questionando a sua condenação.

A Relação, delimitando o objecto da apelação, para além de afirmar que a R. CA Vida, SA, apenas pôs em causa efectivamente o ponto III do segmento conclusivo da sentença, declarou que, pelo facto de a R. CCA Mútuo, CRL, não ter interposto recurso da sentença, estavam excluídos do objecto da apelação os pontos II, III e IV do respectivo segmento decisório, uma vez que a legitimidade para a sua impugnação era exclusiva da R. CCA Mútuo, CRL.

Assim, em síntese, decidiu que o objecto do recurso de apelação estava circunscrito à decisão que condenou a R. CA CC, SA, a pagar à R. CCA Mútuo, CRL, o montante do capital máximo mutuado que estava em dívida após o falecimento de DD, em 30-12-2011.


É contra esta decisão que na presente revista se rebela a R. CCA Mútuo, CRL, considerando que o seu interesse na presente acção está dependente do interesse da R. CA CC, SA, de modo que o resultado que foi declarado pela Relação lhe aproveita também, nos termos do art. 634º, nº 2, al. b), do CPC.


2.3. Vejamos:

Nos termos do art. 634º do CPC, fora dos casos de litisconsórcio necessário (em que o recurso interposto por um dos litisconsortes aproveita aos demais) o recurso que seja interposto por algum dos compartes, em regra, não aproveita aos demais.

É uma consagração do princípio da relatividade, segundo o qual, por oposição ao princípio da realidade, em regra, o acto de interposição de recurso apenas aproveita ao recorrente (cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 140, e Noronha Silveira, Pluralidade das Partes na Fase dos Recursos em Processo Civil).

Esta regra que emerge da natureza privatística do processo civil e do princípio da auto-reponsabilidade das partes sofre uma limitação no segmento relativo ao litisconsórcio necessário (negocial, legal ou natural), em que há uma única acção com pluralidade de sujeitos. Em tal situação, o facto de se discutirem interesses incindíveis obsta a que se consolidem resultados diversos para cada um dos litisconsortes. Daí afirmar-se no nº 1 do art. 634º que, independentemente da iniciativa de qualquer dos demais litisconsortes ou da sua posterior intervenção, o resultado do recurso interposto por algum ou alguns repercutir-se-á em todos eles.

Já na coligação e no litisconsórcio voluntário são admitidas diversas cambiantes.

Em princípio, o recurso apenas produz efeitos na esfera do comparte ou compartes recorrentes, podendo a composição final do litígio traduzir-se em resultados diversos para outros compartes não recorrentes. Em tese, tal regime admite que uma determinada sentença ou qualquer outra decisão possa produzir efeitos de caso julgado contra algum dos compartes e ser impugnada em via de recurso por outro comparte, com eventual modificação do resultado que apenas a estes aproveitará.

Por via desta opção do legislador, é possível e legítimo que uma mesma sentença produza efeitos relativamente a um comparte e não os produza relativamente a outros que não tenham atempadamente procedido à sua impugnação (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no NCPC, 3ª ed., págs. 89 a 92).

Esta regra contempla, n o entanto, as excepções previstas no nº 2:

a) Se os não recorrentes derem a sua adesão ao recurso, na parte em que o interesse seja comum;

b) Se os não recorrentes tiverem um interesse que dependa essencialmente do interesse do recorrente;

c) Se o recurso for interposto de sentença que tenha condenado os compartes em regime de solidariedade, a não ser que, pelo seu fundamento, o recurso respeite unicamente à pessoa do recorrente.


2.4. Interessa-nos o que dispõe a al. b), nos termos da qual, em função do nexo de dependência ou de prejudicialidade que apresente os contornos definidos na previsão legal, a interposição de recurso pela parte que pretende a tutela de interesse preponderante repercute-se também na esfera jurídica do interessado em relação de dependência.

O caso paradigmático é o do recurso é interposto pelo devedor principal numa acção em que também foi demandado o respectivo fiador, situação em que a decisão proferida no âmbito de recurso interposto pelo primeiro acabará por se repercutir na esfera jurídica do fiador.

Mas outras situações existem que se enquadram dentro daquela previsão legal, tal como acontece quando é demandado o devedor e o respectivo segurador ou, como na situação presente, quando a amplitude da responsabilidade da entidade bancária beneficiária do seguro de vida relativamente à retenção ou devolução das prestações do mútuo que entretanto recebeu está, afinal, dependente e condicionada pela legitimidade do accionamento do contrato de seguro de vida associado àquele mútuo.

Como critério geral que preside à previsão legal está a constatação da existência de uma “hierarquia de interesses” a que alude Alberto dos Reis, para quem se visou salvaguardar a existência de um “interesse principal, o do recorrente, e um interesse subordinado, o do não recorrente”, verificando-se que entre o “interesse do recorrente e o do outro comparte existe o chamado nexo de prejudicialidade; o interesse do recorrente é prejudicial em relação ao do não recorrente, no sentido de que este está dependente daquele” (CPC anot., vol. V, pág. 299).

No caso presente estamos perante uma situação similar àquela que é exemplificada por Teixeira de Sousa, em Estudos sobre o Novo processo Civil, págs. 502 e 503: se o autor pedir contra um dos RR. a anulação ou declaração de nulidade de um contrato com ele celebrado e contra outro dos RR. a restituição da coisa transmitida a decisão favorável ao primeiro demandado beneficia o segundo.

Também se decidiu no Ac. deste STJ, de 27-2-14 (www.dgsi.pt), que a interposição de recurso pela parte que pretende a tutela do interesse preponderante repercute-se, independentemente da vontade, na esfera jurídica do outro cujo interesse dele depende”.

Situação que igualmente foi observada no Ac. do STJ, de 3-4-14, em que a se concluiu que o acórdão que culminou com a absolvição dos responsáveis civis demandados numa acção de acidente de viação se propaga ao Fundo de Garantia Automóvel que era demandado a título subsidiário.


1.5. No caso, o interesse da R. CCA Mútuo (que, como se disse, não interpôs recurso de apelação) está essencialmente dependente do que se decidir definitivamente em relação à questão da validade ou anulabilidade do contrato de seguro e assunção da responsabilidade da Seguradora.

Com efeito, o presente litígio gira em torno da questão, que foi resolvida contraditoriamente pelas instâncias, de apurar se o contrato de seguro podia ou não podia ser accionado pela beneficiária depois do óbito do segurado.

A circunstância de terem sido demandadas ambas as RR. ficou a dever-se unicamente ao facto de o contrato de seguro garantir o pagamento das prestações relativas a um mútuo que foi celebrado pela A. e seu marido com a CCA Mútuo, CRL, recusando-se a R. CA CC, SA, a efectuar o pagamento do capital em dívida, atenta a actuação pré-contratual do segurado relacionada com a informação sobre o seu estado de saúde. Como entretanto as prestações continuaram a ser pagas sem que a A. quisesse suportar o ónus do incumprimento do mútuo, veio reclamar através da presente acção a devolução do montante que lhe foi descontado e, em simultâneo, veio pedir a condenação da R. CA CC a pagar à R. CCA Mútuo todo capital mutuado que estava em dívida aquando da ocorrência do óbito do seu marido.

Ora, na perspectiva da entidade bancária que concedeu o empréstimo ao segurado é relativamente indiferente qual dos sujeitos (a A., mutuária, ou a R. Seguradora) procederá ao pagamento do capital mutuado. Mas tendo recebido entretanto da A. as prestações do mútuo que se venceram depois do óbito do tomador, a devolução à A. dessas prestações e das prestações vincendas acaba por ficar dependente da resposta que for dada à questão matricial em torno da anulabilidade do contrato de seguro, apenas se compreendendo a devolução das quantias recebidas depois do óbito do segurado se a Seguradora decair na questão da anulabilidade do contrato legitimadora da recusa na entrega do capital garantido.

Por certo que no âmbito de um processo em que ambas as entidades (Banco e Seguradora) foram demandadas e em que ambas foram afectadas por segmentos decisórios distintos, mais avisada teria sido a actuação da entidade bancária CCA Mútuo de interpor também recurso da sentença, expressando de forma directa e autónoma a sua oposição ao segmento condenatório.

Todavia, o facto de essa R. não ter agido dessa forma mais solene e prudente não determina que fique indiferente ao resultado que vier a ser obtido no recurso que foi interposto unicamente pela R. CA CC.

Com efeito, a pretensão que contra esta foi formulada pela A. (e que a Relação julgou improcedente) abarcava toda a dívida que existia na data do óbito do marido da A. respeitante ao mútuo que fora outorgado com a R. CCA Mútuo.

Ora, se a Relação, apreciando a questão da anulabilidade/validade do contrato de seguro, concluiu pela sua anulação e decidiu que a A. não tinha condições para o accionamento do seguro, não sendo, por isso, a R. Seguradora responsável pelo pagamento do capital em dívida, não pode conceber-se que tal decisão possa conviver com a manutenção de outro segmento da mesma sentença da 1ª instância que condenou a R. CCA Mútuo a devolver as prestações vencidas e vincendas entretanto descontadas e que representam o pagamento parcial da quantia mutuada.

Como é evidente, esta condenação da R. CCA Mútuo tinha como pressuposto a validade do contrato de seguro (ou, de modo inverso, a improcedência da excepção de anulabilidade que a R. Seguradora suscitou na contestação), constituindo essa condenação o mecanismo apropriado a repor a situação que existiria se acaso a Seguradora, correspondendo à solicitação da A., tivesse adiantado à entidade bancária o capital seguro.

Tendo a Relação invertido tal decisão e tendo declarado a anulabilidade do contrato de seguro, perdeu consistência aquela condenação, sendo a retenção das prestações recebidas pela entidade bancária o reflexo da improcedência da pretensão condenatória deduzida contra a R. Seguradora.


1.5. Não é o facto de o Banco mutuante e a Seguradora pertencerem porventura ao mesmo grupo empresarial que explica esta relação de dependência, sendo relevante, sim, que a conexão encontre fundamentos de ordem objectiva.

Essa circunstância de ordem subjectiva não seria relevante se acaso não houvesse também uma manifesta interconexão entre o interesse do Banco em receber a totalidade do capital mutuado e juros remuneratórios e a validade/anulabilidade do contrato de seguro mediante o qual os mutuários garantiram o pagamento daquele capital e dos juros.

Na presente situação, o interesse patrimonial da R. CCA Mútuo no que respeita às prestações do mútuo (isto é, apurar se são exigíveis da R. Seguradora ou se são exigíveis da A., enquanto mutuária) estava dependente da resolução da questão em torno da validade/anulabilidade do contrato de seguro com fundamento na apresentação de informações insuficientes ou inverídicas sobre o estado de saúde do tomador do seguro.

Pode pois concluir-se que o resultado que foi declarado quanto à R. Seguradora prejudica aquele que foi decretado especificamente quanto à R. CCA Mútuo.

O efeito jurídico-patrimonial que decorre do acórdão da Relação (considerando anulado o contrato de seguro e negando à A. o direito de exigir da R. Seguradora o capital que estava em dívida na data em que faleceu o seu marido) projecta-se igualmente na sentença de 1ª instância, na parte em que a R. CCA Mútuo foi condenada a restituir à A. as prestações vencidas e vincendas desde aquela data e que entretanto tenham sido descontadas (segmentos II, III e IV).


IV – Face ao exposto acorda-se em:

a) Julgar improcedente a revista interposta pela A. e confirmar o acórdão da Relação que absolveu a R. CA CC, SA, do pedido de condenação no pagamento do capital máximo mutuado que se encontrava em dívida na data do óbito de DD, em 30-12-2011:

b) Julgar procedente o recurso de revista interposto pela R. CCA Mútuo, CRL, e considerar que a absolvição declarada no acórdão recorrido em relação à R. CA CC, SA, abarca igualmente os segmentos II, III e IV da sentença da 1ª instância que especificamente se reportam à R. CCA Mútuo, CRL, considerando-se esta absolvida desses pedidos.

Custas de ambas as revistas a cargo da A.

Notifique.

Lisboa, 7-12-16


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo