Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
233/08.1PBGDM.P3.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO PENAL
MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
PROVA INDICIÁRIA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DA ORALIDADE
IN DUBIO PRO REO
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário : I - Relativamente à impugnação da matéria de facto impõe-se a reafirmação do princípio de que o STJ é um tribunal de revista por excelência – art. 434.° do CPP – saindo fora do âmbito dos seus poderes de cognição a apreciação da matéria de facto. Na verdade, se é certo que os vícios da matéria de facto – art. 410.°, n.º 2, do mesmo Código – são de conhecimento oficioso, e podem sempre constituir objecto de recurso, tal só pode acontecer relativamente ao acórdão recorrido, ou seja, o Acórdão do Tribunal da Relação.

II - A decisão deste Tribunal sobre a alegação da existência de vícios da matéria de facto ocorridos na decisão da 1.ª instância tem de tomar-se por definitivamente assente como é jurisprudência uniforme. Saliente-se, ainda, que o reexame pelo STJ exige a prévia definição (pela Relação) dos factos provados.

III - O CPP de 87 trata os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CP, como vícios da decisão, e não de julgamento. Nesta disposição estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no art. 374.º, n.º 2, do CPP, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa (ainda que concisa) dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

IV - Consubstancia-se, assim, o mesmo recurso num recurso de revista ampliada configurando a possibilidade que é dada ao tribunal de recurso de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo; de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos; de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal.

V - O dever de fundamentação da decisão começa, e acaba, nos precisos termos que são exigidos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida. Não conforma tal conceito uma obrigação de explanação de todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenrolou a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos de equacionar todas as perplexidades que assaltam a cada um dos intervenientes processuais, no caso o arguido, perante os factos provados.

VI - O recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.°, n.º 3, al. b), do CPP, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.

VII - Porém, tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela mesma decisão em relação aos factos concretamente impugnados. Não se pode, nem deve, substituir a compreensão e análise do conjunto da prova produzida sobre um determinado ponto de facto pela visão parcial e segmentada eventualmente oferecida por um dos sujeitos processuais. Essa compreensão global está omissa na crítica formulada.

VIII - A nossa lei processual penal não faz qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. O funcionamento e creditação desta estão dependentes da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável. Fundamentando-se a condenação na prova indiciária a interpretação da prova e a fixação dos factos concretos terá, também, como referência as regras gerais empíricas ou as máximas da experiência que o juiz tem de valorar nos diversos momentos de julgamento.

IX - A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade às formalidades legais e às garantias constitucionais.

X - As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtêm mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária.

XI - O princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno mas sim provável. Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno. Só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária – quando é este tipo de prova que está em causa – pode alicerçar a convicção do julgador.

XII - Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova.

XIII - A forma como se explana aquela prova fundando a convicção do julgador tem de estar bem patente, o que se torna ainda mais evidente no caso da prova indiciária, pois que aqui, e para além do funcionamento de factores ligados a um segmento de subjectividade que está inerente aos princípios da imediação e oralidade, está, também, presente um factor objectivo, de rigor lógico que se consubstancia na existência daquela relação de normalidade, de causa para efeito, entre o indício e a presunção que dele se extrai. Como tal, a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base ou indícios que se considere provados e que vão servir de fundamento à dedução ou inferência e, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual e partindo de tais indícios se concluiu pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Esta explicitação ainda que sintética é essencial para avaliar da racionalidade da inferência.

XIV - Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas directas imperfeitas ou seja insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena. Porém, estamos em crer que a exclusão de indícios contigentes e múltiplos que não deixam dúvidas acerca do facto indiciante como prova de um facto judiciário, e pela simples circunstância de serem resultado de prova indirecta, é arbitral e ilógica e constitui uma consequência de preconceitos considerando a prova indiciária como uma prova inferior.

XV - Os factos indiciadores devem ser objecto de análise crítica dirigida à sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, médio ou o ligeiro. Porém, e como refere Bentham, não é pela circunstância de se inscreverem nesta última espécie que os indícios devem ser afastados pois que o pequeno indício conjugado com outros pode assumir uma importância fundamental.

XVI - Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo facto.

XVII - Quando não se fundamentem em leis naturais que não admitem excepção os indícios devem ser vários. Todavia, a exigência formulada por alguns autores no sentido de existência de um determinado número de indícios concordantes não se afigura de todo razoável e antes se reconduz a uma exigência matemática de algo que se situa no domínio da lógica. De concreto pensamos que apenas se pode formular a exigência daquela pluralidade de indícios quando os mesmos considerados isoladamente não permitirem a certeza da inferência. Porém, quando o indício mesmo isolado é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto.

XVIII - Os indícios devem ser concordantes, ou seja, devem conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respectiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstancias.

XIX - As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas.

XX - Por igual forma deve estar afastada a existência de contra indícios pois que tal existência cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.

XXI - O princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32.°, n.° 2, da CRP), vale só, evidentemente, em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto.

XXII - Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa, às condições objectivas de punibilidade, bem como às circunstâncias modificativas atenuantes e, em geral, a todas as circunstâncias relevantes em matéria de determinação da medida da pena que tenham por efeito a não aplicação da pena ao arguido ou a diminuição da pena concreta, Em todos estes casos, a prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido.

XXIII - O STJ tem assumido, genericamente, o entendimento de que tal princípio se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.° do CPP), do qual constitui faceta, e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.

XXIV - De tal pressuposto emerge a conclusão de que o aludido princípio in dubio pro reo se situa em sede estranha ao domínio cognitivo do STJ enquanto tribunal de revista (ainda que alargada) por a sua eventual violação não envolver questão de direito (antes sendo um princípio de prova que rege em geral ou seja quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário), o que conduz a esta outra asserção de que o STJ tão só está dotado do poder de censurar o não uso do falado princípio se, da decisão recorrida, resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida patentemente insuperável e que perante ele, e mesmo assim, optou por entendimento decisório desfavorável ao arguido. O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.
Decisão Texto Integral:

                                 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação do Porto que confirmou a decisão de primeira instância que, para além da condenação no pedido de indemnização cível formulado pelos demandantes, considerou o arguido inimputável perigoso e decretou o seu internamento forçado em instituição de natureza psiquiátrica, pelo período mínimo de três anos e máximo de dez anos, sem prejuízo do disposto nos nºs. 1 e 3 do artº 92º do Cód. Penal, pela prática de factos ilícitos típicos do crime de incêndio p. e p. no artº 272º do Cód. Penal.

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

1) - Para além dos factos dados como não provados o Tribunal Colectivo, de acordo com os depoimentos de todas as testemunhas de acusação, transcritos, não deveria ter dado como provado que o arguido praticou os actos por que vinha acusado e pelos quais veio a ser condenado, pelo que violou o artº 127° do C.P.P.

2) - Da análise minuciosa da prova indiciária, e da conjugação dos indícios, estes não são suficientemente fortes para criar, sem margem para dúvidas razoáveis, a certa e segura convicção de que tudo se passou como a acusação descreveu, e não dando como provado estes factos, Tribunal Colectivo não fez prova da co-autoria, assim, atento o princípio do "in dubio pro reo", o arguido deveria ser absolvido do crime por que vinha acusado, pelo que, aqui também, violou o artº 127° do c.P.P.

3) - Reafirmando o já expostos nas alegações supra, é manifesto a verificação dos vícios do nº 2 do art. 410 do Código de Processo Penal, designadamente insuficiência de matéria de facto para concluir como se concluiu pela condenação do arguido, e ainda uma incorrecta apreciação/ valoração das provas, sendo evidente erro notório na apreciação das mesmas.

4) - Tendo-se por verificados os vícios do artigo 410 nº 2 alínea a) e c), há que determinar a anulação do julgamento para operar o suprimento dos mesmos.

5) - A factualidade vertida na decisão ora sob censura, colhe que a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a condenação do arguido.

6) - Na decisão ora sob censura, verifica-se um erro notório na apreciação da prova, violando as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência e as legis artis.

7) - Porém em momento algum o arguido foi visto e muito menos reconhecido. É certo que o Tribunal é livre de formar a sua convicção, mas necessita de provas, o que relativamente ao arguido ora recorrente, simplesmente não existiram.

8) - Por todo o exposto, verifica-se que no acórdão recorrido, salvo devido respeito que é muito, existe em relação à matéria de facto, aspectos que, de forma alguma, o arguido não pode concordar.

9) - Com efeito, a decisão do Tribunal Colectivo padece de insuficiência de prova para a decisão encontrada, ou seja a prova realizada em audiência de discussão e julgamento não foi suficiente para que fosse provado que o arguido o autor do incêndio. Ninguém viu o arguido no local, ninguém presenciou qualquer facto mas como sabiam e vieram a saber que este padecia à data da prática dos factos de uma anomalia psíquica, entenderam que seria o alvo mais fácil e, por estar psicologicamente abalado, seria ele a pessoa que deveria ter praticado o crime.

10) - O próprio Acórdão ironicamente refere "É certo que aqui falamos de indícios, e que ninguém viu o arguido a despejar os garrafões de gasolina na porta do demandante BB.

11) - Analisados todos os pontos, que a nosso modesto entender impunham uma matéria de facto diversa, verificamos que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de incêndio previsto e punido pela alínea a) do nº 1 do artigo 272.° do Código Penal.

12) - Em conformidade com o atrás exposto, impõem-se uma decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal Colectivo, devendo o arguido ser absolvido do crime de incêndio, previsto e punido pela alínea a) do nº 1 do artigo 272.° do Código Penal.

13) - O presente recurso versa sobre a condenação do arguido pelo cometimento de factos ilícitos típicos que correspondem ao preenchimento do tipo legal de incêndio, declarou o arguido imputável perigoso, decretou o internamento forçado em instituição de natureza psiquiátrica, com o período de duração de 3 (três) anos e como período máximo 10 (dez) anos, em virtude da prática de factos subsumíveis ao tipo legal de incêndio previsto e punido pela alínea a) do artigo 272.° do Código Penal.

14) - A decisão do Tribunal Colectivo padece de uma insuficiência de prova para a decisão de facto encontrada.

15) - O recorrente não concorda com a sua condenação do crime que vinha acusado.

16) - Entendemos que o Tribunal não fez uma correcta apreciação da prova que foi produzida em sede de audiência de julgamento.

17) - A prova realizada em audiência de discussão e julgamento não foi suficiente para os pontos a), b), c), d), h), i, j), e m), pudessem ser considerados provados.

18) - A convicção do Tribunal a quo assentou, essencialmente, nas declarações das testemunhas, CC, DD, EE e FF (inspectores da PJ), GGe HH (agente da PSP) e, por fim, no teor das declarações dos demandantes BB e II.

19) - Do depoimento das testemunhas resulta inequívoco que o arguido não cometeu os factos pelos quais vinha acusado.

20) - O tribunal não atendeu devidamente ao depoimento destas testemunhas.

29) - O próprio Acórdão reconhece que nos autos apenas existem indícios, não tendo sido feita qualquer prova de quem foi o autor do incêndio do prédio ali melhor identificado.

30) - Da leitura feita do próprio Acordão, facilmente concluímos que a prova feita em Audiência de Julgamento deixou o Tribunal na dúvida de quem teria praticado o crime, pois a decisão fundamentou-se em indícios e tentativas de explicação do sucedido, na verdade, atendendo à situação clínica do arguido, ora recorrente, que padecia à data da prática dos factos de uma anomalia psíquica, devidamente comprovada pelo relatório medico e depoimento do Prof. Dr. JJ, gerou-se a ideia de que tinha sido o recorrente o autor do incêndio.

31) - Perante tanta incerteza e dúvida manifesta sobre a autoria do incêndio em apreço a douta sentença teria de ser absolutória. (dr. Cristina Líbano Monteiro, "Perigosidade de inimputáveis e In Dubio Pro Reo" Coimbra, 1997, pág. 49.)

32) - As regras da experiência comum, principalmente em processo crime não servem para provar factos, se a prova feita não é suficiente para formar a convicção do julgador no sentido da culpa ou inocência do arguido, então este deve ser absolvido, para que alguém seja condenado tem que existir provas concretas de tais factos.

33) - Com o devido respeito pelo Tribunal li a quo", entendemos que o princípio in dúbio pró reo não foi respeitado, funcionando em prejuízo do arguido, pois na dúvida e, apenas perante indícios, o Tribunal condenou.

34) - O Tribunal “a quo" acabou por condenar o arguido na base de meras sensações, que não convicções, pelo menos fundadas, na base de meros juízos de probabilidade, que não verdadeiras certezas " ... não se vislumbra outra explicação ... " " ... vários indícios existem ... " - foi com base nesses meros inícios que o recorrente foi condenado, pois prova, como resulta das frases transcritas, não existem!

35) - Verifica-se que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de incêndio previsto e punido pela alínea a) n.o 1 do artigo 272.° do Código Penal.

36) - Em conformidade com o atrás exposto, deve, o arguido, ser absolvido do crime de incêndio previsto e punido pela alínea a) n.o 1 do artigo 272.° do Código Penal, em que foi condenado.

37) - O douto acórdão recorrido enferma dos vícios a que alude o art 410.° nº 2, alíneas a) e c) do CPP aplicável.

Termina pedindo a anulação do julgamento e a repetição do mesmo face à insuficiência da matéria de facto provada e, ao erro na apreciação do exame da prova, com a consequente absolvição do arguido.

O Magistrado do Ministério Público apresentou resposta à "motivação" do recurso interposto por AA referindo, em síntese, que a decisão impugnada não sofre de qualquer dos vícios previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410° do Código de Processo Penal, caso em que o Supremo Tribunal pode intervir em matéria de facto, nos termos do artigo 434° do Código de Processo Penal e que, consequentemente, o recurso não merece provimento.

                   Neste Supremo Tribunal o ExºMº Sr. Procurador-Geral adjunto emitiu proficiente parecer no sentido da improcedência do recurso.

                                      Os autos tiveram os vistos legais

                                                             *

                                                  Cumpre decidir.

            A decisão recorrida considerou assentes os seguintes factos: (transcrição)

            «a. No dia 04 de Julho de 2008, os pais do arguido AA residiam no apartamento sito na rua de …, nº …, entrada …, …, …, Gondomar.

            b. Nesse mesmo dia, cerca das 10 h 00 m, o arguido estava no edifício onde os seus pais residiam, e tinha consigo dois garrafões em plástico, com a capacidade de 5 litros cada um, contendo no seu interior gasolina.

            c. Subiu ao patamar do 3º piso e, aí, despejou a gasolina contra a porta de entrada do 3º andar esquerdo, introduzindo parte do mesmo líquido no interior da habitação, por baixo da porta, ateou o fogo a esse combustível por forma não concretamente apurada, e de seguida abandonou o local.

            d. Dessa forma, o arguido provocou uma combustão no “hall” de entrada da habitação, que destruiu directamente a porta de entrada, portas divisórias interiores, tapete, um móvel e outros objectos, bem como estragou o demais recheio, paredes, tecto, caixilharia de alumínio e vidros da varanda por via do calor das chamas, da fuligem e dos gases libertados e da água usada pelos bombeiros para extinguirem o fogo, causando ao seu proprietário prejuízos no valor global de € 55 605,48.

            e. Nessa habitação residiam, à data, BB, II e KK, que na altura não se encontravam em casa.

            f. Aliás, nesse momento, ninguém se encontrava no interior dessa habitação.

            g. O incêndio colocou em perigo de destruição as outras habitação situadas no mesmo piso do imóvel, e em perigo de vida as pessoas que nesse momento se encontravam nessas habitações: CC, do 3º esquerdo frente; e DD e uma filha desta, de 2 anos de idade, do 3º direito traseiras, incêndio que apenas foi evitada pela pronta intervenção dos Bombeiros voluntários de ....

            h. O arguido, ao derramar o produto combustível na porta, foi salpicado nos pés por duas pequenas porções, as quais se incendiaram também quando ateou o fogo, originando-lhe duas pequenas queimaduras.

            i. O arguido não desconhecia o valor das habitações existentes no imóvel em causa, nomeadamente as do 3º andar, e sabia que ao atear aquele fogo iria destruir parcialmente a habitação do 3º andar esquerdo e respectivo recheio, bem como iria colocar em risco de serem atingidas as habitações do 3º esquerdo frente e as do 3º direito traseiras, bem como as pessoas que aí se encontrassem.

            j. O arguido actuou de forma intencional.

            k. O arguido AA sofria, à data da prática dos factos acima descritos, e sofre hoje, de psicose paranóide, doença cuja instalação terá ocorrido em Fevereiro/Março de 2008.

            l. O arguido não tem consciência mórbida relativamente à sua doença, o que lhe afectava e afecta a capacidade de avaliar a licitude ou ilicitude dos seus actos, e de se determinar de acordo com essa avaliação.

            m. Caso não seja compelido a tratamento psiquiátrico, a ser efectuado de forma regular e permanente, existe perigo de o arguido cometer outros factos semelhantes aos atrás descritos.

            n. O arguido não possui antecedentes criminais.

            o. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº …, vigente em Julho de 2008, a demandante “LL – Companhia de Seguros, SPA”, havia assumido a obrigação de indemnizar a tomadora do seguro, II, pelos danos para o recheio da habitação sita na rua de …, nº …, entrada .., … esquerdo traseiras, ..., Gondomar, resultantes de incêndio.

            p. Por força dos factos referidos em c. e d., a demandante, ao abrigo do referido contrato de seguro, pagou à II a quantia global de € 10 712,68.

            q. Com a averiguação das circunstâncias em que ocorreram os factos referidos em c. e d., a demandante despendeu a quantia global de € 192,00.

            r. A demandante II adquiriu a habitação sita na rua de …, nº …, entrada …, 3º esquerdo traseiras, ..., Gondomar, através de recurso ao crédito bancário, para cujo reembolso paga, em Julho de 2008 e ainda hoje, a quantia mensal de € 505,44.

            s. A demandante II, na sequência dos factos referidos em c. e d., viu destruídos todos os bens que se encontravam no interior da sua habitação, alguns com valor estimativo.

            t. Na sequência dos factos referidos em c. e d., a residência dos demandantes BB, II e KK ficou totalmente inabitável, e assim se manteve pelo menos até Fevereiro de 2009.

            u. Por força do facto referido em t., os demandantes BB, II e KK foram viver para casa da mãe da demandante II, passando a partilhar uma casa com 3 quartos com mais 3 pessoas (a dona desta casa, um tio e um irmão da demandante II), comparticipando nas despesas da casa.

            v. Por força dos factos referidos em c. e d., os demandantes BB, II e KK sofreram privações e alteração radical no seu modo de vida.

            x. Por força dos factos referidos em c. e. d., a demandante KK ficou em estado de choque, vendo-se privada da sua casa e do seu espaço, sendo afectada por stress pós-traumático, motivo pelo qual passou a ter acompanhamento psicológico.

            y. A demandante KK sofreu trauma emocional de grande magnitude pelo facto de a sua habitação ter sido incendiada e de ter perdido todos os seus pertences pessoais (brinquedos, roupa, quarto, cama).

            Z. A demandante KK perdeu ainda todas as suas rotinas e privacidade, o que, tudo conjugado, lhe tem causado grande sofrimento psíquico, com manifestações físicas, apresentando enurese secundária nocturna, inquietude, insónias, ansiedade de separação da mãe (medo e insegurança emocional), pesadelos e terrores nocturnos (revivendo o trauma através de sonhos e pensamentos).

            aa. A demandante KK tem dificuldade em conciliar e manter o sono, passou a sentir receio de sair à rua, mesmo acompanhada, e, sempre que se cruza com alguém que, na sua imaginação, representa o demandado, fica aterrorizada, escondendo-se.

            ab. Na escola, a demandante KK perdeu capacidade de concentração e passou a deparar-se com frequentes dores de cabeça.

            ac. Por força dos factos referidos em c. e d., a demandante II temeu e teme pela vida, vivendo em estado de permanente sobressalto.

ad. A demandante II sentiu afectado o seu estado físico e psíquico, passando a ter receio de sair à rua, e deixou de dormir noites tranquilas, acordando sobressaltada durante o sono.

            ae. A demandante II passou a deparar-se com frequentes dores de cabeça.

            af. Por força dos factos referidos em c. e d., o demandante BB ficou aterrorizado, e ainda hoje sente receio que o arguido seja solto e tente cumprir o desejo de o matar.

            ag. Até 04 de Julho de 2008, o demandante BB apenas conhecia o arguido de vista.

            ah. O demandante BB  passou a ter noites sem dormir, a sentir fortes dores de cabeça e ansiedade, e viu afectada a sua capacidade de concentração.

                                                         *

            Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)

o arguido, em Julho de 2008, residisse em casa de seus pais;

o arguido tenha actuado com a consciência de a sua conduta ser proibida e punida por lei;

a habitação sita na rua de …, nº …, entrada …, … esquerdo traseiras, ..., Gondomar, em Julho de 2008 fosse pertença de BB;

d-ascenda a € 250,00 quantia que os demandantes mensalmente entregam à mãe da demandante II como comparticipação nas despesas da casa;

e-no dia 04 de Julho de 2008, o arguido tenha sido visto pelo demandante BB junto ao local de trabalho deste, à sua procura.

                                                               *

I

            Como questão prévia na análise do presente recurso importa precisar que o recurso para o Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame das questões de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP.

            Relativamente á impugnação da matéria de facto impõe-se a reafirmação do principio de que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista por excelência - art. 434.º do Código de Processo Penal – saindo fora do âmbito dos seus poderes de cognição a apreciação da matéria de facto. Na verdade, se é certo que os vícios da matéria de facto - artigo 410.º, n.º 2, do mesmo Código - são de conhecimento oficioso, e podem sempre constituir objecto de recurso, tal só pode acontecer relativamente ao acórdão recorrido, ou seja, o Acórdão do Tribunal da Relação.

     A decisão deste Tribunal sobre a alegação da existência de vícios da matéria de facto ocorridos na decisão da primeira instância tem de tomar-se por definitivamente assente como é jurisprudência uniforme. Saliente-se, ainda, que o reexame pelo Supremo Tribunal de Justiça exige a prévia definição (pela Relação) dos factos provados.

            Analisando a matéria contida nas conclusões verifica-se que as mesma têm subjacente uma profunda discordância em relação á matéria de facto. É expressa a lógica argumentativa do recorrente quando refere que os factos que não deveriam ter sido dado como provados (artigo 1º) a análise da prova indiciária não é suficientemente forte para dar como provados estes factos (artigo 2º); a factualidade é insuficiente (artigo 5º); os pontos que impunham uma matéria de facto diversa (artigo 11º)  o Tribunal não fez uma correcta apreciação da prova (artigo16º);do depoimento das testemunhas resultou inequívoco que o arguido não cometeu os factos (artigo 19º); não tendo sido feito qualquer prova (artigo29º)

Numa outra ordem de argumentos o recorrente invoca os vícios do artigo 410 referindo uma ausência probatória que, na sua perspectiva se verifica, corresponde a uma insuficiência da matéria de facto ou que o facto de a racionalidade da fundamentação da decisão recorrida em matéria de prova não coincidir com a sua, corresponde a um erro notório na apreciação da prova.

 Por último, mas como argumento imperativo, a afirmação de que as regras da experiência comum não servem para provar factos.

           

Omite o recorrente que, na sua impugnação, não está em causa uma violação das regras de experiência comum, ou de lógica, patente na decisão recorrida, mas única e simplesmente o facto de se ter valorado determinada prova produzida de acordo com as regras do processo. 

            Igualmente é exacto que nunca poderá deixar de se considerar o pressuposto base de que a existência de qualquer um dos vícios do artigo 410 tem de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, sem recurso a elementos externos. O recorrente faz apelo a elementos exógenos á própria decisão pretendendo transformar o recurso incidindo sobre a matéria de direito que é da competência deste Supremo Tribunal numa reapreciação da matéria de facto.

            Está em causa a diversa inferência que a recorrente faz em relação aos factos considerados provados e não se pode confundir erro notório com uma diferente convicção em termos probatórios e uma diversa valoração da prova produzida em audiência.

Relembrando conceitos por demais sedimentados, em relação ao invocado vicio da sentença importa precisar que o C.P.P. de 1987 trata os vícios previstos no artigo 410 nº2 do Código Penal como vícios da decisão, e não de julgamento. Nesta disposição estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374 nº2 do Código de Processo Penal, concretamente á exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

            Consubstancia-se, assim, o mesmo recurso num recurso de revista ampliada configurando a possibilidade que é dada ao tribunal de recurso de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo; de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos; de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária á exposta pelo tribunal.

            Não vislumbramos na análise da decisão recorrida, e só ela releva para o fim em vista, onde é que exista a invocada insuficiência dos factos ou erro notório para a decisão de direito

            É unicamente com este âmbito que o Supremo Tribunal de Justiça pode ter de avaliar da subsistência dos aludidos vícios da matéria de facto. Tal significa que está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação. O exposto em nada é afectado pelas referências genéricas e abstractas que o recorrente faz em relação aos vícios do artigo 410 do Código de Processo Penal e, nomeadamente, ao afastamento das regras das presunções naturais, mas sem qualquer concretização em relação á materialidade considerada provada.

Concluindo verifica-se, assim, que na sua essência as conclusões formuladas pelo recorrente se referem a uma discordância em relação á materialidade considerada provada Encontramo-nos, pois, no domínio da matéria de facto que se encontra excluída do conhecimento deste Supremo Tribunal.

             Existe, assim, razão para rejeição do presente recurso pois é manifesta a sua improcedência.

II

           Considerando por tal forma temos, ainda, que, em primeira análise, a tarefa do Tribunal da Relação, ao apreciar a impugnação produzida em termos de matéria de facto, incidiu, também, sobre a forma como o Tribunal de primeira instância exprimiu a lógica dedutiva que permitiu a aceitação de determinados factos em detrimento de outros. A questão era, então, a de saber se a decisão recorrida tinha cumprido o seu dever de investigar e de indagar, de uma forma precisa e detalhada, a validade da impugnação produzida em relação a concretos pontos de facto.

            A análise da mesma decisão recorrida imprime, de forma inexorável, a conclusão de que tal obrigação foi efectivamente cumprida.

            O Tribunal da Relação concluiu de forma correcta, com uma compreensão unitária e superior, e com um rigor que cumpre salientar, de que não foram violados quaisquer dos ónus que impediam sobre a decisão recorrida em termos de fundamentação ou pronúncia.

            É evidente que o dever de fundamentação da decisão começa, e acaba, nos precisos termos que são exigidos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida. Não conforma tal conceito uma obrigação de explanação de todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenrolou a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos de equacionar todas as perplexidades que assaltam a cada um dos intervenientes processuais, no caso o arguido, perante os factos provados.

            O tribunal tem o dever de indicar os factos que se provam e os que não se provam e a forma como alcançou a respectiva conclusão.

Por seu turno aquele que discorda da forma como se formou tal conclusão e caso lhe assista o respectivo direito de recurso virá indicar aquilo de que discorda e o motivo que discorda.

            O facto de o tribunal e primeira instância ter submetido a sua actuação á regra da livre convicção, e nos limites propostos por aqueles princípios, não contende com a possibilidade de o Tribunal da Relação se pronunciar sobre a verosimilhança do relato de uma testemunha, ou perito, e demais meios de prov, para apreciar a emergência da prova directa, ou indiciária, e de aí controlar o raciocínio indutivo pois que estaremos perante uma questão de verosimilhança, ou plausibilidade, das conclusões contidas na sentença.

            Por outro lado, e conforme se referiu, a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que informam a opção do julgador. E estas podem, e devem, ser escrutinadas.

            Pode-se, assim, concluir que o recurso em matéria de facto não pressupõe, uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.

             Porém, tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela mesma decisão em relação aos factos concretamente impugnados. Não se pode, nem deve substituir, a compreensão e análise do conjunto da prova produzida sobre um determinado ponto de facto pela visão parcial e segmentada eventualmente oferecida por um dos sujeitos processuais.

                    Essa compreensão global está omissa na crítica formulada.

                                                                 *

            Como decorre da análise das suas conclusões de recurso, e já foi referido, o verdadeiro núcleo da interpelação do recorrente centra-se na sua incapacidade de acompanhar a decisão recorrida quando esta, baseada em prova indirecta, nomeadamente os vestígios e a prova testemunhal arranca para a conclusão de que foi o mesmo quem provocou o fogo.

            Para o recorrente a prova não permite, á face das regras da lógica, e da experiência, que o tribunal possa concluir que é sua a autoria do crime.

Não falamos, assim, de uma manifestação evidente de ilogicidade da decisão, consagrando algo de contrário ao imposto pelas normas comuns de vida, ou de uma manifesta incapacidade dos factos para suportarem uma conclusão judicial e nem tão pouco de uma incongruência entre as peças que compõem o silogismo judiciário. Do que falamos em concreto é da discordância em relação a pontos de facto considerados provados sendo certo que tal discordância está centrada na inadmissibilidade da conclusão extraída da prova á luz dos ensinamentos das regras de experiência comum.

            A questão fulcral colocada pelo recorrente é exactamente esta: -existe, ou não um incorrecto entendimento das regras ministradas pela dinâmica da vida e, se existe, como configurar tal vício?

            - No que concerne a este segundo ponto entende-se que, se em face das premissas que constituem a matéria de facto, o julgador ensaia um salto lógico no desconhecido dando por adquirido aquilo que não é suportável à face da experiência comum pode-se afirmar a existência do vicio do erro notório. Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis ...” (Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 740)

            Como se refere em decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4/02/2005   “O  "erro notório na apreciação da prova" constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.

A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). - cfr. os acórdãos deste STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc.3213/03, e de 24 de Março de 2004, proc. 4043/03..

           

Partindo de tal pressuposto importa agora sindicar a sua aplicação ao caso vertente. No que respeita a conclusão do tribunal em relação á matéria de facto é a consequência lógica da conjunção de uma pluralidade de índicos apontando para uma conclusão. Em termos criminalisticos os indícios apontam para a resposta a qualquer uma das perguntas: Quem? Como? e Porquê?

      Dito por outra forma a questão que se coloca é a de saber se, em termos de lógica normal, é correcto concluir que o arguido praticou o facto imputado com base nos elementos probatório considerados relevantes. Nomeadamente:

 -O arguido, na madrugada do dia 05 de Julho de 2008 (ou seja, no dia imedia­tamente seguinte aos factos), apresentava lesões físicas que apenas podem ter sido provocadas por acção do fogo, como referiu a testemunha EE [inspector da polícia judiciária que contactou pessoalmente com o arguido cerca das 07 h 00 m do dia subsequente ao incêndio, e referiu em audiência de julga­mento que o arguido, nesse momento, apresentava genericamente os pelos da cara retorcidos, queimados, como sucede com o porco na altura da matança e queima, e apresentava curativos nos pés]; - os garrafões que foram encontrados no local do incêndio (veja-se depoimento das testemunhas EE e FF, ins­pectores da Polícia Judiciária, GG e HH, agentes da PSP, que se deslocaram ao local do incêndio logo após este ter deflagrado, e que aí constataram a existência dos garrafões contendo líquido inflamá­vel, que, segundo a perícia realizada a fls 178, se tratava de gasolina) sem qualquer dúvida foram utilizados no deflagrar daquele, e com toda a certeza indicam que o autor do facto estava nas imediações no momento em que o incêndio começou; - o arguido, perante o perito que elaborou a perícia médico-legal que consta de fls 140 a 144 (como resulta do próprio teor desta e foi confirmado em audiência de julgamento pelo perito nos esclarecimentos que prestou), declarou ouvir a voz do seu vizinho, imputando-lhe factos pouco menos que fantásticos, confabulando que aquele conspirava contra si, e afirmou ainda que no concreto dia do incêndio ouviu intenra­mente as vozes na sua cabeça;  a testemunha CC (vizinha do arguido, dos pais deste e dos demandantes BB, II e KK), na noite seguinte à verificação do incêndio, no seu apartamento, e como referiu em audiência de julgamento, ouviu uma discussão entre dois homens, ocorrida no apartamento onde pais do arguido à data residiam, na qual um dos interlocutores disse: «O vizinho é que me está a tentar matar. Foi ele que me pegou fogo. O vizinho vai comprar uma arma e vai-me matar»; - o arguido, como resulta da perícia médico-legal que consta de fls 140 a 144, não tem consciência da doença que o afecta; - o incêndio resultou do derrame de gasolina na porta da fracção dos deman­dantes BB, II e KK, o que provocou a destruição total do interior daquela habitação  (como, desde logo, atestam as fotografias de fls 9 a 12), acção que apenas se com­preende, à luz do que se considera a absoluta normalidade dos comportamentos humanos, como fruto de intenso ódio ou rancor, ou de doença mental. Continua a entender-se que a ausência de mínimo contra-indício é esclarecedo­ra - tendo em atenção a concreta causa do incêndio (derrame voluntário de 2 garra­fões de 5 litros de gasolina na porta de uma fracção de um edifício de habitação), não há no processo qualquer outra explicação minimamente razoável para o sucedido para além da loucura do arguido.

                        Falamos, assim de uma questão de prova indiciária.

                                                                    *

          Como já tivemos ocasião de referir em diversos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça  não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária.

            O funcionamento e creditação desta estão dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.

            Fundamentando-se a condenação na prova indiciária a interpretação da prova e a fixação dos factos concretos terá, também, como referência as regras gerais empíricas ou as máximas da experiência que o juiz tem de valorar nos diversos momentos de julgamento

            Para MM importa distinguir dois tipos diferentes de regra de experiência: -as regras de experiência de conhecimento geral ou, dito por outra forma, as regras gerais empíricas cujo conhecimento se pressupõe existente em qualquer pessoa que tenha um determinado nível de formação geral e, por outro lado, as máximas de experiência especializada cujo conhecimento só se pode supor em sujeitos que tenham uma formação especifica num determinado ramo de ciência, técnica ou arte.

            Usando tais regras de experiência entendemos que o juiz pode utilizar livremente, sem necessidade de prova sobre elas, as regras de experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação (concretamente formação universitária no campo das ciências sociais). O próprio ordenamento jurídico parte da liberdade do juiz para utilizar estas máximas da experiência de conhecimento geral sem que as mesmas se inscrevam no processo através da produção de prova.

            As razões que fundamentam a liberdade do juiz para a utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência são as mesmas que impõem a desnecessidade de fixação de factos notórios. Em qualquer um destes casos o que se pede ao juiz é que utilize os seus conhecimentos sobre máximas da experiência comum sem que importe a forma como os adquiriu 

            A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade as formalidades legais e as garantias constitucionais.

As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização.             Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária.

            Como afirma Duran o princípio da normalidade torna-se assim o fundamento de toda a presunção abstracta. Tal normalidade deriva da circunstância de a dinâmica das forças da natureza e, entre elas, das actividades humanas existir uma tendência constante para a repetição dos mesmos fenómenos. O referido principio está intimamente ligado com a causalidade: as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos e tem justificação na existência de leis mais ou menos imutáveis que regulam de maneira uniforme o desenvolvimento do universo.

            O princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal. Dito por outra forma, aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa. O princípio da oportunidade fundamenta a eleição da concreta causa produtora do efeito para a hipótese de se apresentarem como abstractamente possíveis várias causas. A análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito. Provado no caso concreto tal efeito deverá considerar-se provada a existência da causa.

            Do exposto resulta que o princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno mas sim provável. Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.

Só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária-quando é este tipo de prova que está em causa- pode alicerçar a convicção do julgador.

Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com géneses em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova.

            A forma como se explana aquela prova fundando a convicção do julgador tem de estar bem patente o que se torna ainda mais evidente no caso da prova indiciária pois que aqui, e para alem do funcionamento de factores ligados a um segmento de subjectividade que estão inerente aos principio da imediação e oralidade, está, também, presente um factor objectivo, de rigor lógico que se consubstancia na existência daquela relação de normalidade, de causa para efeito, entre o indicio e a presunção que dele se extrai.

            Como tal a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base ou indícios que se considere provados e que vão servir de fundamento á dedução ou inferência e, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual e partindo de tais indícios se concluiu pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Esta explicitação ainda que sintética é essencial para avaliar da racionalidade da inferência.

                                                          *

       Mas, pergunta-se, serão quaisquer uns os indícios que permitem tal inferência lógica, ou seja, quais são os requisitos que devemos exigir para que o facto indiciante permita tal operação lógica?

-No funcionamento da prova indiciária não podemos omitir a exigência da gravidade do indício a qual está directamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste ás objecções e que tem uma elevada carga de perssuasividade como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno é preciso o indicio quando não é susceptível de outras interpretações. Mas sobretudo, o facto indiciante deve estar amplamente provado ou, como refere Tonini corre-se o risco de construir um castelo de argumentação lógica que não está sustentado em bases sólidas

Por fim os indícios devem ser concordantes, convergindo na direcção da mesma conclusão facto indiciante. Porém, uma perplexidade assalta o analista nestas áridas matérias na enumeração dos requisitos deste tipo de prova, pelo menos em face da lógica. É que ultrapassando a questão da necessidade de vários indícios, ou da suficiência de um indício, o certo é que, quando existe aquela pluralidade, coloca-se a questão do objecto em função dos quais se deve avaliar os requisitos enunciados. Nunca é demais sublinhar que é a compreensão global dos indícios existentes, estabelecendo correlações e lógica intrínsecas que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto probando.

                                                              *

  Pretendendo desenhar alguns dos princípios a que se refere a prova indiciária diremos que na mesma devem estar presentes condições relativas aos factos indiciadores; á combinação ou síntese dos indícios; á indiciárias combinação das inferências indiciárias; e á conclusão das mesmas    

Assim

1 )  Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas directas imperfeitas ou seja insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena

 Porém, estamos em crer que a exclusão de indícios contigentes e múltiplos que não deixam dúvidas acerca do facto indiciante como prova de um facto judiciário, e pela simples circunstância de serem resultado de prova indirecta, é arbitral e ilógica e constitui um consequência de preconceitos considerando a prova indiciária como uma prova inferior

Directamente relacionada com a questão da unidade, ou pluralidade de indícios, que se examinará, situa-se a questão dos indícios periféricos ou instrumentais em relação ao facto probando. Significa o exposto que os factos indiciantes não têm de coincidir necessariamente com os que conformam o facto sujeito a julgamento, ou algum dos seus elementos, ou bem assim a autoria material do facto ilícito, mas podem tratar-se de factos que estão em conexão ou relação directa com aqueles, situando-se na sua periferia sendo indicativos da realidade do facto que se pretende provar. Isto significa que devem ser concomitantes, ou seja, que devem acompanhar-se entre si por constituir diversos aspectos fácticas de um determinado facto penalmente relevante e que, em consequência têm uma existência comum e em paralelo 

2) Os factos indiciadores devem ser objecto de análise crítica dirigida á sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, o médio ou o ligeiro. Porém, e como refere Bentham, não é pela circunstância de se inscreverem nesta última espécie que os indícios devem ser afastados pois que o pequeno indicio conjugado como outros pode assumir uma importância fundamental

3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo facto. Framarino ilustra este último ponto com o seguinte exemplo: “uma testemunha  terá visto o arguido sair precipitadamente da casa da licença de Ticio; outro tê-lo-á visto numa viela transversal á mesma casa e uma outra viu entrar no carro na mesma transeversal e ausentar-se”. Estas três declarações não servem dar a fé mais do que de um único fato do indiciário, do vôo, e deste fato, por mais do que é provado de mil maneiras, nunca constituem mais do que uma única indicação “.

 4) Quando não se fundamentem em leis naturais que não admitem excepção os indícios devem ser vários.

Todavia, a exigência formulada por alguns autores no sentido de existência de um determinado número de indícios concordantes não se afigura de todo razoável e antes se reconduz a uma exigência matemática de algo que se situa no domínio da lógica. De concreto pensamos que apenas se pode formular a exigência daquela pluralidade de indícios quando os mesmos considerados isoladamente não permitirem a certeza da inferência   

            Porém, quando o indício mesmo isolado é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto 

. 5) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, devem conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respectiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstancias. Neste aspecto Devis Echandia refere que os indícios se pesam, e não se contam, motivo pelo qual não basta somente a pluralidade já que é indispensável que, examinados em conjunto produzam a certeza sobre o facto investigado e para que isto ocorra requere-se que sejam graves que concorram harmonicamente a apontar o mesmo facto.

6) As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas.

7)- Por igual forma deve estar afastada a existência de contra indícios pois que tal existência cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.

             Transplantando o exposto somos interpelados para a verificação dos requisitos supra no contexto do caso vertente. No que respeita afirmamos que os mesmos indícios constatados na decisão recorrida são precisos, convergentes, graves e susceptíveis de fundamentar uma inferência lógica apontando para a autoria do incêndio imputado pelo recorrente e arguido.

         Na verdade, pergunta-se:

           -Inexistindo qualquer demonstração plausível e anódina para existência das lesões físicas apresentadas e demonstrada a proximidade bem como a animosidade do arguido é, ou não, lógico, e imposto pelas regras da experiência condicionadas pela gravidade dos indícios a conclusão de que foi o arguido o autor dos factos?

-A resposta é, sem qualquer margem para dúvida, afirmativa. Para um cidadão comum é evidente que, não obstante a ausência de prova directa, a prova indiciária aponta, de forma insofismável, no sentido de que o arguido provocou o fogo, e que tal resulta de uma conjunção de indícios fortes, fornecidos pela prova produzida, os quais inculcam uma conclusão que nenhum outro elemento colocou em crise.  

            Aliás, nem sequer estamos perante um único indicio que, por mais forte que seja importa sempre uma ponderação da sua falibilidade, mas estamos perante uma convergência de indícios.

           Ao fim e ao cabo o recorrente persiste num erro comum na prática judiciária dos nossos tribunais que é o de renegar qualquer outra prova que não a directa ignorando que a prova indirecta ou indiciária pode assumir exactamente o mesmo valor senão superior.

                                                               

III

            Invoca, ainda, o recorrente a sua discordância em relação á forma como foi abordada a questão da aplicação do princípio “in dubio pro reo”.

            Estamos em crer que a questão foi indevidamente colocada. Na verdade, o princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo 32º, nº 2, da Constituição), vale só, evidentemente, em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto.

            Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa, às condições objectivas de punibilidade, bem como às circunstâncias modificativas atenuantes e, em geral, a todas as circunstâncias relevantes em matéria de determinação da medida da pena que tenham por efeito a não aplicação da pena ao arguido ou a diminuição da pena concreta, Em todos estes casos, a prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido 

            Conforme refere Figueiredo Dias a sindicância do respeito pelo principio em causa configura uma questão de direito pois que se trata de um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão de direito que cabe, como tal, na cognição do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações ainda que estas conheçam apenas de direito. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova:- mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma "questão de direito" para efeito do recurso de revista.

            Pronunciando-se sobre questão em apreço este Supremo Tribunal tem assumido, genericamente, o entendimento de que tal principio se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (artº 127º, do C.P.Penal) do qual constitui faceta e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.

            De tal pressuposto emerge a conclusão de que o aludido princípio "in dubio pro reo” se situa em sede estranha ao domínio cognitivo do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista (ainda que alargada) por a sua eventual violação não envolver questão de direito (antes sendo um princípio de prova que rege em geral ou seja quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário), o que conduz a esta outra asserção de que o Supremo Tribunal de Justiça tão só está dotado do poder de censurar o não uso do falado princípio se, da decisão recorrida, resultar que o tribunal "a quo' chegou a um estado de dúvida patentemente insuperável e que perante ele, e mesmo assim, optou por entendimento decisório desfavorável ao arguido. Este Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

            Não se verificando a hipótese referida resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (Ac. de 23/01/2003, proc. n. 4627/02-5).

Como se viu, a primeira instância não ficou em estado de dúvida quanto à ocorrência de qualquer facto, afastando decididamente a invocação do arguido em relação a uma detenção para consumo pessoal. E não tendo ficado em estado de dúvida, não cabe a invocação do princípio in dubio pro reo.

           

IV

                                   

Nestes termos conclui-se que é manifesta a improcedência de recurso pelo que nos termos do artigo 420 do Código de Processo Penal o que conduz á sua rejeição.

Sem embargo importa ainda que se chame a atenção do tribunal onde decorre o processo de internamento para a circunstância de existir uma decisão que, embora restrita á questão da revogação da medida de internamento preventiva, constata que já não é actual a anomalia e o estado de perigosidade que determinaram a aplicação da mesma medida o que pode assumir importância essencial em face dos artigos 92 e 93 do Código Penal.

Custas pelo arguido.

            Taxa de Justiça 4 UC

            Mais vai condenado no pagamento de 4 UC-artigo 420 nº3 do CPP

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Fevereiro de 2012

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes