Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
113/16.7T8VNC-I.G1-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
PRESSUPOSTOS
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
HABILITAÇÃO DO CESSIONÁRIO
INCIDENTE
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :

As decisões tomadas em incidente de habilitação de cessionário de direitos constituem, sejam decisões intercalares em sentido estrito, seja a decisão final do incidente, decisões interlocutórias com natureza processual, que, uma vez reapreciadas pela Relação, apenas podem ser objecto de revista com base nos fundamentos previstos no regime do art. 671º, 2, do CPC.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 113/16.7T8VNC-I.G1-A.S1
Reclamação: arts. 641º, 6, 643º, 652º, 3, CPC; Tribunal Reclamado – Relação de Guimarães, ... Secção



Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça



I) RELATÓRIO

1. «P..., Unipessoal, Lda.» apresentou Reclamação, nos termos do art. 643º do CPC, contra o despacho do Ex.mo Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) que não admitiu o recurso de revista interposto do acórdão desse TRG, proferido em 17/11/2022.

2. A aqui Reclamante, por apenso aos autos principais da insolvência de AA e cônjuge mulher BB, veio requerer incidentalmente a habilitação (art. 356º do CPC, sendo Requeridos as pessoas singulares declaradas insolventes) como cessionário de créditos alegadamente adquiridos por contrato de cessão ao credor reclamante «Novo Banco, S.A.», derivados de contratos de financiamento e reclamados nos autos, peticionando que a Requerente seja “habilitada como credora para todos os efeitos legais, no lugar do cedente “Novo Banco, S.A.” e na qualidade de cessionária dos créditos identificados e peticionados”, devendo “passar a constar como credora reclamante na plataforma de apoio à actividade dos tribunais e o subscritor ser associado como seu mandatário nos presentes autos e todos os seus apensos”.
Foi apresentada Oposição pelos insolventes.

3. Por despacho proferido em 26/1/2020 (ref.ª CITIUS ...36), na sequência de requerimento dos Requeridos Insolventes, que alegaram a impossiblidade/inutilidade e inadmissibilidade da habilitação de cessionário, foi prolatada a seguinte decisão, com a argumentação conclusiva pertinente:

“(…) tendo por referência (…) que é litigioso o direito que constitui o objecto processual, ou seja, a partir do momento em que é objecto de um pedido formulado numa acção judicial, temos necessariamente de concluir que no processo de insolvência, declarada esta e aberta a fase de reclamação e, posterior, verificação e graduação de créditos, nos encontramos perante a litigiosidade necessária à admissibilidade do incidente de habilitação de cessionário, como é o caso do presente, instaurado precisamente por quem pretende ocupar a posição processual ocupada entretanto por credor reclamante.”;

Expostos os pressupostos do incidente em causa, concluímos mais uma vez que, considerando que o rendimento disponível dos insolventes durante o período de cessão se considerará afeto à satisfação dos credores, nos encontramos perante a litigiosidade necessária à admissibilidade do incidente de habilitação de cessionário, como é o caso do presente, instaurado precisamente por quem pretende ocupar a posição processual ocupada, entretanto, por credor reclamante.
Assim, julgando-se admissível o presente incidente de habilitação de cessionário, o mesmo prosseguirá os seus termos, designadamente com vista à apreciação das demais questões suscitadas em sede de oposição (matéria de impugnação), relativamente às quais se mostra necessária a produção de prova.




4. Tramitada a instância e realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença pelo Juízo de Comércio ... (21/5/2022), que julgou procedente o incidente suscitado e habilitada a Autora Requerente “como cessionária na posição até então ocupada por Novo Banco, S.A., credor reclamante no processo de que o presente constitui apenso, nos termos requeridos”; mais julgou improcedente o incidente de litigância de má fé deduzido contra a Requerente.

5. Inconformados, os Insolventes e Requeridos interpuseram recurso de apelação para o TRG, incidindo sobre o despacho proferido em 26/1/2020 (“decisão intercalar”: art. 644º, 3, CPC) e a sentença proferida em 21/5/2022 (art. 644º, 1, CPC), que, uma vez identificadas as questões decidendas –

“- se é possível o recurso de despacho interlocutório prolatado em sede de incidente de habilitação de adquirente, no recurso a interpor da sentença;
- em caso afirmativo, apurar da existência dos pressupostos para a dedução de incidente de habilitação, concretamente do “direito em litígio”;
- caso se conclua pela existência dos pressupostos e se afaste o disposto no art. 660º do CPC, e observando a ordem imposta pelo art. 608º, nº1, do CPC, importa apurar se a sentença é nula, se a matéria de facto dada como provada deve ser ampliada, e se a cessão foi efetuada com o propósito de tornar mais difícil a posição processual dos recorrentes, e caso se responda afirmativamente, respetivas consequências em sede do incidente de habilitação.” –,

 conduziu a ser proferido acórdão (17/11/2022), que julgou procedente o recurso, revogando a sentença recorrida, deliberando-se julgar improcedente o incidente de habilitação do adquirente.

6. Inconformada com o resultado decisório em 2.ª instância, a Requerente veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo como fundamento o art. 671º, 1, do CPC, visando revogar o acórdão recorrido.

Os Requeridos e Recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade da revista, uma vez enquadrada no art. 671º, 2, do CPC, e, se assim não se entendesse, a improcedência da mesma quanto ao objecto delimitado pela Recorrente.
           
7. O Senhor Juiz Desembargador no TRG proferiu o referido despacho de não admissão do recurso em 16/1/2023, com a seguinte fundamentação conclusiva:

“Nos presentes autos está em causa uma decisão interlocutória (vide AcSTJ de 29/06/2017, processo nº 2487/07.1TBCBR-C.C1.S1), resultando afastada a aplicabilidade do nº 1 do citado preceito [art. 671º do CPC].
O nº 2 do referido artigo contempla os casos em que é admissível o recurso de decisão de natureza interlocutória.
O caso ora em apreço não se subsume a qualquer destas hipóteses legais, nada foi alegado nesse sentido, sendo certo que mesmo como requisito de ordem formal, nas conclusões das alegações de recurso, a recorrente teria de aludir ao fundamento em que baseava o seu recurso, nos termos e para os efeitos do art. 637º, nº2 e 641º do CPC, o que não fez (…).
Igual raciocínio vale para a hipótese de se considerar aplicável (o que acima excluímos) o disposto no art. 14º do CIRE.
Assim, por todas estas razões, não admito o recurso de revista interposto.”

8. A Reclamante não se resignou com este despacho, sustentando na Reclamação deduzida ao abrigo do art. 643º do CPC argumentos que levariam a que se recebesse o recurso interposto para o prosseguimento da revista, uma vez que entende não ser aplicável o art. 671º, 2, do CPC.
Os Recorridos apresentaram Resposta nos termos admitidos pelo art. 643º, 2, do CPC, reiterando as razões já expostas e conducentes à inadmissibilidade da revista.

9. Foi proferida Decisão Singular nos termos do art. 643º, 4, CPC, que julgou improcedente a Reclamação e consequente não admissão do recurso.

10. Mais uma vez sem se resignar, a Requerente e Recorrente veio deduzir Reclamação para a Conferência, nos termos do art. 652º, 3, do CPC, ex vi art. 679º, do CPC, requerendo que sobre a matéria recaia um acórdão e remetendo para as razões antes expostas.
Os Requeridos e Recorridos ofereceram a sua Resposta, pugnando pelo indeferimento, seja por falta de fundamentação, seja por falência da sua posição.
*

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO

1. A questão a decidir é a de saber apenas se o despacho de não admissão deve ou não proceder tendo em conta a aplicação do art. 671º do CPC (nomeadamente o n.º 2, contemplando a “revista continuada” de decisões interlocutórias processuais proferidas em 1.ª instância).

Transcreve-se o que se sustentou na decisão reclamada, nos seus pontos 10. a 14.:
             
10. Em primeiro lugar, refira-se que, sendo esta acção tramitada em apenso ao processo de insolvência (v. art. 356º, 1, a), CPC), segue o regime da revista ordinária, por força do art. 17º, 1, do CIRE, sem estar submetido ao regime de revista restritiva e atípica prevista no art. 14º, 1, do CIRE, fundada em oposição jurisprudencial. O que implica a submissão da impugnação recursiva para o STJ aos termos gerais da revista enquanto espécie, aplicando-se, para tanto, as regras do processo civil em sede de recursos.

11. O acórdão recorrido julgou, em primeira linha, a decisão interlocutória correspondente ao despacho proferido em 26/1/2020, de acordo com o regime dos arts. 644º, 3, e 660º do CPC, e a sua repercussão na sentença recorrida, ficando precludida a análise da terceira das questões decidendas.
Concluiu:
“Tanto basta para considerar que inexiste um dos requisitos dos quais depende a validade da habilitação de adquirente, a saber, o “direito litigioso”, pelo que tem de ser revogada a sentença recorrida (art. 660º do CPC), mostrando-se prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos apelantes.”

12. Ambas as decisões proferidas em 1.ª instância e sindicadas na Apelação configuram objectivamente decisão interlocutória com incidência sobre a relação processual – neste caso, na tramitação e decisão do incidente de habilitação de cessionário (decisão interlocutória de natureza intercalar em sentido estrito, para o despacho, e decisão interlocutória incidental, inserida na causa principal, para a sentença), conducente à pretendida substituição da credora originariamente reclamante pela Requerente e alegada cessionária dos seus créditos.

13. Após ser proferido acórdão em sede de Apelação, a impugnação recursiva nestes casos para o 3.º grau de jurisdição segue em exclusivo o regime de admissibilidade do art. 671º, 2, do CPC:
«a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível [ou seja, as situações de revista extraordinária admitidas no art. 629º, 2, do CPC];
 b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»

14. A Recorrente não alegou em revista qualquer desses fundamentos ou oposição jurisprudencial contemplada nessas situações que pudesse ser surpreendido no acórdão recorrido, ignorando em absoluto qualquer dessas hipóteses exclusivas ditadas pelo art. 671º, 2 (com remissão, na respectiva al. a), para o art. 629º, 2).
Razão pela qual terá que ser sufragada a decisão de não admissão da revista, (…) pois não há como permitir o acesso da impugnação recursiva ao 3.º grau de jurisdição por via da revista normal tal como interposta pela Recorrente.”

2. Mais se acrescenta agora.
A Decisão Singular está em conformidade com a interpretação plasmada no Ac. do STJ de 29/6/2017[1], no que respeita à qualificação das decisões que se proferem e dirimem o incidente de habilitação de cessionário, «para com ele seguir a causa», como decisões interlocutórias de natureza processual, e com a doutrina de LOPES DO REGO, uma vez – assim se entende – pronunciando-se estas decisões no âmbito e acerca de incidente inserido na causa principal sem estar configurado com a estrutura e a natureza de uma verdadeira acção, apesar de constituír dependência de outro processo, mas diluindo-se como questão acessória na tramitação da causa principal[2].

Neste propósito, assim se fundamentou nesse aresto, ao qual se adere nos termos do art. 663º, 5, 2ª parte, ex vi art. 679º, do CPC:

“Como é sabido, os incidentes da instância traduzem-se em relações processuais secundárias, intercorrentes no processo principal, de caráter episódico ou eventual, os quais se destinam, em regra, a prover sobre questões acessórias, nomeadamente respeitantes ao preenchimento ou à modificação de alguns dos elementos da instância em que se inserem, como sucede nos casos de substituição de alguma das partes – art. 262.º, alínea a), do CPC.
No caso dos autos, tal incidente foi deduzido pela ora Recorrente para intervir em substituição da sociedade AA, Lda., autora na sobredita ação declarativa, e assim prosseguir, na qualidade de requerente, com o incidente de liquidação da condenação genérica ali proferida.
Sucede que a 1.ª instância julgou aquele incidente de habilitação procedente, declarando a requerente habilitada, mas tal decisão foi revogada pela Relação por considerar a invocada cessão de crédito nula com fundamento em simulação, daí resultando, como consequência, a improcedência desse incidente, não se tendo admitido, por isso, a pretendida habilitação da aqui Recorrente.
(…)
Assim, diferentemente do previsto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, quanto ao cabimento do recurso de apelação autónoma de decisão da 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, os parâmetros de admissibilidade da revista definidos no art. 671.º, n.º 1, do mesmo diploma circunscrevem-se aos acórdãos da Relação que, proferidos sobre decisão da 1.ª instância, conheçam do mérito da causa ou ponham termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos. Não se contemplam, pois, neste normativo as decisões finais dos incidentes da instância que versem unicamente sobre a relação processual.
Com efeito, o acórdão recorrido não se traduz em decisão que conheça do mérito da causa nem que tenha posto termo ao processo mediante absolvição do réu da instância ou por forma a esta equiparada.
O que se decidiu no acórdão recorrido foi a revogação da decisão da 1.ª instância que julgara procedente o incidente de habilitação singular da cessionária, tal como fora deduzido, com a consequente não admissão da Requerente a intervir em substituição da originária autora da ação principal.
Trata-se, por conseguinte, de um acórdão da Relação que apreciou uma decisão interlocutória da 1.ª instância – de estrita natureza incidental –, versando unicamente sobre a relação processual, mais precisamente sobre a pretendida substituição da autora originária pela pretensa cessionária, o que é subsumível ao disposto no n.º 2 do 671.º acima transcrito.”

3. Não se vislumbram razões para alterar estes fundamentos usados na Decisão Sumária reclamada, em todas as vertentes analisadas e na mobilização do regime legal aplicável.
Importa, pois, agora colegialmente em conferência, sublinhar a sua adequação e decidir em acórdão pela sua confirmação, o que se fará como epílogo.

 

III) DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em indeferir a Reclamação, mantendo-se a Decisão reclamada que confirmou o despacho de não admissão do recurso.

Custas da Reclamação a cargo da Recorrente e Reclamante, que se fixa em taxa de justiça no montante equivalente a 3 (três) UCs.


STJ/Lisboa, 16 de Maio de 2023



Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo




SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


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[1] Processo n.º 2487/07.1TBCBR-C.C1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, in www.dgsi.pt; v., usando este aresto para suporte da compreensão do art. 671º, 2, LUÍS ESPÍRITO SANTO, Recursos civis. O sistema recursório português. Fundamentos, regime e actividade judiciária, CEDIS, Lisboa, 2020, pág. 283.
[2] Neste sentido, como regra no contexto da tipologia das decisões interlocutórias submetidas em revista por via do art. 671º, 2, do CPC, v. LOPES DO REGO, “Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC – O regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias de natureza processual”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, Gestlegal, Coimbra, 2022, págs. 475-476 e 482: “decisões que se pronunciam acerca de incidentes inseridos na causa principal, admitindo-os ou rejeitando-os”.