Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
973/11.8TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
FILIAÇÃO BIOLÓGICA
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DO STJ, Nº 259 - ANO XXII - T. III/2014 - P. 39-43
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO (PATERNIDADE).
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
- Franchi, Commentario de Cian, Oppo e Trabucchi, tomo IV, 64, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, V, 1995, 210.
- Guilherme de Oliveira, Caducidade das Acções de Investigação, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, 53 e Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, nº 1, 2004, 7 a 13, citados; Critério Jurídico da Paternidade, Almedina, 2003, 390; Impugnação da Paternidade, Separata do volume XX do suplemento do BFDUC, Coimbra, 1979, 25 a 28.
- Jean Carbonnier, Droit Civil, 11ª edição, T2, Paris, PUF, 1979, 317 e 318.
- Paulo Mota Pinto, O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade, Stvdia Jvridica, nº 40, Portugal-Brasil Ano 2000, Coimbra Editora, 1999, 149 e ss.
- Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 68, 88, 94, 133, 137, 139 140 e 190.
- Pereira Coelho, Filiação, Apontamentos das Lições revistos pelo Professor, no âmbito da cadeira de Direito Civil, Curso Complementar, FDUC, 1978, 5 e nota (1), 19 e ss., 76 e 77.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1817º, Nº 1, 1826.º, N.º1, 1839º, Nº 1, 1841.º, Nº 2, 1842.º, N.º 1, AL. C), 1873.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, N.º 2, 25.º, N.º1, 26.º, N.º1, 36.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14-12-2006, PROCESSO Nº 06A2489, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 31-1-2007, PROCESSO Nº 06A4303, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 21-2-2008, PROCESSO Nº 07B4668, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 25-3-2010, PROCESSO Nº 144/07.8TBFVN.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº 23/06, DE 10 DE JANEIRO DE 2006, PUBLICADO NO DR, I SÉRIE-A, DE 28 DE FEVEREIRO DE 2006.
-Nº 589/07, DE 28 DE NOVEMBRO DE 2007, PUBLICADO NO DR, II SÉRIE, DE 18 DE JANEIRO DE 2008, PROFERIDO NO PROCESSO Nº 437/2007, 2519 A 2525.
-Nº 609/07, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2007, PUBLICADO NO DR, II SÉRIE, DE 7 DE MARÇO DE 2008, PROFERIDO NO PROCESSO Nº 563/2007.
Sumário :
I - A regra do «pater is est quem nuptiae demonstrant» contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal para o estabelecimento da paternidade, de natureza “iuris tantum”, por se basear num juízo de probabilidade e não de certeza, que consente a correção do erro, com a consequente possibilidade de se efetuar a prova do contrário do facto presumido.

II - Na ação de impugnação de paternidade proposta pelo filho do marido da mãe, o autor defende um direito próprio à verdade biológica, com vista a ilidir a presunção de paternidade atentatória da mesma.

III - Jogando-se a sorte da relação jurídica de paternidade na certeza da prova científica, em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado, fora do sortilégio da prova testemunhal, não se compreenderia que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade, que decorre do estipulado pelo art. 1826.º, n.º 1, do CC.

IV - As desvantagens que advêm para o autor da perda da possibilidade de vir a ter a paternidade fundada em presunção legal são menores e, claramente, proporcionadas, perante os benefícios resultantes para o mesmo de uma paternidade assente na correspondência com a verdade biológica, estabelecida e, devidamente, registada, em relação ao seu verdadeiro pai, mas que depende, impreterivelmente, do afastamento daquela presunção legal que, uma vez removida, permitirá a fixação de outra, desta vez, biológica, e não já por presunção.

V - A norma constante do art. 1842.º, n.º 1, al. c), do CC, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do filho do marido da mãe propor, a todo o tempo, a ação de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que este último não era o seu pai biológico, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efetiva e, bem assim, como do preceituado pelos arts. 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

AA, divorciado, residente na Rua ..., nº …, …º, dtº, Lisboa, propôs a presente acção, com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB, viúvo, residente no lugar de ..., ..., Barcelos, pedindo que, na sua procedência, se declare que o réu não é o pai biológico do autor, tudo com as legais consequências, invocando, para o efeito, e, em síntese, que o seu assento de nascimento foi lavrado com base em declaração directa e nele se atribui a paternidade do autor ao réu.

No entanto, o réu não é o pai biológico do autor, pois que este nasceu em data diferente daquela que consta do registo, a mãe do autor casou-se, apressadamente, com o réu, nunca havendo namorado um com o outro, sendo certo que um irmão da mãe do autor foi, por essa altura, emigrado para a Venezuela, nunca o réu tendo tratado o autor da mesma forma como tratou os seus outros filhos.

Na contestação, o réu excepciona a ilegitimidade passiva e a caducidade do direito de acção e, finalmente, impugna os factos alegados pelo autor.

            Foram chamados à acção, como associados do réu, CC, DD e EE, filhos da presumida mãe do autor, que não apresentaram contestação.
            Conhecendo sob a forma de saneador-sentença, o Tribunal de 1ª instância julgou procedente a excepção peremtória da caducidade do direito de impugnação da paternidade pelo autor, em virtude do decurso do prazo, e, em consequência, declarou extinto o direito do autor, absolvendo os réus do pedido contra si formulado.
Deste saneador-sentença, o autor interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação, confirmando a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação de Guimarães, o mesmo autor interpôs agora recurso de revista excecional, terminando as alegações com o pedido de substituição do douto acórdão recorrido, por outro que, considerando inconstitucional a norma, prevista no artigo 1842°, n° 1, c), do Código Civil, na parte em que prevê o prazo de três anos como de caducidade para o exercício do direito de impugnar a paternidade presumida e registada, dê seguimento ao processo, até ao seu julgamento, formulando as seguintes conclusões:
1ª - O artigo 1842.°, n.° 1, alínea c) do Código Civil, na parte em que prevê a caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade presumida do marido da mãe no prazo de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, é inconstitucional, violando, nesta medida, o direito à tutela judicial efetiva (artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa), o direito à identidade pessoal (artigo 26.°, n.° 1, CRP) e o direito a constituir família (artigo 36.°, n.° 1, CRP) e por não observar os requisitos que a Lei Constitucional impõe para a restrição de direitos fundamentais (artigo 18.°, n.° 2, da CRP).
2ª - Os prazos de caducidade e o interesse da segurança jurídica não devem assumir maior importância nem sobrepor-se ao direito fundamental da pessoa de saber quem é, de onde vem e quais são os seus ascendentes genéticos.
3ª - Atenta a similitude das questões em análise, os argumentos aduzidos no acórdão que serve de fundamento ao presente recurso devem ser levados em linha de conta, conduzindo, como aí sucedeu, a um juízo de inconstitucionalidade da norma em causa.
4ª - Consequentemente, deve permitir-se ao Autor impugnar a paternidade presumida, na medida em que esta não corresponde à realidade biológica.
Nas suas contra-alegações, o réu conclui no sentido de que o recurso de revista deve ser julgado improcedente, mantendo-se, na íntegra, o acórdão proferido.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do Novo Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:

1. O nascimento do autor, AA, mostra-se registado como tendo ocorrido, em 29 de Setembro de 1955.

2. No assento de nascimento do autor, o réu está inscrito como pai.

3. No processo de inventário que correu termos, no 1º juízo do Tribunal de Barcelos, sob o nº 1088/03.8TBBCL, o autor, em requerimento aí junto, declarou, entre o mais, o seguinte “tenho informações, de várias fontes, que não sou filho biológico do casal mas sim de FF, o irmão mais velho da inventariada. Desde há cerca de 20 anos para mim era evidente que a cabeça de casal não era meu pai biológico. Foi o pároco da ... em Janeiro de 2003 que por meias palavras a primeira pessoa a confirmar a situação”.

4. A presente acção foi proposta, em 21 de Março de 2011.

                                                          *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A única questão a decidir, na presente revista, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do CPC, consiste em saber se deve ser julgado inconstitucional o prazo de caducidade para a propositura da acção de impugnação da paternidade intentada pelo filho do marido da mãe e, consequentemente, se ocorreu ou não o prazo de caducidade do direito de propor a correspondente acção.


  DA CONSTITUCIONALIDADE DO PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE INTENTADA PELO FILHO DO MARIDO DA MÃE

            1. Entroncando as raízes mais profundas da sociedade na instituição familiar, como célula essencial da sua organização, a determinação do estado civil de pai ou de filho exerce um papel do maior relevo, convindo a todos os membros do agregado social, de modo muito particular, o conhecimento do vínculo jurídico de filiação ou da paternidade, com vista a que, uma vez definido, se mantenha para segurança e certeza das relações jurídico-sociais.

 Na hipótese de filho nascido dentro do casamento, ou seja, tratando-se de mãe conhecida e casada, a paternidade fica, automaticamente, estabelecida, sendo, então, o pai o marido da mãe, de acordo com o princípio clássico do «pater is est quem nuptiae demonstrant», consagrado pelo artigo 1826º, nº 1, do Código Civil (CC).

            A regra do «pater is est…», em que se sustenta a presunção de paternidade oriunda do normativo legal acabado de citar, seria um efeito pessoal do casamento, derivado do dever de coabitação e fidelidade recíproca entre os cônjuges, enquanto essência da instituição matrimonial monogâmica, mesmo nos casos em que esta base de sustentação não está presente, como acontece, por exemplo, na hipótese de adultério da mulher.

            Trata-se de uma visão clássica da regra em apreço, em homenagem a valores ditados por um conceito de moral que, em nome da defesa da instituição familiar, fecha os olhos à realidade da vida, ignorando a verdade biológica, quando esta lhe é incómoda[2].

            Quando o Direito presume como pai o marido da mãe, desinteressando-se pela verdade biológica, assenta no entendimento de que a paternidade do marido é um efeito do casamento[3].

            Esta regra do «pater is est…» contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal, que actua sem necessidade de recurso a qualquer decisão judicial para o estabelecimento da paternidade, de natureza “iuris tantum”, por se fundar num juízo de paternidade e não numa certeza que, a constatar-se que não aconteceu, isto é, que o pai não é o marido da mãe, consente a correcção do erro com a consequente possibilidade de se fazer prova do contrário do facto presumido[4].
  2. Revertendo ao caso decidendo, importa reter que o nascimento do autor se mostra registado como tendo ocorrido, em 29 de Setembro de 1955, sendo o mesmo registado como filho do réu, que havia casado com CC, em 6 de Novembro de 1954, enquanto que a presente acção foi instaurada, em 21 de Março de 2011.
3. Dispõe o artigo 1839º, nº 1, do CC[5], que “a paternidade do filho pode ser impugnada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho ou, nos termos do artigo 1841.º, pelo Ministério Público”, devendo na acção o autor, continua o seu nº 2, “provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável”.
Na hipótese da acção de impugnação de paternidade intentada pelo filho, esta pode ser instaurada “até 10 anos depois de [o mesmo] haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe”, consoante prescreve o artigo 1842º, nº 1, c), do CC.
Assim sendo, tendo o autor conhecimento, pelo menos, desde Janeiro de 2003, que não era filho biológico do réu, e havendo proposto a presente acção, em 21 de Março de 2011, sendo certo, outrossim, que foi registado como tendo nascido, em 29 de Setembro de 1955, e que atingiu a maioridade, em 29 de Setembro de 1976, por força do preceituado pelo artigo 122º do CC, na sua redação originária, aplicável por força do preceituado pelo artigo 12º, do mesmo diploma legal, verifica-se a excepção da caducidade do direito de instaurar a acção, conforme foi entendimento das instâncias, porquanto a norma do artigo 1842º, nº 1, c), do CC, exige que a acção de impugnação da paternidade proposta pelo filho seja intentada, no prazo de três anos, a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, o que, na pior das hipóteses, aconteceu, no caso em apreço, em Janeiro de 2003, enquanto que a ação deu entrada em juízo, em 21 de Março de 2011.
Porém, a questão crucial que a presente revista suscita tem antes a ver com a pretensa inconstitucionalidade deste prazo de caducidade da propositura da acção de impugnação da paternidade, na consideração de que o mesmo possa estabelecer um limite desproporcional, em relação ao significado que o exercício do direito de acção em causa pretende salvaguardar, na acepção de poder não garantir, adequadamente, esse valor constitucional.
4. No âmbito da acção de investigação de paternidade, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 1817º, nº 1, do CC, que prevê a extinção, por caducidade, do direito de investigar a paternidade, a partir dos 20 anos de idade do filho, em conformidade com o disposto pelo artigo 26º, nº 1, reconhecendo-se que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal”, na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem, a que se reportam os artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1, ambos da Constituição da República (CRP), que não seria, devidamente, acautelado se a acção que o concretiza estivesse sujeita ao dito prazo de caducidade[6].
Estipula o artigo 1817º, nº 1[7], aplicável à acção de investigação de paternidade, com as necessárias adaptações, por força do preceituado pelo artigo 1873º, ambos do CC, que “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos[8] posteriores à sua maioridade ou emancipação”.
Assim sendo, a questão que se coloca, no fundo, está em saber se esta doutrina é aplicável, com base no princípio ou argumento do paralelismo ou da identidade de razão, por interpretação extensiva, às acções de impugnação de paternidade, que o artigo 1842º nº 1, a), b) e c), do CC, sujeita a prazos distintos de caducidade, consoante sejam propostas pelo marido, pela mãe, ou pelo filho, respetivamente.
A propósito da hipótese concreta da acção de impugnação de paternidade ser movida pelo filho maior ou emancipado, foi decidido, neste particular, pelo Tribunal Constitucional, que “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, nº 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no artigo 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código, não se antevendo que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições”.
Nesta decisão, o direito constitucional que se procurou salvaguardar foi, por isso, também, o direito à identidade, mas sem distinguir entre as situações de investigação e as de impugnação, ou seja, como aí se refere, «sempre que uma questão de filiação é colocada»”[9], sendo certo, igualmente, que a limitação temporal não encontra grande apoio na natureza, predominantemente, moral e pessoal, do estado civil, com larga repercussão de interesse geral.
Na verdade, aqui e agora, o autor está a defender um direito próprio à verdade biológica, em matéria de paternidade, e a pretender esclarecer a sua posição social e jurídica, quer em relação ao seu estatuto de filho presumido, quer em relação ao agregado familiar em que se integra, quer ainda ao meio social em que se insere, encontrando-se, igualmente, a garantir o direito à sua identidade, assente na situação de presumido filho.
Efectivamente, o Código Civil Português entende a relação paterno-filial, no sentido restrito de filiação, exclusivamente, biológica, senão real, pelo menos, presumida[10].
Na acção de impugnação de paternidade, é, sempre, o direito à identidade da filiação, o direito a ter um pai, que está em causa, embora repartido pelo direito do pai presumido ilidir a presunção de paternidade que sobre ele incide, enquanto duas faces opostas de uma mesma realidade.
E, nem se diga, em sentido contrário, em nome da defesa de valores, como o da segurança das relações familiares, que, uma vez estabelecida a paternidade, por presunção legal, já não é assim tão relevante saber da sua correspondência com a realidade biológica, como se à tranquilidade da boa consciência apenas interessasse a paternidade, independentemente da fonte de onde a mesma provenha.
Efectivamente, as razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro jurídico-familar estabilizado, mesmo não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social.
Numa altura em que a sorte da relação jurídica de paternidade se joga na certeza da prova científica, e em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado para alcançar esse fim, fora do sortilégio da prova testemunhal, constituiria fonte de incompreensão e de surpresa social que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo artigo 1826º, nº 1, do CC[11].
Trata-se de uma nova ética, mas que, no fundo, se reconduz à ética primordial do primado da família ou da comunidade natural, que sobreleva o escândalo de uma situação familiar com, porventura, dezenas de anos, poder vir a ser abalada por uma acção de impugnação tardia, quando os interessados na destruição da paternidade presumida entendam não dever continuar a manter a discrepância entre a paternidade presumida e a realidade biológica, devendo, então, “a perempção ceder perante alterações excepcionais e graves da vida familiar que tornem injusta e inútil a subsistência do vínculo”[12].
É que a permanência de um vínculo de filiação que o impugnante filho não quer pode trazer mais inconvenientes do que vantagens para este!
 Com efeito, os desenvolvimentos da genética vêm acentuando a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, tendo o “direito fundamental à identidade pessoal” e o “direito fundamental à integridade pessoal” adquirido uma dimensão mais nítida, associados ao “direito ao desenvolvimento da personalidade”, introduzido pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, oriundo da revisão constitucional de 1997, consubstanciando-se num direito de conformação da própria vida, num direito de liberdade geral de acção, cujas restrições têm de ser, constitucionalmente, justificadas, necessárias e proporcionais[13].
É, por isso, que, valendo o direito ao livre desenvolvimento da personalidade[14], quer para o pretenso filho, como para o suposto progenitor, aquele princípio constitucional significa que para o primeiro o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família e a sua “localização” no sistema de parentesco[15], enquanto que para o pai se traduz no direito de ilidir a presunção de paternidade atentatória da verdade biológica que se impõe afastar.
De facto, os tempos correm a favor da imprescritibilidade das acções de filiação, por imperativo da verdade biológica, não tendo sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas, nem da insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a paternidade, a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade[16].
Efectivamente, os prazos de caducidade, nas acções de estabelecimento de filiação, estão em crise ou tornaram-se menos sedutores, sobretudo, quando a caducidade não visa proteger uma realidade com consistência familiar efectiva, um vínculo de filiação “social” que desempenhe as suas funções, um vínculo que se exprima por «posse de estado», apesar de lhe faltar o fundamento biológico, tornando-se a previsão de um prazo com os fins típicos e abstratos da defesa e segurança, pouco convincente, nestas matérias[17].
Deste modo, o respeito, puro e simples, pela verdade biológica sugere, claramente, a imprescritibilidade, não só do direito de investigar como do direito de impugnar.
Enquanto a ordem jurídica nacional continuar assente numa matriz, essencialmente, biologista, é espectável que o direito de pesquisar a verdade não caduque, devendo o Direito da Filiação adequar-se à verdade biológica, porquanto, apesar de tudo, é ainda a “mais verdadeira”[18], ou, então, dito de outro modo, a menos imprevisível, que persegue a coincidência entre o Direito e as realidades do sangue, em vez de procurar garantir o estatuto de filho “legítimo” e um certo entendimento da “paz das famílias”.
Esta é a solução que está de acordo com a tendência moderna e dominante, em direito comparado, embora não pacífica, de sobrepor às exigências da segurança jurídica, da eficácia das provas e da estabilidade das situações familiares adquiridas o interesse público da procura da verdade biológica, quando, não obstante a subsistência jurídica da família conjugal e do vínculo da paternidade, o estado civil do filho não tem correspondência social, familiar e afectiva [19].
Assim sendo, as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, estão, outrossim, presentes na disposição contida no artigo 1842º, nº 1, c), ambos do CC.
Ora, não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, seja necessário e proporcional, face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada, e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade, em homenagem a essas restrições.
O prazo para o exercício do direito de impugnação traduz mais uma hora de reflexão pelo interessado para a opção a tomar do que o tempo de preparação da prova para lograr em juízo o triunfo da verdade[20].
A valorização dos direitos fundamentais da pessoa, tais como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, prevalecem sobre a ideia da existência de prazos de caducidade, nas acções de estabelecimento da filiação.
O único interesse que poderia invocar-se, em contraponto ao direito fundamental do autor em determinar, juridicamente, a sua verdadeira paternidade biológica, seria o da «harmonia e estabilidade da vida e da família conjugal», se o mesmo, porém, devesse prevalecer, face ao princípio da proporcionalidade, pois que tais limitações específicas ao direito dos filhos agirem contra o cônjuge de sua mãe, não se traduzem em efeitos discriminatórios, constitucionalmente, vedados.
Efectivamente, as desvantagens que advêm para o autor da perda da possibilidade de a sua paternidade deixar de se encontrar fundada em presunção legal são menores e, claramente, proporcionadas, perante os benefícios resultantes para o mesmo de uma paternidade assente na correspondência com a verdade biológica, estabelecida e, devidamente, registada, em relação ao seu verdadeiro pai, mas que depende, impreterivelmente, do afastamento daquela presunção legal que, uma vez removida, permitirá, eventualmente, a fixação de uma outra, desta vez, biológica, e não já por presunção.
Aliás, admitindo-se, como hipótese viável, que possa ser julgada improcedente a futura acção de investigação de paternidade, e que, consequentemente, o autor viesse a perder a menção da paternidade do réu, atualmente, constante do registo, esta seria, não obstante, face à contundência e veemência da sustentação do autor, sempre um mal menor, e um cenário que, por certo, o mesmo preferiria, em alternativa à actual situação de paternidade presumida.
Caso procedesse a exceção da caducidade do direito de impugnação, por parte do autor, cercear-se-ia, em definitivo, o direito fundamental do mesmo à identidade pessoal e, correlativamente, a ver reconhecida a paternidade biológica.
Aliás, face à pluralidade das pessoas a quem hoje a lei confere legitimidade para impugnar a paternidade presumida e à diversidade de prazos que os vários titulares da legitimidade ativa dispõem, para o efeito, isto é, três anos, contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, para o marido da mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento, para a mãe, e até dez anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou, posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, para o filho, por força do disposto pelo artigo 1842º, nº 1, a), b) e c), do CC, a opção pela paternidade presuntiva não poderá ter-se como consolidada antes de haverem caducado todos os direitos de impugnação atribuídos aos seus diferentes titulares ativos.
Escoam-se, assim, com o devido respeito, os argumentos que ainda pretendem sustentar a constitucionalidade do prazo de impugnação da paternidade presumida, nas acções intentadas pelo filho do marido da mãe.
Conclui-se, pois, que a norma prevista, no artigo 1842º, n.º 1, c), do CC, na dimensão interpretativa explicitada, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva, na parte em que consagra o prazo de três anos para o filho intentar a acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, e bem assim como do estipulado pelos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2, da CRP.
Logo, o prazo do artigo 1842º, nº 1, c), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de o filho do marido da mãe impugnar, a todo o tempo, a sua paternidade, constituindo uma salvaguarda desproporcional dos valores de certeza e segurança jurídica que visam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação, por períodos, excessivamente, longos, é inconstitucional, face à defesa do direito à identidade, consagrado pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, razão pela qual não ocorre a caducidade da acção [21].

CONCLUSÕES:

I - A regra do «pater is est quem nuptiae demonstrant» contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal para o estabelecimento da paternidade, de natureza “iuris tantum”, por se basear num juízo de probabilidade e não de certeza, que consente a correcção do erro, com a consequente possibilidade de se efetuar a prova do contrário do facto presumido.
II – Na acção de impugnação de paternidade proposta pelo filho do marido da mãe, o autor defende um direito próprio à verdade biológica, com vista a ilidir a presunção de paternidade atentatória da mesma.

III – Jogando-se a sorte da relação jurídica de paternidade na certeza da prova científica, em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado, fora do sortilégio da prova testemunhal, não se compreenderia que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo artigo 1826º, nº 1, do CC.

IV - As desvantagens que advêm para o autor da perda da possibilidade de vir a ter a paternidade fundada em presunção legal são menores e, claramente, proporcionadas, perante os benefícios resultantes para o mesmo de uma paternidade assente na correspondência com a verdade biológica, estabelecida e, devidamente, registada, em relação ao seu verdadeiro pai, mas que depende, impreterivelmente, do afastamento daquela presunção legal que, uma vez removida, permitirá a fixação de outra, desta vez, biológica, e não já por presunção.
V - A norma constante do artigo 1842º, nº 1, c), do CC, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do filho do marido da mãe propor, a todo o tempo, a acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que este último não era o seu pai biológico, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva e bem assim como do preceituado pelos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2, da CRP.

DECISÃO[22]:


Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista, e, em consequência, revogam o acórdão recorrido, devendo os autos prosseguir a sua tramitação, em sede de 1ª instância, nomeadamente, se assim for entendido, proferindo-se despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas de prova, de acordo com o estipulado pelo artigo 596º, nº 1, do CPC.

                                                    *

Custas, a cargo dos réus.

                                                    *

Notifique.

Lisboa, 16 de Setembro de 2014

Helder Roque (Relator)

Gregório Silva Jesus

Martins de Sousa

________________________
[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.
[2] Pereira Coelho, Filiação, Apontamentos das Lições revistos pelo Professor, no âmbito da cadeira de Direito Civil, Curso Complementar, FDUC, 1978, 19 e ss., 76 e 77.
[3] Guilherme de Oliveira, Impugnação da Paternidade, Separata do volume XX do suplemento do BFDUC, Coimbra, 1979, 25 a 28.
[4] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 94.
[5] Na redacção dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, com início de vigência, no dia seguinte ao da sua publicação.
[6] TC, Acórdão nº 23/06, de 10 de Janeiro de 2006, publicado no DR, Iª série-A, de 28 de Fevereiro de 2006.
[7] Na redacção dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, com início de vigência no dia seguinte ao da sua publicação, mas que se aplica, por força do respectivo artigo 3º, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
[8] Na altura, “nos dois primeiros anos”.
[9] TC, Acórdão nº 609/07, de 11 de Dezembro de 2007, publicado no DR, IIª série, de 7 de Março de 2008, proferido no Processo nº 563/2007.
[10] Pereira Coelho, Filiação, Apontamentos das Lições revistos pelo Professor, no âmbito da cadeira de Direito Civil, Curso Complementar, FDUC, 1978, 5 e nota (1).
[11] STJ, de 25-3-2010, da conferência do atual Relator, sendo Adjuntos os Exºs Conselheiros Sebastião Póvoas e Moreira Alves, www.dgsi.pt,
[12] Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, Almedina, 2003, 390.
[13] Guilherme de Oliveira, Caducidade das Acções de Investigação, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, 53; e Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, nº 1, 2004, 7 a 13; TC, Acórdão nº 589/07, de 28 de Novembro de 2007, publicado no DR, IIª série, de 18 de Janeiro de 2008, proferido no Processo nº 437/2007, 2519 a 2525.
[14] Paulo Mota Pinto, O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade, Stvdia Jvridica, nº 40, Portugal-Brasil Ano 2000, Coimbra Editora, 1999, 149 e ss.
[15] Guilherme de Oliveira, Caducidade das Acções de Investigação, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, 53; e Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, nº 1, 2004, 7 a 13, citados.
[16] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 139.
[17] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 137 e 190.
[18] Jean Carbonnier, Droit Civil, 11ª edição, T2, Paris, PUF, 1979, 317 e 318.
[19] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 68, 88, 133,140 e 190.
[20] Franchi, Commentario de Cian, Oppo e Trabucchi, tomo IV, 64, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, V, 1995, 210.
[21] STJ, de 21-2-2008, Processo nº 07B4668; STJ, de 31-1-2007, Processo nº 06A4303; e de 14-12-2006, Processo nº 06A2489, in www.dgsi.pt
[22] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório da Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.