Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A4568
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
REGULAMENTO (CE) 44/2001
Nº do Documento: SJ200701310045681
Data do Acordão: 01/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : Em acção proposta com vista à obtenção de executoriedade de decisão de tribunal alemão, ao abrigo do disposto nos arts. 32º a 37º e 39º a 42º do Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22-12-2000, o tribunal a quo apenas cometerá nulidade por omissão de pronúncia (prevista na al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC) se as questões colocadas à sua consideração de circunscrevam às questões taxadas pelo nº 1 do art. 45º do dito Regulamento e deixar de apreciá-las, mas já o mesmo se não poderá dizer se as questões colocadas extravasarem o âmbito da previsão deste normativo legal.
De acordo com o nº 1 do art. 34º do citado Regulamento, "uma decisão não será reconhecida se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido".
O pagamento coercivo por incumprimento culposo de um contrato misto de empreitada e venda e custas do processo mediante a competente acção executiva harmoniza-se com a ordem pública portuguesa, nada impedindo que a parte faça valer em sede executiva a decisão condenatória proferida por aquele tribunal alemão. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I -

"AA", requereu, no Tribunal Judicial de Guimarães, a executoriedade da sentença e despacho proferidos pelo Tribunal Estadual de Münster e da sentença do Tribunal Superior de Hamm contra
Empresa-A.,
ao abrigo do disposto nos arts. 32º a 37º e 39º a 42º do Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22-12-2000.

Tal pretensão foi deferida, tendo o Mº juiz do Tribunal Judicial de Guimarães declarado a executoriedade da sentença do Tribunal Estadual de Münster, de 22 de Dezembro de 2004, da sentença do Tribunal Superior de Hamm de 20 de Setembro de 2005 e do despacho de fixação de custas e despesas do processo de 2 de Novembro de 2005.

Com esta decisão não se conformou a requerida, que apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães, mas sem êxito na justa medida em que este se limitou a confirmar o julgado impugnado.

Pede, ora, a requerida revista, pondo o acento tónico da sua discordância nos seguintes pontos:
1º - Efeito do recurso;
2º - Nulidades do acórdão;
3º - As decisões proferidas nos tribunais alemães não podem ter força executiva não só porque não obedecem aos requisitos formais do Regulamento 44/2001, como também porque contrariam a ordem pública.

Em contra-alegações, a recorrida defendeu a manutenção do aresto impugnado.

II -

A requerente instruiu o seu pedido de exequatur com os seguintes documentos:
- Cópia da sentença do Tribunal Estadual de Munster proferida a 22/12/2004, com respectivas traduções e certidão segundo o formulário do anexo V;
- Certidão segundo o formulário do anexo V;
- Cópia do acórdão de 20/08/2005 do Tribunal Superior de Haam, com traduções e segundo o formulário do anexo V;
- Cópia do despacho de 02/11/2005 do Tribunal de Munster, respectivas traduções e certidão segundo o formulário do anexo V.

III -

O 1º ponto supra referido foi já objecto de apreciação e decisão do Relator, estando, por isso mesmo, arredado, ora, o seu conhecimento.

Passemos, pois, a apreciar o mérito da crítica dirigida ao acórdão impugnado, começando, naturalmente, pelas arguidas nulidades.

Em 1º lugar, a recorrente defende que houve por parte da Relação de Guimarães omissão de pronúncia, concretamente quanto à omissão da certidão da sentença proferida pelo Tribunal Superior Alemão emitida segundo o formulário uniforme constante do anexo V e, ainda, sobre a desconformidade da decisão com a ordem pública.

Será que a razão lhe assiste?
Vejamos.

De acordo com a 1ª parte da al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC, há omissão de pronúncia quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
Esta sanção decorre da violação da regra contida no nº 2 do art. 660º do mesmo diploma: "o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenha submetido à sua apreciação".
Não é fácil decidir sobre quais as verdadeiras questões que o juiz deve conhecer sob pena de cometer nulidade. A questão coloca-se, com dificuldade acrescida ao nível da 1ª instância, mas surge-nos muito mais simples em sede de recurso já que o legislador delimita com precisão o seu objecto, ou seja, o tribunal ad quem só pode e deve emitir pronuncia sobre todas as questões que foram elencadas nas conclusões (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC).
Problema curioso que se pode colocar é o de saber se, não obstante a nulidade, o tribunal de recurso concluindo pela inutilidade da sua apreciação, pode revogar o julgado posto em crise.
Mais difícil se nos afigura a hipótese de possível confirmação da decisão impugnada, malgrado a nulidade invocada.
Para estes casos, pensamos que, em regra, é possível, decidir de meritis, não obstante a verificação da arguida nulidade de decisão.
A nossa tarefa está, no entanto, deveras facilitada atento o disposto no nº 2 do art. 731º do CPC.
Neste caso, a lei impõe a baixa do processo ao tribunal inferior a fim de a nulidade ser sanada.
Postas as coisas nestes precisos termos, as questões que se nos colocam são tão-somente estas:
- Terá o Tribunal da Relação de Guimarães omitido pronúncia sobre alguma questão que a ora recorrente lhe colocou em sede de recurso de apelação?
- A acontecer isso, o remédio será ordenar a baixa do processo àquele Tribunal?

Ora, ao lançarmos os olhos sobre as questões que a ora recorrente colocou à consideração daquele Tribunal, deparamos que foram por ela suscitadas as seguintes:
1ª - Relativas a incumprimento de requisitos formais, quais sejam o de omissão da certidão da sentença proferida pelo Tribunal Superior Alemão de acordo com o formulário uniforme constante do anexo V, da provisoriedade e falta de notificação à recorrente do despacho que fixou as custas e falta de notificação das decisões;
2ª - Contrariedade da decisão com os princípios de ordem pública, na vertente de falta de respeito pelo contraditório e de acesso ao direito e, ainda, com fundamento em alegado vício das decisões dos tribunais alemães com base em falta de fundamentação das mesmas.
À primeira vista parece que a recorrente está com razão neste capítulo da nulidade por omissão de pronúncia já que, como ela salienta na sua minuta, o Tribunal de Guimarães apenas emitiu pronuncia sobre a omissão de certidão da sentença e a desconformidade com a ordem pública.
Mas o caso não passa da aparência.
Na verdade, o nº 1 do art. 45º do Regulamento 44/2001 prescreve de forma taxativa o seguinte:
" O tribunal onde foi interposto recurso ao abrigo dos artigos 43º ou 44º apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35º".
Ou seja, é o próprio Regulamento que (de)limita o objecto do recurso.
Sobre este ponto concreto, o Tribunal da Relação de Guimarães disse o seguinte:
"O art. 35º, atentas as remissões nele feitas, reporta-se a competência em razão de determinadas matérias, sobre a qual nenhuma questão vem suscitada no recurso.
Os nºs 2, 3 e 4 do art. 34º do Regulamento respeitam a requerido revel no processo em que foi proferida a decisão exequenda e a decisão exequenda inconciliável com outra respeitantes às mesmas partes proferida no Estado-Membro requerido, ou noutro Estado-Membro ou em terceiro Estado, não se suscitando no recurso qualquer questão subsumível".
E, logo de seguida, emitiu pronúncia sobre a alegada ofensa à ordem pública, concluindo pela sua não verificação.

Com tudo isto, podemos, ora concluir que, atento os apertados limites de cognição impostos pelo Regulamento 44/2001, nada mais podia o Tribunal da Relação fazer do que emitir pronúncia apenas e só sobre as questões colocadas pela recorrente e que estivessem contempladas nas previsões dos normativos supra citados.
Se, à partida, o tribunal está limitado ex vi legis a emitir pronúncia sobre certos e determinados pontos, não podemos, sob pena de consagração e validação de actos inúteis (e, como tais, proibidos - art. 137º do CPC) criticá-lo pelo facto de não se ter pronunciado sobre questões não abrangidas pelo regime de recurso.

Explanadas e explicadas as razões que levaram o Tribunal da Relação de Guimarães a agir em conformidade com as disposições específicas do Regulamento 44/2001, forçoso é concluir que, no caso concreto, malgrado não ter havido pronúncia sobre todas as questões colocadas em sede de conclusões, não se pode falar em omissão de pronúncia pela simples razão da limitação cognitiva a que o tribunal a quo estava sujeito.
Descabido, dest’arte, falar aqui em nulidade de decisão, tal como está contemplada na al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC.

Em matéria de arguição de nulidades, a recorrente não se quedou por aqui e invocou a prevista na al. b) do nº 1 do já citado art. 668º.
Apontou mesmo que a decisão da Relação é omissa na sua fundamentação.
Pelo que já deixamos dito, podemos afoitamente classificar esta crítica como injusta.
Na verdade, a lei só comina a decisão com a sanção da nulidade se houver total e absoluta falta de motivação, mas já não a justificação insuficiente ou medíocre.
Ora, como já tivemos oportunidade de dizer, a Relação de Guimarães justificou a razão pela qual limitava o seu conhecimento aos pontos que a lei permite (aqui Regulamento, para sermos mais precisos), fundamentando a razão da não adesão à alegação da recorrente.
No caso concreto, lendo e relendo a decisão impugnada, só podemos dizer que está minimamente fundamentada, o que afasta radicalmente a imputação que a recorrente lhe faz.

Resta-nos, pois, apreciar se assiste razão à recorrente quando invoca violação da ordem pública, a verdadeira e única razão de mérito deste recurso.
A este respeito prescreve o nº 1 do art. 34º do Regulamento em causa que "uma decisão não será reconhecida se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido".
Colocada esta questão da ofensa à ordem pública portuguesa no reconhecimento das decisões proferidas pelos tribunais alemães, reflectiu a Relação de Guimarães do seguinte modo:
"No caso em apreço, as decisões a reconhecer e a declarar exequíveis em Portugal respeitam a condenações da Recorrente no pagamento de determinadas quantias por incumprimento culposo de um contrato misto de empreitada e venda e custas e despesas do processo.
Ora o pagamento coercivo em Portugal destas quantias, mediante a competente acção executiva, harmoniza-se com a ordem pública portuguesa".
Cremos que nada mais é necessário dizer para tornar evidente a sem razão da recorrente a este respeito.
"A Ordem Pública é o complexo dos princípios e dos valores que informam a organização política, económica e social da Sociedade e que são, por isso e como tal, tidos como imanentes ao respectivo ordenamento jurídico" (Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil - 2ª edição -, pág. 427).
Para este civilista, "quando insanavelmente contrária à Moral, a Ordem Pública é imoral e, como tal, antijurídica e não vinculante".
Segundo Manuel de Andrade, um negócio pode ser contrário à ordem jurídica porque a própria lei o proíbe ou porque remete para as prescrições da moral, nelas como que delegando tal proibição (in Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág. 331).
Mota Pinto, depois de nos chamar a atenção para o facto de não podermos fixar um numerus clausus nesta matéria, aponta para exemplos acolhidos na jurisprudência francesa, como, por exemplo, convenções sobre tráfico de votos e convenções através das quais alguém se obrigue a expor o seu corpo ou de outrem a danos voluntários e não justificados (in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 434).
Postos perante estas considerações doutrinais, mais se acentua a bondade da decisão impugnada no que diz respeito à questão que a ora recorrente lhe colocou como sendo ofensivas as sentenças alemães em face da ordem jurídica portuguesa: nada há nesta que proíba que se recorra a juízo com vista à satisfação de dívidas.
Pelo contrário, a nossa Ordem Jurídica, como, aliás, todas as Ordens Jurídicas, permitem o recurso à via executiva quando o devedor não cumpre voluntariamente as obrigações a que, por lei ou por decisão judicial, está adstrito.

Com estas considerações, ainda que breves, temos por finalizada a apreciação do recurso interposto e no sentido da sua improcedência.
Apenas nos resta, com a devida vénia, repetir aqui o que já ficou dito pela Relação: "todas as demais questões suscitadas extravasam o âmbito deste recurso".

IV -

Decisão

Nega-se a revista.
Sem custas, ut art. 52º do Regulamento.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2007
Urbano Dias
Paulo Sá
Borges Soeiro