Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
45/20.4YFLSB
Nº Convencional: SESSÃO CONTENCIOSO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
AUTONOMIA ADMINISTRATIVA
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA
CLASSIFICAÇÃO DE SERVIÇO
JUIZ
VIOLAÇÃO DE LEI
ERRO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
RELATÓRIO DE INSPECÇÃO
DIREITO DE RESPOSTA
DEVER DE PROSSECUÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO
ATRASO PROCESSUAL
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Depois de consagrar, no seu artigo 2.°, o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos particulares perante a Administração, o próprio CPTA estabelece, no seu artigo 3.°, n.° 1, que “no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais [...] julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação».
II - A atuação do CSM, quando atribui uma classificação em sede de inspeção ao trabalho desenvolvido por magistrado judicial, situa-se precisamente na confluência dos três campos privilegiados da denominada «discricionariedade» administrativa que abrange: i) a margem de livre apreciação; ii) o preenchimento de conceitos indeterminados; e iii) a prerrogativa de avaliação
III - Quando o CSM atribui uma determinada classificação, em sede de inspeção ao trabalho desenvolvido por um magistrado judicial, atua precisamente no exercício da denominada “discricionariedade administrativa”.
O recurso interposto para o STJ da deliberação do CSM que atribuiu determinada classificação a um magistrado judicial é um recurso de mera legalidade.
O juízo valorativo formulado pelo CSM relativamente ao mérito do magistrado não é sindicável pelo Supremo, salvo se o mesmo enfermar de erro manifesto, crasso ou grosseiro, ou se os critérios utilizados na avaliação forem ostensivamente desajustados.
IV - Não é, por regra, admissível o pedido de revogação, modificação ou substituição do ato impugnado, que se diz lesivo dos direitos ou interesses legalmente protegidos, a condenação da Administração a praticar determinado ato ou a substituição desta pelo tribunal na prática do ato administrativo, devendo o pedido cingir-se à declaração de invalidade, inexistência ou anulação desse ato, por força de vícios que o inquinem.
V - Estando em causa matéria respeitante à avaliação do desempenho profissional de um juiz de direito e a consequente atribuição classificativa, cabe ao CSM uma ampla discricionariedade técnica de valoração, nessa medida insuscetível de reapreciação jurisdicional, estando apenas reservado ao STJ o conhecimento dos vícios determinativos da nulidade ou da anulabilidade do ato impugnado com fundamento em violação das normas e princípios a que o órgão decisório está vinculado, nas suas múltiplas e diversas dimensões, incluindo, todavia, os casos de erro de facto manifesto.
VI - Os atos administrativos carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos - CRP artigo 268.°, n° 3.
VII - O que se pretende com a fundamentação é levar ao conhecimento do destinatário o percurso cognoscitivo e valorativo que o autor do ato percorreu para decidir de modo a permitir que um destinatário normal, colocado na posição do real destinatário do ato, possa compreender por que razão o autor do ato decidiu assim. O critério é o da compreensibilidade por um destinatário normal do ato colocado na posição do destinatário real.
VIII-O dever de fundamentação expressa dos atos administrativos tem uma tripla justificação racional: habilitar o interessado a optar conscientemente entre conformar-se com o ato ou impugná-lo; assegurar a devida ponderação das decisões administrativas e e permitir um eficaz controlo da atuação administrativa pelos tribunais.
IX - A fundamentação do ato administrativo é suficiente se, no contexto em que foi praticado, e atentas as razões de facto e de direito nele expressamente enunciadas, for capaz ou apta e bastante para permitir que um destinatário normal apreenda o itinerário cognoscitivo e valorativo da decisão; é clara quando tais razões permitem reconstruir o iter cognoscitivo- valorativo da decisão; é congruente quando a decisão surge como conclusão lógica e necessária de tais razões; e é contextuai quando se integra no próprio ato e dela é contemporânea.
X - O art. 13.º, n.° 4, do RSICSM, ao aludir a «conjunto significativo de atrasos», estabelece um conceito indeterminado, a preencher pela entidade demandada em sede de ato administrativo.
XI - Foi feita no relatório inspetivo uma apreciação global do trabalho quantitativo prestado pelo demandante durante o período inspetivo, e foi concretizado o juízo relativo ao atraso significativo de decisões, desenvolvendo esse juízo em três áreas distintas (quantidade de atrasos; dimensão temporal; e gravidade dos atrasos no contexto das condições de execução do serviço).
XII - Os dados exarados no relatório inspetivo estão devidamente objetivados e fundamentados nos termos exigíveis e atrás expostos. Ponderada a adequação dos dados coligidos no relatório inspetivo, a deliberação ora impugnada incorporou-os na respetiva fundamentação, e concretizou ou densificou o juízo negativo relativo à não subsunção do desempenho do autor no nível de “excelência” que justificasse a atribuição de Muito Bom.
XIII - A atribuição da classificação máxima de Muito Bom depende da demonstração de elevado mérito no exercício de funções, ao longo de um período de tempo considerável e, desejavelmente, contínuo, ao longo da respetiva carreira. Além disso, considerando a relevância que a verificação de atrasos processuais comporta na prossecução do interesse público subjacente à administração célere da justiça, tal circunstância é expressamente assumida como sendo susceptível de obstar a melhoria/subida de classificação.
XIV- A um juiz de Direito que tenha atrasos processuais não pode ser atribuída a classificação de “Muito Bom”, a não ser excecionalmente e lançando mão de juízos de ponderação e de adequada fundamentação.
XV- Com efeito, o atraso na prolação de uma decisão, além de colidir com o prescrito na lei, constitui, nos termos do disposto no artigo 13° n° 4 do RSICSM, um critério atendível e decisivo no processo de classificação do desempenho de um juiz. Decorre daquele normativo que, verificando-se um “conjunto significativo de atrasos” na condução processual, a melhoria da classificação só pode ocorrer em situações excecionais, devidamente fundamentadas.
XVI- O princípio da proporcionalidade exige que, no exercício dos poderes discricionários, a Administração não se baste em prosseguir o fim legal justificador da concessão de tais poderes: ela deverá prosseguir os fins legais, os interesses públicos, primários e secundários, segundo o princípio da justa medida, adotando, de entre as medidas necessárias e adequadas para atingir esses fins e prosseguir esses interesses, aquelas menos gravosas, que impliquem menos sacrifícios ou perturbações à posição jurídica dos administrados.
Decisão Texto Integral:


Procº nº 45/20.4YFLSB

Acordam na Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça

I - AA, Juiz de Direito, notificado da deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura (CMS), de 03.11.2020, que lhe atribuiu a classificação de ''Bom com Distinção" pelo serviço prestado entre 1 de Janeiro de 2015 e 16 de Outubro de 2019, no Juízo Local Cível …… e no Juízo Local Criminal……., vem, ao abrigo do disposto nos artigos 169º e seguintes do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), apresentar acção administrativa de impugnação contra o Conselho Superior da Magistratura, pedindo que a acção seja julgada procedente e, em consequência, ser a deliberação anulada.

Em síntese, alegou que a deliberação enferma de falta de fundamentação, vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito (violação do disposto nos artigos 12.º e 13.º do RSICSM) e violação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

O Conselho Superior da Magistratura contestou, pedindo que a acção seja julgada improcedente com a consequente absolvição do pedido, porquanto o juízo valorativo formulado pelo réu e vertido na sua deliberação tomada na Sessão Plenária de 03.11.2020, não enferma de nenhum dos vícios invocados.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Factualidade apurada com relevância para a causa:
A) Factos Provados

Tendo em atenção a posição das partes expressas nos seus articulados e o acervo documental junto aos autos, está provada, com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos e de acordo com as várias soluções plausíveis da questão de direito, a seguinte matéria de facto, a qual se passa a enunciar (de acordo com a sua ordem lógica, e, dentro desta, também cronológica) subordinada aos seguintes números:
1) No âmbito do Plano Anual de 2019 de Inspecções aos Juízes de Direito, foi o mérito profissional do ora autor apreciado em sede de Inspecção Ordinária ao serviço prestado entre 1 de Janeiro de 2015 e 16 de Outubro de 2019, no Juízo Local Cível …. e no Juízo Local Criminal…….
2) Finda que foi a Inspecção Ordinária referida em 1), o Exmo. Senhor Inspector Judicial subscreveu a 16-12-2019 instrumento escrito em papel timbrado da 11.ª Área dos Serviços de Inspecção da entidade demandada, no qual consignou, além do mais, o seguinte:
RELATÓRIO FINAL
(Artigo 19.º do Regulamento dos Serviços de Inspeção)
[…]
d) Gestão do acervo de processos distribuídos
No período temporal em apreciação nem sempre a gestão do acervo dos processos a cargo do Sr. Juiz de Direito Dr. AA foi adequada a garantir a tempestividade das decisões e a celeridade da respetiva tramitação.
Ainda que a esmagadora maioria dos atos processuais tenha sido praticada dentro dos prazos legalmente estabelecidos, assim não sucedeu nos despachos e sentenças dos processos identificados no Quadro …. da Parte III dos anexos ao Relatório de Inspecção, onde se mostram referenciados noventa actos processuais praticados com atraso relevante.
Numa abordagem quantitativa os atrasos relevantes na prática de atos processuais imputáveis ao Sr. Juiz de Direito Dr. AA apresentam-se da forma seguinte:

QUADRO 2 – RESUMO DOS ATRASOS RELEVANTES IMPUTÁVEIS
Dias de atraso relevanteNúmero de situaçõesSentençasDespachos
Até 30 diasQuinzeCatorzeUm (Despacho saneador)
Entre 31 e 60 diasCatorze CatorzeQuatro
Entre 61 e 90 diasTreze Treze -
Entre 91 e 120 diasVinte e quatroVinte e quatro-
Entre 121 e 150 diasOnze Onze -
Entre 151 e 180 diasOitoOito-
Mais de 180 diasUmaUma-

Numa abordagem cronológica e tomando por referência a data da conclusão do processo para decisão a distribuição temporal dos atrasos é a seguinte:

QUADRO 3 – CRONOLOGIA DOS ATRASOS RELEVANTES
Ano da conclusãoNúmero de situaçõesSentençasDespachos
2015Quarenta e seisQuarenta e umaQuatro + Um Saneador
2016Vinte e cincoVinte e cinco-
2017Onze Onze-
2018Zero--
2019 Oito Oito-


Não sendo o volume nem a complexidade dos despachos e sentenças a proferir impeditivos de uma melhor gestão do serviço nem do cumprimento dos prazos de prolação de uns e outras, o Sr. Juiz de Direito Dr. AA registou no período atrasos relevantes em especial na prolação de sentenças com algum significado que apenas encontram explicação nas dificuldades de organização diária da sua vida pessoal de que o Sr. Juiz foi oportunamente dando conta à Presidência da Comarca e ao Conselho Superior da Magistratura, conforme explica no memorando que apresentou .
No entanto, em nosso entender, o modo como o Sr. Juiz de Direito Dr. AA aborda a elaboração das sentenças – e que adiante melhor analisaremos nas notas de carácter pedagógico que se formulam no ponto 3.4. – poderia ter sido também mais ajustado às situações de maior pressão do serviço judicial a seu cargo em ordem a garantir uma melhor gestão processual global.
Não obstante a pendência processual registou uma redução assinalável, sendo notório que o Sr. Juiz de Direito inspecionado habitualmente prepara com cuidado, rigor e eficiência a sua intervenção nas audiências de julgamento e atos públicos a que preside – como se extrai da generalidade das respetivas atas que foram analisadas – assim obtendo ganhos na gestão dos tempos de pendência e decisão dos processos.
O Sr. Juiz de Direito Dr. AA, apesar das dificuldades sentidas, deu mostras de inegável dedicação ao serviço, proferindo, para além das nove sentenças elaboradas quando em situação de ausência em gozo de licença de parentalidade, outras dezoito sentenças durante os períodos de férias judiciais.
Na data em que cessou funções no Juízo Local Cível ...... o Sr. Juiz de Direito não tinha sentenças ou despachos para proferir em processos conclusos para decisão.
[…]
2.7. Tempo de prolação
Como já se aflorou, no período em análise na presente inspeção o Sr. Juiz de Direito Dr. AA nem sempre proferiu todos os despachos e sentenças dentro dos prazos legalmente estabelecidos para o efeito, circunstância que mereceu referência e explicação detalhada quando se apreciou a gestão dos processos distribuídos.
[…]
2.10. Apreciação final dos elementos indicados
Em termos globais o desempenho profissional da Sr. Juiz de Direito Dr. AA no período em apreciação, ainda que não seja isento de reparos na vertente da tempestividade de sentenças e despachos, é globalmente muito positivo e revelador do seu esforço, dedicação ao serviço e capacidade de direção e da gestão do serviço a seu cargo mantendo com a unidade de processos uma relação muito profícua.
Estando bem adaptado às exigências das funções que exerce, usou um estilo de atuação profissional, sereno e discreto e garantiu a regular tramitação dos processos a seu cargo e a tempestividade de grande parte das decisões que elaborou e proferiu.
O volume de serviço assegurado foi ajustado à sua experiência profissional anterior e foi sendo progressivamente reduzido, ainda que o desempenho do Sr. Juiz de Direito Dr. AA tenha sido parcialmente perturbado por circunstâncias pessoais e temporariamente por condições de serviço mais exigentes (acumulação de funções).
[…]
3.4. Notas de carácter pedagógico
Tendo em conta o carácter pedagógico das inspeções judiciais (artigo 1.º alínea h) do Regulamento dos Serviços de Inspeção do Conselho Superior da Magistratura) e visando contribuir de alguma forma para a melhoria do seu desempenho profissional, deixam-se à consideração do Sr. Juiz de Direito Dr. AA as seguintes notas:
a) Apesar de pontualmente ter evidenciado capacidade de síntese e sentido da necessidade de fundamentação das decisões em função dos factos apurados, o Sr. Juiz de Direito Dr. AA regista ainda margem de evolução qualitativa nesse capítulo, impondo-se um esforço no sentido de reduzir substancialmente os relatórios das sentenças cíveis, aproximando-se mais do que se encontra disposto no artigo 607.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e limitando-se nessa sede ao essencial, observando o texto do preceito em causa.
Temos para nós como seguro que não cabem na letra nem no espírito do citado preceito a exposição, mesmo resumida, as razões de facto e de direito explanadas nos articulados nem a alusão aos temas da prova como em regra é feita pelo Sr. Juiz de Direito Dr. AA (ver, a título meramente exemplificativo, qualquer dos trabalhos apresentados).
Esta nota radica na constatação de que a forma como o Sr. Juiz de Direito Dr. AA elabora o relatório, mesmo em ações especiais cuja sentença é ditada para a ata (assim na AECOP 26296/14.2YIPRT), provoca atrasos desnecessários e evitáveis na conclusão da elaboração da sentença.

b) No que se refere à fundamentação das sentenças na parte relativa à convicção sobre a matéria de facto não se alcança a real vantagem de uma referência pormenorizada ao teor dos depoimentos com transcrição (ainda que por súmula) dos apontamentos pessoais do Sr. Juiz de Direito acerca dos diversos depoimentos prestados em audiência e, de resto e em regra, gravados em suporte digital.
Lê-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de fevereiro de 2019 (Processo 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2) que a «exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objetividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal».
O cumprimento de tal exigência de raiz constitucional ao nível da fundamentação do julgamento da matéria de facto não sai, a nosso ver, reforçado com a transcrição, mesmo que por súmula, dos depoimentos prestados, sendo bastante que fiquem expressas as circunstâncias que contribuíram para a atribuição da credibilidade a determinado depoimento em função do conhecimento que o seu autor revelou sobre os factos, da relação do depoente com eles e com as partes e da forma como prestou o seu depoimento, cotejando-o com os restantes meios de prova.
Sem valorar depreciativamente – em abstrato ou na medida em que represente um estilo de atuação de que, reafirma-se, não se retiram reais vantagens na economia da sentença – esta forma de proceder à fundamentação da convicção sobre a matéria de facto, no contexto das condições de serviço com que o Sr. Juiz de Direito Dr. AA se confrontou, haveria de ter sido ajustada em ordem a permitir o cumprimento dos prazos legais para a prática dos atos processuais.
Também esta nota se justifica para suscitar a melhor reflexão sobre a obtenção de ganhos de celeridade e cumprimento dos prazos legais de prolação da sentença.

c) Apesar da inequívoca qualidade técnica da abordagem jurídica dos factos provados que se surpreende na maior parte das sentenças proferidas pelo Sr. Juiz de Direito Dr. AA, também se teria justificado nalguns casos um desenvolvimento mais centrado no caso concreto dessa parte da sentença, sem qualquer compromisso sobre o enquadramento e fundamentação jurídica, sentido e alcance da decisão.
Assim, por exemplo, em dois dos trabalhos apresentados, a sentença da ação comum 1385/15.0T8TMR (considerações corretas do ponto de vista científico, mas a nossa ver desnecessárias, acerca do instituto do enriquecimento sem causa) ou 1733/17.8T8TMR (sobre o conceito de posse relevante para efeito de usucapião).
d) O Sr. Juiz de Direito Dr. AA utiliza muitas vezes no dispositivo da sentença remeter para o teor da fundamentação na parte em que aborda a tributação utilizando expressões com «custas nos termos aludidos», «custas como aludido» ou equivalente (assim na ação comum 466/18.2T8TMR ou 799/15.0T8TMR, por exemplo).
Noutros casos condena no pagamento de «custas na proporção do decaimento» sem fixar em concreto qual é a proporção (assim não sucedeu noutros casos, como por exemplo na sentença da ação comum 1846/17.6T8TMR, fixando concretamente em 50% a proporção do decaimento).
Devendo o dispositivo da sentença ser tão inequívoco quanto possível recomenda-se ao Sr. Juiz de Direito Dr. AA que, corrigindo as fórmulas mencionadas, passe a fixar de forma concreta a condenação em custas na parte dispositiva da sentença e a estabelecer a concreta proporção em que entende ter havido decaimento das partes nas suas pretensões, assim fixando de forma clara a responsabilidade pelo pagamento das custas em conformidade com a redação do artigo 607.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.
[…]
III. CONCLUSÃO
1. Sobre o estado dos serviços (artigo 161.º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais):
O atual estado do serviço no Juízo Local Cível ...... é assaz satisfatório, estando organizado de forma a dar uma boa resposta às exigências e solicitações que lhe são dirigidas, continuando a ter condições para proporcionar um serviço público à comunidade com qualidade ao nível da efetividade e tempestividade da administração da justiça.
2. Sobre o mérito profissional do Sr. Juiz de Direito Dr. AA (artigo 161.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais):
• Quanto às capacidades humanas
O Sr. Juiz de Direito Dr. AA é portador de qualidades humanas, como a isenção, a independência, a serenidade e a capacidade de compreensão da realidade social e económica que subjaz às questões cuja resolução lhe cabe, as quais são manifestamente adequadas a um desempenho qualificado das funções de Juiz de Direito.
• Quanto à adaptação ao serviço
O Sr. Juiz de Direito Dr. AA encontra-se bem adaptado às exigências das funções que exerce, tendo mantido ao longo do período níveis de produtividade positivos e compatíveis globalmente com a solicitação do serviço que assegurou.
Os padrões de tempestividade registados ficaram temporariamente   aquém do que seria expectável atendendo à sua experiência profissional, à exigência técnica e dificuldades do serviço e às condições de exercício de funções que enfrentou.
A falta de observância dos prazos de prolação de sentenças e despachos é parcialmente coincidente com o cumprimento de obrigação de prestação de cuidados de saúde a familiares e com a acumulação de funções no Juízo Local Cível ........., estando facilmente ao alcance do Sr. Juiz de Direito Dr. AA corrigir este aspeto menos positivo do seu desempenho.
• Quanto à preparação técnica
O Sr. Juiz de Direito Dr. AA é portador de uma preparação técnica de muito bom nível e de competências técnicas, que tem sabido aliar à sua experiência e maturidade para as aplicar, com geral correção, na prática judiciária que desenvolve.
As sentenças que elaborou apresentam, em regra, fundamentação adequadamente convincente pela capacidade argumentativa, clareza e simplicidade do discurso corrente e jurídico e pela geral correção e acerto da argumentação jurídica.
• Tempo de efetivo exercício na magistratura
À data de 16 de outubro de 2019, termo final do período em apreciação nesta inspeção ordinária, o Sr. Juiz de Direito Dr. AA contava dez (10) anos, três (3) meses e um (1) dia de efetivo exercício na magistratura (descontado o período de estágio).
•      PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO
Nos termos do artigo 34.º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais a classificação de serviço a atribuir aos Juízes de Direito deve atender ao modo como «desempenham a função, ao volume, dificuldade e gestão do serviço a seu cargo, à capacidade de simplificação dos atos processuais, às condições de trabalho prestado, à sua preparação técnica, categoria intelectual, exercício de funções enquanto formador dos auditores de justiça, trabalhos jurídicos publicados e idoneidade».
Por sua vez, o artigo 12.º do Regulamento dos Serviços de Inspeção do Conselho Superior da Magistratura, depois de densificar os conceitos de capacidade humana para o exercício de funções, adaptação ao serviço e preparação técnica preceitua que, na apreciação dos respetivos indicadores, sejam sempre ponderadas «as circunstâncias em que decorreu o exercício de funções, designadamente as condições de trabalho, volume de serviço, particulares dificuldades do exercício da função, grau de experiência na judicatura compaginado com a classificação e complexidade do tribunal ou secção, acumulação de serviço, tribunais ou secções, o exercício da função de juiz-coordenador, bem como de outras funções legalmente previstas ou autorizadas e a relevância de trabalhos jurídicos publicados».
Finalmente o artigo 13.º, n.º 1, b) do mesmo Regulamento prevê que «a atribuição de Bom com Distinção equivale ao reconhecimento de um desempenho meritório ao longo da respetiva carreira».
O Sr. Juiz de Direito Dr. AA evidenciou, nas condições de serviço que enfrentou no período em apreciação um nível qualitativo de desempenho profissional que se situa inquestionavelmente no patamar do mérito.
O Sr. Juiz de Direito Dr. AA tem revelado ao longo da sua carreira idoneidade cívica, capacidades humanas, disponibilidade pessoal e preparação técnica, dinamismo e dedicação ao serviço que o tornam credor do reconhecimento do seu mérito profissional.
Apenas a falta de tempestividade (significativa quanto ao número de situações e extensão temporária) em relação a parte do serviço assegurado – ainda que com todas as condicionantes a que se atendeu – impede, a nosso ver, o reconhecimento da excelência da prestação do Sr. Juiz de Direito Dr. AA que atingiu, de resto, níveis elevados em todos os demais itens a considerar.
O Sr. Juiz de Direito Dr. AA tem averbada atualmente a classificação de serviço de Bom com Distinção.
Ponderando tudo o exposto e tendo presentes razões de justiça relativa bem como as concretas condições em que exerceu funções, confiando que o Sr. Juiz de Direito inspecionado corrigirá os aspetos menos conseguidos do seu desempenho e passará a ter uma resposta inteiramente tempestiva na prolação das sentenças no Juízo onde atualmente exerce funções e a manter o nível qualitativo que lhe tem sido sucessivamente assinalado, e em reconhecimento pelo seu desempenho profissional no período compreendido entre 1 de janeiro de 2015 e 16 de outubro de 2019 no Juízo Local Cível ......, proponho ao Venerando Conselho Superior da Magistratura seja atribuída ao Sr. Juiz de Direito Dr. AA a classificação de serviço de
BOM COM DISTINÇÃO
(cf. doc. 2 junto à petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)
3) Notificado da proposta de notação referida em 2), o autor exerceu o direito de resposta previsto no art.17.º, n.º 8, do Regulamento dos Serviços de Inspecção do Conselho Superior da Magistratura (RSICSM), defendendo que lhe fosse atribuída a classificação de serviço de «Muito Bom» (cf. doc. 3 junto à petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
4) Após apreciação do instrumento referido em 3), o Exmo Senhor Inspector Judicial subscreveu a 06-01-2020 instrumento escrito em papel timbrado da 11.ª Área dos Serviços de Inspecção da entidade demandada, com a designação e referência «Informação Final», no qual, depois de corrigir o quadro de produtividade no Juízo Local Cível ........., acrescentando as sentenças indicadas pelo autor e que não haviam sido contabilizadas, consignou, a final, o seguinte:
III — CONCLUSÃO
Por tudo o exposto, ainda que procedendo à correção pretendida no que se refere ao número de processos em que proferiu sentença no âmbito da acumulação de funções no Juízo Local Cível ........., mantenho nos precisos termos e com os fundamentos expressos no Relatório de Inspeção, a proposta de atribuição ao Sr. Juiz de Direito Dr. AA, pelo seu desempenho profissional no Juízo Local Cível ...... entre 1 de janeiro de 2015 e 16 de outubro de 2019, da classificação de serviço de

BOM COM DISTINÇÃO
Notifique o teor desta Informação Final ao Sr. Juiz de Direito Dr. AA, acompanhado do teor do Relatório de Inspeção e dos respetivos quadros anexos alterados em conformidade com o acima decidido, cumprindo-se depois o artigo 17.º, n.º 10, do Regulamento dos Serviços de Inspeção do Conselho Superior da Magistratura.
(cf. doc. 4 junto à petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)
5) Em reunião de 18-02-2020, após apreciação da proposta referida em 4), a Secção de Assuntos Inspectivos e Disciplinares da entidade demandada adoptou deliberação, adoptada com maioria, com dois votos de vencido, cujo segmento dispositivo tinha o seguinte teor:
Dispositivo
Nestes termos, delibera a Secção de Assuntos Inspetivos e Disciplinares do Permanente do Conselho Superior da Magistratura atribuir ao Ex.mo Sr. Juiz de Direito Dr. AA, pelo serviço prestado entre 1 de janeiro de 2015 e 16 de outubro de 2019, no Juízo Local Cível ...... e no Juízo Local Criminal ......, a classificação de:
«Bom com Distinção».
(cf. doc. 5 junto à petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)
6) Não se conformando com a decisão referida em 5), o autor apresentou reclamação junto do Conselho Plenário do CSM, pugnando pela atribuição da notação máxima (cf. doc. 6 junto à petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
7) Na reunião de 03-11-2020, o Conselho Plenário do CSM apreciou a reclamação referida em 6), sendo exarado em Ata Extrato da Deliberação com o seguinte teor:
EXTRATO DE DELIBERAÇÃO
Na sessão do Conselho Plenário do C.S.M., realizada em 03-11-2020, foi tomada a deliberação do seguinte teor:
PLE………98 – Inspeção Ordinária (DQJI)
2.2.2 — Proc. 2019……. — Inspeção Ordinária — Juiz de Direito Dr. AA
Apreciado o projeto de deliberação da Exma. Senhora Dra. BB, o mesmo não obteve acolhimento, tendo sido obtido, após votação, o seguinte resultado:      
—    6 (seis) votos a favor do projeto formulado no sentido da atribuição da notação de «Muito Bom», dos Exmos. Senhores Presidente, Dr. CC, Prof. Doutor DD, Prof. Doutor EE, Dra. FF e Dra. BB.   
— 9 (nove) votos no sentido da atribuição da notação de «Bom com Distinção», dos Exmos. Senhores Vice-Presidente, Prof. Doutor GG, Dr. HH, Dra. II, Dr. JJ, Dr. KK, Dr. LL, Dra. MM e Dr. NN.     
Atento o resultado da votação, foi deliberado designar para relatora da decisão a Exma. Senhora Dra. II, de acordo com o supra deliberado e que foi apresentado de seguida nesta sessão.
Nestes termos, delibera a Secção de Assuntos Inspetivos e Disciplinares do Permanente do Conselho Superior da Magistratura atribuir ao Ex.mo Sr. Juiz de Direito Dr. AA, pelo serviço prestado entre 1 de janeiro de 2015 e 16 de outubro de 2019, no Juízo Local Cível ...... e no Juízo Local Criminal ......, a classificação de:
«Bom com Distinção».
(cf. doc. 1 junto à petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)
8) Do projeto relatado pela Vogal da entidade demandada Dra. II que obteve vencimento, nos termos consignados no extrato referido em 7), constava, além da reprodução do relatório final referido em 2), o seguinte:
PROCESSO N.º 2019……
Inspecionado: Juiz de Direito AA
Vogal relatora: II

Delibera o Plenário do Conselho Superior da Magistratura,
I. Relatório
Foi realizada inspeção ordinária ao serviço prestado pelo Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. AA, no período compreendido entre 1 de janeiro de 2015 e 16 de outubro de 2019, no Juízo Local Cível ...... e no Juízo Local Criminal .......
O Exmo. Sr. Inspetor Judicial elaborou o relatório de inspeção no qual propôs a classificação de «Bom com Distinção».
Não se conformando, o Exmo. Sr. Juiz apresentou resposta, onde concluiu que, pelo trabalho realizado seria merecedor da notação de «Muito Bom», aduzindo os seguintes fundamentos:
— as referências feitas ao seu desempenho no relatório inspetivo são claramente elogiosas, sem que delas seja retirada qualquer consequência em termos classificativos;
— no relatório inspetivo não foi considerada a complexidade concreta dos processos, designadamente da jurisdição cível, que teve de decidir;
— nem sempre foi ajustada a carga processual com que se deparou, sendo certo que, no período inicial de exercício de funções no Juízo Local Cível ......, contava com 340 processos sem decisão;
— foi o maior número de processos conclusos para sentença e o exercício de funções em acumulação na instância local cível ......... entre abril e julho de 2015, conjugados com circunstâncias extraordinárias da sua vida pessoal, que causaram os atrasos detetados na inspeção;
— o número de atrasos verificado, considerando o número total de processos tramitados e de decisões proferidas, não é significativo para efeitos de subida classificativa.
*
O Sr. Inspetor Judicial, na informação final, manteve a posição assumida no relatório inspetivo.
Por deliberação de 18 de fevereiro de 2020, por maioria, com dois votos de vencido, a Sessão de Assuntos Inspetivos e Disciplinares do Conselho Permanente do Conselho Superior da Magistratura atribuiu ao Exmo. Sr. Juiz de Direito a classificação de serviço de «Bom com Distinção», pelo seu desempenho funcional no já referido período.
Devidamente notificado, o Exmo. Sr. Juiz de Direito apresentou reclamação para o plenário, ao abrigo do disposto nos artigos 164.º e 167.º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, reiterando o já invocado em sede de resposta, designadamente:
— Do ponto de vista da capacidade humana para o exercido da função de juiz e preparação técnica o relatório do Sr. Inspetor é bastante elogioso;
— Foram os atrasos verificados que impediram a atribuição da notação de «Muito Bom».
— Porém os atrasos representam apenas 5,70% do número total de processos findos e 8,62% do número global de sentenças proferidas;
— Os atrasos ficaram a dever-se a circunstâncias excecionais da vida pessoal do reclamante, não pontuais, mas prolongadas no tempo, sendo por isso justificados;
— Inicialmente a pendência processual no Juízo Local Cível ...... era elevada, tendo sido reduzida para menos de metade do valor inicial, graças ao esforço e dedicação do reclamante [de 340 processos passou para 161];
Concluiu, requerendo que seja atendida a reclamação e, em consequência, proferida decisão definitiva no sentido de lhe ser atribuída a classificação de «Muito Bom».
*
A questão que importa decidir, no presente processo, é a de saber se a classificação atribuída ao Sr. Juiz de direito pelo Conselho Permanente do CSM de Bom com distinção é justa, adequada e proporcional ou se lhe deve ser atribuída a classificação de Muito Bom como propugnado pelo Senhor juiz reclamante.
*
III.  Fundamentação
III.I De facto:
1 - É o seguinte o teor do relatório inspetivo, que não tendo sido posto em causa, aqui se dá por assente:
[…]
III.II. Do Direito:
O EMJ estatui que os juízes de direito são classificados, de acordo com o seu mérito, de Muito bom, Bom com distinção, Bom, Suficiente e Medíocre (art. 32.º) e que a classificação deve atender ao modo como os juízes desempenham a função, designadamente à sua preparação técnica e capacidade intelectual, idoneidade e prestígio, respeito pelos deveres, volume e gestão do serviço a seu cargo, gestão do juízo ou secção respetiva, produtividade e observância de prazos, capacidade de simplificação dos atos processuais, às circunstâncias em que o trabalho é prestado, nível de participação e contributos para o bom funcionamento do serviço, os resultados das inspeções anteriores, os processos disciplinares e quaisquer elementos complementares que constem do respetivo processo individual (art. 33.º, n.º 1).
O Regulamento dos Serviços de Inspeção do CSM (aprovado no Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 25 de outubro de 2016 e publicado no DR, série II, de 17-11- 2016), detalha e concretiza as referidas normas contidas no EMJ.
Assim, o artigo 12.º que tem como epígrafe «Critérios de avaliação» estabelece no seu n.º 1 que a inspeção dos magistrados judiciais incide sobre:
— a sua capacidade humana para o exercício da função,
— a sua adaptação ao serviço e
— a sua preparação técnica.
Estes critérios são depois concretizados no n.º 2 que determina que, no tocante à capacidade humana para o exercício da função, a inspeção leva globalmente em linha de conta, entre outros, os seguintes fatores:
a)    Independência, isenção, dignidade de conduta e idoneidade cívica;
b)    Relacionamento com sujeitos e intervenientes processuais, outros magistrados, advogados, outros profissionais forenses, funcionários judiciais e público em geral;
c)    Prestígio profissional e pessoal de que goza enquanto juiz e na decorrência do exercício da função;
d)    Serenidade e reserva com que exerce a função;
e)    Capacidade de compreensão das situações concretas em apreço e sentido de justiça, face ao meio sociocultural onde a função é exercida;
f)     Capacidade e dedicação na formação de magistrados.
Quanto ao critério de adaptação ao serviço é analisado, entre outros:
a)    Assiduidade, zelo e dedicação;
b)    Produtividade, designadamente no que respeita à taxa de resolução, obtida pele divisão do número de processos findos pelo número de processos entrados no mesmo ano, e à taxa de recuperação, correspondente à razão entre o número de processos findos e a soma dos processos entrados e dos processos pendentes;
c)    Método de trabalho, dirigido à decisão final, que se revele organizado, lógico e sistemático;
d)    Prazos de decisão e tempo de duração dos processos;
e)    Capacidade de simplificação processual;
f)     Direção das audiências e outras diligências, mormente quanto à pontualidade, calendarização, disciplina e criteriosa gestão do tempo;
g)    Gestão do acervo processual distribuído ao inspecionado e participação na gestão da unidade de processos;
h)    Contribuição do juiz para o cumprimento dos objetivos processuais aprovados.
Finalmente, no que tange à preparação técnica, a inspeção toma globalmente em linha de conta, entre outros, os seguintes vetores:
a)    Nível jurídico do trabalho inspecionado, apreciado, essencialmente, pela capacidade de síntese na enunciação e resolução das questões, pela clareza e simplicidade da exposição e do discurso argumentativo, pelo senso prático e jurídico e pela ponderação e conhecimentos revelados nas decisões;
b)    Capacidade de apreensão das situações jurídicas em apreço;
c)    Capacidade de convencimento decorrente da qualidade e originalidade da argumentação crítica utilizada na fundamentação das decisões;
d)    Categoria intelectual, no sentido de avaliação dos conhecimentos técnico -jurídicos adquiridos e da forma como tais conhecimentos são aplicados no exercício de funções.
Importa acrescentar que nos termos do n.º 5 do mesmo normativo na apreciação referida nos números anteriores são sempre ponderadas as circunstâncias em que decorreu o exercício de funções, designadamente as condições de trabalho, volume de serviço, particulares dificuldades do exercício da função, grau de experiência na judicatura compaginado com a classificação e complexidade do tribunal ou secção, acumulação de serviço, tribunais ou secções, o exercício da função de juiz -coordenador, bem como de outras funções legalmente previstas ou autorizadas e a relevância de trabalhos jurídicos publicados.
Cumpre também atender aos critérios especificamente previstos quanto a cada uma das classificações típicas, que, por um lado, condicionam a respetiva atribuição e, por outro, estabelecem o que cada uma das classificações pressupõe em termos de desempenho profissional (enunciando, assim, os específicos fundamentos normativos que se devem ter por verificados na sua fixação).
A atribuição de «Muito Bom» equivale ao reconhecimento de que o juiz de direito teve um desempenho elevadamente meritório ao longo da respetiva carreira e a classificação de «Bom com Distinção» corresponde a uma atuação meritória ao longo da respetiva carreira (art. 13.º, n.º 1, al. a) e b), do RSI do CSM).
Acresce e com relevância para esta decisão que nos termos do art. 13.º, n.º 3 «A melhoria de classificação deve ser gradual, não subindo mais de um escalão de cada vez […]» e de acordo com o n.º 4 «Quando se verificar um conjunto significativo de atrasos na condução processual, a melhoria de classificação só pode ocorrer em situações excecionais, devidamente fundamentadas».
Na deliberação sob recurso considerou-se, à luz dos critérios mencionados que:
Quanto à capacidade humana para o exercício da sua função e preparação técnica do Sr. Juiz. «[…] o Sr. Inspetor é expressiva e particularmente elogioso a retratar as excecionais qualidades humanas do Sr. Juiz de Direito, reconhecendo-lhe “uma postura caracterizada pela retidão de atitudes”, pelo “respeito” e “urbanidade” no tratamento que dispensa ao outro e por uma “inequívoca dignidade cívica e elevada dignidade de conduta pessoal e profissional”.
» Isto, além da “independência e isenção”, bem como da reserva, transparência, competência, discrição, sobriedade, serenidade e ponderação com que exerce as suas funções, facto que levou a que tivesse granjeado “o respeito pessoal e profissional da generalidade dos profissionais forenses com quem lida”.
» Quanto à vertente da preparação técnica, o Sr. Inspetor também foi claro a evidenciar que o Sr. Juiz de Direito “é detentor de uma boa preparação académica de base, revelando conhecimentos sedimentados acerca dos diversos institutos jurídicos e normas substantivas e processuais que aplicou”.
» Mais referiu o Sr. Inspetor que as decisões do Sr. Juiz de Direito inspecionado refletem essa mesma boa preparação técnica, mostrando-se adequadamente fundamentadas do ponto de vista do facto e do direito, bem estruturadas, com adequada profundidade e rigor técnico e munidas de um discurso judiciário “claro, esclarecido e convincente, revelando capacidade de argumentação” e com “recurso rigoroso e moderado à doutrina e jurisprudência ao caso aplicáveis”.»
Concluiu-se, assim, na deliberação que «(...) o Sr. Juiz, quer como pessoa, quer como juiz, evidencia atributos de inegável valor, os quais, além de essenciais, constituem mesmo uma mais-valia para o exercício da judicatura, enquanto garantes de qualidade e de prestígio da função».
No que se refere ao critério da adaptação ao serviço, mencionou-se desde logo, na deliberação, que era «o critério avaliativo mais complexo» ... Com efeito, explicou-se no acórdão a este propósito que «(...) são global e especialmente positivos os aspetos a considerar no que diz respeito à forma como o Sr. Juiz inspecionado exerce a sua função, nada havendo a apontar à sua assiduidade e, bem assim, ao zelo e dedicação com que o faz, bem como à forma como dirige as audiências e demais diligências.
» Não deixa de poder - e dever - ser realçado, também, o nível do trabalho prestado em termos de produtividade, sendo certo que o Sr. Juiz inspecionado obteve excelentes resultados em termos de conclusão de processos.
» Há que referir, também, a forma inegavelmente dedicada, laboriosa e briosa com que exerceu a função no período em análise, mesmo num contexto de vida pessoal especialmente difícil e exigente, suscetível de afetar a sua disponibilidade para o trabalho.
» Todos estes aspetos, associados a todos os fatores relevantes nas vertentes da capacidade humana e da preparação técnica já acima analisados, são inegavelmente reveladores de um desempenho de qualidade consentâneo com uma qualificação de meritório.
» Há, contudo, um aspeto relevante em termos de adaptação ao serviço que marca de forma indelével o trabalho do Sr. Juiz e que, porque claramente menos conseguido, compromete de forma irremediável a qualificação do seu desempenho como elevadamente meritório.
» É ele, em consonância com as conclusões do Sr. Inspetor, o atinente ao não cumprimento de prazos processualmente relevantes na prolação de decisões. (...)
» Ora, no caso em apreço, o número de atrasos detetados no desempenho do Sr. Juiz de Direito inspecionado, seja pela sua quantidade, seja pela sua dimensão temporal, no contexto das condições de execução do serviço, assumem uma expressão tal que não podem deixar de ser considerados significativos.
» Esse facto, porque comprometedor da ideia de excelência pressuposta na atribuição da classificação de “Muito Bom” e porque a atribuição da mais alta classificação ao Sr. Juiz inspecionado representaria uma subida classificativa, obsta-nos termos do Regulamento que rege a atividade inspetiva do Conselho Superior da Magistratura -, a que a que a mesma lhe seja atribuída».
Analisemos, então, os atrasos em questão, a fim de aferir se e em consonância com o supra transcrito artigo 13.º, n.º 4 do RSI do CSM, não obstante os vetores da capacidade humana para o exercício da função e preparação técnica apontarem para a nota máxima, o não cumprimento dos prazos em causa é de tal forma significativo que a melhoria de classificação só poderia ocorrer numa situação excecional, devidamente fundamentada.
O «número significativo de atrasos» quer expressar conforme se explica na douta deliberação impugnada: «um número de atrasos que, pela sua quantidade, ou pela sua dimensão temporal ou, ainda, pela sua gravidade no contexto das condições de execução do serviço, assuma uma expressão tal que, revelando incapacidade de gestão processual ou incúria do juiz na condução dos processos, obste à subida (ou manutenção) da classificação».
Foram contabilizados, durante o período inspetivo de 4 anos, 9 meses e 16 dias, 90 atrasos na prolação de 87 sentenças e 3 despachos:
-15 foram até 30 dias;
-14 entre 31 e 60 dias;
-13 entre 61 e90 dias;
-24 entre 91 e 120 dias;
-11 entre 121 e 150 dias;
-8 entre 151 e 180 dias;
-e 1 com 189 dias.
Numa abordagem cronológica e tomando por referência a data da conclusão do processo para decisão, a distribuição temporal dos atrasos é a seguinte:
-      conclusões de 2015 (46 atrasos),
-      conclusões de 2016 (25 atrasos),
-      conclusões de 2017 (11 atrasos, todos inferiores a 81 dias) e
-      conclusões de 2019 (8 atrasos, entre 11 e 26 dias).
Importa, em primeiro lugar contextualizar estes números:
Resulta do relatório de inspeção que durante o período inspetivo, o Senhor Juiz proferiu 1026 sentenças no Juízo Local cível ...... e 18 no Juízo local cível ........., onde esteve em substituição de uma colega, a acumular funções, proferindo, assim, um total de 1044 decisões finais, sendo 200 contestadas (com julgamento).
Por outro lado, durante o período inspetivo entraram um total de 1401 processos e findaram 1579 processo, no Juízo Local Cível .......
Neste quadro, as 90 sentenças proferidas com atraso correspondem a 5,70% do número total de processos findos e 8,62% do número global de sentenças proferidas.
Olhando a estes números importa concluir que ainda que não seja uma quantidade despicienda, o número de atrasos não é, atento o número de decisões proferidas, expressivo.
E no que se refere à dimensão temporal?
Resulta do relatório que dos 90 atrasos, 44 dizem respeito a um período superior a 90 dias, sendo um deles superior a 180 dias, mais concretamente 189 dias, que diz respeito a um processo concluso durante a licença parental (sendo que nos 189 dias não se inclui o período de licença, nem de férias). O não cumprimento dos prazos, por período superior a 90 dias já é significativo.
No que se refere ao contexto das condições de execução do serviço, referiu-se no relatório de inspeção que «a carga processual suportada não foi excessiva mas ajustada - ainda que mais exigente nesse período (de acumulação) e no que se seguiu ao seu regresso ao serviço (do gozo de licença de parentalidade pelo nascimento das filhas gémeas) - tendo em conta o volume, a habitual complexidade das questões suscitada e as condições de serviço tendo sempre em conta a sua experiência profissional anterior». Por conseguinte, as condições objetivas de execução do serviço, só por si, não justificam a existência de atrasos na prolação das decisões e muito menos 44 atrasos superiores a 90 dias, sendo um destes superiora 180 dias.
Ora, se os referidos atrasos não revelam incúria do senhor juiz na condução dos processos, o que aliás é completamente afastado pelas menções elogiosas que o Senhor Inspetor faz ao desempenho funcional do senhor juiz, o mesmo já não se pode concluir quanto à ineficiência de gestão do serviço.
Com efeito, não estando o Senhor Juiz perante uma carga processual excessiva, mas ajustada, poderia, pelo menos a partir de setembro de 2016, ter gerido a situação de modo a não protelar os atrasos. E como se refere no relatório de inspeção «o modo como o senhor juiz aborda a elaboração das sentenças ... poderia ter sido também mais ajustado às situações de maior pressão do serviço judicial a seu cargo com ordem a garantir uma melhor gestão processual global».
Concluímos, assim, que o conjunto dos atrasos referenciados, no contexto em causa, deve ser qualificado de significativo e não encontra, em toda a sua extensão, justificação nas circunstâncias absolutamente excecionais e irrepetíveis da vida pessoal do Senhor Juiz, que sucederam durante o período inspetivo:
«(...) confrontado com uma pendência elevada - em 1 de janeiro de 2015 estavam pendentes 340 processos sem decisão final - o reclamante procedeu a um agendamento “mais carregado", abrangendo praticamente todos os dias da semana, num esforço que visou a redução da pendência para um nível aceitável. Mas tendo-se verificado a gravidez da esposa, que rapidamente evoluiu para situação de risco - com internamento hospitalar, em setembro de 2015 obrigando o reclamante a dar mais apoio em casa, mormente à filha com três anos à data, tornou-se multo difícil trabalhar em casa e à noite, como anteriormente sucedia. E acresce que a acumulação de funções na instância local cível ......... avolumou o trabalho. Após o nascimento das bebés (gémeas), em novembro de 2015, seguiu-se um período de licença parental, no qual, infelizmente, dados cuidados que as recém-nascidas exigiam, não foi possível recuperar totalmente o serviço atrasado. E, a agravar a situação, após o termo da licença parental, foi o reclamante confrontado com a agenda pesada, com diligências diárias, de manhã e de tarde, que obrigaram a estar praticamente todo o dia na sala, com prejuízo para a prolação de sentenças. Assim se justificam os atrasos verificados em 2015, 2016 e 2017. Só em meados deste último ano a situação estabilizou. (...)».
Com efeito, se esta situação da vida pessoal justifica os atrasos ocorridos até setembro de 2016 (o Senhor Juiz regressa da licença em abril de 2016, pelo que é expectável que até às férias judiciais do verão não lograsse estabilizar o juízo), o mesmo já não sucede posteriormente e o facto é que a partir de setembro de 2016 o Senhor Juiz continua a incumprir os prazos de forma muito relevante, ou seja, mantém atrasos superiores a 90 dias.
Por conseguinte, não obstante a «redução substancial da pendência» e o «cumprimento dos objetivos processuais traçados» — em especial, quanto à redução de pendências e aos tempos de agendamento —, o não cumprimento dos prazos, marcou, de forma indelével e negativamente o desempenho do Exmo. Senhor Juiz, ao longo praticamente de todo o período inspetivo, designadamente no critério de adaptação ao serviço e obsta uma melhoria de classificação, para a nota máxima, atento aliás o disposto no n.º 4 do art. 13.º do RSI do CSM.
Concluímos assim, tal como na deliberação do Conselho Permanente que o desempenho do senhor Juiz, ainda que de enorme qualidade não atingiu, ainda, mercê das vicissitudes constatadas o patamar de excelência necessário à sua qualificação como elevadamente meritório.
*
III.
Tudo visto e ponderado, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura delibera, na improcedência da impugnação apresentada, manter a deliberação da secção de Assuntos Inspetivos e Disciplinares do CSM de 18 de fevereiro de 2020 e atribuir ao Exmo. Senhor Juiz Dr. AA, pelo serviço prestado entre 1 de janeiro de 2015 e 16 de outubro de 2019, no Juízo Local Cível ...... e no Juízo Local Criminal ......, a classificação de
«Bom com distinção»
 (cf. doc. 1 junto à petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)

IV. Tópicos desenvolvidos de fundamentação (com citação de doutrina e jurisprudência)

1. Preliminares: enquadramento; sequência

1.1. Estamos perante uma deliberação do Conselho Superior da Magistratura (doravante CSM ou entidade demandada), tomada no âmbito da competência para o exercício da acção inspectiva respeitante a magistrados judiciais, que lhe é conferida pelo artigo 217.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante designada abreviadamente por Constituição ou CRP) com os contornos estabelecidos nos artigos 149.º, alínea a), 151.º, alínea d), e 152.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (daqui por diante designado brevitatis causa por EMJ).

Sendo o CSM o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial instituído pelo artigo 218.º da Constituição e definido no artigo 136.º do EMJ, as suas deliberações nessa matéria traduzem-se em actos administrativos. Como tal, as suas deliberações estão sujeitas à disciplina constante dos artigos 148.º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo (doravante designado abreviadamente por CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro), e passíveis de impugnação para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos dos artigos 168.º e seguintes do sobredito EMJ.

Dito isto, por uma questão de rigor metodológico e clareza expositiva, cumpre aqui deixar estabelecido, preliminarmente, o correcto enquadramento normativo em que nos havemos de mover, numa perspetiva substancial, tendo já em vista a natureza do acto impugnado e os poderes de accertamento jurisdicional que se deve reconhecer ao Supremo Tribunal de Justiça na pronúncia (cassatória) acerca da deliberação recorrida.

Eis o escopo das linhas que se seguem.

1.2. No esforço de indagação do âmbito e natureza do exercício da actividade administrativa subjacente à relação material controvertida, importa averiguar se a entidade demandada actuou no estrito cumprimento de uma actividade administrativa normativamente vinculada, ou, ao contrário, ao abrigo de discricionariedade legal.

Note-se que o alargamento dos poderes de pronúncia do juiz que haja de mover-se nos meandros processuais do contencioso administrativo, decorrente da possibilidade de inclusive emitir pronúncias de condenação dirigidas às autoridades administrativas (cf. artigo 66.º do CPTA), não veio alterar o perfil de controlo da legalidade dos actos da Administração pelos tribunais administrativos, que continua a reger-se pelo princípio da separação de poderes. Fundamental, por isso, é que a pretensão do autor se reporte a um aspecto vinculado do acto administrativo a praticar — ou, pelo menos, que a apreciação do caso concreto permita ao tribunal identificar apenas uma solução como legalmente possível («redução da discricionariedade a zero»).

Por isso, depois de consagrar, no seu artigo 2.º, o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos particulares perante a Administração, o próprio CPTA estabelece, no seu artigo 3.º, n.º 1, que «no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais […] julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação».

Trata-se, esta última, de disposição essencial para a solução do presente litígio, na medida em que o mesmo exige, precisamente, uma correcta definição dos limites funcionais dos poderes deste tribunal.

Assim, importa desde logo reter a ideia, resultante do citado artigo 3.º, n.º 1, de que o princípio da plena jurisdição dos tribunais, ali consagrado, não pode ser entendido de modo ilimitado. Na verdade, existem zonas de actuação da Administração em que os tribunais (administrativos e, ex vi artigos 168.º e 178.º do EMJ, também a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça) não se podem intrometer.

Não se pretende dizer com isso que existem matérias no âmbito das quais os tribunais não podem exercer qualquer controlo: o que está em causa, sim, e apenas, é a natureza do poder exercido em cada caso pela Administração, o que implica apurar se determinada actuação se mostra (no todo ou em parte) vinculada, isto é, moldada por regras jurídicas que determinam esse concreto modo de agir, ou discricionária, caso em que essa determinação legal não existe.

Tal também não significa obviamente que não existam aspectos que, no exercício da actividade discricionária, se mostrem submetidos ao total controlo judicial: eles existem. No entanto, são apenas os aspectos vinculados dessa actividade discricionária (como, por exemplo, a competência) ou os limites externos a qualquer actividade administrativa, tais como os princípios a que a mesma deve obedecer, cuja inobservância ostensiva (no caso da actividade discricionária) é sempre judicialmente sindicável (v. gr., o princípio da proporcionalidade).

De qualquer modo, e isso é que importa evidenciar, existe uma reserva de discricionariedade da Administração. Portanto, ou existem «[…] vínculos jurídicos a condicionar, de qualquer modo, a actuação da Administração no caso em apreço, e pede-se ao tribunal que averigue da sua existência e (em caso afirmativo) que os torne efectivos, ou não há vínculos desses e o tribunal só pode abster-se de julgar a conduta administrativa. Naqueles aspectos em que as decisões concretas da Administração relevam de uma qualquer opção discricionária ou de uma margem de apreciação ou valoração autónoma, os tribunais […] – não conseguindo formular sobre essa opção um juízo de desconformidade com o bloco legal que lhe é aplicável – ficam, por lei, proibidos de exercer um controlo sobre elas […]» ([1]).

E porquê aquela reserva de discricionariedade? Precisamente pela razão que o mesmo artigo 3.º, n.º 1, do CPTA evidencia: a necessidade de salvaguardar o princípio da separação de poderes, plasmado no artigo 111.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual «[o]s órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição», e elevado mesmo a limite material da revisão constitucional — cf. artigo 288.º, alínea j), da Lei fundamental. É daí que decorre a fixação de limites funcionais aos poderes de controlo dos tribunais da actuação dos órgãos administrativos, independentemente dos meios de que se possam socorrer. Tais limites «[…] concretizam-se através da restrição da fiscalização jurisdicional à esfera da juridicidade, implicando que aos tribunais se atribua apenas competências para aferir da compatibilidade das decisões administrativas com a lei, os princípios gerais de direito e as normas constitucionais que integram o bloco de juridicidade. Ao fazê-lo, não estão a privar a Administração da essência da sua função material, porque esta actua num campo em que é heterodeterminada, aplicando ao caso concreto soluções pré-definidas em normas e princípios jurídicos. Já são, no entanto, de excluir do campo da jurisdição todos os poderes de decisão que englobem questões de mérito, isto é, que impliquem a avaliação da oportunidade e conveniência da atividade administrativa […]» ([2]).

Assim, o legislador, ao conferir aos tribunais poderes de jurisdição plena (artigos 2.º e 3.º do CPTA), acaba por, correspectivamente, confiná-los à aplicação da lei e do Direito, vedando aos tribunais a faculdade de se substituírem aos particulares na formulação de valorações que pertencem à respectiva autonomia privada, e às entidades públicas na formulação de valorações que, por já não terem carácter jurídico, mas envolverem a realização de juízos sobre a conveniência e oportunidade da sua actuação, se inscrevem no âmbito próprio da discricionariedade administrativa. A reserva de discricionariedade da Administração Pública, com a consequente insindicabilidade judicial do mérito das medidas e opções administrativas é, destarte, corolário imanente do nuclear princípio constitucional da separação de poderes.

Advirta-se, porém, na esteira dos ensinamentos da doutrina mais autorizada, que ora se seguem de perto, que o n.º 1 do artigo 3.º do CPTA não opõe legalidade a discricionariedade; contrapõe, outrossim, juridicidade a mérito. Pretende o legislador com isto significar, em bom rigor, não que o sumo de poderes discricionários se encontra fora do domínio jurídico (out of law) ou que a Administração Pública estaria aí submetida apenas a regras de boa administração, ao arrepio de todo e qualquer parâmetro normativo de controlo; ao contrário, o poder discricionário partilha com o poder estritamente vinculado uma característica transversal e seminal: é um poder jurídico. Mas só em certas circunstâncias pode ser sindicável, «sendo que tudo o que nessa opção ou escolha só for confrontável com juízos de mérito, com regras de boa administração, com esta ou aquela arte ou técnica, escapa por natureza à função judicial, à iurisdictio — à qual compete (apenas) declarar e fixar o Direito para uma dada hipótese» ([3]).

1.3. Na verdade, como é consabido e foi recentemente apontado pela Secção de Contencioso do STJ ([4]), a discricionariedade administrativa lato sensu abrange: i) a margem de livre apreciação; ii) a prerrogativa de avaliação; e iii) o preenchimento de conceitos indeterminados.

Depurando um pouco mais a figura, diremos que no campo da margem de “livre” decisão da Administração Pública encontramos duas (sub)realidades distintas: (1) a discricionariedade em sentido estrito (que abrange as duas primeiras modalidades enunciadas supra); e (2) o preenchimento valorativo de conceitos indeterminados.

Na discricionariedade stricto sensu tem-se um espaço de livre decisão conferido pela norma, no âmbito da qual o órgão exerce um poder administrativo de acordo com critérios por ele escolhidos (dentro dos limites da norma), com base num juízo de prognose (um juízo de probabilidade consubstanciado numa valoração, e não num juízo cognoscitivo, i.e., num juízo baseado na experiência do decisor e nas suas convicções) e com vista à composição de todos os interesses em jogo. ([5])

Simplisticamente ([6]), a Administração Pública pode ter: i) discricionariedade de decisão, podendo optar entre decidir ou não decidir, dispondo assim de liberdade quanto à oportunidade (an); ou apenas ii) discricionariedade de escolha, dispondo de liberdade quanto ao conteúdo (quid) da decisão, seja essa discricionariedade optativa (as escolhas surgem na norma como alternativas) ou criativa (a norma estabelece apenas o núcleo mínimo identificador do género de medida, sendo o órgão competente que densifica a atuação concreta a implementar casuisticamente).

Por seu turno, «[n]o preenchimento valorativo de conceitos indeterminados procura-se resolver o conteúdo de um conceito jurídico que não permita a apreensão clara do seu conteúdo através da avaliação ou valoração da situação concreta baseada num juízo de prognose, isto é, um juízo de estimativa sobre a futura actuação de uma pessoa, sobre a futura utilidade de uma coisa ou sobre o futuro desenrolar de um processo social» ([7]).

Apesar de partilharem o espaço de margem de liberdade de actuação administrativa, as duas realidades podem distinguir-se, residindo a diferença entre ambos em dois aspectos distintos, que se enunciam sucintamente de seguida, seguindo os ensinamentos da doutrina da especialidade ([8]).

Por um lado, a discricionariedade em sentido estrito implica, a par de juízos de prognose e avaliação, uma ponderação de interesses públicos e privados envolvidos, passando sempre pela decisão de um conflito de interesses em concorrência, ao passo que o preenchimento valorativo de conceitos indeterminados não comporta qualquer ponderação de interesses, consubstanciando um simples juízo de valor que determinará se é de considerar que se verifica determinado pressuposto, a fim de subsumir a realidade que se possa vir a verificar casuisticamente na facti species normativa.

Por outro lado, na discricionariedade stricto sensu o completamento da abertura da norma faz-se mediante o aditamento de novos pressupostos do acto («alargamento conjuntivo da previsão»). Por seu turno, no preenchimento de conceitos indeterminados o alargamento da norma assenta, as mais das vezes (admitindo, porém, excepções), num «esquema disjuntivo», na medida em que o órgão decisor terá de decompor o conceito em valorações ou prognoses alternativas (pelo menos uma positiva e uma negativa) para o efeito de considerar verificada ou não a existência de um pressuposto.

1.4. Vários têm sido os contributos doutrinários e jurisprudenciais (não só do STJ, mas também do STA) para enquadrar o âmbito da discricionariedade, por um lado, e fixar os limites dos poderes de sindicabilidade jurisdicional das decisões discricionárias da Administração Pública, por outro. Um cotejo sumário permite identificar algumas linhas de força dogmáticas.

Como primeiro ponto a reter, deixa-se desde já estabelecido que a discricionariedade administrativa abrange: i) a margem de livre apreciação; ii) o preenchimento de conceitos indeterminados; e iii) a prerrogativa de avaliação.

Certo é ainda que a discricionariedade administrativa não impede nem veda que a Administração Pública possa auto vincular-se, definindo antecipadamente alguns parâmetros de actuação. Contudo, apenas se podem considerar legítimas as normas de auto vinculação que retirem aos órgãos administrativos, de forma irracional, a possibilidade de consideração das circunstâncias do caso concreto, vedando, destarte, qualquer hipótese efectiva de ponderação — o que pode suceder, nomeadamente, se os pressupostos aditados pela norma auto vinculativa se revelarem como exclusivos para a produção do efeito jurídico enunciado na lei, precludindo o exercício da discricionariedade ([9]).

Por outro lado, o controlo jurisdicional do exercício administrativo de poderes discricionários é um controlo externo e negativo, que apenas permite aos tribunais a anulação da solução adoptada se ela violar os cânones da razoabilidade e racionalidade básicas, quer em termos jurídicos, quer em termos de senso comum — mas já proíbe a definição, pela positiva, do caso concreto, substituindo-se à Administração Pública na ponderação das valorações que integram a margem de livre apreciação, salvo nas chamadas situações de redução da discricionariedade a zero, a que alude o n.º 2 do artigo 71.º do CPTA ([10]).

O poder discricionário da Administração Pública é apenas sindicável, em suma, nos seus aspectos vinculados, designadamente os atinentes a: a) competência do órgão decisor; b) forma do acto; c) pressupostos de facto (ocorrendo erro de facto quando se dão como verificados factos ou circunstâncias que não ocorreram, pelo menos como descritos, e se assumem como fundamento da opção administrativa); d) adequação ao fim prosseguido; e) aplicação dos princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, que, nos termos do n.º 2 do artigo 266.º da CRP, funcionam como limites internos à actividade discricionária. Neste último caso, porém, a violação de tais princípios deve ser flagrante e ostensiva ([11]). Neste sentido, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 30-06-2000 (Pleno) e de 07-02-2001, proferidos, respetivamente, nos processos n.os 44933 e 44852, ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt/jsta.

Fora desses casos, apenas será lícito aos tribunais oporem às opções discricionárias da Administração Pública juízos jurídicos (que não constituam, em caso algum, critérios de oportunidade ou conveniência), quando ocorra, nomeadamente, o desrespeito por um dos seguintes pressupostos ou limites da discricionariedade administrativa: 1) abuso de poder discricionário, ou desvio de poder — o qual ocorre quando o motivo principalmente determinante da actuação administrativa não condiga com le but de la loi; 2) não exercício do poder discricionário, por a Administração Pública considerar que se encontrava legalmente impedida de actuar (erro quanto à natureza e sentido da competência em causa); 3) auto vinculação ilegítima, ou erro sobre os pressupostos (legítimos) de auto vinculação [além da doutrina ([12]), vide também Acórdão do STA (Pleno da 1.ª Secção), de 05-03-1997 (proc. n.º 33661); e 4) erro manifesto de apreciação, decorrente de um «[…] muito deficiente juízo técnico ou de valor, abrangendo situações de ―atrofia do poder discricionário ou de redução de discricionariedade a zero […]» ([13]).

Finalmente, se estiver em causa o preenchimento de conceitos indeterminados, doutrina e jurisprudência têm divergido quanto aos poderes dos tribunais. A doutrina propende para uma visão mais restritiva e minimalista da tutela judicial no controlo do preenchimento de conceitos indeterminados pela Administração ([14]). Porém, a jurisprudência do STA [cf. os Acórdãos de 14.06.2007 (processo n.º 140/07) e de 17.01.2007 (processo n.º 1068/06), ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt/jsta] considera susceptíveis de controlo jurisdicional, nesta sede, as seguintes actuações administrativas: (I) preenchimento «de conceitos descritivos cujo critério de avaliação não exija conhecimentos técnicos especiais […]» — por exemplo, ―«grande quantidade»; (II) preenchimento de «classes de conceitos indeterminados de valor, cuja concretização resulta, por forma directa, da exegese dos textos legais […]» — por exemplo, ―«local apropriado»; e (III) preenchimento de «todos os conceitos de valor cuja concretização envolva juízos mais especificadamente jurídicos […]», que não permitam a afirmação de que o tribunal não possui os necessários conhecimentos técnicos — por exemplo, «jurista de reconhecida idoneidade».

Porém, se o conceito indeterminado confiar à Administração Pública a tarefa de formulação de valorações próprias do exercício da sua função, só em casos de erro manifesto de apreciação ou de aplicação do critério manifestamente inadequado é que a conduta administrativa pode ser sindicada ([15]).

1.5. Pois bem, um excurso por alguns arestos da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça permite-nos identificar uma orientação, firme e reiterada, no sentido de que, quando o CSM atribui uma determinada classificação, em sede de inspecção ao trabalho desenvolvido por um magistrado judicial, actua precisamente no exercício da denominada “discricionariedade administrativa”.

Especificamente sobre a matéria aqui em questão, um excurso pela jurisprudência desta Secção de Contencioso permite asseverar que tem sido afirmado pelo STJ que:
O recurso interposto para o STJ da deliberação do CSM que atribuiu determinada classificação a um magistrado judicial é um recurso de mera legalidade.
O juízo valorativo formulado pelo CSM relativamente ao mérito do magistrado não é sindicável pelo Supremo, salvo se o mesmo enfermar de erro manifesto, crasso ou grosseiro, ou se os critérios utilizados na avaliação forem ostensivamente desajustados.
[…]
Na avaliação e classificação dos juízes o CSM está vinculado aos princípios de igualdade e de justiça, mas na indagação da eventual violação daqueles princípios o Supremo Tribunal de Justiça não pode entrar na análise detalhada dos casos em confronto, sob pena de cair na apreciação do mérito da decisão, o que o princípio da separação de poderes não consente.
A sua apreciação, nessa matéria, deve cingir-se à questão de saber se os critérios utilizados em cada caso foram os mesmos.
[…]
As avaliações ou apreciações do mérito com base em relatórios de inspeção inserem-se no âmbito da chamada justiça administrativa, donde, perante decisão em que se reconhece que o funcionário possui as condições indispensáveis para o exercício do cargo, o STJ não possa censurar os critérios quantitativos ou qualitativos, que estiveram na base dessa decisão.

(cf. Acórdão de 10-07-2008, proc. n.º 07S1520)


É jurisprudência unânime do Supremo Tribunal que o recurso interposto para o STJ que atribuiu determinada classificação a um magistrado judicial é um recurso de mera legalidade, razão pela qual o pedido terá de ser sempre de anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência do ato recorrido, não cabendo ao STJ sindicar o juízo valorativo formulado pelo CSM, a menos que o mesmo enferme de erro manifesto, crasso ou grosseiro, ou se os critérios utilizados na avaliação forem ostensivamente desajustados. Muito menos caberá ao STJ substituir-se ao CSM, alterando as classificações aos magistrados judiciais que impugnam as classificações que lhes foram atribuídas pelo CSM. Daqui decorre que ao Supremo Tribunal está vedado, em princípio, intrometer-se no conteúdo da decisão recorrida, apenas lhe cabe pronunciar-se sobre a sua legalidade.

 (cf. Acórdão de 21-04-2010, proc. n.º 638/09.0YFLSB)


O regime definido pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais para o recurso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura para o Supremo Tribunal de Justiça tem que ser conjugado com o modelo de impugnação definido pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos, do qual continua a resultar a opção legislativa por uma delimitação dos poderes dos “tribunais administrativos” que exclui da sua competência a apreciação «da conveniência ou oportunidade da (…) actuação da Administração» e apenas lhes permite julgar «do cumprimento (…) das normas e princípios jurídicos que a vinculam» (n.º 1 do artigo 3.º do Código).
Igualmente está excluída a possibilidade de substituição à Administração na prática do acto impugnado.
Sendo impugnada uma deliberação do Conselho Superior da Magistratura que atribuiu determinada classificação a um magistrado, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem determinar o arquivamento do procedimento inspectivo, nem substituir essa classificação.
No contencioso relativo aos actos de classificação do serviço dos juízes, vale a regra de que está excluído do controlo jurisdicional o juízo valorativo que neles se contém, ressalvada, naturalmente, a hipótese de manifesto excesso ou desproporcionalidade, ou de erro grosseiro.

(Acórdão de 11-12-2012, proc. n.º 148/11.6YFLSB)


Segundo jurisprudência assente, a matéria em causa, relevando da avaliação ou apreciação do mérito com base em relatórios de inspeções de serviços se insere no âmbito da chamada justiça administrativa, caracterizada por uma grande liberdade no que respeita «à eleição dos elementos decisórios e à respectiva ponderação e valoração, actuando com uma ampla margem de discricionariedade técnica, embora vinculada ao dever de atribuição de uma classificação justa. Nesta perspetiva, a sindicabilidade da decisão pelo STJ, intervindo por meio da sua Secção de Contencioso, só será coadunável com a sua natureza caso se verifique erro manifesto, crasso ou grosseiro ou se adoptem critérios manifestamente desajustados».

(cf. Acórdão de 21-03-2013, proc. n.º 136/12.0YFLSB)


Conforme resulta de adequada interpretação dos arts. 3.º, n.º 1, 50.º e 92.º, n.º 2, do CPTA, o acto de classificação de um magistrado por parte do CSM faz parte dos actos da Administração em que existe uma certa margem de liberdade ou discricionariedade (a chamada “justiça administrativa”), não competindo ao tribunal de recurso, no âmbito de um recurso contencioso, que é de mera legalidade, apreciar como foram exercidos os critérios de mérito tidos como relevantes por parte do órgão da Administração, apreciar da sua conveniência ou oportunidade, ou intrometer-se nessa área por meio de juízos valorativos, apropriando-se das prerrogativas da Administração e substituindo-se à mesma nas suas funções próprias. Esses actos escapam, assim, ao controlo jurisdicional, salvo situações de manifesta desigualdade, desproporção ou erro grosseiro. |
Nesta perspetiva, não é, por regra, admissível o pedido de revogação, modificação ou substituição do acto impugnado, que se diz lesivo dos direitos ou interesses legalmente protegidos, a condenação da Administração a praticar determinado acto ou a substituição desta pelo tribunal na prática do acto administrativo, devendo o pedido cingir-se à declaração de invalidade, inexistência ou anulação desse acto, por força de vícios que o inquinem.

 (cf. Acórdão de 20-03-2014, proferido no processo 148/11.6YFLSB)


Considerando que o recorrente simplesmente discorda dos critérios e da deliberação do Conselho Superior da Magistratura na avaliação do mérito do seu desempenho funcional, e que o Conselho Superior da Magistratura, na sobredita avaliação, agiu com submissão à lei, não se descortinando erro manifesto, crasso ou grosseiro relativamente ao correspondente substrato factual ou que os critérios de avaliação utilizados se revelem ostensivamente desajustados, falece a arguida invalidade da deliberação impugnada por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, justiça e razoabilidade.

(cf. Acórdão de 20-02-2019, proc. n.º 42/18.0YFLSB)

O objecto da presente ação impugnativa circunscreve-se à apreciação jurisdicional da invalidade do acto administrativo com base nos fundamentos de nulidade ou de anulabilidade […] em ordem a julgar do cumprimento pela Administração (no caso, pelo CSM) das normas e princípios que a vinculam e não sobre a conveniência ou oportunidade da sua atuação, dentro dos limites e nos termos traçados nos artigos 3.º, n.º 1, e 95.º, n.º 3, do CPTA, de modo a salvaguardar o princípio da separação e interdependência dos poderes, sem que caiba, no domínio daquela apreciação, proferir decisão substitutiva da decisão assim impugnada.
Nesse quadro, estando em causa matéria respeitante à avaliação do desempenho profissional de uma juíza de direito e a consequente atribuição classificativa, cabe ao CSM uma ampla discricionariedade técnica de valoração, nessa medida insuscetível de reapreciação jurisdicional, estando apenas reservado ao STJ o conhecimento dos vícios determinativos da nulidade ou da anulabilidade do ato impugnado com fundamento em violação das normas e princípios a que o órgão decisório está vinculado, nas suas múltiplas e diversas dimensões, incluindo, todavia, os casos de erro de facto manifesto.

(cf. Acórdão de 10-12-2019, proferido no proc. n.º 70/18.5YFLSB)


O legislador, ao conferir aos tribunais poderes de jurisdição plena (arts. 2.º e 3. ° do CPTA), acaba por, correspetivamente, confiná-los à aplicação da lei e do Direito, vedando aos tribunais a faculdade de se substituírem aos particulares na formulação de valorações que pertencem à respetiva autonomia privada, e às entidades públicas na formulação de valorações que, por já não terem carácter jurídico, mas envolverem a realização de juízos sobre a conveniência e oportunidade da sua atuação, se inscrevem no âmbito próprio da discricionariedade administrativa. A reserva de discricionariedade da Administração Pública, com a consequente insindicabilidade judicial do mérito das medidas e opções administrativas é, pois, corolário imanente do princípio constitucional da separação de poderes.
A atuação da entidade demandada, quando atribui uma classificação em sede de inspeção ao trabalho desenvolvido por magistrado judicial, se situa precisamente na confluência dos três campos privilegiados da denominada «discricionariedade» administrativa a que aludimos supra: i) a margem de livre apreciação; ii) o preenchimento de conceitos indeterminados; e iii) a prerrogativa de avaliação.
Está, pois, vedado ao Supremo Tribunal reapreciar o mérito do ato da Administração para o substituir por outro, pelo que a operação de reapreciação em sede de recurso contencioso consistirá, apenas, em verificar se a deliberação impugnada - excluídos os casos de erro manifesto – obedeceu ou não às exigências externas do «jus cogens», afrontando algum dos invocados princípios - causas de invalidade - por violação de lei, erro nos pressupostos de facto, falta ou insuficiência de fundamentação, ou outro vício ou vícios que, afetando a aptidão intrínseca do ato para produzir os respetivos efeitos finais, evidencie seja determinada a peticionada anulação.

(cf. Acórdão de 27-05-2020, proc. n.º 39/19.2YFLSB)

1.6. Dito isto, e tendo presente tudo quanto se deixou estabelecido em sede de configuração da natureza discricionária (quanto ao conteúdo) da decisão administrativa sindicada nos autos, a ordem de conhecimento dos vícios não é indiferente, impondo-se ao tribunal conhecer, antes de mais, a alegada violação de lei, seja essa violação por vício de legalidades externas, relativas à competência, forma ou preterição de formalidades essenciais de procedimento (como a falta de fundamentação ou a preterição de audiência prévia), seja de legalidade interna, atinentes ao conteúdo do ato (por erro sobre algum dos pressupostos de facto ou de direito que estejam consagrados normativamente de modo a constituir parâmetros vinculativos, ainda que apenas parcialmente, da atuação do CSM).

Ou seja: é pertinente começar por apurar a alegada violação de algum desses pontos que delimitam negativamente a discricionariedade do acto impugnado. Só se não se verificar qualquer violação dos pontos enunciados, que decorrem imperativamente do quadro normativo vinculativa (seja quanto aos pressupostos, seja quanto à fundamentação — vícios expressamente invocados pelo autor), é que entraremos já no puro campo do exercício de poderes discricionários, e será então totalmente pertinente conhecer os pedidos relativos à violação dos princípios cuja violação vem alegada pelo autor (proporcionalidade e razoabilidade), porque esses valores axiológicos constituirão, na falta de vinculação normativa estrita, verdadeiros limites imanentes da actividade administrativa ([16]).

E porquê? Porque em qualquer desses casos vinculativos (os pressupostos de facto ou de direito em que laborou a entidade demandada ou as exigências de fundamentação), estaremos perante um comando que decorre imperativamente do jus cogens atendível, que delimita negativamente o campo da discricionariedade pura,  pelo que sempre se teria de entender estar a autoridade administrativa perante o exercício administrativo de um poder de decisão vinculado, não dispondo de qualquer margem de conformação nesses pontos. Assim, se o acto tiver violado algum desses parâmetros de legalidade estrita vinculativa (seja quanto aos pressupostos, seja quanto à fundamentação), será anulável por esse facto, não sendo pertinente invocar a violação de quaisquer outros princípios.

Por seu turno e em contrapartida, os demais vícios invocados pelo demandante (violação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade) têm assento, como vimos já, no artigo 266.º, n.º 2, da CRP. Estabelece este preceito, sob a epígrafe «princípios fundamentais», que «os órgãos e agentes da administração estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé». Decorre do próprio enunciado gramatical do preceito constitucional citado que estes princípios têm de ser compaginados com outros institutos e princípios impregnados de carga axiológica pelo menos tão densa, senão mesmo de maior dignidade. Um deles é precisamente o da legalidade, como se depreende da leitura da primeira parte do preceito citado: veja-se que é o próprio artigo 266.º, n.º 2, da CRP que apenas alude aos princípios da proporcionalidade, igualdade, boa fé, justiça e imparcialidade depois de expressamente deixar consignado, no início do preceito, que «os órgãos e agentes da administração estão subordinados à Constituição e à lei […]» (sublinhados nossos).

A sequência expositiva e de conhecimento dos vícios está, pois, traçada: apreciar-se-á antes de mais os aspectos de legalidade externa que o autor sustenta terem sido violados, nomeadamente a suposta falta de fundamentação. De seguida, importará conhecer o vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito. Só se conhecerá dos vícios atinentes à violação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade se aqueles primeiros vícios forem improcedentes.

Vejamos, pois.

*

2. Da falta de fundamentação

2.1. Defende o ora demandante que a decisão impugnada não está suficientemente fundamentada. Para tanto, aduz que a formulação constante no artigo 13.º, n.º 4, do Regulamento dos Serviços de Inspecção da entidade requerida (aprovado pela deliberação n.º 1777/2016, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 221, de 17-11-2016, doravante designado brevitatis causa por RSICSM) integra «um conceito indeterminado, que necessita de densificação, sob pena de se desconhecer o que deve considerar-se como “conjunto significativo de atrasos”» e conclui que «a douta deliberação impugnada padece de falta de fundamentação por obscuridade ou quando muito por demonstrar ser deficitária (insuficiente), nos termos do disposto no artigo 153.º, n.ºs 1 e 2 do CPA».

Vejamos.

2.2. A existência da fundamentação dos actos administrativos foi instituída pelo Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de junho, dispondo o seu n.º 2 que «[a] fundamentação dev[ia] ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anterior parecer, informação ou proposta, que neste caso constituir[iam] parte integrante do respectivo acto».

Tal regime viria a ser acolhido no Código de Procedimento Administrativo de 1991 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, com as alterações entretanto introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro), primeiro, e no CPA, vigente já à data dos factos, depois.

Trata-se, aliás, de uma figura que, apesar de oriunda de legislação ordinária (o aludido Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho), viria a obter consagração constitucional expressa, desde 1982, através do artigo 268.º, n.º 2 (hoje n.º 3) da CRP, nos termos do qual «[o]s atos administrativos carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos», com natureza análoga ao direitos, liberdades e garantias enunciadas no título II da parte I da Constituição.

Em anotação ao preceito constitucional citado, esclarecem os tratadistas ([17]) o seguinte:


Os cidadãos têm direito à fundamentação expressa e acessível dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses protegidos (n.º 3, 2.ª parte). A fundamentação é aqui entendida não só como motivação, traduzida na indicação das razões que estão na base da escolha operada pela Administração, mas também como justificação, traduzida na exposição dos pressupostos de facto e de direito que conduziram à decisão tomada.
Trata-se de um princípio fundamental da administração do Estado de direito, pois a fundamentação não só permite captar claramente a actividade administrativa (princípio da transparência da acção administrativa) e a sua correcção (princípio da boa administração), mas também, e principalmente, possibilita um controlo contencioso mais eficaz do acto administrativo, sobretudo quanto aos vícios resultantes da ilegalidade dos pressupostos e do desvio do poder. Em relação aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, a fundamentação é mesmo um requisito essencial, visto que sem ela ficaria substancialmente frustrada a possibilidade de impugnar com êxito os seus vícios mais típicos.
 

2.3. Os artigos 152.º e 153.º do CPA consagram, respectivamente, tal dever de fundamentação e os respectivos requisitos. Dispõe este último preceito que «[a] fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição das razões de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso parte integrante do respetivo acto» (n.º 1), referindo ainda o seu n.º 2 que «equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto».

Pretende-se o reforço das garantias da legalidade administrativa e dos direitos individuais dos cidadãos perante a Administração Pública, considerando-se que a falta de fundamentação das suas decisões dificulta, muitas vezes, a sua impugnação, graciosa ou contenciosa, ou sequer, como expressava o relatório do mencionado decreto-lei, «[…] uma opção consciente entre a aceitação da sua legalidade e a justificação de um recurso contencioso […]».

2.4. Assim, nas palavras da doutrina da especialidade:

A fundamentação de um acto administrativo consiste na enunciação explícita das razões que levaram o seu autor a praticar esse acto ou a dotá-lo de certo conteúdo. ([18])

 O que se pretende com a fundamentação é levar ao conhecimento do destinatário o percurso cognoscitivo e valorativo que o autor do acto percorreu para decidir de modo a permitir que um destinatário normal, colocado na posição do real destinatário do acto, possa compreender por que razão o autor do acto decidiu assim. O critério é o da compreensibilidade por um destinatário normal do acto colocado na posição do destinatário real. ([19])

Como lapidarmente se sintetizou no Acórdão do STJ de 07-12-2005, proferido no processo n.º 2381/04, «a exigência de fundamentação (também dos atos administrativos) prossegue dois objetivos fundamentais: um, de natureza endoprocessual; outro de ordem extraprocessual. O primeiro visa permitir aos interessados o conhecimento das razões de facto e de direito que enformaram a decisão que lhes respeita, convencendo-os da sua bondade/acerto ou habilitando-os a reagir, fundadamente, se for essa a opção; o segundo é direta decorrência dos princípios da legalidade, da Justiça e da imparcialidade e visa, além do mais, assegurar a sua adequada sindicabilidade».

Fundamentar é, portanto, enunciar explicitamente as razões ou motivos que levaram a autoridade administrativa à prática do acto, é enunciar as premissas de facto e de direito em que a respectiva decisão administrativa assenta. E o dever/direito de fundamentação visa, além do mais, impor à administração que pondere muito bem antes de decidir, e permitir ao administrado seguir o processo mental que conduziu à decisão, a fim de a ela poder esclarecidamente aderir, ou contra ela poder reagir pelos meios legais. A obrigação de fundamentação constitui, assim, importante sustentáculo da legalidade administrativa, e o direito à fundamentação um instrumento fundamental da garantia contenciosa, na medida em que é elemento indispensável na interpretação do acto administrativo.

Em suma: o dever de fundamentação expressa dos actos administrativos tem uma tripla justificação racional: habilitar o interessado a optar conscientemente entre conformar-se com o acto ou impugná-lo; assegurar a devida ponderação das decisões administrativas; e permitir um eficaz controlo da actuação administrativa pelos tribunais.

Para o efeito, são unanimemente consideradas determinadas características de que deve revestir-se o sobredito dever de fundamentar as decisões administrativas. Assim, a fundamentação há de ser: i) expressa, através duma exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito da decisão; ii) clara, permitindo que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide; iii) suficiente, possibilitando ao administrado um conhecimento concreto da motivação do acto, ou seja, as razões de facto e de direito que determinaram o órgão ou agente a actuar como atuou; e iv) congruente, de modo que a decisão constitua conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação, envolvendo entre eles um juízo de adequação, não podendo existir contradição entre os fundamentos e a decisão.

Acresce ainda que um acto deve sempre adequar-se aos seus fundamentos – e não estes àquele. Tal asserção impõe que a fundamentação deva ser sempre contemporânea da prática do acto.

Relativamente aos atributos de clareza, suficiência e coerência da fundamentação exigidos pelo transcrito n.º 2 do artigo 153.º, esclarecem os glosadores o seguinte:


À falta de clareza, contraditoriedade ou insuficiência dos fundamentos em si equivale a da respetiva expressão externa o que se justifica perfeitamente porque o texto do ato tem forma externa escrita e não outra. Matéria e linguagem equivalem-se aqui.
As duas primeiras são a consequência de regras lógicas próprias de qualquer enunciado. A última filia-se numa exigência funcional própria especificamente da fundamentação dos atos administrativos [sendo, aliás, a] exigência da suficiência […] a de mais difícil aferição. A fundamentação tem de justificar toda a decisão e em termos adequados que não deixem dúvidas ao destinatário. O autor do ato deve fazer aqui um raciocínio hipotético. O que será necessário transmitir-lhe para que o destinatário do ato compreenda o meu ponto de vista? Saber o que é suficiente para a fundamentação em ordem a apreciar da concreta motivação de cada ato depende do tipo legal de ato e de cada caso concreto. Mas não bastam afirmações genéricas do tipo de conveniência de serviço […]
Pelo que toca às razões de facto, exige a suficiência um critério da razoabilidade; pelo menos os factos mais relevantes terão de ser claramente indicados. ([20])

Concluindo: a fundamentação do acto administrativo é suficiente se, no contexto em que foi praticado, e atentas as razões de facto e de direito nele expressamente enunciadas, for capaz ou apta e bastante para permitir que um destinatário normal apreenda o itinerário cognoscitivo e valorativo da decisão; é clara quando tais razões permitem reconstruir o iter cognoscitivo-valorativo da decisão; é congruente quando a decisão surge como conclusão lógica e necessária de tais razões; e é contextual quando se integra no próprio acto e dela é contemporânea.

A propósito desta necessidade de uma fundamentação contextual, importa aqui deixar desde já assente que, como é, aliás, consabido, e sem prejuízo do que se deixou estabelecido supra, nada na lei milita no sentido da proibição de uma decisão por parte da Administração que consista em mera declaração de concordância com os fundamentos de anterior parecer, informação ou proposta, que, neste caso, constituirão parte integrante do respetivo acto (fundamentação por adesão ou remissão). Ao contrário, é tal expediente permitido no CPA (artigo 153.º, n.º 1). Em tal caso, o despacho integra nele próprio o parecer, informação ou proposta que, assim, em termos de legalidade, terão de satisfazer os mesmos requisitos da fundamentação autónoma.

De resto, decorre do artigo 152.º, n.º 1, alínea c), do CPA que, quando a decisão do processo não seja concordante com a proposta de decisão final, aquela decisão deve ser fundamentada. Logo, torna-se mister concluir, a contrario sensu, que, ao invés — ou seja, quando a decisão da autoridade competente seja de expressa concordância com a proposta ou informação formulada pelos serviços —, a fundamentação daquela decisão teria de encontrar-se naquela proposta/informação já que tal decisão abarcara ou acolhera implicitamente os fundamentos ou pressupostos de facto e de direito nela insertos.

2.5. Na jurisprudência da Secção do Contencioso do STJ tais requisitos têm vindo a ser interpretados no sentido exposto, realçando que «a fundamentação consiste assim na expressão dos motivos que encaminharam a decisão para um determinado sentido e na exposição dos pressupostos de facto e de direito que conduziram ao pronunciamento e, como emerge do n.º 2 do art.º 153.º do CPA, deve ser clara, suficiente e coerente. // Sendo, em consequência, ilegal a fundamentação “obscura” - que não permite apurar o sentido das razões apresentadas -, “contraditória” que não se harmoniza os fundamentos logicamente entre si ou não se conforma aqueles com a decisão final -, ou “insuficiente” - que não explica por completo a decisão tomada. Apenas releva, como vício do ato, a insuficiência da fundamentação que seja manifesta, dado que se tem como suficiente a exposição sucinta dos fundamentos e dos elementos necessários à expressão das razões do ato, apreensíveis por um destinatário normal e razoável» (cf. Acórdão de 22-01-2019, proferido no processo n.º 77/18.2YFLSB; em sentido próximo, cfr., entre muitos outros, os acórdãos de 28-02-2018, proferido no processo n.º 67/17.2YFLSB, e de 04-07-2019, proferido no processo n.º 18/18.7YFLSB, todos consultáveis em www.dgsi.pt/jstj).

2.6. Impõe-se efectuar três últimas notas de enquadramento e densificação exegética do dever de fundamentação, relevantes para a decisão da questão sub judicio. Aqui as enunciamos, transcrevendo, data venia, a exposição efectuada no já citado Acórdão de 27-05-2020 (proc. n.º 39/19.2YFLSB).

A primeira, de resto, tem sido salientada pela doutrina da especialidade ([21])  e tem merecido apurada atenção da Secção de Contencioso do STJ. Referimo-nos ao carácter relativo do conceito e da figura de fundamentação do acto administrativo. Pretendemos com isto significar que a exigência de fundamentação pode variar conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto.

A este respeito, tem afirmado o STJ a necessidade ...... em linha de consideração um parâmetro da variabilidade da densidade da fundamentação. Tal foi afirmado no Acórdão do STJ de 14.05.2015, proferido no processo n.º 12/15.0YFLSB, e foi reiterado recentemente em três acórdãos de 2019: o Acórdão de 12-10-2019, proferido no processo n.º 2/19.3YFLSB; o Acórdão de 04-07-2019, proferido no  processo nº 18/18.7YFLSB; e o  Acórdão de 10-12-2019 (processo n.º 70/18.5YFLSB) — os dois últimos proferidos em matéria directamente relacionada com a que aqui se aprecia, relativa às classificações atribuídas pelo CSM em sede de inspecção ao trabalho desenvolvido por magistrados judiciais. Todos os arestos citados se encontram integralmente disponíveis para consulta online in http://www.dgsi.pt/jstj.

Deixou-se consignado no sumário do Acórdão da Secção do Contencioso do STJ de 04-07-2019, proferido no  processo nº 18/18.7YFLSB, que «a  densidade de fundamentação dos atos administrativos à luz do disposto no artigo 268.º, n.º 3, 2.ª parte, da Constituição e em conformidade com os artigos 151.º, n.º 1, alínea d), 152.º, n.º 1, alínea a), e 153.º, n.os 1 e 2, do CPA, deverá ser de teor variável em função das exigências inerentes a cada tipo de ato ou mesmo a cada caso singular, devendo nortear-se sempre pelo desiderato de proporcionar “a um destinatário normal, colocado na posição do real destinatário do ato”, a compreensão das razões que conduziram o órgão decisor à decisão proferida».

Na mesma linha e com uma formulação similar, veja-se o Acórdão de 10-12-2019 (processo n.º 70/18.5YFLSB).

No entanto, e isso é que importa reter, a fundamentação só é suficiente, reiteramos, quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação.

De tal sorte que se deve considerar «[…] cumprido o dever de fundamentar desde que, na forma do acto, certas circunstâncias e interesses sejam formalmente identificados como existentes e relevantes para a decisão […]» ([22]). «De facto, existindo uma declaração do autor que pretenda fundamentar o acto, só não estará cumprido o dever formal respetivo se essa declaração não puder ser considerada uma fundamentação daquele acto – […] por impossibilidade de determinação do seu conteúdo, por falta evidente de racionalidade ou por manifesta inaptidão justificativa – sendo dado que a fundamentação visa aqui esclarecer concretamente as razões que determinaram a decisão tomada e não encontrar a base substancial que porventura a legitime» ([23]).

2.7. A segunda ideia é a de que, apesar de se ter de reconhecer o aludido parâmetro da variabilidade da densidade da fundamentação, não é aceitável como fundamentação factual de um acto administrativo, nem a mera reprodução dos termos da lei, nem a simples indicação de expressões conclusivas ou neutras, nem de fórmulas genéricas, abstratas ou vagas, nem de cláusulas gerais (aplicáveis a todas as situações que, em função das suas características, possam subsumir-se-lhe), sem que depois sejam preenchidas com factos concretos da vida, com elementos individualizadores que as liguem ao destinatário.

Na jurisdição administrativa, esta matéria foi objecto de proficiente tratamento. O STA, numa orientação jurisprudencial de que cumpre dar nota e que se acolhe, tem vindo a asseverar reiteradamente que padecem do vício de falta de fundamentação, e devem por isso mesmo ser anulados, os actos administrativos que: i) «se limita[m] a descrever os conceitos genéricos previstos na lei (v.g. “considerados o interesse público e os objetivos da política externa portuguesa e observados, sucessiva e cumulativamente, os critérios enunciados no n.º 1 do art. 45.º”) pois tal fórmula, atenta a sua generalidade e abstração, não indica nem permite que um destinatário normal e atento fique saber quais os interesses e objetivos da política externa nem quais as características pessoais dos candidatos que concretamente, isto é, naquele caso serviram de motivação ao ato […]» (cf. Acórdão de 18-09-2008, processo n.º 0941/05); ii) «se limitem à reprodução ipsis verbis das palavras previstas na lei para a motivação do tipo de atos em causa, permanecendo essa obscuridade se a fundamentação do ato, desviando-se embora das palavras da lei, recorrer a vocábulos que lhes sejam sinónimos ou simplesmente aparentados, continuando a reproduzir o essencial do sentido lógico das expressões legalmente previstas, sendo também obscura a fundamentação que seja exclusivamente realizada através de noções conclusivas ou genéricas, pois a natural indeterminação delas não permite discernir a particular motivação do ato pelo que padece de vício de forma, por falta de fundamentação, o despacho que, fazendo cessar uma comissão de serviço, nos termos do art. 7.º, n.º 2, do DL nº 323/89, se baseie, por um lado, no uso de expressões equivalentes às genéricas e abstratamente referidas no preceito, e se funda, por outro, na enunciação de afirmações conclusivas, destituídas da referência a um mínimo suporte factual» (cf. Acórdão de 17-11-1999, recurso n.º 040035); iii) se circunscrevam à «[…] reprodução no ato do enunciado legal desacompanhado de factos que o concretizem […]» (cf. Acórdão de 10-02-1999, recurso n.º 040844); iv) «sem referir factos ou situações concretas atinentes ao destinatário se limitam a fazer juízos conclusivos e enunciados programáticos em reprodução do texto legal […] que é aplicável a todas as situações, que em função das suas características, se possam subsumir-se-lhe […]» (cf. Acórdão de 17.03.1998, recurso n.º 040844); v) aludam a categorias genéricas tipificadas em preceitos normativos que permitam atos sancionatórios ou ablativos, «mas que, visando objetivos programáticos de eficiência e conveniência de serviço, terão de ser minimamente concretizadas [posto que], embora a exigência de densidade de fundamentação formal, neste tipo de atos, seja menor, terá sempre de haver um grau de densidade mínima, em ordem a permitir, por um lado, a defesa do seu destinatário, e, por outro, o controlo da decisão pelos tribunais até aos limites que o tipo de ato consinta, designadamente a adequação do ato ao fim, i. e. , ao interesse público a prosseguir» (cf. Acórdão de 18-12-2002, recurso n.º 038240).

De um modo geral, o STA apenas admite que, neste tipo de situações, se afaste o anátema da falta de fundamentação quando os actos administrativos «[…] não se limitam à mera reprodução das palavras da lei ou a referências genéricas, antes especificam […] por forma direta e por expressa remissão para o relatório […] as anomalias, irregularidades e ilegalidades objetivas registadas […] e que concretamente motivam as decisões tomadas» (vide, inter alia, os acórdãos de 25-05-2000 e de 30-10-2002, proferidos no recurso n.º 040635, acessíveis em http://www.dgsi.pt/jsta).

Ou seja: se, apesar de recorrer a expressões equivalentes às genéricas e abstratamente referidas no enunciado gramatical do preceito normativo que aplicam, ou à enunciação de afirmações conclusivas, houver ainda assim a referência a um mínimo suporte factual que as concretizem ou densifiquem casuisticamente, já se deverá ter por suficientemente observado o dever de fundamentação.

2.8. A terceira e última nota, neste enquadramento dogmático relevante, é o de que o que releva para efeitos de fundamentação é, pois, a compreensão dessas razões, e não a veracidade das mesmas ou a sua conformidade legal.

Na verdade, a falta de fundamentação não se confunde com a discordância dos fundamentos: a primeira reporta-se a um vício procedimental, atinente à legalidade externa do acto, e ocorre quando a decisão não está suficientemente fundamentada, ou quando o destinatário da decisão não se consiga aperceber de quais os fundamentos; já a discordância reporta-se a um vício substancial, atinente ao conteúdo decisório, e pressupõe que o destinatário se tenha apercebido do motivo invocado pela autoridade administrativa que tenha praticado o acto impugnado, embora dele discorde. Sendo esse o caso, essa discordância deve ser apreciada em sede devida, designadamente, em sede de erro sobre os pressupostos.

2.9. Cientes deste enquadramento, volvamos o nosso olhar para o caso dos autos.

Insurge-se o autor, fundamentalmente, contra o facto de que a formulação constante no artigo 13.º, n.º 4, do Regulamento dos Serviços de Inspecção da entidade requerida (aprovado pela deliberação n.º 1777/2016, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 221, de 17-11-2016, doravante designado brevitatis causa por RSICSM) integra «um conceito indeterminado, que necessita de densificação, sob pena de se desconhecer o que deve considerar-se como “conjunto significativo de atrasos”» e conclui que «a douta deliberação impugnada padece de falta de fundamentação por obscuridade ou quando muito por demonstrar ser deficitária (insuficiente), nos termos do disposto no artigo 153.º, n.ºs 1 e 2 do CPA».

Reconhecemos que o art. 13.º, n.º 4, do RSICSM, ao aludir a «conjunto significativo de atrasos», estabelece um conceito indeterminado, a preencher pela entidade demandada em sede de acto administrativo.

Mas será que essa densificação não foi estabelecida com suficiente densidade na deliberação impugnada? Julgamos que sim.

Como é sabido, as deliberações do CSM, em sede de avaliação do desempenho dos juízes, são suportadas no relatório de inspecção, de onde são coligidos os elementos de facto tidos por essenciais.

É precisamente o que se verifica na deliberação aqui impugnada, em que foi assumido, até mediante extensa transcrição na matéria de facto, o acervo factual constante do relatório de inspecção sobre o desempenho profissional do autor, Sr. Juiz inspeccionado nos tribunais e períodos compreendidos pelo acto inspectivo, conforme o que se deixou consignado na factualidade relevante. E foi com base nesses elementos factuais, qualitativos e quantitativos, que foram extraídas as ilações sobre a adaptação do demandante ao serviço, índices da sua produtividade, no contexto da carga e movimento processuais verificados e das demais condições de trabalho, bem como sobre a respectiva aptidão técnico-jurídica.

Pois bem, cotejando a deliberação impugnada e o relatório final de 16-12-2019 e a deliberação da Secção de Assuntos Inspectivos e Disciplinares de 18-02-2020, ambos reproduzidos no acto impugnado (Deliberação do Plenário de 03-11-2020 [cf. pontos 2), 5) e 8) do probatório], constatamos ter sido o seguinte o excurso fundamentador utilizado pela entidade demandada para densificar e preencher o aludido conceito indeterminado (os sublinhados serão nossos):


» Há, contudo, um aspeto relevante em termos de adaptação ao serviço que marca de forma indelével o trabalho do Sr. Juiz e que, porque claramente menos conseguido, compromete de forma irremediável a qualificação do seu desempenho como elevadamente meritório.
» É ele, em consonância com as conclusões do Sr. Inspetor, o atinente ao não cumprimento de prazos processualmente relevantes na prolação de decisões. (...)
» Ora, no caso em apreço, o número de atrasos detetados no desempenho do Sr. Juiz de Direito inspecionado, seja pela sua quantidade, seja pela sua dimensão temporal, no contexto das condições de execução do serviço, assumem uma expressão tal que não podem deixar de ser considerados significativos.
» Esse facto, porque comprometedor da ideia de excelência pressuposta na atribuição da classificação de “Muito Bom” e porque a atribuição da mais alta classificação ao Sr. Juiz inspecionado representaria uma subida classificativa, obsta - nos termos do Regulamento que rege a atividade inspetiva do Conselho Superior da Magistratura -, a que a que a mesma lhe seja atribuída».
Analisemos, então, os atrasos em questão, a fim de aferir se e em consonância com o supra transcrito artigo 13.º, n.º 4 do RSI do CSM, não obstante os vetores da capacidade humana para o exercício da função e preparação técnica apontarem para a nota máxima, o não cumprimento dos prazos em causa é de tal forma significativo que a melhoria de classificação só poderia ocorrer numa situação excecional, devidamente fundamentada.
O «número significativo de atrasos» quer expressar conforme se explica na douta deliberação impugnada: «um número de atrasos que, pela sua quantidade, ou pela sua dimensão temporal ou, ainda, pela sua gravidade no contexto das condições de execução do serviço, assuma uma expressão tal que, revelando incapacidade de gestão processual ou incúria do juiz na condução dos processos, obste à subida (ou manutenção) da classificação».
Foram contabilizados, durante o período inspetivo de 4 anos, 9 meses e 16 dias, 90 atrasos na prolação de 87 sentenças e 3 despachos:
-15 foram até 30 dias;
-14 entre 31 e 60 dias;
-13 entre 61 e90 dias;
-24 entre 91 e 120 dias;
-11 entre 121 e 150 dias;
-8 entre 151 e 180 dias;
-e 1 com 189 dias.
Numa abordagem cronológica e tomando por referência a data da conclusão do processo para decisão, a distribuição temporal dos atrasos é a seguinte:
-      conclusões de 2015 (46 atrasos),
-      conclusões de 2016 (25 atrasos),
-      conclusões de 2017 (11 atrasos, todos inferiores a 81 dias) e
-      conclusões de 2019 (8 atrasos, entre 11 e 26 dias).
Importa, em primeiro lugar contextualizar estes números:
Resulta do relatório de inspeção que durante o período inspetivo, o Senhor Juiz proferiu 1026 sentenças no Juízo Local cível ...... e 18 no Juízo local cível ........., onde esteve em substituição de uma colega, a acumular funções, proferindo, assim, um total de 1044 decisões finais, sendo 200 contestadas (com julgamento).
Por outro lado, durante o período inspetivo entraram um total de 1401 processos e findaram 1579 processo, no Juízo Local Cível .......
Neste quadro, as 90 sentenças proferidas com atraso correspondem a 5,70% do número total de processos findos e 8,62% do número global de sentenças proferidas.
Olhando a estes números importa concluir que ainda que não seja uma quantidade despicienda, o número de atrasos não é, atento o número de decisões proferidas, expressivo.
E no que se refere à dimensão temporal?
Resulta do relatório que dos 90 atrasos, 44 dizem respeito a um período superior a 90 dias, sendo um deles superior a 180 dias, mais concretamente 189 dias, que diz respeito a um processo concluso durante a licença parental (sendo que nos 189 dias não se inclui o período de licença, nem de férias). O não cumprimento dos prazos, por período superior a 90 dias já é significativo.
No que se refere ao contexto das condições de execução do serviço, referiu-se no relatório de inspeção que «a carga processual suportada não foi excessiva mas ajustada - ainda que mais exigente nesse período (de acumulação) e no que se seguiu ao seu regresso ao serviço (do gozo de licença de parentalidade pelo nascimento das filhas gémeas) - tendo em conta o volume, a habitual complexidade das questões suscitada e as condições de serviço tendo sempre em conta a sua experiência profissional anterior». Por conseguinte, as condições objetivas de execução do serviço, só por si, não justificam a existência de atrasos na prolação das decisões e muito menos 44 atrasos superiores a 90 dias, sendo um destes superiora 180 dias.
Ora, se os referidos atrasos não revelam incúria do senhor juiz na condução dos processos, o que aliás é completamente afastado pelas menções elogiosas que o Senhor Inspetor faz ao desempenho funcional do senhor juiz, o mesmo já não se pode concluir quanto à ineficiência de gestão do serviço.
Com efeito, não estando o Senhor Juiz perante uma carga processual excessiva, mas ajustada, poderia, pelo menos a partir de setembro de 2016, ter gerido a situação de modo a não protelar os atrasos. E como se refere no relatório de inspeção «o modo como o senhor juiz aborda a elaboração das sentenças ... poderia ter sido também mais ajustado às situações de maior pressão do serviço judicial a seu cargo com ordem a garantir uma melhor gestão processual global».
Concluímos, assim, que o conjunto dos atrasos referenciados, no contexto em causa, deve ser qualificado de significativo e não encontra, em toda a sua extensão, justificação nas circunstâncias absolutamente excecionais e irrepetíveis da vida pessoal do Senhor Juiz, que sucederam durante o período inspetivo:
«(...) confrontado com uma pendência elevada - em 1 de janeiro de 2015 estavam pendentes 340 processos sem decisão final - o reclamante procedeu a um agendamento “mais carregado”, abrangendo praticamente todos os dias da semana, num esforço que visou a redução da pendência para um nível aceitável. Mas tendo-se verificado a gravidez da esposa, que rapidamente evoluiu para situação de risco - com internamento hospitalar, em setembro de 2015 obrigando o reclamante a dar mais apoio em casa, mormente à filha com três anos à data, tornou-se multo difícil trabalhar em casa e à noite, como anteriormente sucedia. E acresce que a acumulação de funções na instância local cível ......... avolumou o trabalho. Após o nascimento das bebés (gémeas), em novembro de 2015, seguiu-se um período de licença parental, no qual, infelizmente, dados cuidados que as recém-nascidas exigiam, não foi possível recuperar totalmente o serviço atrasado. E, a agravar a situação, após o termo da licença parental, foi o reclamante confrontado com a agenda pesada, com diligências diárias, de manhã e de tarde, que obrigaram a estar praticamente todo o dia na sala, com prejuízo para a prolação de sentenças. Assim se justificam os atrasos verificados em 2015, 2016 e 2017. Só em meados deste último ano a situação estabilizou. (...)».
Com efeito, se esta situação da vida pessoal justifica os atrasos ocorridos até setembro de 2016 (o Senhor Juiz regressa da licença em abril de 2016, pelo que é expectável que até às férias judiciais do verão não lograsse estabilizar o juízo), o mesmo já não sucede posteriormente e o facto é que a partir de setembro de 2016 o Senhor Juiz continua a incumprir os prazos de forma muito relevante, ou seja, mantém atrasos superiores a 90 dias.
Por conseguinte, não obstante a «redução substancial da pendência» e o «cumprimento dos objetivos processuais traçados» — em especial, quanto à redução de pendências e aos tempos de agendamento —, o não cumprimento dos prazos, marcou, de forma indelével e negativamente o desempenho do Exmo. Senhor Juiz, ao longo praticamente de todo o período inspetivo, designadamente no critério de adaptação ao serviço e obsta uma melhoria de classificação, para a nota máxima, atento aliás o disposto no n.º 4 do art. 13.º do RSI do CSM.
Concluímos assim, tal como na deliberação do Conselho Permanente que o desempenho do senhor Juiz, ainda que de enorme qualidade não atingiu, ainda, mercê das vicissitudes constatadas o patamar de excelência necessário à sua qualificação como elevadamente meritório.

3.10. Aqui chegados, ao contrário do referido pelo autor, resulta ter sido feita no relatório inspectivo uma apreciação global do trabalho quantitativo prestado pelo demandante durante o período inspectivo, e foi concretizado o juízo relativo ao atraso significativo de decisões, desenvolvendo esse juízo em três áreas distintas (quantidade de atrasos; dimensão temporal; e gravidade dos atrasos no contexto das condições de execução do serviço).

Os dados exarados no relatório inspectivo estão devidamente objectivados e fundamentados nos termos exigíveis e atrás expostos. Ponderada a adequação dos dados coligidos no relatório inspectivo, a deliberação ora impugnada incorporou-os na respectiva fundamentação, e concretizou ou densificou o juízo negativo relativo à não subsunção do desempenho do autor no nível de “excelência” que justificasse a atribuição de Muito Bom.

Como tal, não estamos aqui perante uma decisão administrativa que se limitou a uma mera reprodução das palavras da lei ou a uma referência vaga e genéricas, sem preocupação em concretizar um certo conceito indeterminado, mas determinável. Ao invés, deparamo-nos com uma deliberação que especifica, por forma directa e por expressa remissão para o relatório, os atrasos que, pela sua extensão, relevância e carácter reiterado, mereceram censura e justificaram um juízo que apartou o desempenho do autor do nível de excelência e que concretamente motivaram a decisão adoptada. Mesmo recorrendo a expressões equivalentes às genéricas e abstratamente referidas no enunciado gramatical do preceito normativo que aplicam, ou à enunciação de afirmações conclusivas, houve ainda assim a referência a um mínimo suporte factual que as concretizaram ou densificaram casuisticamente, pelo que se tem por suficientemente observado o dever de fundamentação.

Ou seja, ao contrário do que defende o autor, conforme resulta bem claro do relatório inspectivo e da deliberação impugnada (que o integrou), as conclusões que põe em causa são fundadas em dados objectivos recolhidos durante o processo inspectivo e analisados de forma conjugada com outros factores de relevo aí elencados. Ou, dito por outras palavras, as apreciações desfavoráveis feitas ao desempenho do demandante mostram-se fundadas, factualmente, nos elementos estatísticos e documentais que foram coligidos pelo Sr. Inspetor Judicial e valorados na deliberação recorrida.

Significa isto que, feita a análise crítica da deliberação posta em causa, por referência aos elementos constantes no relatório inspectivo, logra-se, sem esforço, apreender o que determinou a atribuição da notação em causa: os atrasos detectados não justificados, resultantes de uma menos eficiente gestão e eficiência processual. A deliberação impugnada mostra-se, na verdade, clara e fundamentada, encontrando-se perfeitamente valoradas todas as questões acima enunciadas, explicitada a carga processual apurada e os motivos pelos quais a prestação funcional do autor não atingiu, no juízo da entidade demandada, um nível de excelência ao longo da respectiva carreira, sendo manifestamente perceptível para um destinatário normal o percurso cognoscitivo tido em conta pelo órgão decisório no âmbito da avaliação classificativa, e que determinou a atribuição da classificação de Bom com Distinção, e não de Muito Bom.

Vale isto por dizer, ao cabo e ao resto, que a decisão impugnada foi objecto da devida fundamentação, de facto e de direito. Confrontado com estes fundamentos ficaria qualquer declaratário normal na posse de todos os elementos objectivos necessários ao cabal exercício do seu direito de defesa. Até porque, no caso, estão ali contidos todos os fundamentos.

Ademais, valha a verdade, os autos também não denotam qualquer dificuldade sentida pelo autor em tal exercício, visto que, se num momento se reclama incapaz de exercer eficazmente o seu direito de defesa, no momento seguinte passa a exercer esse direito com manifesto esclarecimento sobre o exacto teor de tais fundamentos, do seu alcance e das normas aplicáveis.

Por último, e tal como tivemos oportunidade de deixar estabelecido adrede, a falta de fundamentação não se confunde com a discordância dos fundamentos. E, na verdade, o autor parece confundir falta de fundamentação ou fundamentação insuficiente com a sua discordância quanto à apreciação crítica dos factos e da prestação de serviço durante o período inspecionado.

Nesta conformidade, julga-se improcedente a pretensão do autor com este fundamento.

*

3. Do vício de violação de lei (artigos 12.º e 13.º do RSICSM)

3.1. Alega o autor que a deliberação impugnada padece do vício de violação de lei, porquanto deveriam ser relevados os atrasos detectados no período vertente e assim classificar-se o desempenho funcional do autor, como sendo elevadamente meritório, mediante a atribuição da classificação de Muito Bom, sob pena de violação do disposto nos artigos 12.º e 13.º do RSICSM. Invoca a violação do critério do artigo 12.º, n.º 3, al. d), do RSICSM (segundo o qual a adaptação ao serviço é analisada, entre outras vertentes, pelos prazos de decisão e tempo de duração dos processos). Aduzindo ser «indiscutível o reconhecimento de excelência terminologia do demandante com que o A. exerceu as suas funções durante o período inspetivo» e que, «atendendo à imagem global do desempenho das funções do A. muito positiva (…) e assim de excelência terminologia do Autor, e expurgando o período temporal até setembro de 2016, deverão considerar-se como relevados os atrasos imputados após setembro de 2016, desde logo, os inferiores a 90 dias por nas palavras do R., e “a contrario senso”, não serem significativos, e os restantes serem pontuais e se tratarem de uma consequência direta e imediata da situação excecional da vida pessoal do A. (gozo de licença de parentalidade e assistência à esposa e à filha no período subsequente), tendo sempre por referência o número de decisões proferidas, número de entradas de processos e processos findos e volume de serviço».

3.2. O vício de violação de lei consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto administrativo e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» ([24]) ou na desconformidade entre os pressupostos e/ou o conteúdo do acto concreto e a previsão de situação e/ou o comando contidos em norma imperativa» ([25]). Trata-se do vício que «afeta o ato praticado em desconformidade com os requisitos legais vinculados respeitantes aos respetivos pressupostos ou objeto» ([26]), ou, dito por outras palavras, que afecta o acto administrativo «cujo conteúdo, incluindo os respetivos pressupostos, contrarie as normas jurídicas com as quais se devia conformar, integrando tal vício quer o erro na interpretação ou indevida aplicação da regra de direito (erro de direito) como o erro baseado em factos materialmente inexistentes ou apreciados erroneamente (erro de facto)» ([27]).

Portanto, o vício de violação de lei configura uma ilegalidade de natureza material, sendo a própria substância do acto administrativo que contraria a lei. A ofensa da lei não se verifica aqui nem na competência do órgão nem nas formalidades ou na forma que o acto reveste nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do acto. «O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do acto administrativo, é a decisão em que o acto consiste, que contraria a lei […] Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre os efeitos de direito determinados pela Administração e os efeitos que a norma ordena. O vício de violação de lei produz-se normalmente quando, no exercício de poderes vinculados, a Administração decida coisa diversa do que a lei estabelece ou nada decida quando a lei mande decidir algo» ([28]).

Em suma, o vício de violação de lei verifica-se quando é efectuada uma interpretação errónea da lei, aplicando-a a realidade a que não devia ser aplicada ou deixando-a de aplicar a realidade que devia ser aplicada. Neste sentido veja-se Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-05-2016, proferido no processo n.º 55/14.0YFLSB.

Tal vício produz-se normalmente no exercício de poderes vinculados, mas também pode ocorrer no exercício de poderes discricionários, quando, designadamente, sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, maxime os princípios constitucionais da imparcialidade, da igualdade, da justiça e da boa fé. 

Importa, pois, apreciar da suposta violação de cada um dos preceitos invocados pelo autor.

3.3. Alega o autor, como vimos, que a deliberação impugnada é inválida por violação do disposto no artigo 12.º, n.º 3, alíneas d) e g), e n.º 5, do RSICSM.

Por se revelar de interesse para a economia da presente decisão, aqui se extraem os preceitos relevantes dos artigos 12.º e 13.º do RSICSM:


Artigo 12.º
Critérios de avaliação
1 — A inspeção dos magistrados judiciais incide sobre a sua capacidade humana para o exercício da função, a sua adaptação ao serviço e a sua preparação técnica.
[…]
3 — A adaptação ao serviço é analisada, entre outras, pelas seguintes vertentes:
a) Assiduidade, zelo e dedicação;
b) Produtividade, designadamente no que respeita à taxa de resolução, obtida pela divisão do número de processos findos pelo número de processos entrados no mesmo ano, e à taxa de recuperação, correspondente à razão entre o número de processos findos e a soma dos processos entrados e dos processos pendentes;
c) Método de trabalho, dirigido à decisão final, que se revele organizado, lógico e sistemático;
d) Prazos de decisão e tempo de duração dos processos;
e) Capacidade de simplificação processual;
f) Direção das audiências e outras diligências, mormente quanto à pontualidade, calendarização, disciplina e criteriosa gestão do tempo;
g) Gestão do acervo processual distribuído ao inspecionado e participação na gestão da unidade de processos;
h) Contribuição do juiz para o cumprimento dos objetivos processuais aprovados.
[…]
5 — Na apreciação referida nos números anteriores são sempre ponderadas as circunstâncias em que decorreu o exercício de funções, designadamente as condições de trabalho, volume de serviço, particulares dificuldades do exercício da função, grau de experiência na judicatura compaginado com a classificação e complexidade do tribunal ou secção, acumulação de serviço, tribunais ou secções, o exercício da função de juiz-coordenador, bem como de outras funções legalmente previstas ou autorizadas e a relevância de trabalhos jurídicos publicados.

Artigo 13.º
Classificações
1 — As classificações dos juízes de direito são atribuídas de acordo com os seguintes critérios:
a) A atribuição de Muito Bom equivale ao reconhecimento de que o juiz de direito teve um desempenho elevadamente meritório ao longo da respetiva carreira;
b) A atribuição de Bom com Distinção equivale ao reconhecimento de um desempenho meritório ao longo da respetiva carreira;
c) A atribuição de Bom equivale ao reconhecimento de que o juiz revelou possuir qualidades a merecerem realce para o exercício do cargo nas condições em que desenvolveu a atividade;
d) A atribuição de Suficiente equivale ao reconhecimento de que o juiz possui as condições indispensáveis para o exercício do cargo e que o seu desempenho funcional foi apenas satisfatório;
e) A atribuição de Medíocre equivale ao reconhecimento de que o juiz teve um desempenho funcional aquém do satisfatório.
2 — A primeira classificação não deve ser superior a Bom, salvo casos excecionais em que, verificando -se a previsão da alínea b) do número anterior, ocorra uma das seguintes situações:
a) O serviço tenha sido prestado em situações de exigência manifestamente acima da média quanto à carga processual ou quanto à complexidade das matérias;
b) O inspecionado revele maturidade profissional excecional em todos os fatores referidos no artigo 12.º
3 — A melhoria de classificação deve ser gradual, não subindo mais de um escalão de cada vez, sem prejuízo dos casos excecionais, não podendo, porém, em caso algum, ser decorrência da antiguidade do juiz.
4 — Quando se verificar um conjunto significativo de atrasos na condução processual, a melhoria de classificação só pode ocorrer em situações excecionais, devidamente fundamentadas.
5 — A atribuição da nota de Muito Bom a juízes de direito que, à data do termo do período sob inspeção, não tenham atingido 10 anos de serviço efetivo, reveste -se de excecionalidade e só pode ocorrer se o elevado mérito se evidenciar manifestamente pelas suas qualidades pessoais e profissionais, reveladas no âmbito do desempenho de um serviço particularmente complexo.

Está aqui em causa, por conseguinte, a discordância essencial entre autor e entidade demandada, no que toca à relevância dos atrasos detectados no relatório da inspeção. Aqui reside, bem vistas as coisas, o punctum saliens do dissídio.

Pois bem, não negamos que efectivamente, quer no relatório inspectivo, quer na informação final, quer na deliberação da secção de assuntos disciplinares e inspectivos do Conselho Permanente é evidenciado o desempenho meritório do autor durante todo o período inspectivo.

Porém, considerando o teor do art. 13.º do RSICSM, acima transcrito, há algumas ilações que se podem desde já extrair e que militam em sentido moderadamente desfavorável à pretensão do autor.

Resulta, pois, evidente, que a atribuição da classificação máxima de Muito Bom depende da demonstração de elevado mérito no exercício de funções, ao longo de um período de tempo considerável e, desejavelmente, contínuo, ao longo da respectiva carreira. Além disso, considerando a relevância que a verificação de atrasos processuais comporta na prossecução do interesse público subjacente à administração célere da justiça, tal circunstância é expressamente assumida como sendo susceptível de obstar a melhoria/subida de classificação.

Assim, por um lado, resulta à saciedade que a classificação «Muito Bom» é a mais elevada, pelo que é exigível um desempenho elevadamente meritório, isto é, que se traduza na superação do mero cumprimento do exigível.

Mas não só: é que, por outro lado, a existência de atrasos não é compaginável com a atribuição da classificação de «Muito Bom», excepto estando em causa circunstâncias excepcionais, devidamente fundamentadas.

Vale isto por dizer, ao cabo e ao resto, o seguinte: por via de regra, a um Sr. Juiz de Direito que tenha atrasos processuais não pode ser atribuído «Muito Bom». Tal apenas poderá suceder excepcionalmente e lançando mão de juízos de ponderação e de adequada fundamentação.

Ora, a entidade demandada, em estrito cumprimento de tal dispositivo regulamentar, evidenciou a existência de atrasos, e ponderou-os adequadamente, tendo em conta i) a sua génese, ii) o número total e quantidade, iii) a sua expressividade/duração desses atrasos e iv) a respectiva gravidade, atento o específico contexto processual em que se moveu o autor.

Na verdade, compulsado o teor da deliberação ora impugnada, reproduzida em 8) do probatório e cujo excurso transcrevermos supra a propósito do suposto vício de falta de fundamentação, e que ora consideramos por integralmente reproduzida, torna-se mister concluir, por referência aos elementos coligidos no relatório inspectivo e respectivos quadros elucidativos dos dados numéricos aferidos nos diferentes tribunais e juízos durante o período de tempo compreendido no processo inspectivo, que a entidade demandada  tomou em devida linha de conta o desempenho e as circunstâncias específicas em que decorreu o exercício de funções do autor. Fê-lo, aliás, sem que se divise qualquer vício de violação de lei na apreciação efectuada pela entidade demandada.

Com efeito, o atraso na prolação de uma decisão, além de colidir com o prescrito na lei, constitui, nos termos do disposto no art.º 13.º, n.º 4 do RSICSM, um critério atendível e decisivo no processo de classificação do desempenho de um juiz. Como vimos já, decorre daquele normativo que, verificando-se um «conjunto significativo de atrasos» na condução processual, a melhoria da classificação só pode ocorrer em situações excepcionais, devidamente fundamentadas.

De todo o modo, não basta um ou outro atraso no trabalho realizado, pois que o preceito exige que se trate de um conjunto significativo de atrasos. Subjacente ao mesmo está, assim, um conjunto de atrasos que, pela sua quantidade, ou pela sua dimensão temporal, ou, ainda, pela sua gravidade no contexto das condições de execução do serviço, assuma uma expressão tal que, revelando incapacidade de gestão processual ou incúria do juiz na condução dos processos, obste à subida (ou manutenção) de classificação.

Em particular, nas situações em que esteja em causa a ponderação da atribuição da classificação de Muito Bom, há que referir que, pressupondo a classificação máxima um desempenho pautado pela excelência do serviço, o atraso assume um relevo particular, pois que, dada a sua natureza, é em si mesmo susceptível de contrariar aquela ideia de excelência.

E certo é que a entidade demandada não se furtou a ponderar devida e adequadamente todos estes factores, como se depreende da leitura do excurso que tivemos oportunidade de transcrever a montante.

De todo o modo, e como a própria entidade demandada o reconheceu na deliberação impugnada, o desempenho de excelência pode subsistir mesmo que no trabalho observado se verifiquem alguns lapsos ou aspectos menos conseguidos, pois que o que importará reter é que a imagem global da prestação do magistrado ainda represente um desempenho de excelência associado a elevadas qualidades pessoais.

O relevo do atraso na atribuição da classificação deve, assim, ser aferido em função das especificidades do caso concreto, na certeza de que só em função da avaliação dos atrasos e da sua caracterização e do seu enquadramento no contexto do trabalho realizado e das condições em que o foi é que se pode avaliar se está ou não comprometida a excelência pressuposta na classificação de «Muito Bom»

No caso em apreço, e como decorre do relatório, da informação final do Sr. Inspetor e do acto impugnado, os atrasos reportam-se a várias peças processuais, designadamente, expediente indiferenciado, saneadores e sentenças, e acompanham, por outro lado, o desempenho do Sr. Juiz inspeccionado ao longo do período inspectivo. Acresce ainda, por importante, que, no entendimento da entidade demandada, adquirem um número que, em termos objectivos, não só não é desprezível, como, pelo contrário, se mostra expressivo.

Não se pode asseverar ser impertinente o relevo que o Sr. Inspetor Judicial atribui aos atrasos verificados, uma vez que, dadas as suas características, não deixam de sugerir alguma dificuldade na gestão da prolação das decisões, dificuldade essa especialmente clara nos atrasos de maior duração.

O Sr. Juiz invoca o elevado nível do seu trabalho, a excelente produtividade obtida e as dificuldades na execução do seu trabalho como forma de contrariar tal constatação do Sr. Inspector.

Ora, todos estes aspectos são inequívocos e resultam evidenciados pelo Sr. Inspetor no seu próprio relatório. Deste resulta, de facto, a elevada qualidade do serviço prestado, bem como a produtividade obtida.

A questão está em saber se tais factores devem ou não afastar a ideia de trabalho menos conseguido resultante dos atrasos detectados, o mesmo é dizer se os justificam. Vale isto por dizer que, contrariamente ao que pretende o autor, em causa na deliberação de classificação não esteve apenas (nem sobretudo) o número de atrasos, mas sim, também, as especificidades dos atrasos verificados e as repercussões negativas que aos mesmos se associaram.

Também contrariamente ao alegado pelo autor, foi igualmente tomada em linha de consideração a repercussão dos transtornos da vida familiar (assistência à esposa, gravidez, licença de paternidade) no desempenho e carga processual do autor. O teor da deliberação impugnada revela, ademais, que todos estes factores foram tidos nessa consideração em termos que, não só não denunciam qualquer violação do preceito invocado, como também, cabendo na esfera da discricionariedade, não permitem ao STJ surpreender um flagrante e ostensivo erro sobre os pressupostos, quer de direito, quer de facto. «Sendo certo que, em sede de apreciação do mérito dos magistrados judiciais, o CSM, embora vinculado, desde logo, aos princípios da justiça, da imparcialidade e da proporcionalidade, atua com larga margem de discricionariedade técnica no que respeita à apreciação da prova e à aplicação dos critérios legais, não podendo, em regra, o juízo de apreciação do mérito ou demérito do desempenho dos Juízes pelo CSM, ser aqui judicialmente sindicado, já que este STJ não se pode substituir à Administração na reponderação dos juízos valorativos que integrem materialmente a função administrativa e só se verificando o erro na apreciação dos pressupostos de facto ou de direito quando existir uma desconformidade manifesta e grosseira entre os factos apurados e os factos considerados e valorados na decisão, devendo este Tribunal, em sede de recurso contencioso, fazer apenas um juízo sobre a conformidade entre os factos apurados e aqueles que fundamentaram a decisão impugnada, ao invés da reapreciação dos factos dados como apurados […]» (cf. o já citado Acórdão da Secção de Contencioso do STJ de 08-05-2013, proferido no processo n.º 26/12.1YFLSB — sublinhados nossos).

Daí que não se enquadre, na esfera de competência da Secção de Contencioso, a apreciação de critérios qualitativos e quantitativos, que respeitem a juízos de discricionariedade técnica, ligados ao modo específico de organização, funcionamento e gestão internos a que se atenha a entidade demandada, como sejam a adequação, o volume de serviço, a produtividade, quer por si só consideradas, quer em termos de justiça comparativa (Acórdão do STJ de 15-12-2011, proferido no processo n.º 87/11.0YFLSB).

Nestes termos, o juízo e a conclusão vertidas na deliberação impugnada, pese embora o elevado grau de discricionariedade técnica que subjaz a decisões de natureza avaliativa e classificativa, revelam-se irrepreensíveis ao nível da sua legalidade e do cumprimento de todos os formalismos aplicáveis, não restando, pois, dúvidas de que a classificação atribuída respeitou integralmente os critérios de avaliação plasmados no artigo 12.º e das classificações previstas no artigo 13.º, ambos do RSICSM.

Face ao exposto, improcede, também aqui, a pretensão do autor.

*

4. Da violação do princípio da proporcionalidade

4.1. Alega o autor que, ao considerar apenas um dos factores de entre os 8 que compõem o critério de adaptação ao serviço, não permite reconhecer a excelência ao desempenho funcional do demandante, a entidade demandada revela ser desproporcional e irrazoável.

Conclui o autor que a deliberação impugnada é inválida por violação directa e frontal do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 7.º do CPA, o que acarreta a sua anulação, nos termos do disposto no artigo 163.º do mesmo diploma.

4.2. O princípio da proporcionalidade em sentido amplo, enquanto princípio geral de limitação dos poderes públicos, decorre do princípio geral do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP, exercendo uma função de controlo da actuação do Estado-legislador e Estado-administrador, tendo em vista a adequação das medidas a adoptar aos fins pretendidos.

O mesmo princípio viria depois a ser acolhido expressamente nos artigos 18.º, n.º 2 (segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»), e, com interesse para o caso dos autos, 266.º, n.º 2, da Constituição. De acordo com este último preceito, «os órgãos e agentes da administração estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da boa-fé».

Em conformidade com tal preceito constitucional, estatui o artigo 7.º do CPA que «[n]a prossecução do interesse público, a Administração Pública deve adotar os comportamentos adequados aos fins prosseguidos» (n.º 1), sendo que «as decisões da Administração que colidam com direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afetar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objetivos a realizar» (n.º 2).

Pretendeu com isto significar o legislador (constitucional, primeiro, e ordinário, depois) que a Administração não está obrigada apenas a prosseguir o interesse definido pelo legislador, mas a consegui-lo pelo meio que represente um menor sacrifício para as posições jurídicas dos particulares — ou seja, com respeito pela proporcionalidade, que, no dizer da doutrina, «[…] é o princípio segundo o qual a limitação dos bens ou interesses privados por actos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais actos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins» ([29]).

O princípio da proporcionalidade exige, pois, que, no exercício dos poderes discricionários, a Administração não se baste em prosseguir o fim legal justificador da concessão de tais poderes: ela deverá prosseguir os fins legais, os interesses públicos, primários e secundários, segundo o princípio da justa medida, adoptando, de entre as medidas necessárias e adequadas para atingir esses fins e prosseguir esses interesses, aquelas menos gravosas, que impliquem menos sacrifícios ou perturbações à posição jurídica dos administrados.

4.3. Tenhamos presente que o elenco das classificações susceptíveis de ser atribuídas encontra-se previsto no art. 33.º do EMJ de forma decrescente: da classificação mais elevada – Muito Bom – para a classificação menos elevada – Medíocre. Esta referida disposição do EMJ é concretizada no RSICSM, especificamente no aludido artigo 13.º, como vimos.

Resulta, pois, evidente, que a atribuição da classificação máxima de «Muito bom» depende da demonstração de elevado mérito no exercício de funções, ao longo de um período de tempo considerável e, desejavelmente, contínuo, ao longo da respectiva carreira.

Em acréscimo, considerando a relevância que a verificação de atrasos processuais comporta na prossecução do interesse público na administração célere da justiça, tal circunstância é expressamente assumida como sendo susceptível de obstar a melhoria/subida de classificação, nos termos do disposto no n.º 4 do mesmo art. 13.º do RSICSM.

Como tal, por maioria de razão e atento o evidente ratio da norma, numa situação como a sub judice, em que a última classificação obtida era «Bom com Distinção», e em que os atrasos relevam para efeitos de melhoria/subida de classificação, naturalmente, nos termos regulamentares, o número e as especificidades dos atrasos teriam que ser verificados.

De regresso ao caso dos autos, revisitando o teor do relatório de inspecção, cotejado com as deliberações da entidade demandada (nomeadamente o acto impugnado, reproduzido em 8) do probatório e já transcrito, na parte que releva, supra, a propósito da falta de fundamentação, pelo que nos eximimos de a reproduzir novamente), e como já se deixou estabelecido a montante, em causa na deliberação de classificação não esteve apenas (nem sobretudo) o número de atrasos, mas sim, também, as especificidades dos atrasos verificados, e as repercussões negativas que aos mesmos se associaram. Essa análise não se circunscreveu aos atrasos na prolação de decisão, mas em diversos níveis de actuação do magistrado inspeccionado. E foram detectados transversalmente e ao longo de todo o período inspeccionado, quer antes, quer depois das específicas vicissitudes familiares que também forma tomadas em linha de consideração.

Reiterando o que já se disse a montante, o autor centra-se, pois, num aspecto que parece claramente marginal no contexto da deliberação, sendo tão só um daqueles que foram relatados pelo Sr. Inspetor Judicial e que estiveram na base da proposta de classificação, tendo sido depois ponderados pelo CSM, dentro da margem de discricionariedade técnica que tem que lhe ser reconhecida.

4.4. Uma última palavra: em bom rigor, o que as invocações em análise veiculam essencialmente é, mais do que uma verdadeira alegação de violação do princípio da proporcionalidade, uma discordância relativamente às apreciações formuladas pelo CSM. Na verdade, ao invocar a descontextualização das circunstâncias em que ocorreram os atrasos, o que o demandante ensaia é a substituição da valoração vertida na deliberação impugnada pela sua própria percepção e avaliação desses contextos, favorecendo a opção gestionária que afirma ter tomado. 

Sucede que, como é reiteradamente afirmado na jurisprudência da Secção de Contencioso e também já tivemos oportunidade de deixar estabelecido adrede, as actividades de avaliação de um desempenho funcional de um juiz e de atribuição de uma classificação de serviço inscrevem-se no espaço de liberdade valorativa que é próprio do desempenho da função administrativa de que o CSM está constitucionalmente incumbido. Apenas a título meramente exemplificativo, atente-se nos recentes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2017 (processo n.º 13/17.3YFLSB, processo n.º 152/15.5YFLSB e processo n.º 11/17.7YFLSB), de 22-01-2019 (processo n.º 65/18.0YFLSB) e de 20-02-2019 (processo n.º 68/18.3 YFLSB), todos acessíveis online in http://www.dgsi.pt(jstj.

Daí que não se enquadre, na esfera de competência da Secção de Contencioso, a apreciação de critérios qualitativos e quantitativos, que respeitem a juízos de discricionariedade técnica, ligados ao modo específico de organização, funcionamento e gestão internos a que se atenha a entidade demandada, como sejam a adequação, o volume de serviço, a produtividade, quer por si só consideradas, quer em termos de justiça comparativa (Acórdão do STJ de 15-12-2011, proferido no processo n.º 87/11.0YFLSB).

Face ao exposto, improcede a pretensão do autor também neste ponto.

*

V. Tudo visto e sopesado, julga-se totalmente improcedente a presente acção.

Custas a cargo do demandante (artigo 527º, nº 1, do CPC).

Valor da acção: € 30.000,01 (artigo 34º, nº 2, do CPTA), fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs, de acordo com a Tabela I-A, anexa ao Regulamento das Custas Processuais e artigo 7º, nº 1, do mesmo diploma.

Lisboa, 27 de Maio de 2021

Ilídio Sacarrão Martins (Relator) (Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15º-A do Decreto-Lei nº 20/20, de 01 de Maio, atesto que, não obstante a falta de assinatura, as Senhoras Juízas Conselheiras Adjuntas deram o correspondente voto de conformidade).

Fátima Gomes

Rosa Tching

Conceição Gomes

Paula Sá Fernandes

Margarida Blasco

Olinda Garcia

Maria dos Prazeres Beleza (Presidente da Secção)

________________________________________________________________________ 


[1] Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos – volume i e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Almedina, 2006, pág.123.
[2] Carlos Alberto Fernandes Cadilha, «A prova em contencioso administrativo», Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 69, 2010, Braga, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, pp. 167 e 168.
[3] Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código…, cit., pág. 122 ss.
[4] Vide Acórdão de 29-10-2020, proc. n.º 6/20.3YFLSB.
[5] Nestes termos, vide Bernardo Diniz de Ayala, O (défice de) controlo judicial da margem de livre decisão administrativa, Lisboa, Lex, 1995, pp. 107 e 108; Duarte Rodrigues da Silva, «Notas sobre o Contencioso Administrativo Disciplinar», in AA.VV., O Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, Advogados e Magistrados Judiciais, coord. de Pedro Fernández Sánchez / Luís M. Alves, Edição do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados e da Editora da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2020, p. 66.
[6] Seguindo de perto a exposição de Diniz de Ayala, cit., pp. 134 e 135.
[7] Rodrigues da Silva, cit., p. 66.
[8] José Manuel Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, i, Lisboa, Lex, 2005, pp. 395, 623 e 624.
[9] Ana Raquel Moniz, «Regulamentos e auto vinculação administrativa – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3.11.2005, P. 239/05», Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 59, 2006, pp. 39 e 40.
[10] Maria Francisca Portocarrero, «Aferição judicial ab extra da legalidade do exercício administrativo discricionário», Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 66, 2007, pág. 34.
[11] Hoc sensu, vide, na doutrina, Mário Aroso de Almeida / Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição revista, 2017, Almedina, p. 490) e Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira (Código…, cit., pág. 125).
[12] João Tiago Silveira, «Diretivas de auto vinculação em poderes discricionários», Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, n.º 18, 1996, pp. 172 e passim.
[13] Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código…, cit., pág. 125.
[14] José Manuel Sérvulo Correia, «Conceitos jurídicos indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional», Cadernos de Justiça Administrativa, 70, 2008, pág. 39 ss.
[15] Cf. Aroso de Almeida / Fernandes Cadilha, Comentário…, cit., pág. 491, e proficiente jurisprudência aí citada.
[16] António Cadilha, «Os poderes de pronúncia jurisdicionais na ação de condenação à prática de ato devido e os limites funcionais da justiça administrativa», in AA.VV, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Volume ii, Coimbra Editora, 2010, pág. 196.
[17] José Joaquim Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed., 2010, Coimbra Editora, pp. 825 e 826.
[18] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 3.ª edição, 2016, Almedina,  2016, pág. 314.
[19] Luiz Cabral de Moncada, Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.ª edição, Quid Iuris, Lisboa, 2019, pp. 497 e 498.
[20] Luiz Cabral de Moncada, Código…, cit., pp. 504 e 505.
[21] Cabral da Moncada, Código…, cit., pp. 497 e 498.
[22] Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo – O Novo Regime do Código do Procedimento Administrativo, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2015, pág. 292.
[23] José Carlos Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa dos Atos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 238.
[24] Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo. Volume iii. Lisboa: impressão da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1990, p. 303.
[25] José Manuel Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, i, Lisboa, Danúbio, 1982, p. 463.
[26] Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo. 1.ª edição. Coimbra: Almedina, 1980, p. 559.
[27] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. i, 10.ª ed., 11.ª reimpressão, 2013, revista por Freitas do Amaral, Almedina, p. 501.
[28] Freitas do Amaral, cit, p. 304.
[29] Freitas do Amaral, Curso…, cit., p. 129.