Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P2569
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MAIA COSTA
Descritores: ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
CONTUMÁCIA
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ20080409025673
Data do Acordão: 04/09/2008
Votação: MAIORIA COM * 2 VOT VENC
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, Nº 92, 13-05-2008,P.2623-2628.
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, nas suas versões originárias, a declaração de contumácia não constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I. O Ministério Público (MP) interpôs recurso extraordinário, nos termos do art. 446º, nº 1 do CPP, do despacho de 16.4.2007 do Juiz titular da 4ª Vara Criminal de Lisboa, exarado no proc. nº 4699/94.7JDLSB, certificado a fls. 4-5, por contrariar a jurisprudência fixada no Assento nº 10/2000, de 19.10.2000, deste Supremo Tribunal de Justiça (STJ), publicado no DR, I-A, de 10.11.2000, pronunciando-se pela confirmação da jurisprudência fixada, com a consequente revogação do despacho impugnado, sem excluir, no entanto, o eventual reexame dessa jurisprudência.
Neste STJ, o sr. Procurador-Geral Adjunto considerou o recurso tempestivo e reconheceu que o despacho recorrido contraria a jurisprudência fixada no aludido “Assento”, pronunciando-se pela aplicação dessa jurisprudência, por entender que ela não está ultrapassada, já que não teriam sido apresentados no despacho recorrido argumentos novos sobre a questão de direito ali tratada.
Por acórdão de 13.12.2007, proferido nos autos, decidiu-se reconhecer que a decisão recorrida contraria a jurisprudência fixada no Assento nº 10/2000 e ordenou-se o prosseguimento do recurso para que se proceda ao reexame dessa jurisprudência.
Tal decisão assentou nos seguintes pressupostos:

Quanto aos requisitos do art. 446º do Código de Processo Penal (CPP):

O despacho recorrido decidiu declarar extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra a arguida AA, entretanto declarada contumaz, por ter decorrido o prazo prescricional (de 10 anos) sem que se verificasse qualquer causa de interrupção ou de suspensão do procedimento, tendo para o efeito considerado que a declaração de contumácia não suspende o prazo de prescrição do procedimento criminal, contrariamente ao estabelecido no referido Assento nº 10/2000.

Quanto à necessidade de reexame da jurisprudência fixada:

Em primeiro lugar, a prolação do Ac. nº 110/2007 do Tribunal Constitucional (decisão em que se apoiou o despacho recorrido), que, embora em sede de fiscalização concreta, julgou “inconstitucional, por violação do art. 29º, nºs 1 e 3 da CRP, a norma extraída das disposições conjugadas do art. 119º, nº 1, a) do CP e do art. 336º, nº 1 do CPP, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento se suspende com a declaração de contumácia.” A questão da (in)constitucionalidade da solução encontrada não foi ponderada, ao menos expressamente, pelo Assento nº 10/2000, tornando-se imperioso que se retome a análise da questão a essa luz.
Por outro lado, a composição do STJ modificou-se profundamente desde a prolação do referido “Assento”, restando em funções apenas três dos Juízes-Conselheiros que então intervieram (tendo inclusivamente dois deles votado contra a jurisprudência fixada), o que aconselha uma reapreciação da matéria.

Estas razões mostram-se válidas e pertinentes, pelo que se entende existir fundamento para o reexame da jurisprudência fixada no Assento nº 10/2000.

II. Notificadas as partes para os efeitos do art. 442º do CPP, apenas o MP produziu alegações, de que se extraem, por mais significativas, as seguintes passagens:

III. 1. O Ministério Público neste Supremo Tribunal, nas alegações que então produziu no processo que conduziu à jurisprudência fixada (e que irá juntar), pronunciou-se em sentido oposto àquele que foi adoptado (por larga maioria: dos 18 subscritores do acórdão, quatro ficaram vencidos).
Por outro lado, a questão relativa à (in)constitucionalidade da interpretação, embora não conste dos fundamentos do acórdão, foi alvo de discussão no plenário, como resulta expressamente do teor do voto de vencido, abraçado por mais três dos Exmos Conselheiros.
Uma vez que a interpretação que o Ministério Público propôs não foi acolhida, ficamos, desde a prolação daquele acórdão, obrigados a segui-lo e mesmo a sustentá-lo, como resulta da obrigatoriedade de interposição de recurso da decisão que o contrarie.
E, nessa medida, dado que, para além do acórdão n.º 110/2007 do TC, nenhum outro elemento novo e relevante foi acrescentado, temos vindo a emitir parecer no sentido da sua aplicação.
Porém, após a prolação do Ac. n.º 110/2007 do Tribunal Constitucional, que teve por objecto o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Julho de 2006 (processo n.º 1949.06, 3ª secção, que nos estava afecto), emitimos parecer no sentido de se proceder à revisão da jurisprudência fixada, dado que se esboçava no próprio STJ uma adesão àquela interpretação, com significativa expressão no Tribunal Constitucional.
E, na verdade, desde então, o Tribunal Constitucional proferiu, pelo menos, (6) seis decisões sumárias (4 da 2ª Secção e 2 da 3ª), ao abrigo do disposto no art.º 78.º-A da LTC, que, no essencial, seguiram no sentido do referido Ac. n.º 110/2007, para o qual se remeteram.
São elas as n.º s 379/07, de 30 de Maio, proc. n.º 549/07, 521/07, de 11 de Outubro, proc. n.º 921/07, 559/07, de 31 de Outubro, proc. n.º 827/07, 576/07, proc n.º 1002/07, 581/07, proc. n.º 976/07 e 582/07, proc. n.º 1014/07, estas três de 13 de Novembro.
Outrossim, o Ministério Público junto daquele Tribunal, por repetição do julgado, promoveu a organização de processo com vista à apreciação e declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
2. Assim, em alegação sumária, recuperamos a fundamentação constante da alegação efectuada no acórdão n.º 10/2000, de 19 de Outubro, acrescida da relativa ao Ac. n.º 110/2007 do TC, que concluiu que a norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de1987, na redacção originária, interpretadas no sentido de que a declaração de contumácia constituía causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal, é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado (n.º s 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição), para as quais nos remetemos.
3. Em nota final, deve-se atentar na proximidade da decisão que irá ser proferida no Tribunal Constitucional, e que poderá (deverá, como se indicia) conduzir à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma (na interpretação fixada por este Supremo Tribunal), inutilizando a revisão que eventualmente venha a ser tomada no sentido da manutenção da jurisprudência fixada.
4. Não obstante, entendemos dever proceder-se à revisão da jurisprudência fixada e, em substituição desta, fixar-se, tal como outrora foi proposto, o seguinte:
No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987 a declaração de contumácia não constitui causa de suspensão do procedimento criminal.

III. O despacho recorrido limita-se praticamente a remeter a sua fundamentação para o Ac. n° 110/2007 do Tribunal Constitucional (TC), dele extraindo as consequências pertinentes para o caso dos autos. O fundamento da recusa de aplicação do Assento n° 10/2000 é, pois, a violação do disposto no art. 29°, n°s l e 3 da Consituição da República Portuguesa (CRP).
Importa, por isso, recordar aqui o essencial da argumentação do referido acórdão do TC:

8. Entende-se que a resposta à pergunta que se formulou é negativa, por razões semelhantes às que levaram este Tribunal a censurar, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, “interpretações actualistas”, posteriores ao Código de Processo Penal de 1987, de outras normas do Código Penal de 1982 relativas à prescrição – isto é, por razões estruturalmente paralelas às que (embora para norma diversa da que está agora em causa) foram invocadas nos citados Acórdãos n°s 205/99, 285/99, 122/2000, 317/2000, 494/2000, 557/2000, 585/2000 e 412/2003. Trata-se, neste sentido, de conclusão que decorre desta anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre questão paralela, e da exigência de que também ele se mantenha fiel à sua própria jurisprudência.
Na verdade, no artigo 336.°, n.° l, do Código de Processo Penal previa-se que a declaração de contumácia teria como consequência “a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido”. A declaração de contumácia, e tal consequência, assentam no pressuposto da impossibilidade de realização de julgamento “à revelia”, mas não se referiu o legislador a qualquer afectação do decurso da prescrição do procedimento criminal. E a suspensão dos termos ulteriores do processo tem, com aquele fundamento, um sentido, antes de mais, jurídico-processual, pelo que não se pode concordar com a afirmação de que a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação do arguido “só poderá querer ter tido em vista” uma suspensão relacionada com a prescrição do procedimento criminal. Sob este aspecto também não pode, aliás, retirar-se nada da previsão, no n° 3 (hoje n° 1) do artigo 336.° do Código de Processo Penal de 1987, da caducidade da declaração de contumácia.
Da perspectiva do respeito pelo princípio da legalidade, o que importa antes perguntar é se, depois de prevista esta declaração de contumácia na redacção originária do Código de Processo Penal, e antes de alterado o Código Penal de 1982, podia já dizer-se que correspondia ao significado comum atribuível às palavras utilizadas pelo legislador de 1987 no artigo 336.°, n.° l (“suspensão dos termos ulteriores do processo”) ou se ultrapassava tal significado entender que aí se compreendia, não só a suspensão do processo como a consequência de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Ora, entende-se que não pode deixar de responder-se à pergunta formulada neste último sentido: isto é, que o significado comum e literal da expressão empregue pelo legislador de 1987 era ultrapassado pelo entendimento de que a declaração de contumácia importava a suspensão também da prescrição do procedimento criminal, e não apenas dos “termos ulteriores do processo”. Tal diversidade de sentido literal é, aliás, acompanhada da diferença de consequências da “suspensão dos termos ulteriores do processo” e da suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Na verdade, e como se disse na declaração de voto aposta ao “Assento” n.° 10/2000, a “suspensão dos termos processuais ulteriores” não prejudicava, «nem “a realização de actos urgentes” ([actual] artigo 335.°, n.° 3) nem, tampouco, as diligências processuais que tivessem em vista a apresentação ou activação dos “termos ulteriores do processo”». Por outro lado, as expressões “suspensão do processo” e “suspensão da prescrição” do procedimento não são sinónimas, nem sequer existe entre si qualquer relação de implicação: não existe norma, ou qualquer princípio geral, no sentido de que qualquer suspensão da instância (suspensão do processo) conduz a uma suspensão da prescrição (e, por definição, esta começa mesmo a correr antes do início do procedimento criminal, “desde o dia em que o facto se consumou” – art. 118.°, n.° l, do Código Penal, na redacção de 1982), e há também casos de suspensão da prescrição, que se não ligam a qualquer suspensão do processo. Como se salientou no acórdão que constitui o fundamento para o recurso de fixação de jurisprudência que deu origem ao dito “Assento” n.° 10/2000, “se é certo que o instituto da suspensão da prescrição, para além do mais, ‘radica na ideia segundo a qual a produção de determinados eventos, que excluem a possibilidade de o procedimento se iniciar ou continuar, deve impedir o decurso do prazo da prescrição’ (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 711), já parece não poder afirmar-se, peremptoriamente, que qualquer suspensão da instância deve originar a suspensão da prescrição pelo correspondente tempo: é, do ponto de vista teórico, perfeitamente admissível que algumas causas de suspensão do processo não tenham eficácia suspensiva da prescrição. E, assim, cabe ao legislador optar por erigir em causa de suspensão da prescrição toda e qualquer suspensão do processo ou escolher casuisticamente quais os casos de suspensão do processo que devem relevar para esse efeito. E a verdade é que não encontramos no Código Penal de 1982 qualquer indício de que o legislador fez a primeira opção”.
Não podia, pois, entender-se que a previsão de “suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido”, como efeito da declaração de contumácia, incluía, como seu sentido comum e literal, a suspensão da prescrição do procedimento criminal, a qual começava a correr antes do processo e podia não ser afectada por uma sua suspensão. Tal interpretação, implicando uma “interpretação ‘criadora’, que no caso foi tornada indispensável pela falta de adequada previsão legal inequívoca” (expressão do citado Acórdão n.° 285/99), é, nesta medida, incompatível com a Constituição, pois viola o princípio da legalidade a que está também sujeita a definição das causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal.

Do Assento n° 10/2000 extraem-se as seguintes passagens, que constituem o núcleo da respectiva argumentação:

Princípio legal que todo o jurista tem de respeitar ao proceder à interpretação de uma norma jurídica é o consagrado no artigo 9.° do Código Civil.
Ao preceituar-se no n.° l do artigo 119.° «para além dos casos especialmente previstos na lei» não se pode deixar de considerar abrangidos quer aqueles casos que de momento já se encontrem previstos em leis quer aqueles que, de futuro, venham a ser consagrados em diplomas legais. Na verdade, nada impede que, desde logo, se preveja a possibilidade de, em normas avulsas ou não, se venha a consagrar situações que determinem a suspensão da prescrição do procedimento criminal. É como que um dar aqui como reproduzido o estabelecido nas tais normas futuras.
Dizendo o artigo 336º do Código de Processo Penal que a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação do arguido, só poderá querer ter tido vista aquela suspensão relacionada com a prescrição do procedimento criminal. O efeito visado coincide o previsto no artigo 119.°, n.° 3: desde o momento de declaração de contumácia até àquele em que caduca — n.° 3 do artigo 336.° — a prescrição não corre.
De outra maneira, acabava-se por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à alçada da justiça.
Não nos parece que o elemento histórico, nas suas vertentes, justifique o ponto de vista defendido no acórdão fundamento.
O facto de ser desconhecido, à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982 o instituto da contumácia não justifica a afirmação de que o n.° l do artigo 119.° não se podia referir ao mesmo. A expressão usada, «casos especialmente previstos na lei», não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos iguais tem de haver soluções idênticas.

Ao “Assento” encontra-se anexa uma declaração de voto de vencido, subscrita pelo Exmo Conselheiro Carmona da Mota, mas a que aderiram três outros Juízes-Conselheiros, de que se retiram, por mais significativas, as seguintes considerações:

2 — Tal «suspensão» (dos termos processuais ulteriores) não prejudicava, porém, nem «a realização de actos urgentes» (artigo 335.°, n.° 3) nem, tampouco, as diligências processuais que tivessem em vista a apresentação ou a detenção do arguido em ordem, exactamente, à caducidade da declaração de contumácia e à activação dos «termos ulteriores do processo»: (…)
3 — O Código Penal de 1982 — publicado na vigência do Código de Processo Penal de 1929 — escusou-se, no âmbito do processo especial de ausentes, a inventariar qualquer factor de suspensão do prazo prescricional do procedimento criminal (artigo 119°) e indicou, como único factor interruptivo desse prazo, a «marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes» [artigo 120.°, n.° l, alínea d)].
4 — O artigo 119 ° n.° 1, do Código Penal de 1982, em matéria de suspensão de prescrição do procedimento criminal, salvaguardou, é certo, «os casos especialmente previstos na lei» e, especialmente, «o tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal» (n.º 1).
5 — Mas, ao referir-se às situações em que «o procedimento criminal não pudesse legalmente continuar por falta de uma autorização legal», não visaria, com certeza (pois que em 1982), a «suspensão dos ulteriores termos do processo» que o Código de Processo Penal de 1987 só viria a fazer operar (a partir de 1988) relativamente, no novo processo penal, em caso de «contumácia» do arguido.
6 — De qualquer modo, a «falta de uma autorização legal» (ou, melhor, de uma autorização legalmente exigida) visaria paradigmaticamente as situações de imunidade penal do Presidente da República, dos Deputados e dos membros do Governo (…)
7 --- E se era esse o sentido da lei ao aludir ao «tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal», não creio que o sentido e alcance dessa «autorização legal» —no pressuposto de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e de que não poderá ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra um mínimo de correspondência verbal (artigo 9.°, n.°s 2 e 3, do Código Civil)— compreendessem (ou compreendam) os casos de suspensão do processo penal entre a constatação da ausência do arguido e a sua apresentação ou detenção.
8 — E tanto assim não era (nem será) que o Decreto-Lei n.° 48/95, de 15 de Março, ao ajustar (com uma tardança de quase oito anos) o Código Penal de 1982 ao Código de Processo Penal de 1987, fez questão de introduzir, como factor de suspensão, a par dos «casos especialmente previstos na lei» (artigo 120.°, n.° 1) e do «tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal» [artigo 120.°, n.° l, alínea a)], «o tempo em que vigorar a declaração de contumácia» , [artigo 120.°, n.° l, alínea c)].
9 — Aliás, têm fracassado, a nível do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, as sucessivas tentativas jurisprudenciais — antes da reforma de 1995 — de ajustamento substantivo do Código Penal de 1982, por interpretação «actualista», às novidades adjectivas Código de Processo Penal de 1987 (...)

IV. Expostas as razões defendidas pelas duas orientações cumpre decidir.
A questão decidenda é, em suma, a de saber se, no domínio de vigência do Código Penal (CP) de 1982 (versão originária do DL nº 400/82, de 23 de Setembro) e do Código de Processo Penal de 1987 (versão, igualmente originária, do DL nº 78/87, de 17 de Fevereiro), a declaração de contumácia constituía ou não causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, nos termos do disposto no art. 119° n° 1, al. a), na sua versão primitiva.
O art. 119º do CP de 1982, nessa versão, dispunha:

A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para o juízo não penal;
b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;
c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança privativa da liberdade.

Esta estatuição estava em consonância com a estrutura do CPP de 1929. Essa estrutura foi profundamente alterada com o CPP de 1987, designadamente com a abolição do processo de ausentes e a previsão do instituto da contumácia. Contudo, com a publicação do novo CPP, não foram introduzidas quaisquer alterações (adaptações) no regime da prescrição do procedimento criminal, nomeadamente da sua suspensão, previsto no CP.
Com efeito, só com o DL nº 48/95, de 15 de Março, foi a disciplina da suspensão da prescrição modificada, passando a constar do art. 120º do CP, da seguinte forma:

1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para a audiência em processo sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia; ou
d) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativa da liberdade.

A partir de então, a declaração de contumácia passou inequivocamente a constituir causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Mas já assim se deveria entender anteriormente?
É essa a posição estabelecida no Assento nº 10/2000, basicamente com o argumento de que deveria ser considerada como um “caso especialmente previsto na lei” (art. 119º, nº 1, na versão originária), determinante, portanto, da suspensão da prescrição do procedimento criminal, a “suspensão dos ulteriores termos do processo”, que a declaração de contumácia implicava, nos termos do art. 336º, nº 1 (igualmente na sua versão originária), preceito do seguinte teor:

A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.°.

Assimila-se, assim, a suspensão do processo à suspensão da prescrição, como se fossem situações homólogas ou se implicassem mutuamente. Mas esse entendimento não é de sufragar, pelas razões que se passam a expor.
Suspensão do processo e suspensão da prescrição são institutos diferentes. A suspensão do processo não implica necessariamente a suspensão da prescrição. Terá sentido que a suspensão do processo provoque a suspensão da prescrição quando a causa da suspensão determinar a paralisação absoluta dos termos do processo. Mas já não quando, como acontece com a suspensão resultante da declaração de contumácia, não fica inviabilizada a realização de diligências que poderão levar à cessação da situação de contumácia (por exemplo, diligências com vista à localização, notificação ou detenção do arguido).
A previsão da suspensão da prescrição, em tal caso, não resultará da “natureza das coisas”, mas sim de uma opção do legislador. Opção essa que o legislador veio efectivamente a tomar em 1995, com o DL nº 48/95.
Mas tal não implica que essa fosse a solução decorrente das normas antecedentes. Pelo contrário, somos levados a concluir, das diferenças assinaladas entre as duas situações, que nos “casos especialmente previstos na lei” excepcionados no nº 1 do art. 119º do CP não se encontrava a suspensão do processo prevista no art. 336º, nº 1 do CPP.
Aliás, como o poderia estar se a versão originária do art. 119º do CP é de 1982 e o instituto da contumácia só foi introduzido no direito português em 1987, com o novo CPP?
A solução acolhida no “Assento” insere-se numa linha de “interpretação actualista”, visando corrigir alegados “erros” ou “omissões” legislativos, tarefa que não cabe manifestamente ao julgador, por elevadas que sejam as “pressões” da opinião pública nesse sentido.
A interpretação actualista não será completamente inadmissível em direito penal, mas ela terá de ser afastada sempre que implicar a violação de algum dos princípios estruturais do direito penal, como é o princípio da legalidade, que tem assento na própria CRP - art. 29º, nºs 1 e 3.
O regime da prescrição do procedimento criminal tem indiscutivelmente natureza substantiva, pois integra a “definição dos crimes e das penas”. Por isso, é inaplicável um regime de prescrição do procedimento criminal mais desfavorável para o agente do que o previsto ao tempo da infracção.
A doutrina do “Assento” traduziu-se na retroacção a 1987 de uma opção legislativa, mais desfavorável para o agente, só tomada pelo legislador em 1995. Consequentemente, ela doutrina viola aquele preceito constitucional.
Nestes termos, entende-se que tal doutrina deverá ser revista, fixando-se entendimento em sentido oposto.

V. Com base no exposto, reexaminando a doutrina do Assento nº 10/2000, acorda o pleno das secções criminais em proceder à sua modificação, decidindo:

a) Confirmar a decisão recorrida; e
b) Fixar a seguinte jurisprudência:

No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, nas suas versões originárias, a declaração de contumácia não constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.

Sem custas.

Lisboa, 9 de Abril de 2008

Maia Costa (relator)
Souto de Moura
Pires da Graça
Raúl Borges
António Colaço
Jorge Santos Ramos
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Simas Santos (com declaração de voto que junto)
Santos Carvalho
Henrique Gaspar
Rodrigues da Costa
Santos Monteiro
Arménio Sottomayor
Santos Cabral (com declaração de voto)
Oliveira Mendes
Noronha do Nascimento

(Declaração de voto)
Vencido, porquanto mantenho o entendimento que me fez votar favoravelmente o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 10/00, deste Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2000, publicado no DR IS-A de 10.11.2000, de que «no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal».
Como entendi então e mantenho, essa posição não viola o princípio da legalidade que se invoca. As normas dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição e as decorrentes exigências de certeza não invalidam a conclusão, que se tirou naquele Acórdão Uniformizador, de que a contumácia era causa de suspensão da prescrição, conclusão tributária de uma interpretação extensiva, que é consentida constitucionalmente nesta matéria e nestes limites, uma vez que não nos situamos no campo da tipicidade, mas sim da prescrição do procedimento, em que se não postulam as mesmas exigências de completa cognoscibilidade por parte do agente.
Como se lembra no voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes, aposto ao Acórdão n.º 183/2008 do Tribunal Constitucional, a génese do art. 119.º do Código Penal na sua versão originária demonstra que foi querida pelo legislador, como causa de suspensão da prescrição, a suspensão do processo imposta por uma disposição especial da lei. Aquele art. 119.º corresponde no essencial ao art. 110.º do projecto do Código Penal que dispunha que a “prescrição suspende-se durante o tempo em que: 1.º - O procedimento criminal não pode iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, por efeito da devolução de uma questão prejudicial para um juízo não penal, bem como em todos os casos em que a suspensão do processo penal é imposta por uma disposição especial da lei;[realçado agora]. E tal opção não mereceu nenhuma objecção substantiva no seio da Comissão revisora (cfr. Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, I volume, págs. 223-227). Deve dizer-se que esta intenção legislativa de fazer corresponder as causas especiais de suspensão do processo penal a causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, encontra a suficiente correspondência verbal na versão final do art. 119.º.
Por outro lado, pensamos que não procede a esforçada distinção entre suspensão do processo pela declaração de contumácia e suspensão do procedimento, pois que a afirmação de que a «suspensão do processo não implica necessariamente a suspensão da prescrição. Terá sentido que a suspensão do processo provoque a suspensão da prescrição quando a causa da suspensão determinar a paralisação absoluta dos termos do processo. Mas já não quando, como acontece com a suspensão resultante da declaração de contumácia, não fica inviabilizada a realização de diligências que poderão levar à cessação da situação de contumácia (por exemplo, diligências com vista à localização, notificação ou detenção do arguido)» [sublinhado agora]. É que as diligências possíveis perante a declaração de contumácia se restringem exactamente à tentativa de por fim à situação de contumácia, pelo que não tem significado neste contexto, e a suspensão do processo pela declaração de contumácia impede a prática do acto de julgamento, aproximando-se da suspensão do procedimento, que é exactamente isso: procedimento. E a consagração, em momento posterior desta solução, à luz da mesma posição de fundo só demonstra a razoabilidade e adequação da interpretação feita pelo Acórdão n.º 10/00, assim se revertendo o argumento usado no douto acórdão de que se dissente.
A circunstância de não ter sido a declaração de contumácia prevista, como tal, na versão originária do art. 119.º, por ser desconhecida ao tempo pelo nosso sistema, não impede que se devesse considerar incluída na remissão aberta para causas legais de suspensão constante do seu n.º 1.
Finalmente, atendendo à génese da presente uniformização de jurisprudência, significativamente ancorada na jurisprudência constitucional, e à prolação do Acórdão n.º 183/2008, de 12 de Março de 2008, ainda não publicado, mas que se pronuncia pela declaração com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição, da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119º, nº 1, alínea a), do Código Penal e do artigo 336º, nº 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia, lembrar-se-á na senda das declarações de voto aí apostas que a questão da sindicabilidade pelo Tribunal Constitucional, se exacerba quando se trata da inconstitucionalidade de uma interpretação conforme à Constituição de um conjunto de norma, mas sob a forma de declaração com força obrigatória geral, logo de uma imposição de uma determina interpretação, o que oportunamente foi tido por inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional, em relação aos Assentos do Supremo Tribunal de Justiça.
Lisboa, 9 de Abril de 2008

(Declaração de voto)
Vencido nos termos constantes de declaração junta pelo Sr. Juiz Conselheiro Dr. Simas Santos.
Acresce, ainda, que, em nosso entender, o Supremo Tribunal de Justiça apenas deve proceder ao reexame da jurisprudência fixada quando entender que a mesma está ultrapassada (artigo 446 do Código de Processo Penal). Esta reapreciação tem de se reconduzir, necessariamente, a razões substanciais supervenientes que levam a conformar diversamente a lógica da argumentação que modelou a jurisprudência fixada.
Tal pressuposto, que radica em razões de certeza e segurança jurídica que se inscrevem no núcleo de garantias do Estado de Direito, não se verifica no caso vertente. Na verdade, a única alteração produzida, no entretanto, sobre a matéria do Assento 10/2000 consubstancia-se na posição do Tribunal Constitucional, expressa no seu acórdão 110/2007, que é invocado na presente decisão como fundamento da necessidade de revisão da jurisprudência fixada. Em nosso entender tal decisão não constitui razão formal ou substancial para este Supremo Tribunal inflectir na orientação seguida.
Sucede, aliás, que a questão para a qual o mesmo Tribunal foi chamado a pronunciar-se naquela decisão (110/2007) era uma decisão deste Supremo Tribunal de Justiça que entendia não estar devidamente fundamentada a divergência em relação á jurisprudência fixada nos termos do artigo 445 nº 3 do diploma citado. Era outro, que não a apreciação da constitucionalidade de uma interpretação do artigo 119 do Código Penal, o objecto daquele recurso. Igualmente é certo que, na sua essência, o juízo de inconstitucionalidade formulado se refere a uma interpretação de uma norma e não a um acto do poder normativo, ou seja, o juízo de valor emitido incide sobre um acto de julgamento e não sobre uma norma jurídica.
Entendo, assim, que era de manter o entendimento constante do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 10/2000.
Lisboa, 9 de Abril de 2007