Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1521/05.4TBCBR.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: ALEGAÇÃO DE FACTOS
DANOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE REVISTA
Sumário :
I - Não basta a simples alegação e prova de que a não restituição do andar aos proprietários está a causar-lhes prejuízos, para que daí resulte, sem mais, a conclusão da existência de dano indemnizável, designadamente sem a alegação e prova dos factos relativos aos restantes pressupostos da responsabilidade (ilicitude, culpa e nexo de causalidade entre a conduta ilícita e os danos sofridos) e, além do mais, sem a concretização dos prejuízos sofridos.
II - Não tendo sido provada (nem alegada) a natureza e a espécie dos prejuízos sofridos, não dispõe o Tribunal dos elementos necessários para a condenação na sua reparação, pois só pode condenar em caso de existência de danos reparáveis que carecem de ser demonstrados, o que, desde logo, pressupõe a identificação dos mesmos, mediante a sua alegação.
III - Carece o Tribunal de conhecer se se trata de danos patrimoniais ou não patrimoniais, se de danos emergentes ou de lucros cessantes e, enfim, saber em que é que consistiram os prejuízos para aquilatar do valor dos mesmos, pois a indemnização civil tem como escopo precípuo a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento causador do prejuízo ou, pelo menos, a compensação do lesado, em termos equitativos, pelos danos sofridos.
IV - Por isso, cabe aos interessados a quem a lei reconheça o direito à indemnização pelos prejuízos sofridos, a alegação e a prova de tais prejuízos, enquanto factos concretos constitutivos do alegado direito, não sendo suficiente a vaga e genérica alegação de que determinada conduta está a causar-lhes prejuízos, o que se traduz em puro e simples juízo conclusivo.
Decisão Texto Integral:

RELATÓRIO


AA e BB intentaram contra CC, todos com os sinais dos autos, a presente acção declarativa, com processo comum na forma ordinária, pedindo que se declare o seu direito de propriedade sobre o lº andar esquerdo do imóvel sito na Rua ..., nº ..., em Coimbra; que se decrete a nulidade do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a Ré, na qualidade de promitente compradora e DD, à data, usufrutuário do imóvel, já falecido, na qualidade de promitente vendedor; que se declare a ilicitude da ocupação, pela Ré, do andar em causa, por falta de título que a legitime, uma vez que não é detentora do mesmo, face à nulidade do contrato-promessa, nem adquiriu por qualquer forma a sua posse; que a Ré seja condenada a entregar-lhes imediatamente o supra referido andar, livre de pessoas e bens, já que, na impossibilidade de reciprocidade de créditos, não lhe assiste qualquer direito de retenção contra os Autores, que suspenda a entrega e que se condene a Ré a pagar-lhes quantia, a liquidar em execução de sentença, pelos prejuízos sofridos pela não entrega do andar, desde a data em que os autores a interpelaram para o efeito.

Fundamentaram tais pedidos no facto de eles e dois primos seus serem comproprietários, sem distinção de parte ou direito do prédio em que se situa o mencionado andar, que não se encontra constituído em propriedade horizontal.
Em 8/5/1975 o seu pai (dos autores) e mulher, por si e em representação dos restantes herdeiros, prometeram vender à Ré o mencionado andar, que, na altura, pagou, a título de sinal e princípio de pagamento, 350.000$00 (metade do preço convencionado), tendo ficado acordado que a Ré poderia, desde logo, ocupar o andar e realizar obras, e que a escritura definitiva seria celebrada até 31/12/1975.

Mais alegaram que, quando o pai deles prometeu vender o andar, estava convencido de que ele e o irmão dele, EE, então já falecido, haviam adquirido o prédio por sucessão ao pai de ambos, pois que o direito de propriedade sobre o prédio rústico sobre o qual o imóvel foi edificado estava registado na Conservatória do Registo Predial respectiva, em favor de ambos.

Contudo, quando quiseram registar o imóvel para instruir a escritura de compra e venda, o promitente vendedor apercebeu-se de que ele e seu irmão apenas tinham herdado o direito de usufruto do prédio, tendo sido herdado o direito de nua propriedade pelos ora Autores e seus falados primos.
Nessa altura, tentou promover o registo do imóvel, o que não conseguiu, pelo que também não foi possível constituí-lo em propriedade horizontal. Mais invocaram que, em 1997, a Ré propôs acção para execução específica do contrato promessa, que terminou por deserção da instância, no decurso da qual faleceu o promitente vendedor, sendo que não foi deduzido incidente de habilitação dos seus sucessores.
Findo tal processo, em Março de 2004, os autores informaram-na de que não dispunha de título para continuar a ocupar o imóvel, sendo que, até à data, não o devolveu, o que lhes causa prejuízo, que quantificam em € l .000,00 por mês, não pagou obras de reparação do prédio, seguros ou quaisquer impostos ou taxas.
Pugnaram pela inexistência de posse, por parte da Ré, da nulidade do contrato-promessa por impossibilidade originária da prestação relativamente ao objecto (impossibilidade de o promitente vendedor, como usufrutuário, constituir o prédio em propriedade horizontal) e pela consequente obrigação de restituição do andar pela Ré.

Citada, a Ré contestou e deduziu reconvenção aceitando a celebração do mencionado contrato promessa, com as ressalvas de que o outorgante agiu por si e «como representante responsável dos restantes herdeiros», e que, por força desse contrato, ficou com o direito de iniciar as obras necessárias para a sua habitação, sendo que seria reembolsada, se o negócio não se concretizasse.
Alegou que só não pagou a totalidade do preço, porque o pai dos autores se recusou a receber o dinheiro, com a justificação de que era ele o responsável pela não realização da escritura de venda, referindo-lhe que apenas teria que pagar o resto do preço quando o negócio de compra e venda fosse formalizado, e que, dada a impossibilidade de realizar a escritura na data convencionada, o negócio de compra e venda foi dado como assente a partir de 30/12/1975.
Vezes sem conta interpelou o representante do promitente vendedor para legalizar a sua casa, no sentido de ser feita a escritura, sendo que a suspensão da instância referida pelos autores foi feita precisamente para proporcionar a venda prometida; com o registo do prédio, os ora autores estão em condições de promover a sua constituição em propriedade horizontal e honrar o negócio prometido.
Mais alegou que, desde 1/12/1975, vem usando a fracção como coisa sua, com a firme convicção de ser sua dona e legitima possuidora, pelo que a adquiriu por usucapião.
Aí fez obras, substituiu a canalização, remodelou a casa de banho e cozinha, paga água, luz e telefone, tudo sem oposição dos Autores ou do promitente vendedor, que a reconheceu como dona e legitima possuidora da fracção prometida vender. Mais referiu que a fracção está, na prática, perfeitamente autonomizada das restantes, os Autores e seus antecessores nunca praticaram qualquer acto material relativo à mesma, por terem consciência de que ela era propriedade da Ré, pelo que a adquiriu por usucapião.
Caso assim se não entenda, por ter havido tradição da fracção, sem que os autores e seus antecessores tivessem comunicado a data para a outorga da escritura, terão que a indemnizar nos termos do art. 442° do C.C.
Pediu, em reconvenção, que se declare que adquiriu o direito de propriedade sobre a fracção em causa, por usucapião, ou, subsidiariamente, que se condenem os autores a pagar-lhe o valor actualizado da fracção que vier a ser apurado, deduzido do preço convencionado, devendo, ainda, ser restituída a quantia recebida a título de sinal.
Após a legal tramitação, foi a causa julgada, tendo a sentença declarado que os Autores são comproprietários do 1° andar esquerdo do imóvel sito na Rua ..., n° ..., em Coimbra, declarado nulo o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o pai dos Autores e a Ré, identificado na matéria de facto provada; condenado a Ré a entregar imediatamente o andar aos Autores, livre de pessoas e bens e a pagar-lhes a quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença, quanto aos prejuízos sofridos pela não entrega do andar, desde a data em que os autores a interpelaram para tal.
Julgou-se a reconvenção improcedente, sem prejuízo da Autora instaurar futura acção contra a herança/herdeiros do promitente vendedor.
Inconformada, a Ré recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão de 11.12.2007, julgou parcialmente procedente o recurso, absolvendo os Autores da instância reconvencional, e declarou os mesmos comproprietários do 1° andar esquerdo do dito imóvel, condenando a Ré a entregar imediatamente o andar aos autores, livre de pessoas e bens e a pagar-lhes a quantia que vier a liquidar-se em incidente de liquidação de sentença quanto aos prejuízos sofridos pela não entrega do andar, desde a data em que os autores a interpelaram para tal.
Condenou, ainda, a Ré como litigante de má fé na multa de 5 UCs.
Novamente inconformada, a mesma veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

CONCLUSÕES

1ª.- A posse traduz-se numa relação material com a coisa ("corpus") e na intenção de exercer sobre esta o direito real correspondente àquela relação ("animus").

2a.- A aquisição da posse tem de conter estes dois elementos.

3*.- A corrente jurisprudencial maioritária aponta no sentido de que a tradição (da coisa), em caso de contrato promessa de compra e venda, pode, em casos excepcionais, envolver a transmissão da posse a favor do promitente compra­dor, tudo dependendo do "animus" que acompanha o "corpus", pois como resulta do conceito legal de posse, esta é integrada por esses dois elementos.

4a.- Está provado que a recorrente, aquando da celebração do contrato promessa, pagou 50% do preço, tendo-se convencionado que a escritura de compra e venda seria celebrada até 31 de Dezembro de 1975.

5a.- Após interpelação da R. ora recorrente, os promitentes vendedores comunica­ram-lhe por carta em 30/10/1975 que não podiam realizar a escritura até ao termo fixado no contrato promessa (31/12/1975) mas reafirmando ser o seu propósito de realizarem o contrato prometido.

6a.-A recorrente, apesar da não realização da escritura de compra e venda, pre­tendeu pagar o remanescente do preço em falta, o que os promitentes vende­dores recusaram, por pretenderem que apenas lhe fosse pago quando fosse formalizado o negócio.

7a.-A recorrente, na pressuposição de cumprimento do contrato definitivo e na expectativa fundada de que tal se verificaria, passou a habitar a fracção prometida vender em 31/12/1975. E,

8a.- A partir daquela data passou a ocupar o andar de modo ininterrupto, aí tomando as refeições, passando os seus tempos de lazer, recebendo amigos e familiares.

9a.- A recorrente procedeu à modificação do interior do prédio, deitando paredes abaixo, eliminando algumas divisões, remodelando o andar, suportando os custos das obras de conservação do andar, substituindo portas e janelas, reparando o soalho, paredes e tectos, pintando-os sempre que se justificava.

10a.- Como ficou provado, todos esses actos foram praticados pela recorrente de modo ininterrupto, ao longo de trinta anos, com a consciência de não lesar direitos nem interesses de terceiros.

11a.- Ficou ainda provado que tais actos sempre foram praticados à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, inclusive dos ora AA. ou dos seus antecessores.

12ª.-A posse da R, foi obtida não pelo contrato promessa, mas pela traditio do andar ocorrida em 31 de Dezembro de 1975, no pressuposto do cumprimento do contrato prometido, sempre afirmado pelos promitentes vendedores e na expectativa de que tal se verificaria, pelo que a recorrente praticou os actos de posse com o "animus" de exercer o direito de propriedade em seu próprio nome.

13ª.-O douto acórdão recorrido (tal como a decisão em 1a instância) considerou que não se provou, quanto aos actos materiais praticados pela recorrente (resposta aos quesitos 19° a 23°, 25° a 31°, 34° a 43°) ao longo de trinta anos sobre a fracção objecto do litígio, com "animus possidendi", pelo que não podia entender-se que ela a adquiriu por via possessória.

14a.-Sem prejuízo do referido supra, o douto acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, não atentou na doutrina que decorre do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 14.05.96, publicado no D.R., II Série, de 24/06/96, nele se consignando que "podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre a coisa".

15a.- Em toda a argumentação desenvolvida no douto acórdão recorrido, não se tomou em linha de conta que a Lei dispensa ou facilita a prova do "animus possidendi" ao estabelecer a presunção da posse daquele que exerce o poder de facto - art°. 1252° n° 2 do C. C..

16a.- No presente caso, seguindo o entendimento vertido no douto acórdão recorri­do (tal como na decisão de 1a instância), não se provou o "animus possidendi" por parte da R.

17a.-Mas também não se provou, nem sequer se alegou, que a R. tenha agido como simples detentora. Assim,

18a.- Existia uma situação de dúvida relativamente à qual tinha de presumir-se, nos termos do n° 2 do art°. 1252° do C. C., que a recorrente agiu como verdadeira possuidora.

19a,- E dado que a situação se prolonga de modo ininterrupto desde 31 de Dezembro de 1975, a recorrente adquiriu o direito de propriedade por usucapião sobre a fracção em litígio.

20a.- Deveria, por isso, ter sido julgada improcedente a acção de reivindicação.

21a.- Para a hipótese, que se julga académica, de assim se não entender, e dado que o acórdão recorrido considerou válido o contrato promessa, sempre a recorrente poderia fazer valer os direitos que dele decorrem. Pelo que,

22a.-A ocupação do andar não pode ser considerada ilícita ou abusiva, não assis­tindo aos recorridos o direito a qualquer indemnização, devendo nessa parte ser revogado o douto acórdão.

23a.- Ainda que assim se não entendesse, sempre o douto acórdão deveria ser revogado, dado que a conduta dos recorridos, ao pretenderem que lhes seja restituída a fracção, ao fim de trinta anos, apesar da factualidade dada como provada, consubstancia um claro e manifesto abuso de direito.

24*.- Na verdade, atenta a conduta dos recorridos e seus antecessores, desde Dezembro de 1975, que inculcou na recorrente que o negócio de transmissão do direito de propriedade era "firme", faltando apenas formalizá-lo. Pelo que,

25a.-Ao pretenderem agora a restituição da fracção, tal conduta excede manifesta­mente os limites impostos pela boa fé. E,

26a,- Para obviar a uma situação clamorosamente injusta, não poderá deixar de ser declarada a existência de "abuso de direito".

27a.-A recorrente, ao suscitar a ilegitimidade dos recorridos em sede de recurso, não litigou de má fé, não violou a al. d) do n" 2 do art°. 456° do C. P. C, e por isso não deveria ter sido condenada como litigante de má fé, devendo, também nessa parte, o acórdão recorrido ser revogado.

28a,- Ao decidir de modo diverso, o acórdão recorrido violou, entre outros, os artºs. 334°, 1252° n° 2, 1263°, 1287°, 1293°, 1296°, 1305° e 1311°. todos do C. C., os quais deverão ser interpretados em conformidade com o vertido na motiva­ção do presente recurso,

Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a parte contrária pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.


FUNDAMENTOS

Das instâncias, vem dada, como provada, a seguinte factualidade:

1. Os Autores, FF, GG e os seus primos EE e HH são comproprietários, sem distinção de parte ou direito, do prédio sito na Rua ..., n.° ..., inscrito na matriz predial urbana sob o n.° ...., freguesia da Sé Nova, Concelho de Coimbra, descrito na Conservatória de Registo Predial de Coimbra sob o n.° .... ( al. a), desanexado do prédio n° .... .

2. Nos autos de inventário obrigatório, que correu sob o n.° ...., no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, a nua propriedade deste prédio foi adjudicada aos Autores e aos sobrinhos do pai dos Autores, filhos do seu irmão EE, tendo sido atribuído o usufruto do mesmo prédio ao pai dos Autores e ao irmão deste, o mencionado EE .

3. O prédio supra foi registado, pela primeira vez, em 18 de Julho de 2002 e não se encontra constituído em propriedade horizontal .

4. No dia 8 de Maio de 1975, DD, pai dos ora Autores, e mulher, prometeram vender, por si e em representação dos restantes herdeiros, à Ré ; CC, e esta prometeu comprar pelo preço de 700.000$00 (setecentos mil escudos), o andar correspondente ao 1.° Esq. do prédio referido na anterior al. a ), (registado na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, no livro B-118 a folhas (186 v° sob o n° 46.674) tendo celebrado o contrato que se encontra a folhas 20 e 21 dos autos.


5. O Sr. DD prometeu vender o andar à Ré, em seu nome e «como representante responsável dos restantes herdeiros»


6. Nesta mesma data, a Ré pagou a título de sinal e principio de pagamento, a quantia de 350.000$00 (trezentos e cinquenta mil escudos), nada mais tendo pago .

7. No referido contrato promessa convencionou-se a favor da promitente compradora, o seguinte;

... Poderia, desde logo, realizar obras no andar, sendo reembolsada da importância
com elas despendida se o negócio não se concretizasse por culpa dos vendedores;
... a outorga da escritura pública da compra e venda devia realizar-se até ao prazo
máximo de 31 de Dezembro de 1975;
... a partir da data da outorga do contrato promessa teria direito a ocupar o imóvel, o que a Ré fez, passando a habitar no imóvel, sem nunca ter pago qualquer quantia por tal ocupação.

8. Nada se convencionando sobre quem recairia a obrigação de marcar a escritura .

9. Na descrição e inscrição da Conservatória de Registo Predial de Coimbra, relativa ao n.° ..., do Livro B 118, consta que DD e o seu irmão EE herdaram este prédio do seu pai.

10. O Sr. HH promoveu uma escritura de justificação do imóvel, edificado no prédio registado na Conservatória do Registo Predial de Coimbra com o n° ..., lavrada no dia 17 de Setembro de 1977, cujo teor consta do documento n.° 4 da petição.

11. No dia 26 de Fevereiro de 1997 a ora Ré intentou contra EE e mulher, II, acção declarativa de execução específica do referido contrato promessa, acção que correu termos no 2.° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, sob o n.° 50/97 (al. j), na qual pediu a emissão de uma sentença que substitua a declaração de vontade dos promitentes faltosos ora RR, decretando a transferência da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio supra identificado, referindo que "mantém o interesse na aquisição da fracção prometida vender. Tanto mais que, a autora, desde a celebração do contrato, e por haver sido acordado, passou a ocupar o andar, como se fosse coisa sua, realizando obras e benfeitorias" ( documento de folhas 36 e ss., não impugnado e art° 712° n° 1 a) do CPC).

12. Na pendência de tal acção, já após o oferecimento da tréplica da autora, DD faleceu, encetando-se negociações para a resolução extrajudicial do litígio, o que nunca veio a concretizar-se tendo-se extinguido a instância por deserção.

13. Os promitentes vendedores, em 30/10/1975 e na sequência duma interpelação da reconvinte, endereçaram-lhe a carta anexa à petição inicial, sob o doc. n.° 5, onde lhe comunicaram que, apesar dos esforços, não lhes era possível efectuar a escritura, mas logo que esta estivesse em ordem, informariam a Ré com a necessária antecedência para ser feita a escritura.

14. A Ré nunca pagou quaisquer obras de conservação do prédio, qualquer seguro, impostos ou taxas, salvo quanto a obras feitas no andar onde habitava.

15. Os Autores exigiram-lhe a restituição do prédio.

16. A não restituição do fogo aos seus proprietários está a causar-lhes prejuízos.

17. O Senhor Dr. DD reconhecendo que a não realização da escritura apenas era imputável aos promitentes vendedores, recusou-se a receber a parte restante do preço (quesito 10) e transmitiu à Ré que ela apenas tinha que pagar a quantia quando o negócio de compra e venda fosse formalizado.

18. A Ré para «legalizar» a casa, interpelou, ao longo de décadas, o Sr. ... (que representava os interesses do Senhor Dr. DD) no sentido de ser feita a escritura.

19. O prédio tem oito fracções autónomas, estando sete delas arrendadas, todas elas distintas e isoladas entre si, com saída própria, cada uma para parte comum do prédio, por onde se acede à via pública .

20. A Ré sempre esteve convencida de que os herdeiros do Sr. Dr. DD não deixariam de criar as condições (registo do prédio e constituição da propriedade horizontal) para, desse modo, cumprirem a sua vontade de realizar a escritura a favor da Ré.

21. A Ré promoveu a acção de execução específica porque pretendia obter o «documento» (escritura ou decisão judicial) relativo à aquisição.

22. Após a carta referida na al. m ), e a partir daquela, de 31-12-1975, a Ré, com a concordância dos promitentes vendedores, passou a habitar a fracção com a sua família, a fazer as obras descritas nos quesitos seguintes.

23. A Ré passou a ocupar o andar de modo ininterrupto; passou a tomar as refeições, dormir, passar os seus tempos de lazer, na referida fracção, aí recebendo familiares e amigos; aí cresceram os seus filhos, onde sempre residiram até obterem a sua formação académica e contraírem casamento, tudo desde 31 de Dezembro de 1975, de modo permanente e ininterrupto.

24. A Ré procedeu à modificação do interior do seu prédio, deitando paredes abaixo, eliminando algumas divisões, criando espaços mais amplos (quesito 25) substituiu a canalização (quesito 26) remodelou o quarto de banho e a cozinha, a par de outras obras .

25. Todas as obras de conservação do seu andar foram suportadas exclusivamente por si, ao longo de trinta anos, pagou a água, a luz e o telefone e nunca os ora Autores ou os seus antecessores questionaram as obras levadas a cabo pela Ré e nunca gastaram um cêntimo que fosse em obras de recuperação e/ou conservação daquela fracção e cedeu a fracção a familiares que consigo viviam.

26. A Ré nunca foi interpelada para o pagamento de qualquer contrapartida pelo uso da fracção (quesito 32) situação que se mantém de forma ininterrupta desde 1975.

27. A Ré procedeu à demolição de paredes; à junção de algumas divisões, eliminando as existentes e sempre que se justificava, realizou obras de manutenção ou conservação, pintando-a por diversas vezes; substituiu toda a canalização; reparou e/ou substituiu portas e janelas; arrancou as louças da cozinha, colocando outras mais modernas e adequadas ao seu gosto; arrancou as louças do quarto de banho, substituindo-as por outras; reparou o soalho, paredes e tectos, pintando-os sempre que se justificava e sempre teve em seu nome os contratos de água e de electricidade, pagando os respectivos consumos (quesitos 34 a 43) com consciência de não lesar direitos nem interesses de terceiros (quesito 45) e não solicitou aos promitentes vendedores a realização de quaisquer obras ou benfeitorias na sua fracção.

28. Estes actos foram praticados de forma ininterrupta ao longo de trinta anos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, inclusive dos ora AA. ou dos antecessores.

29. O Senhor Dr. HH só não recebeu o montante do preço em falta, porque sabia que não possuía legitimidade para proceder à celebração do negócio que havia prometido.

30. O Senhor Dr. DD e a Ré estipularam no contrato promessa que a Ré poderia ocupar o imóvel e que o primeiro fez tal contrato por estar convencido de que viria a cumprir o contrato, tendo verificado, mais tarde que não conseguia cumprir.

31. A Ré subscreveu a carta junta aos autos com a réplica, datada de 5 de Fevereiro de 2001, de onde consta entre o mais que: « Sendo a porta-voz de todas as inquilinas, quero informar do estado de degradação em que se encontra o imóvel (...). (...) mandámos já várias vezes efectuar trabalhos de restauro no telhado».

Exposta a factualidade definitivamente fixada, equacionemos as questões a apreciar e decidir no presente recurso e que, segundo se colhe das alegações da Recorrente e da condensação das mesmas nas respectivas conclusões, são quatro:
a) a alegada aquisição da propriedade sobre o imóvel por usucapião;

b) a questão da sua condenação no pagamento de uma indemnização aos Autores/Recorridos;

c) o invocado abuso de direito

d) a condenação como litigante de má fé.

I – A alegada aquisição da propriedade sobre o imóvel, por usucapião

Relativamente à primeira questão, insiste a Recorrente na tentativa de demonstrar que tinha a posse do andar de que tratam os autos, pois que a teria adquirido pela « traditio» do referido imóvel, uma vez que na altura da outorga do contrato-promessa em que interveio como promitente-compradora, a Recorrente, «na pressuposição de cumprimento do contrato definitivo e na expectativa fundada de que tal se verificaria, passou a habitar a fracção pro­metida vender em 31/12/1975. E, a partir daquela data passou a ocupar o andar de modo ininterrupto, aí tomando as refeições, passando os seus tempos de lazer, recebendo amigos e familiares.
Procedeu à modificação do interior do prédio, deitando paredes abaixo, eliminando algumas divisões, remodelando o andar, suportando os custos das obras de conservação do andar, substituindo portas e janelas, reparando o soalho, paredes e tectos, pintando-os sempre que se justificava.
Como ficou provado, todos esses actos foram praticados pela recorrente de modo ininterrupto, ao longo de trinta anos, com a consciência de não lesar direitos nem interesses de terceiros.
Ficou ainda provado que tais actos sempre foram praticados à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, inclusive dos ora AA. ou dos seus ante­cessores»
Acrescentando ainda que:
«A posse da R, foi obtida não pelo contrato promessa, mas pela traditio do andar ocorrida em 31 de Dezembro de 1975, no pressuposto do cumprimento do contrato prometido, sempre afirmado pelos promitentes vendedores e na expectativa de que tal se verificaria, pelo que a recorrente praticou os actos de posse com o "animus" de exercer o direito de propriedade em seu próprio nome».

Esta posição da ora Recorrente, mantida ao longo de todas as fases do processo, designadamente nos recursos de Apelação e Revista interpostos, não encontra suporte factual bastante, nem suficiente apoio jurídico, adiante-se já!
Pretende a mesma demonstrar que não teve só o elemento material da posse ( o corpus possessório) mas também o elemento espiritual ou anímico (o animus possidendi), com isso configurando a posse stricto sensu, ou seja, «o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real», na «definitio legis» ínsita no artº 1251º do Código Civil.
Não é, porém, assim, como bem decidiram quanto a este ponto, as Instâncias.
Como, com a clareza que sempre os caracterizou, escreveram Antunes Varela e Pires de Lima no seu Código Civil anotado, obra que ainda hoje constitui preciosa referência para os teóricos do Direito e para os profissionais forenses, «O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário (cfr. os acórdãos do S. T. J., de 29 de Março do 1968, de 15 de Janeiro de 1974 e de 29 de Janeiro de 1980, res­pectivamente no B. M.J. 175, págs. 272 e segs., nº 233, págs. 173 e segs., e n.° 293, págs. 341 e segs.)
São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do pro­mitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v. g., evitar o pagamento da sisa ou precludír o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao pro­mitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse» ( A.Varela e Pires de Lima, Código Civil anotado, Vol. III, 2ª edição revista e ampliada, pg. 6).
No caso vertente e face ao quanto provado ficou, embora a Ré/Recorrente tivesse passado a viver no referido andar, o tivesse utilizado e, inclusivamente, tivesse efectuado as obras descritas no facto 27º do acervo factual fixado, já que o convencionado inter partes assim o permitia, não o fez como se dona da mesma fosse, mas sempre na qualidade de promitente-compradora, ciente e consciente dessa qualidade que nunca perdeu, embora confiante e esperançada que se viesse a celebrar o contrato definitivo (contrato de compra e venda do referido andar).
Isso mesmo ressalta, com cristalina evidência, da seguinte factualidade:

18. A Ré para «legalizar» a casa, interpelou, ao longo de décadas, o Sr. O... (que representava os interesses do Senhor Dr. DD) no sentido de ser feita a escritura.


20. A Ré sempre esteve convencida de que os herdeiros do Sr. Dr. DD não deixariam de criar as condições (registo do prédio e constituição da propriedade horizontal) para, desse modo, cumprirem a sua vontade de realizar a escritura a favor da Ré.

21. A Ré promoveu a acção de execução específica porque pretendia obter o «documento» (escritura ou decisão judicial) relativo à aquisição.

Embora a Ré tivesse utilizado uma linguagem algo metafórica na redacção da matéria factual que resultou provada, como «para legalizar a casa» ( facto 18º) quando pretende significar «para comprar a casa» ou seja para celebrar o contrato definitivo que a tornaria dona de tal casa ou que promoveu a acção de execução específica para obter « documento» relativo à aquisição (facto 21º), quando o que pretendia era uma sentença judicial que produzisse os efeitos da declaração negocial do faltoso, vale dizer, a aquisição (translativa derivada) da propriedade sobre tal imóvel, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 422º, nº 3 e 830º, nº 1 do C. Civil, a verdade é que, como se disse, ressalta de tais factos que a ora Recorrente, sabendo que não era a dona do imóvel que havia prometido comprar, agiu em conformidade para realizar tal compra e, deste modo, então sim, tornar-se e sentir-se dona do referido andar.
É ainda a Antunes Varela que se devem as seguintes palavras: «o promitente-comprador investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela, precisamente porque, sabendo ele como ninguém, que a coisa pertence ao promitente vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa» (Antunes Varela in RLJ, 128°- 146).
O facto de ter efectuado obras na casa como consta da factualidade provada ( facto 27º) não permite entendimento diferente, pelo contrário apenas o reforça, já que a realização de obras foi expressamente prevista e autorizada ou tolerada no instrumento do contrato-promessa, pelos promitentes-vendedores à promitente –compradora, pois como consta do facto 7º «poderia, desde logo, realizar obras no andar, sendo reembolsada da importância com elas despendida se o negócio não se concretizasse por culpa dos vendedores».
Portanto, ficou convencionado que as obras efectuadas no referido andar seriam pertença da ora Recorrente, apenas se o negócio se concretizasse; se, por motivo imputável aos donos do andar (promitentes vendedores), tal não sucedesse, elas reverteriam para estes, mediante o reembolso da ora Recorrente das despesas realizadas, isto porque, como é evidente, elas acompanhariam o destino do próprio andar a que estavam afectas.
Desta forma, a «posse» que alega foi in nomine alieno, a tecnicamente denominada posse precária ou detenção que caracteriza, de resto e por via de regra, o exercício dos poderes de facto dos promitentes compradores sobre os imóveis, nos casos em que lhes é permitida a utilização dos mesmos antes da compra.
Esta mesma posição doutrinária tem sido sufragada também pela Jurisprudência, designadamente a deste Supremo Tribunal, como se pode ver, inter alia, no Acórdão de 05-03-2009 ( Relator, Exmº Cons. Salvador da Costa) que assim sentenciou: «A regra, só afectada por circunstâncias excepcionais, é no sentido de que o promitente-comprador tradiciário só assume em relação à coisa tradiciada a posição de possuidor em nome alheio» (disponível em www.dgsi.pt, ( 09B425).
As circunstâncias que excepcionalmente permitem concluir que a posse do promitente-comprador é em nome próprio, no caso de tradição do imóvel, têm resultar da interpretação da lei e do sentido dos factos disponíveis e pertinentes para o efeito, como expressamente se afirmou no aresto em referência.
Não resulta nem da interpretação do texto do contrato-promessa junto aos autos, nem da factualidade provada que consta do respectivo elenco, apurado e fixado pelas Instâncias, que tenha havido intenção das partes em transmitir a posse causal ou real dos promitentes-vendedores para a promitente-compradora, como deixámos demostrado.

A posse precária, embora protraída no tempo como ocorre no caso em apreço, não permite a aquisição por usucapião, por força do disposto no artº 1290º do Código Civil, que estatui:
«Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título».
Ora da factualidade provada não resulta que tenha havido inversão do título da posse por banda da Ré, ora Recorrente, contra o dono do imóvel.
Improcedem, destarte, as conclusões 1ª a 20ª da alegação da Recorrente, pelo que, neste aspecto concreto, importa confirmar o acórdão recorrido, na parte em que, por sua vez, confirmou a decisão da 1ª Instância quanto à reivindicação dos Autores (declarando que os AA são comproprietários do referido andar e condenando a Ré a entregar imediatamente tal andar aos AA, livre de pessoas e bens).

II –A condenação da Ré/Recorrente na indemnização aos Recorridos

Relativamente à 2ª questão, isto é, à condenação da Ré no pagamento de uma indemnização aos Autores/Recorridos, condenação esta que a Recorrente impugna no presente recurso, há que reconhecer que lhe assiste razão!
Com efeito, como fundamento da condenação da Recorrente no pagamento de uma indemnização aos Recorridos, a Relação apenas se socorreu do que consta do facto 16: «A não restituição do fogo aos seus proprietários está a causar-lhes prejuízos».
Esta condenação, como expressamente consta da sentença proferida em 1ª Instância e que foi confirmada, em via de recurso, pelo acórdão ora recorrido, está fundada no nº 1 do artº 483º do Código Civil, ou seja, exige o pressuposto essencial da responsabilidade civil, designadamente da aquiliana, que é a existência de danos ou prejuízos que, logicamente, carecem de ser alegados e provados em juízo.
Como é do conhecimento geral, não basta a simples alegação e prova de que a não restituição do andar aos proprietários está a causar-lhe prejuízos, para que daí resulte, sem mais, designadamente sem a alegação e prova dos restantes pressupostos de tal responsabilidade (ilicitude, culpa e nexo de causalidade entre a conduta ilícita e os danos sofridos) e, além do mais, sem a concretização dos prejuízos sofridos.
Não tendo sido provada (nem alegada) a natureza e a ordem dos prejuízos sofridos, não dispõe o Tribunal dos elementos necessários para a condenação na sua reparação, pois só pode condenar em caso de existência de danos reparáveis que carecem de ser demonstrados, o que, desde logo, pressupõe a identificação dos mesmos.
Carece o Tribunal de conhecer se se trata de danos patrimoniais ou não patrimoniais, se de danos emergentes ou de lucros cessantes e, enfim, saber em que é que consistiram os prejuízos para aquilatar do valor dos mesmos, pois a indemnização civil tem como escopo precípuo a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento causador do prejuízo ou, pelo menos, a compensação do lesado, em termos equitativos, dos danos sofridos.
Por isso, cabe aos interessados a quem a lei reconheça o direito à indemnização pelos prejuízos sofridos, a alegação e a prova de tais prejuízos, enquanto factos concretos constitutivos do alegado direito, não sendo suficiente a vaga e genérica alegação de que determinada conduta está a causar-lhes prejuízos, o que se traduz em puro e simples juízo conclusivo.
Neste sentido, sentenciou o Acórdão deste Supremo Tribunal atrás referido, onde em situação semelhante ponderou que:
«As instâncias desvalorizaram essa falta de concretização, porque adoptaram o entendimento de alguma doutrina e jurisprudência de que o direito de indemnização se basta com a privação do uso ou do gozo das coisas.
Ora visa o instituto da responsabilidade civil, para o caso de afectação de bens materiais a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento causador do prejuízo, ou seja, indemnizar os prejuízos sofridos por uma pessoa (artigo 562° do Código Civil).
É certo, em regra, por um lado, gozar o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305° do Código Civil). E, por outro, dever o agente que, ilícita e culposamente violar aquele direito, indemnizar o referido proprietário dos danos que lhe causar (artigos 483° e 499° a 510° do Código Civil).
Todavia, a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil depende da existência de danos e pressupõe a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu (artigos 563" do Código Civil),
Também é certo dever o tribunal julgar equitativamente, dentro dos limites que tiver por provado se não puder averiguar o valor exacto dos danos (artº 566°. n" 3, do Código Civil).
Isso significa que os juízos de equidade não suprem a inexistência de factos reveladores do dano ou prejuízo reparável derivado de facto ilícito lato sensu, porque o referido suprimento só ocorre em relação ao cálculo do respectivo valor em dinheiro.
Ademais, prescreve a lei que, em regra, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos ( artigo 566º, nº 2 do C. Civil)»
Mais adiante, o referido aresto considerou que «face ao nosso ordenamento jurídico, a mera privação do uso ou gozo de uma coisa, incluindo os imóveis, isto é, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, se dela não resultar um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnizar no quadro da responsabilidade civil».

Por sua vez, também outro Acórdão deste Supremo Tribunal, de 5-3-2002, de que foi Relator o Exmº Conselheiro Ribeiro Coelho, assim sentenciou:
«A condenação em indemnização a liquidar em execução de sentença pressupõe a existência de danos e a sua demonstração, não se pode bastar com a conclusão jurídica de haver danos» (Pº 01A4363, disponível em www.dgsi.pt).
Neste aresto considerou-se ainda o seguinte, que, por se ajustar plenamente ao caso vertente, se permite transcrever:
«A sentença exequenda limitou-se a afirmar que havia prejuízos e danos, não especificando em que consistiram, nem o que os originou.
Afirmou, pois, uma simples conclusão jurídica, ao dar como verificado o "dano" enquanto elemento estruturante da responsabilidade civil - cfr. art. 483" do CC.
Esta conclusão só seria significativa na medida em que resultasse de factos que revelassem de que ordem ou de que natureza eram os danos ou prejuízos que haveria que
quantificar.
Da maneira como decidiu, a sentença exequenda, por ser omissa quanto a tais factos que, a estarmos perante um dano patrimonial, deveriam ser, designadamente, os que evidenciavam a diferença entre as situações patrimoniais ern confronto, com vista à aplicação do art. 566°, n" 2 do CC -, como que relegou para a fase da liquidação a própria determinação da existência real dos prejuízos».

É exactamente esta a situação «sub judicio» pois, não só não se quantificam os prejuízos, como nem sequer foram alegados/provados quais foram ou em que é que consistiram tais prejuízos ou danos.
Sendo certo que a condenação no pagamento da indemnização pressupõe, em caso de responsabilidade civil geradora do dever de indemnizar, o apuramento dos prejuízos a ressarcir, ainda que não liquidados, tal condenação não é viável quando a própria demonstração da existência dos prejuízos concretos não tiver sido efectuada.
Para a execução de sentença ou incidente de liquidação, pode ser relegada a quantificação dos prejuízos, jamais a averiguação da existência e qualificação dos mesmos.
Assim sendo, impõe-se reconhecer razão à Recorrente na parte em que impugna a sua condenação, confirmada pela Relação, no pagamento de uma indemnização aos Recorridos.

IIIO Invocado Abuso de direito

Não seriam precisas mais considerações do que as tecidas pelas Instâncias, para se considerar improcedente a invocação, pela Recorrente, do abuso de direito.
No entanto, sempre se dirá o seguinte, relativamente a esta questão sintetizada nas seguintes conclusões, que para maior comodidade de leitura se transcrevem:

«23ª- Ainda que assim se não entendesse, sempre o douto acórdão deveria ser revogado, dado que a conduta dos recorridos, ao pretenderem que lhes seja restituída a fracção, ao fim de trinta anos, apesar da factualidade dada como provada, consubstancia um claro e manifesto abuso de direito.

24*.- Na verdade, atenta a conduta dos recorridos e seus antecessores, desde Dezembro de 1975, que inculcou na recorrente que o negócio de transmissão do direito de propriedade era "firme", faltando apenas formalizá-lo. Pelo que,

25a.-Ao pretenderem agora a restituição da fracção, tal conduta excede manifesta­mente os limites impostos pela boa fé. E,

26a,- Para obviar a uma situação clamorosamente injusta, não poderá deixar de ser declarada a existência de "abuso de direito"»

Nada na factualidade provada permite a configuração do procedimento dos autores como um abuso de direito, nem no alegado aspecto do «venire contra factum proprium», nem por qualquer outra forma.
Com efeito, já vimos exaustivamente que a posse do andar que a Recorrente invoca em função da tradição do imóvel, foi uma posse precária ou detenção, e, portanto, sempre em nome alheio ( nomine alieno) como é próprio de tais situações e, por outro lado, os ora Autores nenhum comportamento tiverem relativamente à ora Recorrente que entrasse em contradição com uma outra sua conduta anterior, que é o caracteriza o «venire contra proprium».
Os ora Autores, que são os verdadeiros donos do andar (em compropriedade), nunca prometeram vender nada à ora Recorrente, nem se descortina qualquer contradição na sua conduta que inculque aquela forma de abuso de direito, como se colhe da factualidade provada.
Por outro lado, como se colhe da mesma factualidade, também inexistem indícios de que os Autores /Recorridos tenham excedido os limites da boa fé, bons costumes ou do fim social e económico do direito que arrogam.
Estão apenas a exercer o direito de reivindicar aquilo que é seu e «quis jure suo utitur nemo facit injuriam»!
Tanto basta para imediatamente improceder a questão levantada nas conclusões 23º a 26ª, improcedência essa que também está respaldada na lauta argumentação do acórdão recorrido que sufragamos inteiramente, dando-a por reproduzida.


IV – A condenação da Recorrente como litigante de má fé

O acórdão recorrido condenou a Recorrente como litigante de má fé, condenação contra a qual a mesma se insurge, alegando, em essência, que « na eventualidade de o Tribunal da 1ª Instância ter declarado partes ilegítimas os Reconvindos ( por arguição destes ou oficiosamente), então, nessa hipótese, a Recorrente, lançando mão do incidente da intervenção, sanaria a declarada ilegitimidade.
Os Reconvindos não suscitarem tal excepção, e o pedido reconvencional foi admitido e as partes julgadas ilegítimas, pelo que não se pode «sanar» um vício que o Tribunal não declarou:
A recorrente não fez do processo qualquer uso manifestamente reprovável, tanto assim que com o mesmo não visou prosseguir qualquer objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar o trânsito em julgado da decisão»

Expostos assim os contornos da questão decidenda, importa apreciar o comportamento processual da Ré/Reconvinte e aqui Recorrente, para se aquilatar do fundamento da sua impugnação!
Não há dúvida que a Ré deduziu, no articulado da sua contestação, um pedido reconvencional contra os Autores, no sentido de que se declarasse que adquiriu o direito de propriedade sobre a fracção em causa, por usucapião, ou, subsidiariamente, que se condenasse os Autores/Reconvindos a pagar-lhe o valor actualizado da fracção que viesse a ser apurado, deduzido do preço convencionado, devendo, ainda, ser restituída a quantia recebida a título de sinal, com base no disposto no artº 422º, nº 2 do C. Civil e no facto de ter havido tradição da coisa.
A 1ª Instância julgou a reconvenção improcedente, sem prejuízo da Autora instaurar futura acção contra a herança/herdeiros do promitente vendedor.
No recurso de Apelação que daquela sentença foi interposto para a Relação, a própria Ré/ Reconvinte nas suas alegações de recurso, teceu várias considerações sobre a preterição de litisconsórcio necessário passivo e concluindo da seguinte forma:

A R. na reconvenção pediu que fossem os reconvindos condenados a reco­nhecer que era dona e legítima possuidora de uma fracção do prédio de que os AA se dizem comproprietários, por a haver adquirido por usucapião.

Para que a decisão favorável da reconvenção pudesse produzir o seu efeito útil normal, era necessária a intervenção de todos os comproprietários e res­pectivos cônjuges, se casados em regime de comunhão. Pelo que,

Era, por imperativo legal e tratando-se de uma situação de litisconsórcio necessário, imperioso que estivessem nos autos como partes todos os inte­ressados referidos na conclusão anterior, sob pena de ilegitimidade.

Tendo estado na acção apenas os AA. reconvindos, foram violadas as normas constantes dos artºs. 28°-2, 28°-A-1, do C. P. C., e art°. 1682°-A, do C. C., o que determinaria a ilegitimidade dos AA. reconvindos, obstando tal vício a que o Tribunal pudesse conhecer do mérito da acção - art°. 493°, n° 2 e 494°, alí­nea e), do C. P. C..

Ilegitimidade que expressamente se invoca, sendo certo que a mesma é de conhecimento oficioso - art°. 495° do C. P. C..

Ao decidir de modo diferente, o Tribunal "a quo" violou o disposto nos artºs. 28°, 28°-A, 493°-2, 494°-e) e 495°, todos do C. P. C., devendo ser julgada pro­cedente a excepção de ilegitimidade, anulando-se todo o processado posterior à notificação da contestação/reconvenção - art°. 197° do C. P. C.

A Relação, no acórdão ora sob impugnação, julgou procedente a excepção de ilegitimidade dos Autores para a reconvenção deduzida, mas não anulou o processado a partir da notificação contestação como vinha pedido pela Ré, antes absolvendo os Autores da instância reconvencional.
Todavia, a Relação condenou a ora Recorrente como litigante de má fé porquanto, segundo reza o acórdão recorrido, « a dedução pela recorrente de um pedido reconvencional que sabia que não devia ser aceite por falta de pressupostos processuais, que poderia ter sanado e não sanou, e sendo aceite, implicaria a ilegitimidade dos AA. para a lide reconvencional, implica uma actuação processual contra a boa fé, ou por acção, ou por omissão ( art° 456° n° 2 d) . Por acção, porque se manifesta num venire contra factum proprium, ou seja, a dedução do pedido reconvencional objectivamente interpretada, face à lei e aos bons costumes, legitima a convicção de que nunca será a parte que deduziu essa pretensão quem contra sua admissão se revoltará. Foi o que aconteceu no caso em apreço, sendo a legitimidade dos sujeitos das acções controvertidas em contra-ponto um pressuposto processual da admissão de qualquer reconvenção. Por omissão, porque a parte, devidamente patrocinada, sabia que tinha meios processuais ao seu alcance para permitir a apreciação justa e legal na lide do pedido que nela enxertou e não os usou, deixando de suscitar o incidente da intervenção principal, como decorre do próprio art.º 274° n°s 4 e 5 do CPC.
Visava a recorrente obter uma sentença que não tinha qualquer efeito útil, face à preterição de litisconsórcio, e corno tal se reconverteria num acto ilegal ( art° 137° do CPC). A litigância de má fé é sancionado por lei em multa ou indemnização, que no caso se fixa em 5 UCs».
Perante o quadro descrito, não há qualquer dúvida quanto ao bem fundado da decisão da Relação.
Na verdade é, no mínimo, surpreendente que a própria Ré que deduziu pedido reconvencional contra os dois Autores, pedido esse que viu improceder na 1ª Instância e, pelo contrário, proceder o dos Autores, venha na fase de recurso de tal sentença para a Relação, invocar a ilegitimidade dos Autores reconvindos, pedindo agora a anulação do processado a partir da notificação da sua contestação aos Autores.
Não se pode aceitar que a Ré/Reconvinte, que tinha consciência da ilegitimidade dos Autores para figurarem sozinhos como reconvindos, como sustentou na Apelação, tenha deduzido, apenas contra eles, pedido reconvencional, aguardando o desfecho da acção na 1ª Instância, para só depois de conhecer o resultado final desfavorável, em fase do recurso que interpôs, num autêntico venire contra factum proprium, como doutamente qualificou o Tribunal da 2ª Instância, vir arguir essa ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário, designadamente o passivo, alegando que «para que a decisão favorável da reconvenção pudesse produzir o seu efeito útil normal, era necessária a intervenção de todos os comproprietários e res­pectivos cônjuges, se casados em regime de comunhão. Pelo que era, por imperativo legal e tratando-se de uma situação de litisconsórcio necessário, imperioso que estivessem nos autos como partes todos os inte­ressados referidos na conclusão anterior, sob pena de ilegitimidade», pedindo a anulação do processado a partir da notificação da contestação aos Autores.

A única explicação plausível será, na verdade, a que foi achada pela Relação e constante do texto transcrito que foi respigado do acórdão recorrido.
Essa conduta processual da Ré/Recorrente, integra, com nitidez, litigância de má fé, como muito bem decidiu a Relação.
A Ré não foi condenada como litigante de má fé apenas por ter suscitado a ilegitimidade dos recorridos em sede de recurso, como alega na conclusão 27ª, mas por ter deduzido pedido reconvencional tendo consciência da ilegitimidade dos reconvindos por preterição do litisconsórcio necessário passivo, ficando a aguardar o desfecho da acção em 1ª Instância, que lhe foi desfavorável, para depois, em sede de recurso vir arguir a ilegitimidade dos mesmos na acção e extensiva à própria reconvenção que ela mesma havia deduzido, de modo a tentar fundamentar o pedido de anulação do processado nos termos já descritos, pretendendo fazer regressar o processo à fase dos articulados, o que nitidamente se traduz em uso manifestamente reprovável dos meios processuais, portanto, evidenciador de má fé, nos termos do artº 456º, nºs 1 e 2, alínea d) do CPC.
Ainda que essa não tivesse sido a intenção específica da Recorrente, como pretende demonstrar nas suas alegações do presente recurso, é a que resulta objectivamente configurada pela conduta descrita, reveladora, no mínimo, de grave ausência de cuidado, sendo certo que a litigância de má fé não tem de ser dolosa, bastando-se com a negligência grave.

Improcede, destarte, a conclusão 27ª da alegação da Recorrente.

DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em, concedendo parcialmente a Revista, revogar o acórdão recorrido apenas na parte em que, confirmando o decidido pela 1ª Instância, condenou a Ré, ora Recorrente, no pagamento de uma indemnização aos Autores, pedido este de que vai absolvida, mantendo-se, em tudo o mais, o decidido no referido acórdão .

Custas pela Recorrente e Recorridos, na proporção de 2/3 para a primeira e 1/3 para os segundos.

Tendo em atenção que a condenação da Recorrente como litigante de má fé na 2ª Instância, e que aqui foi confirmada, ocorreu por razões estritamente técnico-jurídicas, dê-se conhecimento do presente Acórdão à Ordem dos Advogados, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 459º do Código de Processo Civil.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Novembro de 2009

Álvaro Rodrigues (Relator)
Santos Bernardino
Bettencourt de Faria