Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1373/17.1T8STS.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE TOMA CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I- Dispõe o n.º 3 do artigo 671.º do CPC que, “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

II- Para efeitos de descaracterização da dupla conforme nos termos do nº 3 do artigo 671º do CPC, verifica-se fundamentação essencialmente diferente quando o acórdão da Relação, embora confirmativo da decisão da 1ª instância, sem vencimento, o faça com base em fundamento de tal modo diferente que possa implicar um alcance do caso julgado material diferenciado do que viesse a ser obtido por via da decisão recorrida.

III- No caso dos autos, a fundamentação das duas decisões não só não é diversa como é essencialmente idêntica, pelo que se verifica a dupla conformidade das decisões, obstativa da admissibilidade do recurso.

Decisão Texto Integral:
          

Processo 1373/17.1T8STS.P1.S1- 6ª Secção

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

         

I- Relatório

AA intentou a presente acção de anulação de deliberações sociais contra EUROFUTTON – Indústria e Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda. pedindo que fosse decretada a nulidade ou a anulabilidade das deliberações da sociedade tomadas na Assembleia geral do dia 31/03/2017.

Citada, a Ré veio apresentar contestação.

Realizada a audiência, veio a ser proferida sentença, datada de 19.6.2019, julgando procedente a presente acção de anulação das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral de 31/03/2017 da sociedade EUROFUTTON – Indústria e Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda., e indeferindo o pedido de condenação da A. como litigante de má-fé.

Mais se ordenou, na sentença, a notificação da Ré para exercer o contraditório quanto a eventual futura condenação como litigante de má-fé.

Por despacho posterior, o tribunal de 1ª instância, considerando a conduta processual da ré, decidiu condenar a mesma como litigante de má-fé, aplicando uma multa de 5 UC.

A Ré interpôs recurso de apelação da sentença e do despacho que a condenou como litigante de má-fé.

O Tribunal da Relação do Porto negou provimento aos recursos, mantendo integralmente as decisões do Tribunal a quo.

Do acórdão da Relação veio a Ré interpor recurso de revista, ao abrigo do disposto nos “artigos 629.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 674.º, n.º 1, alínea a) 675.º, n.º 1, e 676.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil”.

A Autora respondeu pugnando pela inadmissibilidade do recurso e pela manutenção do acórdão.

Suscitando-se a questão da inadmissibilidade do recurso, foi a Recorrente notificada nos termos e para efeitos do artº 655º, nº 2, ex vi artº 654º, nº 2 do CPC.

 A Recorrente veio responder nos seguintes termos:

Foi a Recorrente notificada, nos termos e para efeitos do art. 655.-, n.° 2, ex vi 654.-, n.° 2 do CPC.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não entende a Recorrente porque motivo se levanta a alegada questão, que a nosso ver é claramente uma não questão, de (in)admissibilidade do recurso de revista, porquanto não se verifica uma situação de dupla conformidade impeditiva da admissibilidade do recurso de revista, sendo o mesmo admissível nos termos interpostos pela Recorrente.

Ainda assim, e tendo sido a Recorrente notificada nos termos e para efeitos do art. 655.-, n.° 2, ex vi 654.-, n.° 2 do CPC, tem a Recorrente de se pronunciar sobre a alegada (in)admissibilidade do recurso de revista, nos termos que infra se passam a explicar.

Vejamos.

A Lei n.° 41/2013, de 26 de 06, que aprovou o Novo Código de Processo Civil, procedeu a um ajustamento das condições em que se verifica a dupla conforme, impeditiva de recurso de revista, estabelecendo um regime mais exigente que o anterior, passando a ser necessária, além da coincidência das decisões sem voto de vencido, a convergência na respectiva fundamentação.

A fundamentação  essencialmente  diferente pressupõe  que,  nas  duas decisões, haja sido percorrido um caminho diverso para chegar à mesma decisão final, e que a divergência, para além de respeitar ao cerne da questão ou questões jurídicas concretamente apreciada, seja substancial.

Se o núcleo jurídico fundamentador do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, que conforma a decisão de Primeira Instância, for diferente daquele que foi   por esta  aplicado,   não   se   verificará   a   dupla   conforme   obstativa   da admissibilidade de recurso de revista.

É isso que acontece no nosso caso em apreço.

O núcleo jurídico fundamentador do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto é diferente daquele que fundamentou a decisão proferido pelo Tribunal de Primeira Instância,

Entendendo, assim, a Recorrente que as decisões das duas instâncias apresentam uma base de fundamentação essencialmente diferente, e apesar de o acórdão da Relação ter sido proferido por unanimidade, não se verifica uma situação de dupla conformidade impeditiva da admissibilidade do recurso de revista, sendo o mesmo admissível nos termos interpostos pelo Recorrente.

Pelo que, e sem necessidade de mais considerações, deve ser admitido o recurso de revista interposto pela Recorrente, o que aqui se requer, com as demais consequências legais”.

II- Questão Prévia da admissibilidade do recurso.

A - A Recorrente veio interpor recurso de revista do acórdão da Relação que confirmou integralmente, sem voto de vencido, a sentença proferida pela 1ª instância. Para o efeito, a Recorrente invocou apenas o disposto nos “artigos 629.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 674.º, n.º 1, alínea a) 675.º, n.º 1, e 676.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil”. Nem uma palavra disse sobre a questão da dupla conforme ou sobre a existência de divergente fundamentação entre as duas decisões. Só depois de notificada para efeitos do disposto no artº 655º do CPC, é que veio, com ar de espanto (não entende a Recorrente porque motivo se levanta a alegada questão, que a nosso ver é claramente uma não questão), alegar que não se verifica a dupla conforme por existir divergente fundamentação entre as duas decisões.

E que fundamentos invoca a Recorrente para demonstrar que a sentença e o acórdão recorrido, embora decidindo do mesmo modo, trilharam caminhos diferentes, utilizando diferente fundamentação? Em nosso entender nenhuns. Com efeito, a Recorrente limita-se a escrever:

“O núcleo jurídico fundamentador do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto é diferente daquele que fundamentou a decisão proferido pelo Tribunal de Primeira Instância,

Entendendo, assim, a Recorrente que as decisões das duas instâncias apresentam uma base de fundamentação essencialmente diferente, e apesar de o acórdão da Relação ter sido proferido por unanimidade, não se verifica uma situação de dupla conformidade impeditiva da admissibilidade do recurso de revista, sendo o mesmo admissível nos termos interpostos pelo Recorrente.

Pelo que, e sem necessidade de mais considerações, deve ser admitido o recurso de revista interposto pela Recorrente, o que aqui se requer, com as demais consequências legais”.

Apesar da inexistência de fundamentação por parte da Recorrente, apreciemos a questão da dupla conforme.

Dispõe o n.º 3 do artigo 671.º do CPC que, “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

Segundo este dispositivo, não é “a mera divergência verificada num determinado segmento decisório que pode despoletar a revista normal relativamente a todo o acórdão da Relação, devendo esta circunscrever-se ao segmento ou segmentos que revelem uma dissensão entre o resultado declarado pela 1.ª instância e pela Relação ou relativamente aos quais exista algum voto de vencido de um dos três juízes do colectivo[1].

Também, como se afirma no acórdão do STJ, de 27.4.2017, no proc. n° 273/14.1TBSCR.L1.S1 (Relator Conselheiro Tomé Gomes), disponível em www.dgsi.pt: ‘’Para efeitos de descaracterização da dupla conforme nos termos do nº 3 do artigo 671º do CPC, verifica-se fundamentação essencialmente diferente quando o acórdão da Relação, embora confirmativo da decisão da 1ª instância, sem vencimento, o faça com base em fundamento de tal modo diferente que possa implicar um alcance do caso julgado material diferenciado do que viesse a ser obtido por via da decisão recorrida”.

Nada disto sucedeu no caso em apreço.

Compulsado o teor das decisões das instâncias resulta que a Autora (na qualidade de sócia da Ré) intentou acção no sentido de ver anulada a deliberação da sociedade Ré, por meio da qual se aprovaram contas elaboradas com base em contabilidade que foi organizada sem obediência à legislação contabilística aplicável. No que respeita a esta questão, as instâncias decidiram pela anulação das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral do dia 31 de Março de 2017, sendo que a fundamentação das decisões é a mesma.

Com efeito, a matéria de facto utilizada pelas instâncias para fundamentar a decisão é a mesma (pese embora a Relação tenha eliminado os factos provados nos pontos 15 e 17, “por não serem necessários à decisão da causa”, como se refere no acórdão).

Por outro lado, a Relação acompanhou a fundamentação jurídica  usada pela sentença, como ressalta dos seguintes trechos do acórdão:

- “Não tendo tido sido alterada a matéria fatual, será de manter a subsunção jurídica alcançada em primeira instância, mas vejamos mais detidamente o direito aplicável”(p.46).

- “Ora, como se salientou já em primeira instância, o quadro normativo convocável nos presentes autos não dispensa a referência ao DL 158/2009, de 13.7, alterado pelo DL 98/2015, de 2.6, que aprovou o Sistema de Normalização Contabilística (SNC) e substituiu o Plano Oficial de Contabilidade (POC), visando-se aliviar o peso excessivo que determinadas práticas de relato financeiro poderiam trazer para as empresas societárias”. (p.49).

- “Como se explica na sentença recorrida, «nos termos da nova redação do art. 9.º, n.º1 do Dl n.º n.º 158/2009, de 13/07, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 98/2015 passa-se ali a contemplar as «microentidades» que mais não são do que, de entre as referidas no seu art. 3.º, onde se contam as sociedades comerciais, aquelas que à data do balanço não ultrapassassem dois dos três limites seguintes”(p.51).

- “Repara-se, como se observou em primeira instância, que o que está em causa nos autos é a qualificação da Ré para efeitos de direito contabilístico – sendo esta uma PE  - e não a sua qualificação à luz de outro ordenamento…” (p. 54).

- “O recurso improcede, pois, sendo de manter a sentença recorrida” (p.56).

Acrece ainda que as instâncias concluem  com idêntica fundamentação e trilhando o mesmo quadro normativo:

Escreveu-se na sentença:“Ora a A., sócia da sociedade, ainda que representada pela sua mãe, tinha o direito a obter da R. a informação contabilística elaborada de forma completa como a lei exige para uma pequena entidade que o é, e não de forma simplista, senão básica, de uma microentidade que o não era, prejudicando-lhe dessa forma votar de forma consciente sobre a verdadeira situação da empresa e conseguir perceber, designadamente através do anexo de demonstração de resultados as ligações que a empresa concorrente do mesmo sócio gerente da R. tinha com esta, preocupação esta, precisamente, que vem a ser vertida nas declarações de voto redigidas e anexadas à ATA que suporta as deliberações tomadas, não se dizendo que foi suprido pela apresentação de alguns dos documentos que o contabilista que acompanhou a A. pediu”.

Diz-se no acórdão: “Assim, não sendo a Ré uma micro entidade, mas uma pequena entidade, o facto de se apresentar a contabilidade desta organizada de forma simplista ou básica, como se de uma microentidade se tratasse, coarta o direito do sócio a aceder a todas as rubricas e anexos que se impunham o que prejudica o direito a votar de forma consciente sobre a verdadeira situação da empresa e – como se diz na sentença recorrida - a conseguir perceber, designadamente através do anexo de demonstração de resultados, as ligações que a empresa concorrente do mesmo sócio gerente da R. tinha com esta, preocupação esta, precisamente, que vem a ser vertida nas declarações de voto redigidas e anexadas à ATA que suporta as deliberações tomadas, não se dizendo que foi suprido pela apresentação de alguns dos documentos que o contabilista que acompanhou a A. pediu”.

Assim, a fundamentação das duas decisões não só não é diversa como é essencialmente idêntica, pelo que se verifica a dupla conformidade das decisões, obstativa da admissibilidade do recurso.

B- A Recorrente pugna também pela revogação do acórdão na parte em que manteve a sua condenação como litigante de má-fé. Sucede que nesta matéria, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso apenas em um grau (artigo 542.º, n.º 3 do CPC).

No caso em apreço, não pode este Supremo Tribunal conhecer da decisão proferida pela Relação sobre esta matéria, uma vez que esta apreciou, em recurso, a decisão proferida pela 1.ª instância. Deste modo, não se admite o recurso, neste segmento.

C- Em resposta à notificação do artº 655º do CPC, vem agora a Recorrente, requerer, subsidiariamente, recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artº 672º, nº 1, al. a) do CPC. Vejamos:

A Recorrente interpôs recurso como revista normal, não alegando nenhuma das circunstâncias previstas no nº 1 do artº 672º do CPC que admitem a excepcionalidade recursória prevista neste dispositivo legal. Só quando veio exercer o seu direito de audição na decorrência da notificação do artº 655º, nº 1 do CPC, é que veio alegar, ex novo, razões que, no seu entender a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Deste modo, é manifestamente extemporânea a pretensão deduzida pela Recorrente relativamente à admissão da revista excepcional, pelo que a mesma não se admite.

III- Decisão.

Pelo exposto, não se admite o recurso, não se tomando conhecimento do seu objecto.

 

Custas pela Recorrente.

 

Lisboa, 13 de Outubro de 2020.

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Ana Paula Boularot

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., p. 370.