Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1695/12.8TBMTJ.L1.S1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: LEVANTAMENTO DE DINHEIRO DEPOSITADO
CONTA BANCÁRIA
DOAÇÃO
ANIMUS DONANDI
LIBERALIDADE
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR
NEGÓCIO GRATUITO
AQUISIÇÃO
DOAÇÃO POR MORTE
VALIDADE
CASO JULGADO MATERIAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / DOAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( EFEITOS ).
Doutrina:
- ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 1979, 335.
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, 480 e ss..
- MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º, 2001, 45, 55.
- PEREIRA COELHO, O Enriquecimento e o Dano, 2.ª reimpressão, 2003, 36.
- RODRIGUES BASTOS, Das Obrigações em Geral, II, 1972, 13.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 289.º, 473.º, 474.º, 940.º, 946.º, N.º 1.
Sumário :
I. A obrigação de restituir aquilo que se adquiriu sem causa corresponde a uma necessidade moral e social, com vista ao restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios e que, de outro modo, não era possível obter-se.

II. Há doação de coisa móvel, se alguém, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente do dinheiro de conta bancária, em benefício da donatária.

III. Manifestando-se a liberalidade, está preenchido o animus donandi.

IV. A doação, negócio jurídico gratuito, legitima a aquisição do dinheiro depositado na conta.

V. Independentemente da posição que pudesse ser tomada, nomeadamente quanto à validade da doação, tal não obstaria a que a mesma questão pudesse vir a ser objeto de nova ação judicial, sem que pudesse opor-se a exceção do caso julgado material.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA instaurou, em 9 de julho de 2012, no então 2.º Juízo da Comarca de Montijo (Juízos Centrais Cíveis de Almada, Comarca de Lisboa), contra BB, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que a Ré fosse condenada a restituir-lhe a quantia de € 328 800,00, acrescida de juros legais, desde 4 de março de 2010.

Para tanto, alegou, em síntese, ser cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de CC, falecida em 5 de março de 2010; a R., na véspera do óbito, levantou a quantia de € 328 000,00 de conta, de que também era co-titular, na Caixa DD, pertencente integralmente à falecida, tendo entrado no património da R., sem justificação; por isso, está obrigada à restituição.

Contestou a R., por impugnação, alegando, designadamente, que foi por indicação de CC que levantara o dinheiro, que lhe pertencia, e concluindo pela improcedência da ação.

Replicou ainda a A., finalizando como na petição inicial.

Na audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 17 de junho de 2015, a sentença, julgando-se a ação improcedente.


Inconformada com a sentença, a Autora apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 8 de novembro de 2016, confirmou a sentença.


De novo inconformada, a Autora recorreu, em revista excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou essencialmente as conclusões:


a) A doação por morte é proibida pelo art. 946.º, n.º 1, do Código Civil.

b) O simples contrato de abertura de conta é insuficiente para titular a doação em vida.

c) Factos provados afastam o animus donandi.

d) O acórdão recorrido interpretou incorretamente o Direito, violando o estatuído nos arts. 946.º e 947.º, n.º 2, do Código Civil.


Com a revista, a Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e sua substituição por outro que condene nos termos constantes da petição inicial.


Contra-alegou a R., designadamente no sentido da improcedência do recurso.


Por acórdão de 23 de março de 2017, a Formação a que alude o art. 272.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), admitiu a revista excecional, nomeadamente ao abrigo do pressuposto da alínea a) do n.º 1 do mesmo art. 272.º.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Nesta revista excecional, está em discussão o enriquecimento sem causa e a invalidade da doação de coisa móvel.



II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, após modificação, foram dados como provados os seguintes factos:


1. No dia 5 de março de 2010, faleceu CC, no estado de viúva de EE, sem ascendentes ou descendentes vivos, tendo deixado testamento público, lavrado no 27.º Cartório Notarial de Lisboa, em 7 de março de 2001, onde fez vários legados e instituiu herdeira do remanescente da sua herança a A., bem como nomeou testamenteiras a A. e a R., nos termos constantes fls. 17 a 21.

2. À data do falecimento, CC era titular, na Caixa DD, de três contas bancárias: uma sendo também titular EE, seu marido, e autorizada a A.; outra, com o n.º 05…/0…, sendo também titular a R.; e a terceira, sendo também titular EE.

3. Na conta n.º 05…/0…, a falecida recebia a sua pensão de sobrevivência.

4. Em 4 de março de 2010, essa conta bancária, desdobrada em três produtos bancários, apresentava um saldo de € 328 811,72.

5. Nesse dia, a R. procedeu ao levantamento da quantia de € 328 000,00 dessa conta.

6. O levantamento foi efetuado depois de ter sido transmitido às pessoas mais próximas, como a A. e a R., no hospital, onde CC se encontrava internada, que o falecimento estava por horas, dada a sua avançada idade e de se encontrar em coma há já algum tempo.

7. Em 17 de março de 2010, foi efetuado pela Caixa DD o pagamento da pensão de março, no valor de € 663,90.

8. Nesse mesmo dia, a R. procedeu ao levantamento dessa pensão e do restante saldo existente na conta.

9. EE faleceu em 18 de janeiro de 2006, sem ascendentes ou descendentes vivos, tendo deixado testamento público, lavrado no 27.º Cartório Notarial de Lisboa, em 7 de março de 2001, onde declarou que, para o caso da sua mulher não lhe sobreviver, fez vários legados e instituiu herdeira do remanescente da sua herança a A., bem como nomeou testamenteiras a A. e a R., nos termos constantes de fls. 131 a 135.

10. Quer CC quer EE haviam outorgado os testamentos públicos a que se referem as fls. 108 a 124, em 10 de maio de 1996, instituindo similar legado a favor da R., com o seguinte teor: “oito. A BB, metade indivisa do prédio rústico e de um prédio misto, ambos situados nas Q…, C… ou C… da G…, da freguesia e concelho de Alcochete, descritos na Conservatória do Registo Predial do Montijo, respetivamente sob o número cinco mil novecentos e setenta e sete, a folhas sessenta e um do livro B-16 e sob o número dezasseis mil oitocentos e trinta e dois a folhas cento e seis verso do livro B-47.”

11. Na sequência do óbito da mãe da R., esta viu registada a seu favor a outra metade desses prédios, mediante apresentação ao registo de 12/1/1995, ainda que com constituição de usufruto a favor de seu pai.

12. Em 19 de setembro de 1997, CC, EE, a R. e seu pai celebraram, com FF, S.A., o contrato-promessa de compra e venda de fls. 284 a 291, mediante o qual os primeiros prometeram vender à sociedade e esta prometeu comprar, o prédio descrito sob o n.º 5 9…, pelo preço de 96 016 000$00.

13. O contrato-promessa foi cumprido, tendo o prédio sido alienado à promitente compradora e esta pago o preço acordado aos promitentes vendedores.

14. Mediante ap. 16/010605, a R. viu inscrita a seu favor a propriedade da metade restante do outro prédio, descrito sob o n.º 16 8…, atualmente sob o n.º 16…/97…, por compra a CC e EE.

15. CC e EE eram amigos muito chegados dos pais da R.

16. EE, que era …, foi sócio do pai da R., na exploração de propriedades agrícolas.

17. A presença de CC na vida da R. foi de “toda a vida”, inicialmente como amiga dos pais, mas evoluindo para uma amizade sólida entre as duas.

18. Durante um determinado período, CC, para além da presença constante em sua casa, foi também professora da R.

19.  O falecimento da mãe da R. ocorreu quando esta era ainda jovem e tal circunstância veio a aproximar mais as duas, de tal forma que CC foi madrinha de casamento da R.

20. Essa relação de proximidade e confiança recíproca durou até ao falecimento de CC.

21.  O pai da R. e o marido da testadora foram sócios e, para o exercício da atividade da sociedade que detiveram em conjunto, adquiriram alguns prédios rústicos.

22. Um desses prédios, conhecido por “C…”, é o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Montijo sob o n.º 5 9… (fls. 61 do Livro B-16).

23. Antes da concretização da venda desse prédio, CC e EE tornaram manifesta a sua vontade de deixar à R. a metade indivisa da propriedade, que pertencia ao casal (alterado pela Relação).

24. A R., única herdeira do pai, ficaria proprietária da totalidade do prédio.

25. A propriedade referida em 22. foi vendida em 1997, na sequência e em cumprimento do contrato-promessa celebrado em 19/9/1997 (alterado pela Relação).

26. A conta referida em 2. e 3. foi aberta em 5 de março de 2001, sendo titulares CC e a R., tendo aquela dito, nessa altura, à segunda, que o dinheiro da conta seria para a R., mas que seria ela a movimentar de acordo com as suas necessidades e que a R. só deveria levantar e fazer seu o dinheiro, que na ocasião na mesma estivesse depositado, “quando eu estiver de partida”, o que a última fez na data referida em 4. (alterado pela Relação).

27. CC referiu que, só por uma questão de segurança própria, gostaria de poder ter acesso ao dinheiro que ali iria ficar depositado, mas que, “quando estivesse de partida”, a R. deveria levantar o valor que lá se encontrasse, porque o dinheiro daquela conta lhe pertencia.

28. Na conta referida em 2. e 3., foi depositada, em 31 de maio de 2005, a quantia de € 307 617,68, tendo, desde o momento da sua abertura, essa conta sido, em várias ocasiões, movimentada, a débito e a crédito, apenas pela sua primeira titular, CC (alterado pela Relação).

29. Foi por instruções de CC que a pensão recebida da Caixa Geral de Aposentações (Caixa DD) foi depositada naquela conta e não noutra das várias de que era titular.

30. Foi por indicação de CC que a R. levantou o dinheiro da conta.

31. Para surpresa de CC, decorrente de uma notificação para pagamento do IMI, esta veio a aperceber-se, em 2005, que um dos prédios rústicos que compunha a Quinta da C… não havia sido vendido, o descrito sob o n.º 16 8…, atualmente nº 16…/97….

32. Tratava-se de uma parte do terreno, que não continha construções e não estava diretamente afeto à exploração agrícola, que havia sido efetuada por EE e pelo pai da R.

33. Verificando que era proprietária de metade indivisa desse prédio rústico, CC, em nome próprio e como procuradora do marido, já bastante doente, chamou a R. e disse-lhe que pretendia passar essa propriedade, tal como já havia feito indiretamente com a outra parte anteriormente vendida.

34. Depois de analisados os termos mais convenientes para a celebração dessa transmissão, a compra e venda referida em 33. foi efetuada mediante escritura pública, outorgada em 9 de maio de 2005, mediante o preço declarado de  € 20 000,00, mas que os vendedores nunca quiseram receber e nunca receberam, da R.

35. Quando foi recebida a transferência da pensão paga pela Caixa DD a CC, a R. teve dúvidas sobre se esse pagamento era devido ou se a quantia teria de ser devolvida àquela entidade (alterado pela Relação).

36. Através de e-mail remetido e recebido em 26/9/2012, a Caixa DD confirmou não haver lugar à devolução da pensão respeitante ao mês da morte de CC (alterado pela Relação).



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias e juízos conclusivos, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, e que respeita, nomeadamente, ao enriquecimento sem causa e à invalidade de doação.

O acórdão recorrido, ainda que tenha alterado a decisão relativa à matéria de facto, confirmou a sentença, que fora absolutória, depois de ter concluído pela validade da doação e pela exclusão do enriquecimento sem causa.

Entre os seus fundamentos, destaca-se, sufragado maioritariamente, o de que a doação “foi feita por escrito, através da celebração do contrato de abertura de conta”.

A Recorrente, porém, insurgindo-se contra o veredicto, para além de aludir à proibição legal da doação por morte, alega ainda que o simples contrato de abertura de conta é insuficiente para titular a doação em vida, bem como a ausência do animus donandi.


2.3. Ilustrada a controvérsia dos autos, impõe-se apreciar se o levantamento do dinheiro depositado em conta bancária conjunta constitui um caso de enriquecimento sem causa e, por isso, se existe obrigação de restituição, situação que consubstancia a causa de pedir alegada na ação proposta.

A questão suscitada, em particular a doação, de natureza complexa e delicada, tem surgido na jurisprudência, com alguma frequência, sendo objeto de entendimentos nem sempre coincidentes, como está patente no acórdão recorrido, nomeadamente pela declaração de voto de um dos seus subscritores.


Repetindo o já afirmado, a ação tem por fundamento, ou causa de pedir, o enriquecimento sem causa, resultante do alegado locupletamento pela Recorrida, à custa da falecida e sua herdeira, a Recorrente, na quantia de € 328 800,00, levantada da conta bancária, da qual era titular a falecida e a Recorrida.

O art. 473.º do Código Civil (CC), aproveitando o reconhecimento feito pela jurisprudência, consagrou como fonte autónoma de obrigações, o enriquecimento sem causa, o enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia. A obrigação de restituir aquilo que se adquiriu sem causa corresponde a uma necessidade moral e social, com vista ao restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios e que, de outro modo, não era possível obter-se (RODRIGUES BASTOS, Das Obrigações em Geral, II, 1972, pág. 13, e MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º, 2001, pág. 45). Por isso, se atribui à ação de enriquecimento sem causa o fim de remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o ou deslocando-o para o património do empobrecido (PEREIRA COELHO, O Enriquecimento e o Dano, 2.ª reimpressão, 2003, pág. 36).

A obrigação de restituir, fundada no enriquecimento injusto, pressupõe, nos termos do disposto no art. 473.º, n.º 1, do CC, a verificação cumulativa de três requisitos: o enriquecimento de alguém, o enriquecimento sem causa justificativa e ter sido obtido à custa de quem requer a restituição (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, págs. 480 e segs.).

Destes requisitos o que levanta mais dificuldades é o especificado em segundo lugar, não definindo a lei a causa do enriquecimento, embora tenha fixado um critério de orientação, nomeadamente no n.º 2 do art. 473.º do CC, prescrevendo que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

A causa do enriquecimento pode resultar do fim imediato da prestação e do fim típico do negócio. Por isso, se a obrigação não existiu ou se o fim do negócio falhou, deixou de haver causa para a prestação e a obrigação resultante do negócio. Por outro lado, carece também de causa a deslocação patrimonial, sempre que a ordenação substancial dos bens aprovada pelo direito a atribua a outro, isto é, que seja substancialmente ilegítima ou injusta (ANUNES VARELA, ibidem, pág. 487, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 1979, pág. 335, e MENEZES CORDEIRO, ibidem, pág. 55).

A falta de causa justificativa pode decorrer da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, entretanto, se ter perdido.

Acresce ainda que o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária (art. 474.º do CC), de modo a poder ser só invocado quando a lei não faculta ao empobrecido qualquer outro meio de compensação ou restituição.


Revertendo à matéria de facto provada, a Recorrida procedeu ao levantamento de dinheiro depositado na conta bancária, da qual era titular com a falecida. O dinheiro foi levantado por acordo, em vida, entre a falecida e a Recorrida, nos termos do qual lhe ficaria a pertencer, nomeadamente quando a primeira “estivesse de partida”.

Configura-se, nesta situação, um caso de doação de coisa móvel, porquanto a falecida, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispôs gratuitamente do dinheiro da conta bancária, em benefício da Recorrida, o que corresponde à noção ampla de doação, perfilhada pelo art. 940.º do CC. Na verdade, a falecida declarara que o dinheiro da conta bancária em causa pertencia à Recorrida, podendo levantá-lo, a seu tempo, como veio a suceder, antes do falecimento da doadora, obviando-se à limitação prevista no art. 946.º, n.º 1, do CC.

Essa atribuição patrimonial, sem que lhe tivesse correspondido qualquer contraprestação, consubstancia a manifestação de uma liberalidade a favor da donatária, equivalente ao animus donandi.

Nestas circunstâncias, por efeito da doação, o levantamento do dinheiro tem uma causa justificativa, pelo que afasta, desde logo, por ausência de um dos requisitos, o alegado enriquecimento sem causa. Com efeito, a doação, negócio jurídico gratuito, legitima a aquisição do dinheiro depositado na conta bancária, independentemente da validade da doação.

Atendendo aos termos em que a ação foi desenhada, pode discutir-se a existência do meio de aquisição da vantagem patrimonial, mas está vedada a discussão sobre a sua validade.

Além disso, considerando ainda a natureza subsidiária da obrigação, também não podia proceder-se à restituição por enriquecimento, pela circunstância da lei facultar tal efeito através de ação de nulidade da doação (arts. 289.º e 474.º do CC).

Perante a falta de verificação do enriquecimento sem causa e a existência de meio legal alternativo para a obtenção da restituição, nunca a ação proposta podia proceder, como se insiste, reiterando-se, por consequência, o entendimento das instâncias.


Por outro lado, a causa de pedir invocada na ação não foi alterada, tendo sido omissa tal pretensão, que, unilateralmente, nem sequer tinha viabilidade, considerados os pressupostos legais de que estava dependente (art. 273.º do Código de Processo Civil/1961).

Neste contexto, a discussão, travada em parte na apelação como agora, na revista, perde qualquer relevância jurídica, porquanto o caso julgado material que venha a formar-se, no processo, apenas se estende à causa de pedir invocada na ação, ou seja, ao enriquecimento sem causa, que foi julgado improcedente.

Por isso, independentemente da posição que pudesse ser tomada, nomeadamente quanto à validade da doação do dinheiro depositado em conta bancária, tal não obstaria, porém, que a mesma questão pudesse vir a ser objeto de nova ação judicial, sem que pudesse opor-se a exceção do caso julgado material.

Nesta medida, não concorrendo para a discussão dos termos da causa, tendo em conta a causa de pedir invocada na ação, é inútil qualquer pronúncia, não obstante a questão tivesse esgotado o objeto da revista.


Nestes termos, nega-se a revista.


2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. A obrigação de restituir aquilo que se adquiriu sem causa corresponde a uma necessidade moral e social, com vista ao restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios e que, de outro modo, não era possível obter-se.

II. Há doação de coisa móvel, se alguém, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente do dinheiro de conta bancária, em benefício da donatária.

III. Manifestando-se a liberalidade, está preenchido o animus donandi.

IV. A doação, negócio jurídico gratuito, legitima a aquisição do dinheiro depositado na conta.

V. Independentemente da posição que pudesse ser tomada, nomeadamente quanto à validade da doação, tal não obstaria a que a mesma questão pudesse vir a ser objeto de nova ação judicial, sem que pudesse opor-se a exceção do caso julgado material.


2.5. A Recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista.

2) Condenar a Recorrente (Autora) no pagamento das custas.


Lisboa, 4 de maio de 2017


Olindo Geraldes (Relator)

Nunes Ribeiro

Maria dos Prazeres Beleza