Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30202/16.1YIPRT.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
NULIDADE DA DECISÃO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / DISPOSIÇÕES GERAIS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA.
PROCESSO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 397 e ss. e 431 e ss.
- José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anotado, Volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 141.
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), p. 490.

Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 414.º E 615.º, N.º 1, ALÍNEA C).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 21-10-2009, PROCESSO N.º 474/04.0TTVIS.C1.S1;
- DE 2-06-2016, PROCESSO 781/11.6TBMTJ.L1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. A alegação de uma contradição entre os factos provados e a decisão consubstancia a alegação de um erro de julgamento e não da oposição (incompatibilidade lógica) entre os fundamentos e a decisão que é pressuposto da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC.

II. Em fórmula simples, o pedido ou a pretensão é o efeito jurídico visado pela parte e a causa de pedir é o facto ou conjunto de factos jurídicos de que procede aquele pedido / aquela pretensão.

III. Não tendo a parte exercido o ónus da prova dos factos jurídicos que sustentam o seu pedido, não pode a acção resolver-se a seu favor (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC e artigo 414.º do CPC).

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. A sociedade AA - Informática e Serviços, S.A.[1], apresentou requerimento de injunção contra BB - Consulting SI - Sucursal em Portugal para obter desta o pagamento da quantia de € 194.759,79 acrescida de juros de mora à taxa legal dos juros comerciais sobre o capital de € 189.600,96.

Alegou, em síntese:

- no exercício da sua actividade comercial forneceu à requerida bens e serviços solicitados por esta, pelos valores constantes das facturas que discrimina;

- a requerida não pagou os valores das facturas nas datas do vencimento.


2. A requerida deduziu oposição, pugnando pela sua absolvição do pedido e deduziu reconvenção.

Invocou, em resumo:

- ao longo da relação comercial que manteve com a requerente sempre pagou as facturas;

- as facturas em causa não correspondem a material por si encomendado e a si entregue, pelo que nada tem de pagar;

- de uma auditoria que levou a cabo detectou que a requerente lhe facturou indevidamente três facturas, pois não respeitam a material por si encomendado e recebido,

- pelo que o valor que pagou, deve ser contabilizado para efeito de compensação de créditos, caso venha a apurar-se que alguma quantia deve à requerente;

- deve ser julgada procedente a reconvenção e condenada a requerente no pagamento da quantia de 76.925,55 € acrescida de juros de mora a contar da citação.


3. A requerente apresentou réplica, concluindo pela procedência do seu pedido e pela improcedência da reconvenção.


4. Porque os autos passaram a seguir a forma comum após a dedução a oposição pela requerida, foi realizada audiência prévia em que foi admitida a reconvenção, foi identificado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.


5. Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, em 10.11.2018, que julgou procedente a acção e improcedente a reconvenção nos termos que se reproduzem:

a) Da Acção: julgo a acção procedente, por provada e em consequência condeno a Requerida BB - Si- Sucursal em Portugal a pagar à AA – Informática e Serviços SA, a quantia de €189.600,96 (cento e oitenta e nova mil e seiscentos euros e noventa e seis cêntimos) cêntimos), acrescida de juros moratórios que contados, desde as datas de vencimento de cada uma das facturas até 23-03-2016, ascendem a €5158,83, o que totaliza €194.912,79 (cento e noventa e quatro mil novecentos e doze euros e setenta e nove cêntimos) acrescidos dos juros vencidos e vincendos calculados à taxa legal, desde 24-03-2016 até integral e efectivo pagamento.

b) Da Reconvenção: julgo improcedente, por não provada a presente reconvenção e, em consequência, absolvo a Reconvinda AA - Informática e Serviços Lda do pedido reconvencional contra si deduzido pela Reconvinte BB – Consulting SI”.


6. Inconformada com esta sentença, apelou a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando pela procedência do recurso e pela revogação da sentença.


7. Apreciando o recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o Acórdão de 28.03.2019, em que alterou a decisão sobre a matéria de facto e concluiu:

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, e em consequência:

a) revoga-se a sentença recorrida quanto ao pedido formulado pela autora, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se a ré do pedido;

b) confirma-se a sentença na parte em que julgou improcedente a reconvenção e absolveu a autora do pedido reconvencional”.


8. Inconformada vem a autora, AA - Informática e Serviços, Lda., interpor recurso de revista, arguindo a nulidade deste Acórdão e pretendendo a sua revogação.

Conclui as suas alegações de revista da forma seguinte:

1. Os autos foram distribuídos aos Venerandos Desembargadores em 13.03.2019 e já em 28.03.2019, ou seja em 15 dias, foi proferido o douto acórdão de que agora se recorre, isto é: foram os autos decididos de forma simplista e meramente formal:

2. Diz o acórdão recorrido que a causa de pedir da A. consistia no "fornecimento à R. a solicitação desta, dos bens e serviços identificados nas facturas ali discriminadas pelos valores nelas constantes e o não pagamento pela R."

3. Provando-se que os bens e serviços fornecidos não eram exactamente os que constavam das facturas cujo pagamento se reclama a A. não logrou provar que forneceu os bens constantes das descrições das facturas, absolvendo-se a R. do seu pedido de pagamento.

4. Adianta ainda o douto Tribunal "a quo" que incumbia a A. alegar os factos em conformidade com a realidade e fazer prova dos mesmos.

5. Pede-se a este Venerando Tribunal a apreciação do conceito jurídico de causa de pedir e a consequência retirada pelo douto Tribunal "a quo" na sua interpretação do que discorre dos autos.

6. Nos termos do art 5°, n° 1 e do art. 552, n° 1 d) do CPC a causa de pedir consiste nos factos jurídicos de que procede a pretensão formulada na acção - tratando-se de um conceito jurídico, a definição da causa de pedir cabe inequivocamente nos poderes deste Venerando Tribunal;

7. A causa de pedir emerge dos factos alegados pela A. e não da definição que dela é feita em sede de despacho saneador - até porque, em caso como dos autos, a causa de pedir resulta do devir processual próprio, isto é, da petição inicial e da réplica apresentada.

8. Como já decidiu este Venerando Tribunal no seu douto acórdão de 14.05.2009, processo n° 162/09.1YFLSB:

"(...) 4. O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo às partes a alegação desses factos, apenas nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que "ex officio", aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de Outros.

5. O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a súbstanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas.

6. Tal princípio pode implicar uma convolação da situação jurídica alegada pelas partes e a sua submissão a diferentes normas.(.-)"

9. O presente processo iniciou-se com uma injunção, em que a A. descreveu os factos que fundamentavam o seu pedido;

10. No ponto 3 da injunção alega a A. que "(...) a Requerente num período que se estende de 3 de Julho de 2015 a 2 de Fevereiro de 2016, forneceu bens e serviços à Requerida pelos valores constantes nas facturas que se descriminam".

11. O facto alegado pela A. é que forneceu bens e serviços pelos valores constantes das facturas, e não que forneceu os bens e serviços constantes das descrições das facturas.

12. A sua causa de pedir é fornecimento de bens e serviços pelo valor constante das facturas - sendo esta semântica é essencial no julgamento dos presentes autos, pois como foi dado como provado no julgamento da primeira instância o descritivo das facturas era o solicitado pela própria R. e não determinado pela A.

13. Mais alegou a A. que a R. recebeu todos os produtos e serviços por si solicitados e não os produtos e serviços a que corresponde a designação das facturas.

14. Sucede que, a alteração da matéria de facto efectuada pelo douto Tribunal "a quo" resulta unicamente do seu equívoco da interpretação da causa de pedir da A.

15. Isto é, por incorrectamente considerar que a causa de pedir da A. consistia no fornecimento de bens e serviços constantes das facturas, deu como não provado os factos dado como provados pela 1a instância que determinaram o procedimento do pedido da A.

16. Ora não sendo essa a causa de pedir da A. mas sendo essa sim que a A. reclamou o preço do pagamento das facturas pelos bens e serviços efectivamente e realmente entregues pela A. à R., o que resulta da matéria provada na Ia instância é que a A. logrou provar a sua causa pedir - devendo assim proceder o seu pedido.

17. Como decidiu o Venerando Tribunal da Relação do Porto no seu douto acórdão de 20.09.1990, Processo n° 0409252:

(...)V1-A nossa lei consagra a teoria da substanciação segundo a qual o objecto da acção é o pedido definido através de certa causa de pedir. VII - Invocada pelos AA uma causa de pedir, não pode o tribunal substituir-lhe outra; mas invocada certa causa com determinada qualificação jurídica, pode o tribunal qualificar diferentemente, do ponto de vista jurídico, a realidade alegada."

18. Na verdade, o que a Veneranda Relação de Lisboa fez foi alterar a causa de pedir da A.;

19. Resulta dos autos à saciedade que a descrição das facturas não correspondia exactamente aos bens e serviços efectivamente fornecidos - motivo pelo qual a causa de pedir da A. é reclamar o preço devidos pelos bens e serviços efectivamente fornecidos pelo preço das facturas.

20. A causa de pedir da A. só poderia ser alterada da pela própria nos termos e limitações do art. 265°, n° 1 do CPC - pelo que o douto Tribunal "a quo" no seu douto acórdão violou assim esta disposição legal ao alterar a causa de pedir da A.

21. E essa alteração foi o único motivo para a sua alteração da matéria de facto, pelo que a fixação da verdadeira causa de pedir represtina os factos dados como provados em primeira instância e consequentemente a procedência do pedido da A.

22. Como aliás é, diga-se, da mais elementar justiça material que deve nortear a decisão do julgador.

23. Ainda que, o que se admite apenas por mero raciocínio hipotético e sempre sem conceder, ser a causa de pedir a alterada pelo Tribunal "a quo" estaríamos perante um injusto desequilíbrio da relação contratual entre as partes;

Senão, Vejamos,

24. A A. forneceu outros bens e serviços que não os constantes da descrição das facturas.

25. A R. recebeu esses bens e serviços;

26. Não os devolveu;

27. Como não devolveu as referidas facturas;

28. Fez tais bens como seus e destinou-os à sua actividade.

29. Os bens e os serviços fornecidos têm o valor constante das facturas reclamadas.

30. A A. não tem direito a receber o preço suportando ela exclusivamente o seu prejuízo.

31. Ora, esta situação jurídica enquadra-se na perfeição no Instituto do Enriquecimento Sem Causa, previsto nos arts. 473° e ss. do Código Civil.

32. O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no seu acórdão de 211.2010, Processo n° 1867/08.0TBVT3.C1, definiu com toda a precisão a aplicação deste Instituto:

I - O enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia.

II - A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos quatro seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) que ele careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.

III - O enriquecimento tanto pode traduzir-se num aumento do activo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas.

IV - Enriquecimento (injusto) esse que igualmente tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material.

V - O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento.

VI - Dado, porém, que a lei não define tal conceito e dada a natureza diversa dá fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que : ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando è integrando a lei à luz dos factos apurados.

VII - Naquilo que tem sido entendido como uma ampliação ao 3o requisito acima enunciado, a obrigação de restituir pressupõe ainda que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito a restituição, por forma a hão dever haver de permeio/ entre o acto gerador do prejuízo dele é a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro qualquer acto jurídico - carácter imediato dá deslocação patrimonial.

VIII - Porém, tal exigência não deverá assumir um carácter absoluto, por forma a deixar-se ao julgador campo de manobra suficiente de modo á poder aferir sé à mesma aplicada a uma situação em concreto se mostra excessiva é evitar, nesse caso/ que ela conduza a uma solução que choque com o comum sentimento de justiça;

IX - As acções baseadas nas regras do instituto do enriquecimento sem causa têm natureza subsidiária, só podendo a elas recorrer-se quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção.

33. A douta decisão do Tribunal recorrido determina que a A. não tem direito a receber o preço das facturas por não ter fornecido os bens e serviços constantes nas facturas.

34. A R. fez seus os bens e serviços realmente fornecidos locupletando-se com os mesmos e incluindo estes na sua esfera jurídica de propriedade, à custa do empobrecimento da A.

35. Que não tem (segundo o Tribunal recorrido) outra forma de reclamar os bens e serviços fornecidos - ocorrendo assim nos termos do art. 473° do CC o enriquecimento sem causa da R. à custa do empobrecimento da A., o que determina que a R. seja obrigada a restituir à A. nos termos e para os efeitos do art. 479° n° 1 do CC os bens de que apropriou sem causa.

36. Não sendo tal restituição possível em espécie, em virtude de a R os ter destinado à sua actividade, deve a mesma ser feita pelo pagamento do preço dos bens constantes da factura, sendo certo que não tendo a R. devolvido as facturas deduziu ainda o IVA das facturas que não pagou.

37.     Ainda que se entendesse que o Instituto do enriquecimento sem causa não se aplicaria, o negócio em causa, como formulado pelo Tribunal recorrido, tal negócio seria ofensivo da moral e bons costumes.

38. A R. pede para constar nas facturas uma designação diferente dos bens e serviços fornecidos e invoca que não recebeu os produtos e serviços descriminados nas facturas, mas no entanto faz seus esses seus bens e serviços, e não os paga.

39. Ora tal negócio nestes termos, atenta a abissal desproporção das prestações entre A. e R. ofende claramente as mais elementares regras da moral e bons costumes, nos termos do art. 280° n° 2 do CC.

40. Num caso semelhante ao dos presentes autos, este Supremo Tribunal de Justiça, processo n° 637/1999.L1.S1 de 21.03.2013 decidiu-se:

(...)XI - O artigo 280°, n.° 2, do Código Civil, ao referir-se à ordem pública, encerra um conceito que se aproxima do fim contrário à lei, uma vez que representa o conjunto dos princípios gerais que gerem o ordenamento jurídico, que, embora não estejam expressamente legislados, contêm regras fundamentais que inspiram o direito positivo e que, consequentemente, deverão ser respeitadas.

XII - Os bons costumes, ao contrário da ordem pública, consistem em normas de conduta de carácter não jurídico que reflectem as regras dominantes da moral social de uma determinada época e de um certo meio, que impedem que se celebre um contrato com vista a prejudicar directa, intencional e deliberadamente terceiro, em proveito próprio.

XIII - Ofende os bons costumes o negócio em que o 2.° réu, em conluio com a l.a ré, cuja gerente era a sua mulher, aproveitou-se da procuração que lhe fora outorgada e faz deslocar da esfera jurídica da ré propriedades por um preço 20 vezes inferior ao respectivo valor venal.(...)

41. No caso dos presentes autos a ofensa á moral e bons costumes é ainda mais gravosa na medida em que é a A. a suportar todo o prejuízo - termos em que também por esta via o contrato, tal como configurado pelo Tribunal recorrido é nulo, nos termos do art. 280° CC

42. Tendo-se por consequência a devolução das prestações efectuadas, isto é, o pagamento do preço por parte da R.

43. No plano constitucional, a autonomia privada não se encontra consagrada expressamente em nenhuma das normas da Constituição/ mas poderá ser inferida a partir do disposto nos artigos 26°, n° 1 e 61° uma manifestação desse princípio, que se refere, respetivamente, ao desenvolvimento de personalidade e ao direito de livre iniciativa privada.

44.      Menezes Cordeiro observa que a autonomia privada deve ser inferida das disposições que consagram os princípios da igualdade e liberdade. Refere ainda que o princípio da autonomia privada se encontra implícito nos institutos da propriedade individual, liberdade de trabalho e liberdade da empresa - A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo 1,3a ed., Coimbra, 2005, pp. 391 e ss

45. É inquestionável a conexão histórica entre os institutos da propriedade privada e da iniciativa económica privada e a autonomia privada.

46. Nas duas vertentes, a autonomia privada beneficia, indiretamente, da tutela constitucional do exercício daqueles direitos e liberdades jusfundamentais.

47. Neste sentido, o equilíbrio das prestações nos negócios entre particulares e o princípio estruturante da boa fé nos negócios jurídicos são direitos materialmente constitucionais - art. 405 e 334° do CC;

48. A interpretação efectuada pelo Tribunal "a quo" viola claramente estes princípios constitucionais ao impor à R. o prejuízo material por uma mera designação formal da descrição das facturas.

49. O que determina que o douto acórdão da Relação de Lisboa enferma claramente do vício de inconstitucionalidade por incumprimento do art. 26°, n° 1 e 61° n° 1 da CRP e dos direitos materialmente constitucionais previstos nos arts. 405° e 334° do CC.

50. Na fundamentação do douto acórdão agora em crise, pgs. 19 a 21 é transcrita e resumida a fundamentação da matéria de facto do douto Tribunal de Ia instância;

51. Concluindo o douto Tribunal recorrido que concorda integralmente com a fundamentação da matéria de facto da Ia instância, e a forma e o modo como foi produzida a sua convicção, afirmando no douto acórdão em crise - pg. 21 - "(..,) E estamos de acordo. (...)"

52. E não obstante concordar com a fundamentação do Tribunal de Ia instância, altera radicalmente a prova produzida;

53. Decidindo contra a A., como já se explicou, por errada interpretação da causa de pedir.

54. O que determina que os fundamentos (novamente os mesmos fundamentos da Ia instância validados pelo Tribunal recorrido) estão directamente em oposição com a decisão proferida.

55.     Não pode o Tribunal recorrido concordar com a fundamentação da Ia instância que serviu para condenar a R., para usando a mesma fundamentação a absolver na totalidade do pedido.

Mas mais,

56. A R. em reconvenção veio reclamar o valor de facturas por si pagas mas que não correspondiam aos bens e serviços fornecidos;

57. E aqui o Tribunal recorrido, com a mesma fundamentação da Ia instância, vem dizer que a R. não tem direito a esse reembolso porque não fez prova dos bens e serviços realmente prestados.

58. Ora, também aqui existe uma oposição clara entre a fundamentação e a decisão - a mesma prova serve para absolver a R. e absolver a A.

59. A oposição entre os fundamentos do acórdão e a decisão proferida é causa de nulidade do acórdão nos termos do art. 615°, n° 1 c) do CPC, ex vi o art 666°, n° 1 do CPC.

60. Como já decidiu este Venerando Tribunal no seu douto acórdão de 7.05.2008:

" - A decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de factos (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio.(...)

61. Este é exactamente o caso dos presentes autos - a mesma fundamentação serve uma decisão e o seu contrário, estando o douto acórdão recorrido está ferido de nulidade nos termos do art. 615°, n° 1 c), primeira parte.

62. Nulidade essa que expressamente aqui se invoca em sede de recurso nos termos do art. 615°, n° 4 do CPC com as legais consequências”.


9. A recorrida, BB Consulting SI Sucursal em Portugal, apresentou, por seu turno, contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso de revista e pela confirmação do Acórdão recorrido.


10. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

1.ª) se o Acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC;

2.ª) se, na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal ofendeu alguma norma da lei processual ou de Direito probatório substantivo aplicável;

3.ª) se é devido pela ré à autora o pagamento do preço constante das facturas;

4.ª) se o Tribunal a quo fez uma interpretação inconstitucional dos artigos 405.º, n.º 1, e 334.º do CC.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Na procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não vem dado como provado no Acórdão recorrido qualquer facto.


O DIREITO

Antes de começar, cumpre dizer duas palavras sobre o que a recorrente alega logo na conclusão 1.ª, ou seja, que o facto de ter sido decidida em 15 dias significa que a apelação terá decidida “de forma simplista e meramente formal”. Estas duas palavras são as seguintes: primeiro, a circunstância de um tribunal se destacar por uma actuação célere deve ser, em princípio, enaltecido, uma vez que contribui para reduzir a pendência dos recursos; segundo, em caso algum deve concluir-se, automaticamente, que houve ligeireza na decisão, tendo de se equacionar, antes, a explicação mais lógica, que é a de as questões, de facto, serem simples.

Passe-se, agora, à análise das questões suscitadas na revista.


1) Da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC

A recorrente sustenta que o Acórdão recorrido padece do vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC (oposição entre os fundamentos e a decisão), o que determina a sua nulidade (cfr. conclusões 59.ª e 61.ª e 62.ª).

Apreciando a arguição, o Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu o seguinte:

Na apelação foi apreciada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, expondo-se os fundamentos que justificaram a decisão de alterar o que havia sido decidido pela Ia instância.

A autora imputa ao acórdão oposição entre os fundamentos e a decisão, mas o que resulta da sua alegação é que discorda do juízo formulado por este Tribunal da Relação sobre a prova produzida.

Portanto, inexiste o alegado vício, pelo que mantemos na íntegra o acórdão”.

Aprecie-se.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC que “[é] nula a sentença quando: (…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.

Como é visível, o fundamento de nulidade previsto na norma é a contradição entre os fundamentos (de facto ou de direito) e a decisão. Explica José Alberto dos Reis[2] que se trata de um vício lógico que ocorre quando a decisão colide com os fundamentos / a justificação em que se apoia. Parafraseando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.06.2016[3], é um vício que “radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso”.

Sucede que o que resulta das conclusões da recorrente é que a nulidade decorreria da contradição entre os factos provados e a decisão (cfr. conclusões 50.ª a 62.ª). Manifesta, através disto, a recorrente a sua incompreensão quanto à circunstância de o Tribunal recorrido ter chegado àquela decisão a partir daqueles factos. Pretenderá, então, aludir, não a uma incompatibilidade lógica entre os fundamentos e a decisão – que, evidentemente, não existe –, mas a um eventual erro de julgamento. Esta hipótese não se enquadra, no entanto, na norma do artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC.

Em conclusão, não correspondendo a situação descrita pela recorrente à hipótese prevista e regulada na norma do artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.º parte, do CPC, não é possível reconhecer-se a nulidade invocada.


2) Da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo Tribunal recorrido

A recorrente contesta a alteração da matéria de facto levada a cabo pelo Tribunal recorrido, na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto apresentada pela ré / ora recorrida.

Alega, em suma, que o Tribunal recorrido, ao alterar aquela decisão, alterou a causa de pedir, o que configura violação do disposto no artigo 265.º, n.º 1, do CPC. Assim sendo, devem ser repristinados os factos dados como provados em 1.ª instância e, resultando provada a causa de pedir, deverá a acção proceder (cfr., genericamente, conclusões 2 a 22).

Tão-pouco neste ponto não assiste razão à autora / ora recorrente.

Antes de mais diga-se que, no que toca à apreciação e à fixação da matéria de facto realizada pelas instâncias, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça é residual e destina-se exclusivamente a garantir a observância das regras de Direito material probatório ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, conforme resulta das disposições do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC[4].

Mais precisamente, e como se diz no primeiro daqueles dispositivos, “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, só podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, quer dizer: quando tenha sido dado como provado determinado facto sem que tenha sido produzido o meio de prova de que determinada disposição legal faz depender a sua existência, quando tenha sido dado como provado determinado facto por ter sido atribuído a determinado meio de prova uma força probatória que a lei não lhe reconhece ou quando tenha sido dado como não provado determinado facto por não ter sido atribuído a determinado meio de prova a força probatória que a lei lhe confere[5].

Delimitada, nestes termos, a análise da questão, observa-se, em primeiro lugar, que a recorrente parece, por vezes, confundir pedido e causa de pedir. Assim acontece, por exemplo, quando diz que “a causa de pedir da A. é reclamar o preço devidos pelos bens e serviços efectivamente fornecidos pelo preço das facturas” (cfr. conclusão 19.º) [6]. Decorre do artigo 581.º, n.º 3 e 4, do CPC que o pedido ou a pretensão é o efeito jurídico que o autor visa com a acção e que a causa de pedir é o facto ou o conjunto de factos jurídicos de que procede o pedido / a pretensão do autor. A causa de pedir reconduz-se, assim, grosso modo, aos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer ou “ao conjunto de factos que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito jurídico pretendido[7]. Imediatamente se vê que “reclamar o preço devidos pelos bens e serviços efectivamente fornecidos pelo preço das facturas” não é – não pode ser – a causa de pedir; é, sim, o efeito jurídico visado através da acção (o pedido ou a pretensão).

No que respeita à causa de pedir e à decisão sobre a matéria de facto – que é a questão fundamental –, verifica-se que o Tribunal recorrido não a deu como provada, ou seja, não considerou provado o fornecimento à ré dos bens e serviços constantes das facturas nem – diga-se – o fornecimento de quaisquer outros. Nesta operação, o Tribunal recorrido não ofendeu qualquer disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova – nem isso foi, em rigor, alegado.

Quanto ao mais, esclarece-se, antecipando a resposta à questão seguinte, que o Tribunal recorrido se limitou a retirar as consequências devidas da decisão sobre a matéria de facto. O artigo 5.º, n.º 1, do CPC determina que “[à]s partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”. Mais adiante, o artigo 552.º, n.º 1, al. d), do CPC acrescenta que “[n]a petição, com que propõe a ação, deve o autor: (…) [e]xpor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”. Como era à autora / ora recorrente que incumbia o ónus da prova e esta não havia carreado para os autos factos jurídicos que sustentassem a sua pretensão, não podia a acção ser resolvida a favor dela (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC e artigo 414.º do CPC).


3) Da obrigação da ré de pagamento do preço constante das facturas

Chega-se, assim, à questão de fundo nestes autos, que se prende com a existência ou inexistência de uma obrigação da ré de pagamento à autora do preço constante das facturas resultante das conclusões 23.ª a 42.ª das alegações da autora.

Diz a autora / recorrente que existe um “injusto desequilíbrio da relação contratual entre as partes” por ter fornecido à ré bens e serviços, que esta recebeu, não devolveu, fez seus e usou em seu proveito (cfr. conclusões 23.ª a 30.ª). Invoca enriquecimento sem causa (cfr. arts. 473.º e s. do CC) e, subsidiariamente, ofensa à moral e aos bons costumes (cfr. artigo 280.º, n.º 2, do CC).

Cabe aqui repetir o que já se disse antes.

Observando as regras do ónus da prova, incumbia à autora / recorrente o ónus da prova dos factos constitutivos do direito ao pagamento do preço das facturas (a causa de pedir); não tendo ela logrado fazê-lo – não tendo logrado provar uma obrigação de pagamento do preço derivada do contrato, uma obrigação de restituição derivada do enriquecimento sem causa ou uma obrigação de reembolso derivada de qualquer outra causa, nada mais restava ao Tribunal recorrido senão julgar a acção improcedente (cfr. artigo 342.º do CC e artigo 414.º do CPC) e nada mais resta a este Supremo Tribunal senão confirmar a sua decisão.


4) Da inconstitucionalidade por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 61.º da CRP

A recorrente alega, por fim, que Tribunal a quo fez uma interpretação inconstitucional dos artigos 405.º e 334.º do CC, violando os artigos 26.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, da CRP (cfr. conclusões 43 a 49).

Segundo a recorrente, naqueles artigos 405.º e 334.º do CC estariam consagrados o direito ao “equilíbrio das prestações nos negócios entre particulares e o princípio estruturante da boa fé nos negócios jurídicos” (cfr., em especial, conclusão 47) e, ao desatender a sua pretensão, o Tribunal recorrido teria violado aqueles direitos / princípios.

Não se vê nenhuma razão para este raciocínio e por isso não é possível subscrevê-lo.

Aquilo que se verifica, mais uma vez, é que, não tendo a autora / recorrente provado os factos constitutivos do direito que alegava, não foi possível reconhecer-se-lhe o direito que alegava. Esta conclusão / decisão em nada contraria os direitos constitucionais ao desenvolvimento da personalidade (cfr. artigo 26.º, n.º 1, da CRP) e à iniciativa económica provada (cfr. artigo 61.º, n.º 1, da CRP).



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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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LISBOA, 7 de Novembro de 2019


Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Com a denominação actual “Tele - Média - Informática e Serviços, Lda.”.
[2] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anotado, Volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 141.
[3] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.06.2016, Proc. 781/11.6TBMTJ.L1.S1 (disponível em http:// www.dgsi.pt).
[4] Sobre isto cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 397 e s. e pp. 431 e s.
[5] Cfr., neste sentido, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, Proc. n.º 474/04.0TTVIS.C1.S1 (disponível em www.dgsi.pt).
[6] Cfr. também conclusão 16.ª.
[7] Cfr. Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), p. 490.