Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
765/15.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: CHEQUE
CORREIO
FALSIFICAÇÃO
PAGAMENTO
RESPONSABILIDADE
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / PRESUNÇÃO DE CULPA E APRECIAÇÃO DESTA.
Doutrina:
-António Caeiro e Nogueira Serens, RDE, IX- 1 e 2, 11; RDE, 1978, p. 457; RDE IX, 1983, p. 57, 58 e 59;
-Fernando Correia Gomes, A Responsabilidade Civil dos Bancos pelo pagamento de cheques falsificados, p. 18 a 20;
-Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, 2009, p.147, 153, 459 e ss;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume II, 2.ª Edição, p. 701;
-Sofia de Sequeira Galvão, Contrato de Cheque, p. 54 e ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 799.º, N.º 1.
REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS (RGICSF), DL N.º 298/92, DE 31-12: - ARTIGOS, 73.º E 74.º.
REGULAMENTO DO SERVIÇO PÚBLICO DE CORREIOS, DECRETO-LEI N.º 176/88, DE 18-05.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 16-06-1981, IN BMJ, 308.º, P. 255;
-DE 08-05-1984, IN BMJ, 337.º, P.377;
-DE 14-06-1984, IN BMJ, 338.º, P.432;
-DE 23-07-1985, IN BMJ, 349.º, P. 533;
-DE 17-06-1986, IN BMJ, 358.º, P. 565;
-DE 19-10-1993, IN CJ, ANO I, TOMO III, P. 69;
-DE 10-11-1993, IN C.J., ANO I, TOMO II, P. 130;
-DE 21-05-1996, IN C.J., ANO IV, TOMO II, P. 82;
-DE 25-10-2007, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 28-02-2008 AUJ Nº 4/2008, IN DR, 1.ª SÉRIE, N.º 67, DE 04-04-2008;
-DE 31-03-2009, PROCESSO N.º 09A197, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 23-02-2010, PROCESSO N.º 3404/07.4TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 23-10-2010;
-DE 03-12-2009, 23/2/10 E 29/1/15, IN WWW.DGSI.PT).
-DE 29-01-2015, PROCESSO N.º 2450/10.5TVLSB.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 11-07-2017, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


-DE 02-03-2004, IN C.J., ANO XXIX, TOMO II, P. 65,
-DE 12-11-2015, PROCESSO N.º 2808/12.5TJLSB.L1-6, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

O envio pela autora, através de correio simples, de um cheque nominativo a favor da sociedade X no valor de € 31 222,38, que, após, é falsificado, dele passando a constar como beneficiário a sociedade Y, e é por esta depositado na conta titulada junto do réu Banco A (tomador), em consequência do que vem a ser pago, na compensação, pelo réu Banco B (sacado), gera um prejuízo naquele valor pelo qual são responsáveis, na proporção de 50% para cada, a autora e os bancos réus: a autora, pelo envio do cheque em correio e em carta simples, em violação do disposto no Regulamento do Serviço Público dos Correios, aprovado pelo DL n.º 176/88, de 18-05: os Bancos, pela violação do dever de verificação do cheque, previsto nos arts. 73.º e 74.º do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31-12 e Instrução do BP n.º 3/2009.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório.

Na Secção Cível da Instância Local da Comarca de Lisboa, AA, Ld.ª, instaurou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Banco BB, S.A., e Banco CC, S.A., alegando que celebrou com o 1º um contrato de abertura de conta e de depósito, tendo o mesmo acedido a que a autora mobilizasse os fundos existentes nessa conta por meio de emissão de cheques, vinculando-se ao respectivo pagamento.

Mais alega que, para pagamento de produtos fornecidos pela «DD, Ld.ª», em 17/4/09 emitiu, a favor daquela sociedade, o cheque nominativo nº4971492437, no montante de € 31.222,38, fazendo constar do mesmo a menção «não à ordem», para que só fosse pago à referida beneficiária, e enviando-o por via postal para a sede social desta.

Alega, também, que, no dia 23/4/09, o réu BB lançou a débito na conta da autora a referida quantia, porém, o aludido cheque nunca entrou na posse da «DD, Ld.ª», nem o montante nele inscrito lhe foi pago pelo sacado, tendo o nome daquela beneficiária sido substituído, por desconhecidos, pelo nome «EE, Ld.ª», a favor de quem foi depositado o cheque, numa conta que a mesma possuía no réu BIC, tendo sido pago, na compensação, pelo réu BB à referida EE.

Alega, ainda, que, aquando da sua apresentação e entrega para depósito na agência do réu CC e pagamento pelo réu BB, o cheque já se encontrava rasurado em toda a extensão do espaço destinado à identidade do beneficiário, o que era notório e passível de detecção.

Alega, por último, que os réus violaram os deveres de fiscalização dos elementos do cheque que a prática bancária exigia, tendo a autora sido ilicitamente desapossada da quantia de € 31.222,38, já que teve de pagar aquela quantia à «DD, Ld.ª», por transferência bancária efectuada em 13/8/09.

Conclui, assim, que devem os réus ser condenados a pagar à autora, a título de indemnização, a referida quantia, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até integral pagamento.

O réu CC contestou, alegando que qualquer eventual direito de indemnização prescreveu, e que, de qualquer modo, não recai sobre si qualquer tipo de obrigação de indemnizar a autora, pelo que deve ser absolvido do pedido.

O réu BB também contestou, alegando que, a considerar-se o cheque visivelmente viciado, o único responsável pelos prejuízos causados à autora é o réu BIC.

Mais alega que a conduta da autora, ao preencher o cheque, de elevado montante, e ao enviá-lo por simples via postal ao seu credor, deve ser considerada co-causal do prejuízo por si sofrido.

Conclui, deste modo, pela sua absolvição do pedido.

Após resposta da autora à invocação da prescrição por parte do réu CC, foi proferido despacho saneador, tendo-se, ainda, identificado o objecto do litígio e enunciado os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando improcedente a excepção de prescrição e parcialmente procedente a acção, tendo condenado solidariamente os réus a pagar à autora a quantia de € 23.416,79, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.

Inconformados, apelaram os réus e, subsidiariamente, a autora, tendo, então, sido proferido o Acórdão da Relação de fls.223 e segs., que decidiu nos seguintes termos:
«julgar parcialmente procedentes os recursos dos RR., Banco BB, S.A., FF, e Banco CC, S.A., e, alterando o ponto 2 do segmento decisório da sentença, condenar os mesmos RR. a pagar à A. a quantia de € 15.611,19, correspondente a 50% do valor do cheque pago, no mais mantendo o decidido;
- julgar improcedente o recurso subordinado da A.»

Inconformada, a autora interpôs recurso de revista daquele acórdão, tendo os réus recorrido subsidiariamente.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.

2.1. No acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:

1) A autora é uma sociedade comercial que tem como objeto social a atividade de “GG”.

2) No exercício da sua atividade comercial, a autora celebrou com o Banco BB um contrato de abertura de conta e de depósito, a que corresponde a conta de depósito à ordem n.º ..., domiciliada na agência de Lisboa “Expo – Urbanização ...”.

3) O Banco BB acedeu a que a autora mobilizasse os fundos existentes na referida conta de depósito à ordem nº ... por meio da emissão de cheques, vinculando-se ao respetivo pagamento.

4) No âmbito dessa convenção, o Banco BB forneceu à autora, entre outros, o cheque cruzado nº ....

5) Para pagamento de produtos fornecidos pela “DD, Lda”, no dia 17/04/2009 a autora emitiu, em Lisboa, a favor daquela sociedade, o cheque nominativo nº ..., no montante € 31.222,38 (trinta e um mil duzentos e vinte e dois euros e trinta e oito cêntimos).

6) À exceção da assinatura, que foi aposta pela legal representante da autora, todos os demais espaços do referido cheque foram preenchidos, por indicação da autora, pelo seu trabalhador HH

7) Por indicação da autora, o referido HH inscreveu no espaço destinado à identidade do beneficiário, pelo seu próprio punho, a denominação “DD, Lda” 

8) No referido cheque, a autora fez ainda constar a menção “não à ordem”.

9) Como habitualmente fazia, no dia 17/04/2009 a autora enviou, o aludido cheque, por correio, sem ser registado, para a morada da sede social da “DD, Lda”, juntamente com a carta que se encontra junta aos autos a fls. 22 e aqui se deixa por integralmente reproduzida.

10) No dia 22/04/2009, o cheque n.º ... foi depositado, numa conta titulada pela sociedade “EE, Lda” no Banco CC, anteriormente, Banco ....

11) O referido cheque foi pago, na compensação, pelo Banco BB, à referida “EE, Lda”, através de lançamento a crédito do respetivo montante naquela conta bancária titulada no Banco BPN, atualmente Banco BIC.

12) A respetiva quantia foi levantada por Emílio Tavares, gerente da “EE, Lda”.

13) No dia 23/04/2009, o Banco BB lançou a débito na conta da autora n.º ... a quantia de € 31.222,38 (trinta e um mil duzentos e vinte e dois euros e trinta e oito cêntimos) inscrita no cheque.

14) O referido cheque nunca entrou na posse da “DD, Lda”, nem o montante nele inscrito lhe foi pago pelo sacado, do que a autora teve conhecimento por ter sido, dias depois do seu envio, instada pela beneficiária a pagar o montante que permanecia em dívida.

15) E, posteriormente a isso, pagou à “DD, Lda”, a referida quantia em dívida, o que fez por transferência bancária efetuada em 13/08/2009.

16) A autora reclamou a situação junto do Banco BB e, na sequência disso, o Banco BB enviou-lhe a imagem do cheque com base no qual justificou o lançamento a débito na conta da autora, do montante de € 31.222,38 (trinta e um mil duzentos e vinte e dois euros e trinta e oito cêntimos).

17) Através da imagem do cheque que lhe foi enviada pelo Banco BB, a autora constatou que o nome do beneficiário à ordem do qual emitira o cheque fora substituído pelo nome “EE, Lda”, sociedade por si totalmente desconhecida.

18) A autora nunca teve qualquer relação com a referida sociedade, não tendo emitido o cheque à sua ordem.

19) Após sair da posse da autora e antes de entrar na posse dos réus, o cheque emitido pela autora foi adulterado por desconhecidos, que apagaram o nome do beneficiário inscrito pela autora e inscreveram no seu lugar o nome “EE, Lda”.

20) No dia 01/07/2009, a autora apresentou queixa-crime contra incertos, o que deu origem ao inquérito nº 3426/09.0TDLSB-020.

21) No dia 13/11/2014, foi proferido despacho de arquivamento por falta de indícios suficientes quanto à autoria dos factos.

22) Só após o despacho de arquivamento teve a autora acesso ao original do cheque nº ..., que lhe foi entregue no dia 27/11/2014.

23) A funcionária do Banco ..., atualmente, Banco CC, SA, que recebeu o cheque supra identificado procedeu ao seu exame à vista desarmada e não detetou qualquer circunstância que impedisse o depósito do mesmo.

24) Por se tratar de cheque com um valor superior ao limite máximo de truncagem acordado pelo sistema bancário e divulgado pelo Banco de Portugal aos participantes no subsistema de compensação de cheques – que atualmente é de € 10.000 – o Banco BPN, atualmente, Banco BIC remeteu ao Banco BB imagem digitalizada da frente e verso do referido cheque. 

25) O nome “EE, Lda” apresenta-se escrito de forma uniforme e legível.

2.2. REVISTA DA AUTORA (RECURSO INDEPENDENTE)

2.2.1. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) O envio de cheque via CTT por carta simples não constitui violação de qualquer regra de segurança relativa ao uso do cheque.

B) Não existe qualquer norma que proíba ou desaconselhe o envio do cheque por carta simples, sendo o meio pelo qual os próprios bancos enviam aos seus clientes os livros de cheques, cartões bancários e respetivos códigos secretos.

C) Não ficou provado que o Banco BB tenha proibido ou desaconselhado a autora no envio de cheques por carta simples, pelo que a mesma não violou qualquer proibição ou recomendação quanto ao uso de cheques.

D) Ao utilizar um cheque cruzado, no qual preencheu todos os campos e fez constar a menção "não à ordem", a autora cumpriu todas as recomendações bancárias sobre segurança na emissão e utilização dos cheques.

E) O Regulamento do Serviço Público dos Correios, ao determinar que os valores devem circular como valores declarados e não em cartas simples, pretende apenas limitar a responsabilidade dos próprios correios por prejuízos resultantes do extravio das cartas, e não proteger os interesses de terceiros numa relação contratual que é, ademais, alheia ao serviço postal, não sendo fundamento para atribuir à autora a violação culposa dos deveres de diligência no uso do cheque.

F) Não tendo ficado provado que o cheque se "extraviou" antes de chegar ao seu destino, designadamente se foi subtraído no circuito dos correios, não é possível concluir que o dano só se verificou porque o cheque foi remetido pelos CTT em correio simples.

G) É, pois, impossível afirmar que o envio do cheque por carta simples foi também causa do dano e que a autora incumpriu, culposamente, deveres de zelo e de diligência na sua utilização.

H) Pelo que, inexiste qualquer fundamento para repartição de culpas nos termos do disposto no artigo 570.º do Código Civil, não constituindo o envio do cheque por carta simples conduta de risco.

I) A violação, pelos bancos recorridos, das obrigações de elevada competência técnica e de fiscalização que lhes é exigida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei N.º 298/92 de 31/12, na redação vigente, inscritas nos seus artigos 73.º a 76.º sob o capítulo denominado "Regras de Conduta", é causa exclusiva do dano sofrido pela autora.

J) A responsabilidade dos bancos réus sempre teria de considerar-se superior à da autora na produção do dano atentas as obrigações constantes do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei N.º 298/92 de 31/12 em matéria de zelo, segurança e competência técnica que foram, culposamente, incumpridas.

K) A atuação culposa dos bancos réus justifica a atribuição de 100% da responsabilidade pelo dano causado à autora.

L) Caso assim se não entenda, sempre seria de confirmar a decisão da primeira instância, mantendo a responsabilidade solidária dos dois bancos réus na proporção de 75%.

M) Ao atribuir responsabilidade à autora na proporção de 50%, o Acórdão recorrido viola o disposto no artigo 570.º do Código Civil.

2.2.2. O recorrido Banco CC contra-alegou, concluindo que não há fundamento para repartição de culpas, mas sim para exclusão da culpa do Banco CC, de acordo com a última parte do nº1, do art.570º, do C.Civil.

2.2.3. O Recorrido Banco BB contra-alegou, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso de revista.

2.3. RECURSO SUBORDINADO DO BANCO BIC

2.3.1. O recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. O cheque deveria ter sido enviado através de correio registado por valor declarado;

II. Tanto o Banco de Portugal, o DL 176/88 de 18 de maio, e os acórdãos supra referidos, vão todos no sentido violação das regras básicas de segurança e preservação do título, por parte da aqui recorrente;

III. Não basta usar um cheque cruzado com a menção "não à ordem" e corretamente preenchido para que estejam cumpridas "todas as recomendações bancárias sobre segurança na emissão e utilização dos cheques", porque como já vimos o busílis da questão está na falta de prudência no envio do cheque e não no seu preenchimento;

IV. É notório o risco de extravio, sendo comummente sabido que o mesmo aumenta exponencialmente quando a expedição, é feita através de correio simples;

V."A recorrida limitou-se através de postal simples, a colocar no seu interior um cheque de valor elevado, sendo certo que essa sua postura revela um comportamento temerário, nada consentâneo com os cuidados que um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso assumiria."

VI. A falsificação a existir, não era notória nem patente aos olhos do Banco CC, S.A.;

VII. Pelo que, quanto ao art. 570.º CC, sob epígrafe "culpa do lesado", não há fundamento para repartição de culpas, mas sim para exclusão da culpa do Banco CC, S.A.;

VIII. A atuação culposa da recorrente justifica assim a sua inteira responsabilidade, sem que por essa razão, seja ao Banco CC, S.A., imputada qualquer proporção nas culpas, nos termos do artigo 570.º do Código Civil;

IX. Mais não poderia ter feito a funcionária do balcão do Banco CC, uma vez que não se consideram as rasuras passíveis de serem detectadas a olho nu.

X. A Recorrente potenciou o seu risco, pela forma como manuseou, utilizou e fez circular o título de cheque em causa, pelo que o risco inerente ao mesmo não pode não ser repartido entre os Bancos sacado/tomador e o próprio cliente sacador.

2.4. RECURSO SUBORDINADO DO BANCO BB

2.4.1. O recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

Nos termos do artigo 633º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 679º do mesmo Código, vem o Banco BB, S.A., interpor recurso subordinado do Acórdão proferido em 14.02.17, na parte em que condenou os Bancos tomador e sacado (o aqui Recorrente), no pagamento de 50 % do valor do cheque, por entender que o "Banco CC, tomador do cheque, ao limitar-se a proceder a uma simples análise do mesmo à vista desarmada que não lhe permitiu surpreender a falsificação do mesmo, agiu com culpa, omitindo os deveres de diligência, de criterioso controlo da regularidade do cheque, a que estava obrigado.

Há que salientar que, no douto Acórdão, a responsabilidade do Banco BB é, também, apreciada da seguinte forma:

- Pela análise da imagem digitalizada do cheque, frente e verso, que foi remetida ao Banco BB pelo Banco ..., não era possível detectar qualquer rasura, que também já não era evidente no próprio original do cheque, como realça o Colectivo da Relação.

Entendeu o Colectivo da Relação que o Banco BB responde perante o Cliente, tal como se o cheque lhe tivesse sido apresentado a pagamento.

No caso dos autos, o Acórdão em recurso assinala e destaca as declarações produzidas pela testemunha II, o qual acompanhou o caso e uma vez confrontado cm audiência com o original do cheque, afirmou, com convicção e firmeza, que este não aparenta viciação e que o mesmo "passaria" em qualquer Banco porque não evidencia sinais de viciação a olho nu. Acrescentou ainda que detendo alguns Bancos equipamento próprio (luz ultravioleta) para detectar raspagens nos cheques, na maior parte dessas instituições o campo contendo o nome do beneficiário do cheque não tem essa fluorescência.

O que significa que se o campo contendo o nome do beneficiário do cheque não possui a fluorescência, mesmo que tivessem sido usados no caso concreto dos autos, as máquinas ele luz ultravioleta para detectar raspagens nos cheques, o resultado final obtido viria a ser o mesmo que se verificou, realçando que ficou provado que a viciação do cheque não era visível a "olho nu".

De salientar, também, que dos factos provados foram retirados os pontos nºs 26 e 27, por não estarmos perante uma viciação grosseira, e facilmente detectável, mantendo-se os factos assentes sob os nºs 23 e 25, com interesse para a decisão da causa.

O relatório pericial que consta dos autos refere que o documento apresenta vestígios nítidos de viciação, por rasura mecânica.

Porém, não é possível ignorar que nessa perícia foram utilizados determinados meios técnicos específicos para se detectar a existência de adulteração do cheque, os quais se encontram devidamente identificados no relatório - lupa estereoscópica e comparador vídeo espectral.

Meios técnicos altamente sofisticados, e que não podem ser utilizados no dia a dia de um Balcão de Banco, que recebe dezenas ou centenas de cheques para depósito e para pagamento, cada dia.  

Para além disso, o funcionário bancário que recebe os cheques diariamente, não está à procura da fraude, analisa os cheques de uma forma simples, embora cuidada, verificando a sua regularidade.

Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa, alterando a sentença proferida em 1 ª Instância, que o cheque não apresentava sinais evidentes de viciação.

E tal deliberação foi tornada pela análise directa e cuidada do cheque pelo Colectivo, tal corno mencionado no Acórdão.

E "mesmo avaliando ao toque, frente e verso, a textura do papel e as suas irregularidades, o Colectivo da Relação não dctectou diferença significativa no preenchimento do específico campo "à ordem de" (EE, Lda.), nem manifestas marcas de rasura ou manchas esbranquiçadas, surpreendendo até que não se mostra alterada, à vista, a cor de fundo do cheque (de cor cinza com manchas claras regulares) no dito campo", refere o Acórdão.

Acresce que, na maior parte das Instituições de crédito, o campo contendo o nome do beneficiário do cheque nao tem fluorescência, pelo que o equipamento próprio para detectar raspagens nos cheques - luz ultravioleta - não tem aplicação, neste tipo de adulteração.

E afigura-se que nada mais poderiam os Bancos Réus ter feito, neste caso concreto, tendo em conta os factos dados como provados e as conclusões da consulta directa e cuidada ao cheque, por parte do Colcctivo da Relação.

Pelo exposto se conclui que o Banco BB, enquanto Banco sacado não violou os deveres contidos no artigo 73º do RGICSF.

Os Acordãos do STJ de 31.03.2009 e de 29.01.2015, citados no Acordão recorrido, versam sobre situações em que está em causa a falsificação da assinatura do sacador no cheque, situação bastante diversa da dos autos.

Assim, em sede de recurso subordinado, vem o Banco BB invocar a sua total ausência de culpa, no pagamento do cheque da Autora, não tendo incumprido os seus deveres de diligência para com a sacadora do cheque.

Nos termos do artigo 483° do Código Civil, não estão verificados os pressupostos cumulativos aí especificados, geradores da obrigação de indemnizar.

Nos termos do artigo 570º nº 1 do mesmo Código, foi a conduta culposa da Autora, ao enviar um cheque de € 31.222,38 para pagamento a um seu fornecedor, em correio simples, que contribuiu para o extravio do cheque, e a sua adulteração por terceiros.

E, cabendo ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes, e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída, entende o aqui Recorrido que a indemnização deve ser excluída, absolvendo-se o Banco do pagamento de qualquer quantia à Autora.

O facto de já ter havido uma situação anterior de viciação de cheques, o facto de a Autora, habitualmente enviar cheques pelo Correio, cm correio simp1cs, e a violação por ela sistematicamente perpetrada do Regulamento do Serviço Público de Correios, DL nº l76/88 de 18 de Maio, que proibia a aceitação, expedição ou distribuição de cheques a não ser que fossem corno valor declarado, são fundamentos mais do que suficientes para imputar a responsabilidade à Autora e excluir a culpa do Banco.

Pelo contrário a viciação do cheque não era visível a olho nu, nem na imagem digitalizada enviada ao Banco sacado pelo tomador, e os meios técnicos mais sofisticados com luzes ultravioletas não permitiam detectar a raspagem no cheque, na medida em que o campo para inscrição do nome do beneficiário não tinha fluorescência.

O Acórdão recorrido violou as disposições constantes dos artigos 483º, 570° e 796º, nº 1 do Código Civil.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso subordinado, revogando­-se o Acórdão Recorrido e o Banco BPT ser absolvido do pedido.

2.5. Uma vez que o objecto de todos os recursos gira em volta da questão de saber em que medida houve conculpabilidade do prejudicado, no caso, da autora, ou, apenas, culpa exclusiva desta, e assim, falta de culpa dos bancos réus, trataremos de analisar essa questão em geral e, depois, retirar as respectivas consequências em sede de cada um dos recursos.

Dúvidas não restam que foi dado como provado que, para pagamento de produtos fornecidos pela «DD, Ld.ª», a autora emitiu, em 17/4/09, a favor da mesma sociedade, o cheque cruzado, nominativo, nº4971492437, no montante de € 31.222,38 (pontos 4 e 5 dos factos assentes).

Mais se provou que se tratava de cheque «não à ordem» e que foi inscrito no espaço destinado à identificação do destinatário o nome «DD, Ld.ª», tendo o cheque sido enviado pela autora pelo correio, sem ser registado, para a morada da sede social daquela sociedade (pontos 7 a 9 dos factos assentes).

Provou-se, também, que, após sair da posse da autora e antes de entrar na posse dos réus, o referido cheque foi adulterado por desconhecidos, que apagaram o nome da beneficiária inscrito pela autora e inscreveram no seu lugar o nome «EE, Ld.ª», totalmente desconhecido da autora (pontos 17 e 19 dos factos assentes).

Provou-se, ainda, que, no dia 22/4/09, tal cheque foi depositado numa conta titulada pela referida sociedade «EE – ..., Ld.ª», no Banco CC (antes Banco ...) e foi pago, na compensação, pelo Banco BB, àquela sociedade, através de lançamento a crédito do respectivo montante naquela conta bancária e de lançamento a débito do mesmo montante na conta da autora (pontos 10, 11 e 13 dos factos assentes).

Sendo que, a autora veio a pagar, posteriormente, à sua fornecedora «DD, Ld.ª», a quantia em dívida (€ 31.222,38), que o Banco BB nunca repôs (pontos 14 e 15 dos factos assentes).

Provou-se, por último, que a funcionária do Banco CC que recebeu o cheque em questão procedeu ao seu exame à vista desarmada e não detectou qualquer circunstância que impedisse o depósito do mesmo, mas que, por se tratar de cheque com um valor superior ao limite máximo de truncagem acordado pelo sistema bancário e divulgado pelo BP aos participantes no subsistema de compensação de cheques – que actualmente é de € 10.000 – o Banco CC remeteu ao Banco BB imagem digitalizada da frente e verso do dito cheque, onde o nome «EE, Ld.ª» se apresentava escrito de forma uniforme e legível (pontos 23 a 25 dos factos assentes).

Face a esta matéria de facto, o acórdão recorrido desenvolveu a seguinte argumentação jurídica:
«É incontornável que houve um pagamento indevido, posto que o cheque, que não era transmissível por endosso por conter a menção “não à ordem” (cfr. art. 14 da Lei Uniforme sobre Cheques - LUCH), fora adulterado no que respeita ao seu beneficiário. Assim, o pagamento foi feito a favor de pessoa que não era o seu legítimo possuidor.
Sucede que resulta do que se deixa dito que o BB não teve contacto com o original do cheque mas apenas com uma cópia digitalizada do mesmo, e que apenas o Banco ... (atual R. CC), designadamente através de uma sua funcionária que o recebeu em depósito, teve ocasião de o conferir (ponto 23).
Cremos que, na circunstância, não seria possível ao Banco sacado detetar qualquer rasura que, por si só, como acima concluímos, já não era evidente no próprio original do cheque, tanto mais que respeitando a adulteração ao nome do destinatário do cheque, o mesmo se apresentava escrito de forma uniforme e legível, segundo se provou (ponto 25 supra).
No entanto, será que resulta assim afastada a presunção de culpa que incide sobre o BB ou mesmo o risco que por sua conta corre pela perda ou subtração das quantias depositadas?
O apelante/R. BB remete para o R. CC a exclusiva responsabilidade na verificação da regularidade do cheque, convocando em seu socorro o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), Instrução nº 3/2009 do Banco de Portugal, de 16.2.2009.
Tal Regulamento respeita à regulação, fiscalização e promoção do bom funcionamento dos sistemas de pagamentos, sendo destinatários da instrução, nomeadamente, os participantes no Sistema de Compensação Interbancária – SICOI.
O recorrente invoca o ponto 6.3 do Anexo III (“Procedimentos relativos à compensação de cheques”), com a epígrafe “Procedimentos e responsabilidades do participante apresentante/tomador”, segundo o qual o “participante tomador é responsável”, além do mais, pela “verificação, para todos os cheques e documentos afins que lhe sejam apresentados” no que se refere à “regularidade do seu preenchimento, com exceção da data de validade do impresso cheque”.
Note-se que, de acordo com o ponto 2.1 do dito Anexo III, o Banco tomador é obrigado a enviar ao sacado as imagens dos cheques e dos documentos afins, sempre que, designadamente, o seu valor for superior ao do montante de truncagem acordado pelo sistema bancário e divulgado pelo Banco de Portugal aos participantes no subsistema de compensação de cheques.
Cumpre, no entanto, recordar também o ponto 26 do mesmo Regulamento, segundo o qual “Os direitos e deveres recíprocos dos participantes, decorrentes da sua participação nos subsistemas integrantes do SICOI, não são oponíveis nem afastam a responsabilidade individual de cada participante relativamente aos seus clientes.”
Em síntese, o regime regulamentar do SICOI que tem como destinatários, no que aqui interessa, os Bancos participantes no Sistema de Compensação Interbancária, não afasta o regime de responsabilidade decorrente da violação de normas por parte destes perante terceiros ou clientes.
Concordamos, nessa parte, com o que a tal propósito se escreveu na sentença recorrida, suportado no entendimento seguido, nomeadamente, no AUJ nº 4/2008, de 28.2.2008 (DR, 1ª Série, nº 67, de 4.4.2008), e no Ac. do STJ de 23.2.2010 (Proc. 3404/07.4TVLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt).
Tal vale por dizer que, no caso, embora não seja possível assacar ao BB uma culpa efetiva no controlo da regularidade do cheque e na deteção da falsificação – uma vez que apenas foi confrontado com uma cópia digitalizada do cheque que lhe não permitiria detetar qualquer rasura – sobre este, e perante o cliente, continua a recair o dever de fiscalização que, de acordo com o Regulamento do SICOI, delegou no Banco CC a quem o cheque foi apresentado a pagamento.
Por conseguinte, ao mesmo cumprirá responder, perante o cliente, tal como se o cheque lhe tivesse sido apresentado a pagamento (sem prejuízo de poder porventura demandar até, mais tarde, o Banco tomador, em caso de falta de diligência deste na conferência do cheque).
Passemos então agora à apreciação da responsabilidade civil extracontratual do R. CC que a A. justificou, na forma acima já transcrita, dizendo que “os funcionários do R. CC receberam e aceitaram para depósito e apresentação à compensação de um cheque notoriamente viciado, agindo contra a legis artis bancárias e o dever de diligência, zelo e competência técnica que, atentas as suas funções, integradas num sistema bancário complexo, lhes era exigível.”

Na sentença, depois de se atribuir, como vimos, ao Banco sacado, o R. BB, a responsabilidade pelo pagamento indevido do cheque por incumprimento do dever de fiscalização, entendeu-se que o Banco tomador do cheque, o então ... e atual R. CC, agiu com culpa violando os deveres a que se encontrava adstrito no âmbito da sua atividade bancária, afirmando-se: “(…) O banco tomador teve contacto imediato com o cheque original, podendo e devendo, tal como lhe era imposto pelo Banco de Portugal e pelas regras básicas de segurança, proceder às diligências necessárias para apuramento da sua genuinidade, comportamento que omitiu, pois, caso contrário, teria detetado as rasuras que são observáveis e percetíveis à vista desarmada e ao simples toque. (…)”. Mais adiante, concluiu-se: “(…) Assim, ainda que se tratem de responsabilidades de natureza diferente, ambos os réus encontram-se obrigados a indemnizar a autora dos danos que sofreu com o pagamento do cheque falsificado. Obrigação que se assume solidária, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 597.º do Código Civil. (…)”.

Vejamos.

Estabelece o art. 483 do C.C. que: “1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”

Como se sustentou no Ac. do STJ de 23.10.2010 acima citado: “(…) o Banco que se encarrega da cobrança de um cheque é garante da sua regularidade e, portanto, deve usar da diligência exigível ao profissional médio para averiguar se a legitimação do portador corresponde à situação jurídica do proprietário do título, devendo, em caso de dúvida, recusar o mandato para cobrança ou a aquisição do cheque.

Existindo irregularidades no título que, de acordo com o comportamento que lhe é exigível, deviam levar o Banco a certificar-se da regularidade da posse do portador e se, apesar disso, ele adquire o cheque responde, nos termos gerais, pelo prejuízo causado ao proprietário (A. CAEIRO e N. SERENS, Est. Cit., RDE IX- 1 e 2, 116).

A aquisição do título é um acto não vinculado do Banco, donde que se compreenda que, quando o aceita, não mereça protecção sempre que soubesse ou lhe fosse cognoscível a falta de coincidência entre a legitimação e a verdadeira titularidade, usando da normal diligência. (…)”.
Sabemos que o funcionamento das instituições financeiras assenta na definição de regras de conduta e deveres gerais das instituições de crédito com vista à proteção dos interesses dos clientes de serviços financeiros. Tais regras têm evoluído ao longo do tempo, cumprindo hoje às instituições de crédito assegurar, em todas as atividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência (cfr. art. 73 do DL nº 298/92, de 31.12, que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, na redação conferida pelo DL nº 1/2008, de 3.1). Compete, além disso, aos administradores e empregados dessas instituições proceder, nas relações com os clientes e nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade, discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados (art. 74 do mesmo Diploma).
Daqui resulta que aos Bancos deve ser exigido um rigoroso controlo nas operações que executa, designadamente na conferência dos cheques que lhe são apresentados a pagamento.

Cumprirá, por isso, averiguar se o Banco CC, então ..., tomador do cheque dos autos, devendo verificar a regularidade do mesmo – de resto, em conformidade com as regras do SICOI a que acima aludimos – deveria suspeitar da respetiva adulteração.

Concluímos, na sequência de quanto deixámos dito, que o título não o sugere à partida, contra o que se entendeu na sentença recorrida.

No entanto, temos também de reconhecer que era o Banco tomador quem, de acordo com os parâmetros de exigência pelos quais deve reger-se, deveria estar melhor posicionado para detetar qualquer desconformidade do cheque.

Sucede que apenas se provou que a funcionária do então Banco ... que recebeu o cheque procedeu ao seu exame à vista desarmada e não detetou qualquer circunstância que impedisse o respetivo depósito, sendo o título depois remetido à compensação e com cópia digitalizada, frente e verso, ao Banco sacado, como se impunha no caso face ao valor do mesmo (cfr. pontos 10, 11, 23 e 24 supra).

Ou seja, cumprindo ao Banco tomador o efetivo controle da regularidade do cheque, de acordo com os elevados níveis de competência técnica que lhe estão cometidos, não se afigura que o tenha feito na forma devida, cingindo-se a conferência, segundo se apurou, a um mero exame à vista desarmada.

Trata-se, temos de reconhecer, de um controlo exigível ao homem médio, mas já não compatível com o profissionalismo que deve reclamar-se de uma instituição de crédito obrigada a assegurar, como vimos, na sua atividade em geral e de acordo com o art. 73 do RGICSF, elevados níveis de competência técnica, garantindo os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência.

Isto é, impunha-se conduta diversa ao profissional no âmbito do comércio bancário para averiguar da legitimação do portador do cheque.

Como se afirmou no Ac. do STJ de 31.3.2009([1]), a propósito da falsificação da assinatura no cheque, mas que aqui não pode deixar de convocar-se: “(…) É dos usos bancários que o depositante tenha no Banco uma ficha de assinatura por onde se controla a genuinidade da assinatura do sacador.

É da experiência comum que a proliferação do uso do cheque, despoleta não só a sua emissão sem provisão, como também a falsificação de assinaturas.

Para esta realidade, mormente, face aos meios usados na falsificação, não podem os Bancos contrapor com meios e técnicas usadas há dezenas de anos, sob pena de, à sofisticação dos falsários, não reagirem com meios técnicos evoluídos, facilmente ao seu alcance e que permitiriam detectar fraudes.

Os Bancos devem ter funcionários especializados na conferência de assinaturas, sendo objectável que a prova rainha da verificação da regularidade das assinaturas seja feita por mero confronto visual.

Nos tempos de agora, em que os interesses dos consumidores são crescentemente protegidos, usar métodos cuja precariedade é notória, e não recorrer a técnicas sofisticadas, não é actuar diligentemente.

O comportamento exigido pelo padronizado critério do “bonus pater familias” não pressupõe comportamentos ou actuações imutáveis, mas antes faz apelo às circunstâncias de cada tempo.

Não é compaginável com o grau de diligência exigível, actualmente, que um Banco prudente, zeloso e cauto, não disponha de técnicas e funcionários especializados na detecção de falsificações.

Mais que controlar a aparência das assinaturas, o Banco tem um dever de fiscalizar a autenticidade delas, sendo insuficiente a mera inspecção por semelhança, vulgo, “a olho nu”. (…)”.

Também no Ac. do STJ de 29.1.2015([2]) se assinalou: “(…) Tem, pois, o banco a que o cheque é apresentado a pagamento um dever geral de protecção da sua fidedignidade e da genuinidade dos elementos que dele constam que se não esgota no mero plano da estrita verificação dos pressupostos da legitimação aparente do portador do título - implicando antes a realização de diligências que, sendo viáveis e adequadas e proporcionais às exigências do tráfico, permitam confirmar a legitimidade substantiva da posição de quem se apresenta na veste de portador do título, evitando e obstando, na medida do possível, ao êxito de procedimentos fraudulentos que passem pela respectiva falsificação.

Como escreve Paulo Olavo Cunha (Cheque e Convenção de Cheque, 2009, pag. 675), a diligência do banco não tem de ser apenas a de um bom paterfamilias – mas a de um profissional habilitado e dotado de meios técnicos e humanos especialmente adequados ao exercício da actividade bancária, proporcionados por recursos financeiros consideráveis.

Ao banco não pode ser, hoje, em pleno século XXI, exigível que actue apenas como um bom pai de família, isto é, como uma pessoa de diligência média, comum à de outras que se encontrem em circunstâncias análogas de tempo e lugar, a menos que se considere que essas são outros bancos.

O banco, confrontado com uma situação de falsificação, deverá demonstrar que utilizou todos os meios adequados à sua determinação, mas que, não obstante as condições de que dispunha, não lhe foi possível, nem lhe seria exigível, detectar a desconformidade existente.

Por isso, abdicando intencionalmente, ou por efeito do funcionamento do próprio sistema bancário (truncagem), de proceder à conferência da assinatura do sacador, o banco não procede diligentemente, e deverá assumir os resultados dessa omissão, ainda que, em concreto, não lhe fosse exigível que detectasse essa vicissitude, por a mesma corresponder a uma falsificação perfeita. (…)”.

Assim, não pode deixar de concluir-se que o Banco CC, tomador do cheque, ao limitar-se a proceder a uma simples análise do mesmo à vista desarmada que não lhe permitiu surpreender a falsificação do mesmo, agiu com culpa, omitindo os deveres de diligência, de criterioso controlo da regularidade do cheque, a que estava obrigado.

Voltando, por outro lado, à responsabilidade do Banco sacado, vimos que a este cumprirá responder como se o cheque lhe tivesse sido apresentado a pagamento. Nessa medida, competia-lhe a prova, não lograda, de que o Banco tomador, usando da diligência que lhe era exigível, não podia ter dado pela viciação do título([3]).

Assente a responsabilidade dos RR. nos moldes sobreditos, cumpre agora atentar na conduta da A. e da sua contribuição para a produção do dano.
Neste tocante, provado ficou que, como habitualmente fazia, a A. enviou o aludido cheque, por correio, sem ser registado, para a morada da sede social da “DD, Lda” (ponto 9 supra). 
Conforme se ponderou na sentença recorrida, à data do factos (Abril de 2009) vigorava o Regulamento do Serviço Público dos Correios, aprovado pelo DL nº 176/88, de 18.5, nos termos do qual era proibida a aceitação, expedição ou distribuição de objectos postais contendo notas de banco, outros títulos ou objetos de valor realizável, salvo quando expedidos como valor declarado (cfr. art. 12, nº 1, al. h), e 29, do mesmo diploma).
É consabido que, não obstante tal restrição, é prática comum a remessa de cheques sem tais cuidados, muitas vezes por correio simples/normal, e que até os próprios Bancos enviam, por este meio, cheques (e mesmo cartões de crédito e débito) para o seu cliente, conforme salienta a A. no recurso subordinado.
Em todo o caso, cremos que tal prática, se bem que vulgarizada, não afasta o risco de extravio, risco esse que, sendo assim, não poderá deixar de correr por conta do remetente.
Também não se ignora que, na situação em análise, a A. procedeu à remessa de um cheque, cruzado e “não à ordem” (ver arts. 5 e 37 e 38 da LUCH), com todos os campos preenchidos, o que, em si mesmo e à partida, dificultaria a utilização do mesmo por quem não fosse o seu legítimo possuidor. Mas é por demais evidente que tal cautela não evita, como não podia evitar, o descaminho da carta em que foi enviado e, como foi o caso, a respetiva falsificação e uso abusivo por terceiros.
Por conseguinte, cremos que a atuação da A., ao remeter o cheque por carta em correio simples, sem registo, contribuiu, pelo menos, para a perda do mesmo e permitiu que dele se apoderasse e fizesse uso indevido pessoa diversa do verdadeiro destinatário.
Nessa perspetiva, a A. violou, com culpa, o dever de cuidado que lhe assistia e das regras de segurança no uso do cheque, o que não pode deixar de ser valorado, à luz do art. 570 do C.C., tal como se entendeu na sentença recorrida.
Em todo o caso, cremos que, de acordo com a prova produzida e o grau de culpa dos intervenientes em confronto – os Bancos sacado e tomador, por um lado, e a A., por outro – deve fixar-se a proporção dos contributos para a produção dos danos em 50% para cada lado.

(…)
Em síntese, ambos os RR./apelantes serão solidariamente responsáveis pelo ressarcimento à A. da quantia que foi indevidamente retirada da sua conta bancária e que não foi reposta pelo sacado (ver pontos 13 a 16 supra), na proporção de 50% acima definida do seu contributo para o dano verificado. Sendo o valor global substraído da conta da A. de € 31.222,38, aos RR. competirá, por isso, indemnizar a mesma pelo montante de € 15.611,19».

Vejamos.

O problema da responsabilidade pelos danos decorrentes do pagamento de cheques falsificados vem sendo, desde há muito, objecto de controvérsia doutrinal e jurisprudencial.

No entanto, a jurisprudência dominante nos últimos anos em Portugal, é no sentido de que a responsabilização pela integridade do depósito impende, em princípio, sobre o depositário/instituição bancária, desde que se não demonstre a culpa do depositante no irregular levantamento.

Isto porque sobre o banco deve, por princípio, impender a presunção de culpa, consagrada, no âmbito da responsabilidade contratual, pelo art.799º, nº1, do C.Civil (serão deste Código os demais artigos citados sem menção de origem), sem embargo de aquele poder subtrair-se a tal responsabilidade se conseguir provar que agiu sem culpa e que foi a conduta negligente do depositante que contribuiu, decisivamente, para o irregular pagamento verificado.

No caso de não se provar culpa de qualquer das partes, tem-se entendido que o risco fica a cargo do depositário, com invocação do art.796º, uma vez que o banco passou a ser o dono do dinheiro depositado (cfr. o Acórdão do STJ, de 21/5/96, C.J., Ano IV, tomo II, 82), e dos arts.769º, 770º e 476º, nº2, já que, tratando-se de um cumprimento indevido, pode ser repetida a prestação, sendo o risco do banco que pagou a quem não devia (cfr. os Acórdãos do STJ, de 16/6/81, BMJ, 308º-255, de 23/7/85, BMJ, 349º-533, e de 10/11/93, C.J., Ano I, tomo II, 130).

Tem-se entendido, também, que o contrato de depósito bancário, visando a segurança e conservação do dinheiro entregue, é um contrato de depósito irregular, mediante o qual se opera a transferência desse dinheiro, pois o banco pode utilizar-se dele, consumindo-o (cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 8/5/84, BMJ, 337º-377, de 14/6/84, BMJ, 338º-432, de 17/6/86, BMJ, 358º-565, de 19/10/93, CJ, Ano I, tomo III, 69, e de 21/5/96, CJ, Ano IV, tomo II, 82).

Nos termos do art.1206º, são aplicáveis ao depósito irregular, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo, designadamente, a prevista no art.1144º, segundo a qual a coisa mutuada (no caso, depositada) se integra desde logo na propriedade do mutuário (no caso, depositário), que apenas ficará constituído, por força do art.1142º, na obrigação de restituir em género.

Mas, então, em virtude desta translação do domínio, tornam-se indirectamente aplicáveis ao depósito irregular as normas reguladoras do risco nos contratos de alienação com eficácia real (cfr. os arts.408º e 796º, e, ainda, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.II, 2ª ed., pág.701).

Ora, de harmonia com o disposto no citado art.796º, nos contratos que importem transferência do domínio sobre certa coisa, o perecimento ou deterioração desta por causa não imputável ao alienante, corre por conta do adquirente.

O que significa que ficará a cargo do depositário o risco pelo destino do depósito, quando não devido a causa imputável ao depositante.

Por outro lado, segundo Ferrer Correia e A. Caeiro, in RDE, 1978, pág.457, «O cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita».

Acrescentando que «Há, na base da emissão de um cheque, duas relações jurídicas distintas: a relação de provisão e o contrato ou convenção de cheque. A relação de provisão pode revestir diversas modalidades, desde que tenha por efeito pôr à disposição de alguém certos fundos que se conservam na posse do Banco (um depósito, uma abertura de crédito, uma conta corrente, um desconto, etc.); mas não basta essa relação, é ainda necessário que entre o Banco e o titular da provisão se celebre um novo acordo pelo qual o primeiro acede a que o segundo mobilize os fundos à sua disposição por meio de emissão de cheques (contrato ou convenção de cheque), convenção esta que pode ser tácita (celebra-se, na prática, mediante a requisição pelo cliente de um ou mais livros de cheques e a entrega destes pelo Banco)».

É a própria lei que prevê a necessidade da celebração do contrato de cheque (art.3º, da Lei Uniforme sobre Cheques, doravante referida como LU), em virtude de, como afirmam António Caeiro e Nogueira Serens, in RDE, IX, 1983, pág.57, o cheque constituir um modo particularmente rígido de executar uma prestação, cujo cumprimento é muitas vezes exigido por um terceiro desconhecido do Banco, e de a ele andarem ligados inegáveis riscos, tais como a falsidade das assinaturas e a perda do título.

Por isso que, acrescentam aqueles autores, ob. e loc.cits., a convenção do cheque se funda também na confiança recíproca das partes (Banco e titular da provisão) e na seriedade e correcção que o Banco pode esperar do titular da conta e este daquele.

O contrato de cheque não se confunde com o contrato de depósito, embora o pressuponha, na sua vertente de provisão. É daquele contrato que nasce a faculdade de o titular da provisão mobilizar os fundos existentes à sua disposição no Banco e é só pela celebração do mesmo que este fica obrigado para com o cliente a pagar aos eventuais beneficiários os cheques que por aquele venham a ser emitidos, até ao limite da provisão.

Do contrato de cheque decorrem direitos e deveres para ambas as partes, citados, designadamente, por António Caeiro e Nogueira Serens, ob.cit., págs.58 e 59, Paulo Olavo Cunha, in Cheque e Convenção de Cheque, págs.459 e segs., Sofia de Sequeira Galvão, in Contrato de Cheque, págs.54 e segs., e Fernando Correia Gomes, in A Responsabilidade Civil dos Bancos pelo pagamento de cheques falsificados, págs.18 a 20).

Assim, para o cliente/titular da provisão resulta, desde logo, o direito de dispor das quantias depositadas ou por qualquer outro modo posto à sua disposição pelo Banco. Quanto a deveres, o mais importante é o de guardar cuidadosamente o livro ou caderneta de cheques, de modo a evitar que alguém dele se apodere facilmente e possa falsificar a assinatura do titular da conta; em caso de perda ou extravio de qualquer cheque, deve ainda avisar imediatamente o Banco.

Em relação a este, o principal direito que lhe cabe traduz-se na faculdade que tem de lançar em conta os cheques que for pagando. O seu principal dever consiste, naturalmente, em proceder ao pagamento dos cheques que sejam sacados sobre uma determinada conta nele sediada, à custa dos fundos que nessa conta se encontrem disponíveis.

Como dever acessório e, de certo modo, instrumental daquele dever principal, encontra-se o chamado dever de verificação dos cheques, que consiste na obrigação que o Banco sacado tem de verificar cuidadosamente o cheque. O cumprimento deste dever pode ser decisivo na determinação do suporte de risco de falsificação e de apresentação por um não titular.

Ora, a responsabilidade pelos danos resultantes do pagamento de cheques falsificados decorre, precisamente, da violação dos referidos deveres, sendo as consequências suportadas por aquele dos contraentes que tenha procedido culposamente, já que, a responsabilidade contratual se baseia na culpa, princípio esse consagrado no art.798º.

Ao abrigo do contrato de cheque, o cliente pode emitir vários tipos de cheque, sendo que a modalidade que escolher condicionará a prestação do Banco.

Assim, se o cliente emitir um cheque nominativo, o Banco só o pode pagar à pessoa indicada no cheque ou a alguém a quem ele tenha sido transmitido por via de endosso (art.5º, I, da LU).

Segundo Paulo Olavo Cunha, ob.cit., pág.153, este chamado cheque nominativo é uma qualificação imprópria e tecnicamente desajustada, senão mesmo desastrada, uma vez que reconduz o cheque a uma categoria de títulos de crédito na qual, pelas suas características, nomeadamente quanto à circulação, jamais se pode enquadrar. Deste modo, quando designa o respectivo beneficiário, o cheque é um título à ordem, já que, para circular, tem de ser endossado, não se confundindo, pois, com os títulos de crédito que se qualifiquem como nominativos, atendendo ao respectivo modo de circulação. Nestes, o respectivo texto menciona a identidade do titular, pressupondo para a sua circulação um formalismo complexo, já que nos mesmos deverá exarada declaração de transmissão, ser lavrado o pertence (inscrição do nome do novo titular) e proceder-se a averbamento em registo próprio.

Se o cheque for pagável a uma determinada pessoa, com a cláusula «não à ordem» ou equivalente, o Banco já só o pode pagar à pessoa indicada ou a alguém a quem o título tenha sido cedido pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos (art.5º, II e 14º, II, da LU).

Se o cliente emitir um cheque ao portador, o Banco pode pagá-lo a qualquer pessoa que se apresente a cobrá-lo (art.5º, III, IV e V, da LU).

Se o cliente, ao emitir o cheque, apuser, na face anterior do título, duas linhas paralelas, em regra oblíquas, está a emitir um cheque cruzado (arts.37º e 38º, da LU).

O cruzamento é efectuado por razões de segurança, visando evitar danos decorrentes de furto, falsificação ou extravio do título e procura impedir o seu pagamento a um portador ilegítimo, com as limitações que introduz.

O cruzamento é geral se consiste apenas nos dois traços paralelos na face do cheque, podendo eventualmente entre os mesmos estar escrita a palavra «banqueiro» ou outra equivalente, caso em que o cheque só poderá ser pago a um banco ou a um cliente do sacado (arts.37º, III e 38º, I, da LU).

O cruzamento é especial se, entre as linhas paralelas, se indica o banco ao qual o cheque deverá ser pago (arts.37º, III, in fine e 38º, II, da LU).

Note-se que o cruzamento, qualquer que seja a modalidade que revista, não implica limitação ou condicionamento à circulação do cheque, nada impedindo o endosso. Só que, o último endossado deve ser um banco ou um cliente do sacado (cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa, de 2/3/04, C.J., Ano XXIX, tomo II, pág.65).

Por outro lado, não obstante o art.37º, I, da LU, prever que o cheque possa ser cruzado pelo sacador ou pelo portador, presentemente o cruzamento surge muitas vezes impresso nos próprios módulos e, consequentemente, determinado pelo próprio sacado. O que, no entanto, equivale a cruzamento pelo sacador, já que este não é obrigado a utilizar os módulos com essa limitação (cfr. Paulo Olavo Cunha, ob.cit., pág.147).

Acresce que a inobservância das regras aplicáveis em matéria de cheque cruzado faz incorrer o banqueiro, sacado ou beneficiário do cruzamento, em responsabilidade pelo prejuízo que possa resultar do incumprimento, até ao montante máximo correspondente ao valor do cheque (art.38º, V, da LU).

Porém, as consequências do pagamento de cheques falsificados não se encontram regulamentadas na LU, pelo que se tem entendido que, sendo a convenção de cheque um contrato, é ao direito dos contratos, designadamente aos princípios gerais da responsabilidade civil, que há que recorrer para resolver os problemas daí decorrentes.

Todavia, neste plano, o cheque cruzado não merece tratamento autónomo, pelo que, no caso sub judice, tudo está em saber em que termos é possível afirmar a responsabilidade dos Bancos pelos prejuízos resultantes do pagamento do cheque em questão, falsificado após a sua emissão.

Na verdade, resulta da matéria de facto provada que a situação material controvertida impõe a análise e tomada de posição acerca do tema da falsificação do cheque, na óptica da repartição entre os interessados do custo dessa falsificação.

Ou seja, saber em que medida é que tal custo, consubstanciado na privação da quantia pecuniária que dele constava, deve recair sobre o respectivo emitente ou antes sobre as entidades bancárias, já que foi pago a um portador que sendo, embora formal e aparentemente, perante a pura literalidade do cheque, legítimo, o não era em termos substanciais, por a aparência formal de legitimidade assentar, afinal, numa falsificação do título.

No fundo, do que se trata é de determinar quem é o responsável pelos danos resultantes do pagamento pelo sacado do cheque falsificado, se o sacador, o sacado, o tomador ou todos eles.

Dir-se-á, desde já, que se concorda, em geral, com o expendido no acórdão recorrido, quando aí se concluiu que existem responsabilidades repartidas entre o Banco tomador (réu Banco BIC) e o Banco sacado (réu Banco BB), por um lado, e a emitente do cheque (autora), por outro, e que deve fixar-se a proporção dos contributos para a produção dos danos em 50% para cada lado (cfr. a parte do acórdão recorrido atrás transcrita).

De todo o modo, cumpre analisar o que as partes alegam, em contrário, nos seus recursos.

Comecemos pela análise da posição da emitente do cheque, ora autora – recorrente (recurso independente).

Nas suas alegações de recurso, defende o entendimento de que o envio do cheque via CTT, por carta simples, não constitui violação de qualquer regra de segurança relativa ao uso do cheque, pelo que, ao atribuir responsabilidade à autora, na proporção de 50%, o acórdão recorrido violou o disposto no art.570º.

Alega, para o efeito, que, ao utilizar em cheque cruzado, no qual preencheu todos os campos e fez constar a menção «não à ordem», a autora cumpriu todas as recomendações bancárias sobre segurança na emissão e utilização de cheques.

Mas não é assim. Como já vimos, a autora, como titular da conta e cliente na convenção de cheque, também tem que satisfazer deveres de cuidado no manuseio dos cheques, cabendo-lhe zelar pela sua guarda e segurança.

Ora, da circunstância de se utilizar um cheque cruzado, com cláusula «não à ordem», não resulta, por si só, como nos parece evidente, que fiquem satisfeitas as regras de segurança que ao cliente compete cumprir.

Na verdade, a questão, no caso, não se coloca ao nível do preenchimento do cheque, mas sim no que respeita à forma como o mesmo foi enviado, isto é, pelo correio e em carta simples.

Não é por acaso que o Regulamento do Serviço Público dos Correios, aprovado pelo DL nº176/88, de 18/5 (art.12º, nº1, al.h) e a Convenção Postal Universal (DR 1ª Série A, nº110, de 11/5/04) proíbem a aceitação, expedição ou distribuição de objectos postais que contenham notas de banco, outros títulos ou objectos com valor realizável, salvo quando expedidos como valor declarado.

É que o risco de extravio de tais bens ou valores é um facto notório, sendo certo que tal risco aumenta exponencialmente quando a expedição, em violação da citada proibição, é feita através de simples carta selada, como aconteceu no caso dos autos (cfr., neste sentido, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 15/12/11 e de 2/7/15, disponíveis in www.dgsi.pt).

Consideramos, pois, que o envio do cheque em questão, por carta simples, constitui uma conduta de risco, tanto mais quanto é certo que a quantia pecuniária dele constante - € 31.222,38 - era bastante elevada.

Não se diga, assim, que inexiste fundamento para considerar a culpa do lesado, nos termos do art.570º, e que foi a violação das obrigações dos Bancos recorridos a causa exclusiva do dano sofrido pela autora.

Acresce que não se vê fundamento para manter a responsabilidade solidária dos dois Bancos na proporção de 75% (e, consequentemente, de 25% para a autora), como pretende a recorrente, em termos subsidiários, tal como havia decidido a 1ª instância.

Note-se que o acórdão recorrido alterou a decisão sobre a matéria de facto, tendo eliminado os pontos 26 e 27 da matéria assente, que eram do seguinte teor:

26 – No cheque supra identificado, junto aos autos a fls.46, são visíveis e perceptíveis, sob um exame atento efectuado à vista desarmada e ao toque, marcas de rasuras, manchas esbranquiçadas e esboroadas, com diferente textura no papel em toda a extensão do campo destinado ao destinatário.

27 – São ainda visíveis algumas letras do nome que foi rasurado e substituído pelo nome «EE, Ld.ª».

Por isso que, naquele acórdão, se considerou não se estar perante uma viciação grosseira e facilmente detectável por qualquer pessoa a quem o cheque fosse apresentado.

Já na sentença apelada, tendo em conta o dado como provado nos aludidos pontos 26 e 27, considerou-se tratar-se de uma viciação visível à vista desarmada.

Daí que, nesta sentença, se tenha afigurado adequada a fixação da proporção das culpas e contributos para a produção dos danos em um quarto para a autora e três quartos para os Bancos tomador e sacado, enquanto que no acórdão recorrido se afigurou ajustada a proporção de 50% para cada lado.

Haverá, assim, que concluir que a autora violou, com culpa, o dever de cuidado que lhe competia e as regras de segurança no uso do cheque, o que não pode deixar de ser valorado à luz do art.570º, como se entendeu no acórdão recorrido.

Improcedem, deste modo, as conclusões da alegação da autora-recorrente.

Passemos, agora, à análise da posição do réu Banco BIC, tomador do cheque em questão (recurso subordinado).

Alega o recorrente que não há fundamento para repartição de culpas, mas sim para exclusão da culpa do Banco BIC, uma vez que a actuação culposa da autora justifica a sua inteira responsabilidade.

Mais alega que a sua funcionária mais não podia ter feito, já que não se consideraram as rasuras passíveis de serem detectadas a olho nu.

É certo que se deu como provado que a aludida funcionária, que recebeu o cheque em questão, procedeu ao seu exame à vista desarmada e não detectou qualquer circunstância que impedisse o depósito do mesmo (ponto 23 dos factos assentes).

No entanto, não pode deixar de se citar, mais uma vez, o Acórdão do STJ, de 31/3/09, onde se refere que, face aos meios usados na falsificação, não podem os bancos contrapor com meios e técnicas usados há dezenas de anos, sob pena de, à sofistificação dos falsários, não reagirem com meios técnicos evoluídos, facilmente ao seu alcance e que permitiriam detectar fraudes.

Mais se refere aí que, nos tempos de agora, em que os interesses dos consumidores são crescentemente protegidos, usar métodos cuja precariedade é notória e não recorrer a técnicas sofisticadas, não é actuar diligentemente.

E, ainda, que não é compaginável com o grau de diligência exigível, actualmente, que um banco prudente, zeloso e cauto, não disponha de técnicas e  funcionários especializados na detecção de falsificações (em sentido semelhante podem ver-se, ainda, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 3/12/09, 23/2/10 e 29/1/15, in www.dgsi.pt).

Consideramos, pois, que a actuação do Banco BIC, que ocorreu apenas na fase da apresentação do cheque a pagamento e como Banco apresentante ou Banco tomador, sendo, por isso, a sua responsabilidade para com a autora estranha a qualquer relação contratual de depósito ou de cheque, antes se situando no campo da responsabilidade extracontratual, fica aquém do exigível da normalidade do grupo de pessoas que, devidamente habilitadas, conscientes das suas responsabilidades e atentas aos seus compromissos, exercem a actividade bancária.

Note-se que, como se refere no citado Acórdão do STJ, de 23/2/10, «o Banco que se encarrega da cobrança de um cheque é garante da sua regularidade e, portanto, deve usar da diligência exigível ao profissional médio para averiguar se a legitimação do portador corresponde à situação jurídica do proprietário do título, devendo, em caso de dúvida, recusar o mandato para cobrança ou a aquisição do cheque».

Refira-se, ainda, que o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF – aprovado pelo DL nº298/92, de 3/12) estabelece nos arts.73º e 74º, respectivamente, «As instituições de crédito devem assegurar, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funciona com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência» e «Os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados».

Acrescentando o art.26º, nº1, do mesmo Regime Geral, que «O Banco de Portugal poderá estabelecer, por aviso, regras de conduta que considere necessárias para complementar e desenvolver as fixadas neste Regime Geral».

Por outro lado, há que ter em conta a Instrução nº3/2009, do Banco de Portugal, que entrou em vigor no dia 2/3/09, a qual tem por objecto a regulamentação do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), que é composto por vários subsistemas, nomeadamente, cheques, fazendo parte integrante de tal regulamento os respectivos anexos e sendo destinatários daquela instrução os participantes no referido Sistema, designadamente, Bancos.

Sendo que, nos termos do ponto 6.3. b) do Anexo III da mencionada Instrução, o participante tomador é responsável pela verificação, para todos os cheques e documentos afins que lhe sejam apresentados, da regularidade do seu preenchimento, com excepção da data de validade do impresso cheque.

É certo que se tem entendido que o regime regulamentar do SICOI não afasta o regime de responsabilidade legalmente aplicável (cfr. o Acórdão Uniformizador nº4/2008, de 28/2/08, que assim se pronunciou relativamente à Instrução nº25/2003, do Banco de Portugal).

Todavia, pode relevar para efeito de apreciação da culpa, como se refere no citado Acórdão do STJ, de 23/2/10.

Haverá, deste modo, que concluir, como no acórdão recorrido, que o Banco CC, tomador do cheque, ao limitar-se a proceder a uma simples análise do mesmo à vista desarmada, agiu com culpa, omitindo os deveres de diligência, de criterioso controlo da regularidade do cheque, a que estava obrigado.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação do recorrente subordinado, réu Banco CC.

Vejamos, por último, a posição do réu Banco BB, entidade sacada no cheque em questão (recurso subordinado).

Alega o recorrente que, enquanto Banco sacado, não violou os deveres contidos no art.73º, do RGICSF, pelo que invoca a sua total ausência de culpa no pagamento do cheque da autora.

Mais alega que foi a conduta culposa daquela, ao enviar um cheque de € 31.222,38 para pagamento a um seu fornecedor, em correio simples, que contribuiu para o extravio do cheque e a sua adulteração por terceiros, sendo ela a exclusiva culpada.

Alega, ainda, que os Acórdãos do STJ, de 31/3/09 e 29/1/15, citados no acórdão recorrido, versam sobre situações em que está em causa a falsificação da assinatura do sacador no cheque, situação bastante diversa da dos autos.

É certo que o BB não teve contacto com o original do cheque, mas apenas com uma cópia digitalizada do mesmo.

No entanto, por um lado, o citado art.73º do RGICSF exige que as instituições de crédito assegurem elevados níveis de competência técnica.

E, por outro lado, nos termos do ponto 7.1. do Anexo III à Instrução nº3/2009, o participante sacado que tenha recebido a informação correspondente a documentos que obriguem ao envio de imagem, por parte do participante tomador, pode devolvê-lo na sessão seguinte, designadamente, no caso de a mesma não permitir a verificação dos dados nela constantes.

Acrescentando o ponto 7.2. do referido Anexo, que o participante sacado fica obrigado a receber, tratar e controlar a informação respeitante, nomeadamente, a todos os cheques, que lhe for transmitida pelos outros participantes.

Acresce que aqui está em causa a responsabilidade contratual, sendo que, como já se referiu atrás, do contrato de cheque decorrem direitos e deveres para ambas as partes.

Ora, o principal dever do Banco consiste em proceder ao pagamento dos cheques que sejam sacados sobre uma determinada conta nele sediada, à custa dos fundos que nessa conta se encontrem disponíveis.

Porém, como dever acessório daquele dever principal, encontra-se o chamado dever de verificação dos cheques, cujo cumprimento pode ser decisivo na determinação do suporte de risco de falsificação e de apresentação por um não titular.

Ou seja, perante o cliente, continua a recair sobre o Banco sacado o dever de fiscalização, em ordem à salvaguarda dos interesses daquele.

Sendo que nem sequer demonstrou que o Banco tomador, usando da diligência que lhe era exigível, não podia ter dado pela viciação do cheque.

Note-se que a confiança do cliente no Banco assenta, antes do mais, num conceito de competência técnica, que constitui um dos deveres gerais – de que emergem deveres de qualidade e de eficiência – a que se subordina a actividade do banqueiro (cfr. o Acórdão do STJ, de 25/10/07, in www.dgsi.pt).

De todo o modo, ainda que se conclua pela ausência de culpa do Banco sacado, em virtude de este não ter tido, no caso, contacto com o original do cheque, mas apenas com uma cópia digitalizada do mesmo, o que limitaria de forma drástica a sua possibilidade de o devolver, que ficaria praticamente cingida ao caso de viciação demasiado ostensiva dos elementos do cheque (cfr. o Acórdão do STJ, de 11/7/17, in www.dgsi.pt), sempre haveria que entender que responde a título de risco, que corre por sua conta, como dono que passou a ser do dinheiro depositado, nos termos e com os fundamentos atrás referidos.

No que respeita à conduta culposa da autora, já atrás analisámos essa questão, onde concluímos pela existência de culpas repartidas, isto é, concluímos que ocorreu um facto culposo da lesada que concorreu para a produção dos danos.

Quanto ao facto de os citados Acórdãos do STJ versarem sobre situações em que está em causa a falsificação da assinatura do sacador no cheque, não se pode dizer que se trata de situação bastante diversa da dos autos, porquanto ambos são casos paradigmáticos de falsificação.

Assim, quer se trate de falsificação da assinatura do sacador, quer se trate de falsificação traduzida na adulteração da identificação do beneficiário, o expendido naqueles Acórdãos do STJ, para o que ora releva, é aplicável às duas situações.

Haverá, deste modo, que concluir que o réu Banco BB também é responsável pelo pagamento do cheque falsificado, nos termos atrás expostos.

Improcedem, pois, as conclusões da alegação do recorrente subordinado, réu Banco BB.

Constata-se, assim, que improcedem as conclusões da alegação de todos os recorrentes, pelo que deverá manter-se o acórdão recorrido, que, ao concluir que ocorreu um facto culposo da lesada que concorreu para a produção dos danos e ao determinar que, por isso, a indemnização deve ser reduzida, na proporção de 50%, não merece qualquer censura.

3 – Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento aos recursos (independente da autora e subordinados dos réus Banco CC e Banco BB), confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Roque Nogueira (Relator)

Alexandre Reis

Pedro Lima Gonçalves

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[1] Proc. 09A197, em www.dgsi.pt.
[2] Proc. 2450/10.5TVLSB.C1.S1, em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Ac. da RL de 12.11.2015, Proc. 2808/12.5TJLSB.L1-6, em www.dgsi.pt.