Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
398746/10.0YIPRT.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
LITIGÂNCIA TEMERÁRIA
REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 05/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO - ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - PROCESSO / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA (EFEITOS).
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 3.º, 542.º, N.ºS 1 E 2, 621.º.
LEI N.º 41/2013, DE 26 DE JUNHO: - ARTIGO 7.º, N.º1.
Sumário :
I. A condenação como litigante de má fé, a titulo de negligência grave pode ocorrer, se se apurar que a parte litigou de forma temerária, deduzindo oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.

II. Tendo a sentença de primeira instância decidido pela absolvição da Ré como litigante de má fé, nas precisas circunstâncias em que tal condenação foi peticionada e apreciada, faz caso julgado material de harmonia com o preceituado no normativo inserto no artigo 621º do NCPCivil, o que significa que a segunda instância não poderá  reapreciar aquela mesma questão, retomando o pedido formulado inicialmente pela Autora e respaldando-se nos fundamentos então invocados.

III. Ao decidir desta forma fê-lo em manifesta violação do princípio da reformatio in pejus, uma vez que a Autora não recorreu daquela sentença, nesta parte, que lhe foi desfavorável e em sede de contra alegações de recurso limitou-se a formular um pedido genérico de condenação da Ré como litigante de má fé porque recorreu sem fundamento, sendo certo que o Acórdão recorrido considera absolutamente legitimo o direito daquela a impugnar a decisão.

IV. Por outro lado nunca poderia a Ré ser condenada como litigante de má fé em indemnização, sem que esta tivesse sido peticionada, artigo 542º, nº1 do NCPCivil.

(APB)

Decisão Texto Integral:

 ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I M, SA nos autos de processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias que instaurou contra K, LDA foi a acção julgada parcialmente procedente com a condenação da Ré a pagar àquela a quantia de € 23.810, acrescida dos juros vencidos e vincendos, foi a mesma absolvida do pedido de condenação como litigante de má fé que havia sido formulado pela Autora.

Em sede de recurso de Apelação interposto pela Ré, foi o mesmo julgado parcialmente procedente nos seguintes termos:

«(…) a) declarar que a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia mas que essa declaração de nulidade apenas provoca a nulidade do decreto judicial que, em 1ª instância, dirimiu o pleito e a sua fundamentação de direito, não afectando o segmento através do qual são enunciados os factos declarados provados e não provados, na parte em que, em termos de coerência lógica, tal não conflitue com a matéria que ainda cuida apreciar;

b) alterar nos termos fixados no ponto 4.2.3. supra, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, o segmento da sentença recorrida em que estão enunciados os factos declarados provados e não provados no presente processo;

c) julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar a Ré "K LDA", a pagar à Autora "M, LDA", a quantia global de € 23.810,00 (vinte e três mil, oitocentos e dez euros), acrescida de juros vencidos e vincendos, às sucessivas taxas legais fixadas para as situações em que o credor é uma empresa comercial, conforme definido no ponto 4.3.4. do presente acórdão, que aqui se dá por reproduzido, e contados desde a data de vencimento de cada uma das facturas cujas cópias constituem fls 82 a 88 até efectivo e integral pagamento dos valores nelas inscritos.

d) condenar a Ré apelante como litigante de má fé no pagamento de uma multa no valor de 2 UCs e no pagamento à Autora de uma indemnização que se arbitra em € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).(…)»

Inconformada com a decisão que a condenou como litigante de má fé, recorreu a Ré, agora de Revista, apresentando as seguintes conclusões:

- Lida e relida a fundamentação explanada no Acórdão objecto do presente recurso que levou à condenação da aqui Recorrente como litigante de má-fé, teve aquela por base a putativa admissão, na acareação entre as testemunhas R e T, do eventual conhecimento do valor real da mercadoria transportada.

- Sucede, porém que, ouvida repetidamente a gravação da mencionada gravação - já de si, de muita fraca qualidade - e como bem refere o Tribunal a quo “( .. .) quiçá num momento de maior fragilidade psicológica ( ... )” não poderá considerar-se, ipso facto, que o referido T ou a Recorrente, em Portugal, soubessem do valor real da mercadoria transportada antes do início do frete, mesmo que, eventualmente, tal fosse conhecido pela “K” “Mãe” (Suíça).

- Por outro lado, não se entende como poderiam as mensagens de fls. 267 a 268 (com repetição a fls. 284 a 285 e tradução a fls. 286 a 288) suscitar surpresa à Recorrente.

- Com efeito, da mensagem em apreço resulta a tese propugnada por colaboradora da Recorrida, no momento em que um dos camiões já havia chegado ao destino final e em que o outro se encontrava em parte incerta, isto é,

- Cerca de 10 dias depois de ambos terem chegado à Alemanha e de todas as partes conhecerem o valor real da mercadoria transportada e devidamente contraditada em audiência de julgamento.

- Sem prejuízo, o que provocou surpresa à Recorrente e objecto de impugnação expressa na sessão de julgamento ocorrida em de 02 de Outubro de 2012, foi a junção do email pela Recorrida e anexo (factura comercial) de fls. 387 com data de 28 de Abril de 2010 e enviado com conhecimento das testemunhas T e E em que, supostamente, a Recorrente era informada pela S do valor real da mercadoria.

- Com efeito, ainda que se possa conceber que a testemunha T e/ou E pudessem saber do valor real da mercadoria transportada, antes do início do frete contratado com a Recorrida, tal não significa que a Recorrente tenha ignorado os elementos de prova produzidos em audiência de julgamento na motivação das alegações de recurso de apelação deduzidas.

- Na verdade, há na tese propugnada pela Recorrente e alegada em sede de recurso de apelação, dois momentos distintos no transporte da mercadoria: o primeiro, Portugal/Alemanha e o segundo, Alemanha / Rússia.

- No primeiro momento, a mercadoria seguiu sem qualquer tipo de vicissitude para o seu destino (Alemanha), local onde foi conhecido por todos o seu valor real.

- Neste local, e, independentemente, do (des)conhecimento inicial do valor da mercadoria, todas as partes contratantes estavam plenamente cientes dos requisitos necessários - e devidamente aceites por todos - para que a mesma pudesse prosseguir para a Rússia (segundo momento), não bulindo para talo eventual conhecimento do T relativamente ao valor daquela.

- Efectivamente, o inconformismo da Recorrente propugnado nas suas alegações de recurso de apelação, alicerça-se, em parte, nesta factualidade.

- Significa isto que a Recorrente não considerou verificar-se apenas um transporte mercadorias e, que este mesmo transporte, na parte atinente ao percurso entre a Alemanha / Rússia tenha sido afectado por, alegadamente, um seu colaborador conhecer o real valor da mercadoria.

- Pelo que, não considera a Recorrente, salvo o devido respeito, tenha litigado ao atropelo da ética da conduta e a censurabilidade que ela merece.

- Neste sentido, e, com o devido respeito, não se verifica in casu a imputada conduta gravemente negligente por parte da Recorrente ou qualquer intenção por parte da mesma de fazer uso de meios processuais manifestamente reprováveis com vista a protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, nos termos do disposto nos art.s 542.º e 543.º, ambos do cpc.

- Com efeito, e, conforme este Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, a garantia de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias de um estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art.º 542.º do cpc.

- A sentença recorrida violou as normas contidas nos art.ºs 542.º e 543.º, ambos do cpc.

- O presente recurso deve, pois, merecer provimento e o Acórdão, na parte recorrida ser revogado e, consequentemente, ser a Recorrente absolvida da condenação como litigante de má-fé.

Não foram apresentadas contra alegações.

II A única questão a resolver no âmbito deste recurso é a de saber se é de manter a condenação da ré como litigante de má fé.

 

O Acórdão recorrido, na parte em que condenou a Ré/Recorrente como litigante de má fé, fundamentou a sua decisão nos seguintes termos sic:

«(…)4.4.A Ré está ou não, nos presentes autos, a litigar de má fé?

4.4.1. Em todos os procedimentos judiciais que correm termos nos Tribunais dos países que, como Portugal, estão organizados segundo o modelo do Estado de Direito, o julgamento dos pleitos assenta na verdade formal que se formou em cada um desses processos de acordo com a aplicação das regras de repartição do ónus de prova, que, no caso português, se encontram definidas pelo Legislador nos art°s 342° a 347° do Código Civil, as quais exigem que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, que a prova dos factos impeditivos, modificativos o extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita e que essa prova tem de ser feita para além de qualquer dúvida razoável (art°s 342° nºs 1 e 2 e 346°).

E é essa verdade a única que serve de fundamento à aplicação de normas jurídicas reguladoras da situação litigiosa - cuja interpretação poderá nem sempre ser totalmente unívoca.

Esta concepção da realidade constitui um dos elementos essenciais e estruturantes do direito a um julgamento leal, não preconceituoso (fair and unbiased e mediante processo equitativo que a todos está garantido, com força obrigatória directa e geral (art.º 18° n.º1 da Constituição da República), pelos art°s 20° n.º4 da Constituição da República, 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217 A (III), de 10 de Dezembro de 1948, 6° n.º1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, e 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Anexa ao Tratado de Lisboa.

E será a ela que este Tribunal Superior se irá ater também quanto à apreciação do pedido de condenação da Ré apelante como litigante de má fé formulado pela Autora, até porque, e uma vez mais, esta é não apenas uma interpretação que tem, claramente, na letra da Lei um mínimo de correspondência verbal no texto desse art.º 456° do CPC revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, como igualmente, perante o que resulta dos autos, é a que dá corpo a uma solução ética e socialmente mais acertada (nºs 2 e 3 do art.º 9° do Código Civil).

4.4.2. Como ficou bem patente no presente processo, são muitas as desconformidades cometidas no desenvolvimento do acordo negocial firmado entre as partes aqui em litígio, a começar pela pouco lógica e aparentemente irracional multiplicação de intermediários no transporte de mercadorias entre duas empresas sedeadas em Portugal e uma na Federação Russa - embora, tanto quanto se provou nestes autos, esse desafio à lógica da racionalidade económica de um/a diligente bom pai/boa mãe de família (que não esteja profissionalmente envolvido no tráfego de mercadorias por estrada, acrescenta-se) será uma prática comum para os reais declaratários que interagem neste segmento do comércio jurídico, sendo que entre estes não se encontram os consumidores finais dos produtos que irão ser fabricados usando as mercadorias transportadas, os quais, em última análise são aqueles que irão suportar os custos dos pagamentos exigidos/devidos a tantos intermediários.

E porque assim é, em boa verdade e para se ser brando com as palavras, não é totalmente seguro que todos os intervenientes no negócio em apreço agiram, na execução do contrato de transporte globalmente considerado (insiste-se, o que respeita à deslocação para o território da Federação Russa de maquinaria produzida em Portugal), com a lisura e a boa fé características desse diligente bom pai (boa mãe) de família ou declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art°s 487º n.º2 e 236º n,º1 do Código Civil). Porém, não obstante e essa constatação e aquela outra de que algumas das desconformidades cometidas no desenvolvimento do acordo negocial firmado entre as partes aqui em litígio não foram praticadas pela aqui apelante, o que leva a que se possa considerar que a actuação dessa Ré corresponde à conduta descrita na alínea a) do n.º2 do art.º 456° do CPC revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho - mas que é o aplicável por ser o que vigorava à data da prática dos sucessivos actos realizados por esta sociedade, logo aquele que modelava os comportamentos ética e socialmente exigíveis a todos os que entre si se relacionam no comércio jurídico -, é a circunstância de, perante a inequívoca demonstração dos factos que decorre da conjugação do conteúdo do documento que constitui fls 267 a 268 (com repetição a fls 284 a 285 e tradução a fls 286 a 288) com a acareação realizada entre as testemunhas R e T, acerca do facto de a Ré ter, desde o início e bem antes de ter celebrado o acordo dos autos com a Autora, conhecimento que as mercadorias a transportar em cada um dos dois camiões fretados teriam um valor bastante superior a (much more higher than) € 50.000,00, a ora apelante se tenha atrevido a invocado, em sede de alegações e nas conclusões das mesmas, que «no capítulo denominado “Fundamentação de Facto”, quer no capítulo denominado “Motivação” no aresto ora posto em crise, não resulta especificado, qual a pessoa singular da referida S terá informado a ré e/nu. tão pouco qual a interlocutor da ré terá sido o destinatário da dessa informação», quando, ao mesmo tempo, reconhece que as mensagens supra identificadas tiveram como um dos seus destinatários, entre outros, o seu então funcionário T.

É que, ouvida a prova produzida em audiência, incluindo as inflexões vocais do Ilustre Mandatário da ora apelante, é aceitável acreditar que este último e os representantes legais dessa sociedade pudessem subjectivamente desconhecer que essa informação acerca do valor das mercadorias transportadas foi dada a conhecer à pessoa que na "K, LDA" negociou com a sociedade "S, SA" e depois com a Autora - aquele T - nomeadamente porque este último deixou de pertencer ao quadro de pessoal da Ré.

Só que essa circunstância é totalmente irrelevante porque, por vontade da recorrente, T tinha poderes suficientes para celebrar contratos em nome dessa firma, logo, consequentemente, também para assumir, repercutindo-as na esfera jurídica da sua entidade empregadora, todas as obrigações e consequências desses seus actos.

Ubi commoda, ibi incommoda. Sem margem para dúvidas.

E nunca podendo ser esquecido, o que veementemente se repete e acentua, que na acareacão realizada entre essas duas testemunhas (R e T), este último chegou a admitir que as empresas “K” “mãe” (suíca) e austríaca poderiam ter conhecimento do valor real da mercadoria transportada.

O que torna, no mínimo, muitíssimo temerária e leviana a conduta processual da Ré quando a mesma se decide pela interposição, nos termos em que o fez, do recurso cujo mérito aqui se aprecia.

4.4.3. Efectivamente, não obstante ser legítimo à ora apelante afirmar, porque nessa matéria está em causa a interpretação das normas jurídicas da Convenção CMR, que, independentemente do valor das mercadorias, a Autora não cumpriu ponto por ponto o contrato de transporte entre ambas firmado - ou até que, como se insinua, foram celebrados dois contratos de transporte distintos -, a mesma agiu sem poder invocar nesta instância de recurso a subjectiva surpresa acerca da actuação objectivamente incompetente daquele seu então empregado cujo endereço electrónico faz parte da lista de destinatários da mensagem de que o documento de fls 267 a 268 (com repetição a fls 284 a 285 e tradução a fls 286 a 288) dá fé.

Endereço esse que foi usado para enviar outras mensagens cuja recepção não foi, de todo, posta em causa.

E, acima de tudo, não podia a recorrente afirmar que o Mmo Juiz a quo não indicou «qual a pessoa singular da referida S terá informado a ré e/ou tão pouco qual o interlocutor da ré terá sido o destinatário da dessa informação», ou seja, que o mesmo não apresentou qualquer fundamentação ou justificação para ter declarado que está provado no processo que "Não obstante esta falta de indica de valor neste documento (factura comercial), a ré foi informada  pela S, SA que o valor da mercadoria era superior a € 200.000, nomeadamente porque, da economia da sentença criticada, resulta claro para um qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário quem essas pessoas são, especialmente quando a pessoa que subscreve tais declarações participou na audiência de discussão e julgamento que teve lugar no presente processo.

É eticamente inaceitável, se não mesmo moralmente ofensivo e socialmente perigoso configurar que num processo judicial tudo é permitido - que vale tudo - quando se trata de alcançar os objectivos, egoístas ou não, dos litigantes.

Daí que, independentemente da apreciação da prova que já antes foi feita, tenha forçosamente de ser tomado bem patente o desvalor ético da conduta agora descrita e a censurabilidade que ela merece.

Como é sabido, a litigância de má fé pode ser praticada com dolo ou com negligência grave, sendo obviamente esta última menos censurável do que a primeira.

No caso dos autos, a Ré tinha plena legitimidade para pôr em causa a apreciação da prova feita pelo Mmo Juiz a quo, tal como o tinha para questionar a subsunção que o mesmo operou dos factos provados nas normas jurídicas reguladoras da concreta relação material controvertida.

Esta situação afasta liminarmente a possibilidade de condenação a título de dolo.

Mas a negligência é grave porque não era, nem é, lícito a qualquer litigante fazer tábua rasa do que aconteceu na pendência do processo em 1ª instância. A Ré sabia bem e não podia ignorar o que se passou na audiência de julgamento concretizada nos autos e aquilo que foi dito pelas testemunhas ouvidas e o que consta dos documentos feitos juntar pelas partes ou por iniciativa devidamente fundamentada do Tribunal.

Repete-se: a recorrente podia questionar as conclusões retiradas pelo concreto julgador desses elementos de prova mas não podia nem pode actuar como se eles não tivessem sido produzidos em audiência contraditória.

A concluir, estando em causa tão só uma conduta gravemente negligente a graduação da multa, concretizada a partir dos parâmetros fixados no n.º 3 do art.º 27° do Regulamento das Custas Processuais (entre 2 e 100 UCs), mais devendo a indemnização a arbitrar à Autora assumir um carácter acima de tudo simbólico porque, como já abundantemente se acentuou, é ética e sociologicamente aceitável e legítima a dedução do recurso, o que significa que a prolação da decisão judicial que aprecie, com força de caso, a pretensão regularmente deduzida em juízo, apesar de mais distanciada no tempo, não foi protelada sem fundamento sério (art°s 456º e 457° do CPC revogado pela Lei n.º 41/20 l3, de 26 de junho, e 542° e 543º do Código aprovado por essa Lei Preambular, e 2° n.º1 de ambos os Códigos).

4.4.4. Nesta conformidade, sendo, no que agora se cuida, procedentes as conclusões das contra-alegações da apelada, impõe-se declarar que a Ré apelante, no que respeita à sua concreta actuação descrita no ponto 4.4.3. do presente acórdão, litigou de má fé e consequentemente condena-la no pagamento de uma multa no valor de 2 UCs e no pagamento à Autora de uma indemnização que se arbitra em € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) (…)».

Analisemos.

Insurge-se a Ré/Recorrente contra o Aresto produzido em sede de condenação da mesma como litigante de má fé, uma vez que não considera que tenha litigado com o atropelo da ética da conduta e a censurabilidade que ela merece, não se verificando a imputada conduta gravemente negligente, ou qualquer intenção da sua parte de fazer uso de meios processuais manifestamente reprováveis com vista a protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Dispõe o artigo 542º, nºs 1 e 2 do NCPCivil, aqui aplicável atenta a data da prolação do Aresto em crise e o preceituado no artigo 7º, nº1 da Lei41/2013, de 26 de Junho (sem prejuízo de se constatar que o aludido ínsito tem uma redacção rigorosamente idêntica à do artigo 456º do pregresso compêndio processual), o seguinte:

«1 - Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2 - Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da Justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»

De uma forma genérica a litigância de má fé só é passível de censura, se a parte na dedução da sua pretensão, não ignorava a falta de fundamento dos factos alegados, sendo certo que, com este instituto se visa acautelar um interesse público de respeito pelo uso dos procedimentos jurisdicionais.

No caso sujeito, verificamos que a Autora, em primeiro grau e em sede de audiência de discussão e julgamento, cfr sessão de 17 de Setembro de 2012, fls 290 a 302, requereu a condenação da Ré como litigante de má fé nos seguintes termos:

«A testemunha R foi chamada a depor na sequência de um documento junto pela Autora e relativamente ao qual ainda não foi inquirida.

Salvo o devido respeito e melhor opinião a questão de saber se a S anos depois continua a trabalhar ou não com a Ré escapa completamente ao âmbito da presente acção.

É importante sim. apurar a verdade, mas não factos que nada têm haver com a matéria em discussão neste processo.

A I é uma sociedade que não é parte e nada têm haver com este processo e nada tem a haver com a mesma.

A testemunha já afirmou que não sabe se a I voltou ou não a trabalhar com a Ré.

Não obstante, interessa constar que os documentos cm causa acabam por contradizer, isso sim o depoimento da testemunha da Re A que declarou que a K perdeu a cliente quando é própria K que vem dizer que não a perdeu.

A importância desta testemunha consiste em apurar se quem mente é a S ou a K, uma vez que está admitido que a M só soube do valor da mercadoria na Alemanha, pelo exposto a Autora opõe-se ao requerido.

Quanto ao 2 e 3 requerimento a autora nada tem a opor ao pretendido pela Ré que considera apenas se quem fala a verdade é a K ou a S.

Caso a estes 2 requerimentos venham a ser deferidos e se a documentação que a S vir juntar ao processo, demonstrar o quanto esta testemunha não ter cansado de dizer que a K sabia desde o inicio o valor real da mercadoria, a Autora desde já requer face ao alegado nos artº 25.º e 26.º que a Ré seja condenada como litigante de má fé por falta de declarações à verdade por desconhecer o valor real da mercadoria, condenação essa que deverá ser de pagamento e de uma multa e de uma indemnização de acordo com o livre arbitro deste douto Tribunal.».

Este pedido, assim formulado e com esta específica abrangência, foi objecto de apreciação por banda do primeiro grau, tendo-se ali concluído que o mesmo não mereceria provimento uma vez que não se encontravam verificados

«(…) A autora pediu a condenação da ré em multa e indemnização. por considerar que esta litigou com má-fé.

Na verdade, por forma a que a lide seja legítima e justa, as partes deverão litigar com a devida correcção, ou seja, no respeito dos princípios da boa-fé e da verdade material e ainda na observância dos deveres de probidade e cooperação, expressamente previstos nos artigos 266.° e 266.0-A, do Código de Processo Civil.

E. se a parte, com propósito malicioso. ou seja, com má-fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar - má-fé instrumental - deve ser condenada como litigante de má-fé.

Contudo, tem-se entendido que tal sanção apenas pode e deve apenas ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela agiu com dolo ou negligência grave, não se integrando no instituto em causa a situações de erro grosseiro ou lide ousada ou temerária em que alguém possa ter caído por mera inadvertência ou, ainda. os comportamentos levianos ou imprudentes.

Ora, no caso sub judice, não se vislumbra que o comportamento processual da ré tenha assumido foros de gravidade tal que e deva concluir no sentido de que o mesmo desrespeitou o tribunal ou a contraparte.

Por conseguinte, entende-se que não se justifica a sua condenação como litigante de má-fé.(…).».

Em sede de contra alegações de recurso de Apelação, a Autora, na sua conclusão trigésima primeira deixou enunciada a seguinte pretensão «A Recorrente interpôs o presente recurso unicamente movida por má fé processual, pelo que deve ser condenada como litigante de má fé, em montante exacto a determinar segundo o prudente arbítrio de V. Exas..».

Da decisão ínsita no Acórdão recorrido decorre que a Ré, Recorrente, obteve ganho de causa parcial no recurso, aliás, como já havia obtido ganho de causa parcial na acção: o montante peticionado pela Autora/Recorrida inicialmente era de € 25.071,74, tendo a mesma vindo a ser condenada na quantia de € 23.810, o que significa que quer a defesa ensaiada na contestação, quer a impugnação efectuada em sede de alegações de recurso, se enquadraram, de pleno, no exercício do contraditório, principio este, basilar, no nosso ordenamento processual, cfr artigo 3º do NCPCivil, cuja significância nos conduz à asserção de que a pretensão da Ré/Recorrente não era, como não foi, conscientemente infundada, inexistindo, desta feita, uma lide dolosa, quer na sua forma substancial, quer na sua forma instrumental, aliás na esteira do que concluído foi, neste conspectu, pelo segundo grau. 

A nossa divergência começa, não na constatação da existência de uma lide eivada de dolo, mas antes na conclusão tirada de que teria havido uma conduta gravemente negligente, precisamente pelos mesmos fundamentos que a Autora invocou na formulação do pedido de condenação em primeira instância e que foram refutados, então, na sentença aí proferida.

É que, a sentença de primeira instância, ao decidir pela absolvição da Ré como litigante de má fé, nas precisas circunstâncias em que tal condenação foi peticionada e apreciada, fez caso julgado material de harmonia com o preceituado no normativo inserto no artigo 621º do NCPCivil, o que significa que o segundo grau, não poderia ter reapreciado aquela mesma questão, como o fez, e nos termos em que o fez, isto é, retomando o pedido formulado pela Autora no primeiro grau, respaldando-se nos fundamentos então invocados em manifesta violação do principio da reformatio in pejus, que se verificaria, a aceitar-se a manutenção da tese defendida no Aresto impugnado, posto que a Autora não recorreu daquela sentença nesta parte que lhe foi desfavorável, acerca da condenação da Ré como litigante de má fé.

E, se é certo que a Autora veio de novo a colocar a questão ao Tribunal de recurso em sede de contra alegações, o tema em tela agora configurado, dizia apenas respeito à discordância recursiva e não já aqueloutra que incidiu sobre a prova produzida e o conhecimento que a Ré seria obrigada a ter acerca do valor da mercadoria, sendo este preciso e concreto conhecimento que, no dizer do segundo grau, a Ré não poderia ignorar e que, no seu entender, conduziu à condenação produzida.

Mas, essa precisa problemática já havia sido analisada e decidida, com trânsito em julgado, não podendo agora vir a ser reanalisada em sede recursiva.

Mesmo que assim se não entendesse, veja-se que o Acórdão recorrido considera absolutamente legítimo o direito a recorrer por banda da Ré, fazendo afastar, desta feita, uma eventual condenação por má fé a título de dolo.

Contudo, sem embargo de afastar «liminarmente» a apontada condenação a titulo de actuação conscientemente infundada de que estava a usar o meio processual de forma reprovável, faz subsumir a actuação recursiva da Ré na negligência grave, porque a mesma bem sabia ou não podia ignorar o que se havia passado em sede de julgamento em primeira instância, estando assim a agir com elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação de qualquer uma das circunstâncias prevenidas nas alíneas a) a d) do artigo 542º, nº2 do NCPCivil, acrescendo ainda que o segundo grau condenou a Ré como litigante de má fé, não só em multa, como também em indemnização, sem que esta lhe tenha sido peticionada, ex adverso do preceituado no nº1 daquele mesmo normativo.

Todavia, da factualidade apurada nos autos em sede recursiva nada nos conduz à asserção que a Ré ao impugnar o julgamento de primeiro grau o tenha feito de forma temerária justificativa da condenação de que foi objecto, pelo que as conclusões terão necessariamente de proceder.

III Destarte, embora com fundamentação jurídica algo diversa, concede-se a Revista revogando-se a decisão ínsita no Acórdão sob recurso, absolvendo-se a Ré da condenação como litigante de má fé tal como havia sido decidido pelo primeiro grau.

Custas pela Autora.

Lisboa, 20 de Maio de 2014

(Ana Paula Boularot)

(Pinto de Almeida)

(Azevedo Ramos)