Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6124/18.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
DIREITO DE PROPRIEDADE
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
LOCADOR
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 11/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Pode dar de arrendamento não apenas o proprietário, mas também quem tiver o poder de administração do imóvel;

II - Provando-se que os RR foram ocupar um imóvel na sequência de um acordo verbal com quem não era o proprietário nem tinha poderes de administração do imóvel, ainda que sempre tenham depositado na CGD a quantia acordada com aquele como “renda”, não existe uma relação de  arrendamento válida que legitime os RR, ao abrigo do nº2 do art. 1311º do CCivil,  a recusar a entrega do imóvel peticionada pelo proprietário;

III – A mera inação do exercício do direito de propriedade pelo seu titular, ainda que perdure por dezenas de anos, não configura por si só abuso de direito, na modalidade de supressio.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA e BB, intentaram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra CC e DD, na qual pedem a condenação dos RR a:

a) Restituir aos AA, livre de pessoas e bens, o prédio urbano sito na Rua ........, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial …. sob o n.º …..38 da freguesia ........,

b) Pagar aos AA a quantia de €2.000,00 e juros de mora vencidos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento e a quantia mensal de €400,00 que se vencer desde a propositura da ação até efetiva entrega do imóvel e juros de mora vencidos desde o mês respetivo e até efetivo e integral pagamento;

c) Pagar aos AA e ao Estado, a título de sanção pecuniária compulsória, da quantia de €250,00 diários por cada dia de atraso na entrega do imóvel após o trânsito em julgado.

Para tanto, alegam, em síntese, que os AA ocupam o imóvel em causa sem título que a tal os legitime e que os AA estão impedidos de tirar qualquer proveito do imóvel desde setembro de 2017.

Os RR contestaram, defendendo-se por impugnação e deduzindo pedido reconvencional, através do qual peticionam que os AA sejam condenados a pagar-lhes €7.500,00 a título de benfeitorias decorrentes de obras realizadas no imóvel.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os Réus do pedido; e julgou a reconvenção em parte procedente, condenando os Autores a pagarem aos Réus a quantia de € 2.750,00, acrescida de juros de mora à taxa supletiva aplicável aos créditos de natureza meramente civil, contados desde a data da notificação da reconvenção até efetivo pagamento, bem como do valor despendido com a renovação das telhas de cobertura. Foram ainda os AA condenados com litigantes de má fé na multa de 40 UCs.

Inconformados, os Autores apelaram da sentença, com sucesso, pois que a Relação ……, por acórdão de 11.02.20121, com um voto de vencido, decidiu na parcial procedência ao recurso:

- Revogar a sentença recorrida, condenando os Apelados (RR) a restituírem aos Apelantes o prédio urbano sito na Rua .........., em …..., descrito na CRP …. sob o n.º ……38 da Freguesia ........... e inscrito na matriz sob o art. …...44 da Freguesia .................. e a pagarem a indemnização, pela privação do uso, no que vier a ser liquidado, absolvendo-se os Apelados do demais peticionado.

- Julgar parcialmente procedente a reconvenção condenando os Apelantes a pagarem aos Apelados o que vier a ser liquidado, absolvendo-se aqueles do demais peticionado.

- Absolver os Apelantes da condenação como litigantes de má fé.


///


É a vez do Réu DD interpor recurso de revista, na qual pugna pela revogação do acórdão para ficar a subsistir a decisão da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

a) Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal da Relação fez uma errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao decidido, deverá ser reconhecido o direito do aqui Recorrente e mulher, em viverem no imóvel objeto dos presentes autos;

b) Terá existido pelo Tribunal de Segunda Instância, uma violação do disposto no n.º 4, do artigo 607.º, do CPC, ao não valorar, com influência na decisão do mérito da causa, a CONFISSÃO do Recorrido marido, ao reconhecer saber existir pessoas a viver no imóvel em apreço nos autos, desde 1976;

c) O Recorrente considera que, as alíneas f), g), h), i) e j), dos factos provados, deverão se manter com a redação dada pelo Tribunal da Primeira Instância;

d) Em especial, a al. j), deverá se manter nos factos provados, pois a existir alguma dúvida por parte dos aqui Recorridos sobre o pagamento da renda por parte do aqui Recorrente e mulher, a prova dos depósitos, constitui prova bastante e os aqui Recorridos tiveram oportunidade de o confirmar, antes da instauração dos presentes autos;

e) A alteração da al. h), poderá ser aceite, face à remessa para liquidação de sentença;

f) O comportamento dos aqui Recorridos ao longo de mais de 40 anos, criou no aqui Recorrente e mulher, a confiança que tinham direito a viver na casa onde sempre viveram durante todo esse tempo;

g) Resultou também dessa confiança, a realização das próprias obras que o Recorrente e mulher, fizeram no imóvel objeto dos presentes autos e que levou ao pedido reconvencional;

h) Os aqui Recorridos durante mais de 40 anos, nunca fizeram nada, para defenderem a sua propriedade, de uma, suposta, ocupação ilegítima.

i) Face à informação oficiosa existente em 1976 e face à inércia dos aqui Recorridos, o depósito da renda na CGD em nome do pai do aqui Recorrido marido, que faleceu em 1973, não poderia ter sido de uma outra forma, que não nesse nome;

j) Só no ano de 1988, é que os aqui Recorridos começaram a diligenciar pela atualização da documentação oficiosa do bem objeto dos presentes autos;

k) Desde 1975/1976 até 2017, ou seja, durante mais de 40 anos, que nunca os aqui Recorridos mandaram uma carta aos aqui Recorrentes, quando tal era o mínimo que se poderia exigir a alguém que sabia ser proprietário de um determinado imóvel e que o mesmo, supostamente, estaria a ser ocupado de forma indevida;

l) O Recorrido marido também confessou que, ia frequentemente à fábrica da família, que se situa nas traseiras do imóvel aqui em apreço;

m) Pelo que, a existir alguém que deveria e poderia ter tido um comportamento diferente, esse alguém, são apenas os aqui Recorridos;

n) O tio do aqui Recorrido marido, o Sr. EE, era o próprio Senhorio, com contrato e recibo, dos próprios pais da mulher do aqui Recorrente;

o) Sem o conhecimento e concordância do Sr. EE, jamais o aqui Recorrente e família, teriam ido viver para o imóvel identificado nos autos;

p) Além disso, nos termos do n.º 2, do art.º 1.º, do DL n.º 188/76, de 12 de março, que era a legislação vigente à data dos principais factos aqui em apreço, disponha que só o locatário, poderia invocar a falta de contrato escrito;

q) OATUAL JULGADOR, não poderá esquecer e se substituir ao ESPÍRITO DO LEGISLADOR, que face a um período conturbado que o nosso país passou pós 25 de abril, criou um regime vigente durante 10 anos, para resolver as eventuais ocupações ilegítimas de imóveis que existiram no nosso país;

r) A mais pura e única verdade, é que não existiu uma qualquer ocupação ilegítima por parte do aqui Recorrente e mulher, pois, além do atrás mencionado quanto Sr. EE, a mesma foi autorizada e reconhecida, de forma implícita, pelo comportamento dos aqui Recorridos, com toda a implicação que tal acarreta na matéria de facto provada;

s) O comportamento dos aqui Recorridos, com a instauração dos presentes autos, sem mais qualquer preocupação, no mínimo, consubstanciará, um verdadeiro Abuso de Direito;

t) O Acórdão recorrido, com o devido respeito, constitui uma verdadeira ofensa aos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do Direito;

u) O Acórdão recorrido atenta a própria realização da Justiça, pois constitui uma decisão completamente desumana, sem ponderar o comportamento dos aqui Recorridos, mas também às atuais condições de idade e socioeconómicas do aqui Recorrente e mulher;

v) O aqui Recorrente e mulher, criaram na localidade em que se insere o imóvel em apreço nos autos, todos os seus laços familiares e sociais, como seja, a simples inscrição no respetivo Centro de Saúde;

w) Desde o final de 1975, que o aqui Recorrente e mulher sempre pagaram os montantes que lhes foram solicitados para viverem nesse mesmo imóvel;

x) Para a época pós o 25 de abril, o valor de renda de trezentos e quarenta escudos, era um montante muito elevado para uma família trabalhadora, como a do aqui Recorrente;

y) Se ainda não o fizeram, os aqui Recorridos a qualquer momento podem requerer o levantamento do montante depositado pelo aqui Recorrente e mulher, a título de pagamento das rendas acordadas;

z) Contudo, face ao peticionado e caso proceda o pedido dos aqui Recorridos, sem o conceder, não deveriam estes ter acesso ao montante pago ao longo dos anos pelo aqui Recorrente e mulher;

aa) Os aqui Recorridos, não fizeram prova da suposta necessidade própria ou do filho, demonstrando que não possuem ou que o mesmo não possui qualquer outro património imobiliário pessoal em Portugal;

bb) Os Recorridos apenas pretenderam prejudicar a vida do Recorrente e mulher e passados mais de 40 anos, não olharam agora a meios para atingirem os seus fins;

cc) Tal como já mencionado, o comportamento dos aqui Recorridos, durante mais de 40 anos, criou no aqui Recorrente e mulher, a legítima confiança que tinham direito a viver no imóvel aqui em apreço;

dd) A instauração dos presentes autos por parte dos aqui Recorridos, consubstancia um comportamento completamente contrário ao seu anterior;

ee) Assim, por constituir o único interesse que precisa de ser verdadeiramente atendido, deverá ser reconhecido o Direito do aqui Recorrente e mulher, em habitarem o imóvel objeto dos presentes autos, tal como o fizeram nos últimos 45 anos, revogando o Acórdão aqui recorrido;

ff) Pois, o comportamento dos aqui Recorridos configura uma situação de Abuso de Direito, consagrada no artigo 334.º do Código Civil;

gg) Por outro lado, e por mera cautela de patrocínio, caso proceda o pedido dos aqui Recorridos, também sem o conceder, o aqui Recorrente e mulher, deverão ter direito de retenção sobre o imóvel objeto dos presentes autos, até serem ressarcidos por parte dos aqui Recorridos;

hh) Por fim, a conduta dos aqui Recorridos durante mais de 40 anos versus a instauração dos presentes autos, merece ser sancionada, como litigantes de má fé, em quantia não inferior a 10 UC´s, tal como considerou o Exmo. Juiz Desembargador, Dr. Orlando Nascimento no seu voto de vencido no Acórdão aqui Recorrido;

ii) Mas que, com o devido respeito por opinião contrária, deverá se manter a Decisão do Tribunal de Primeira Instância, em condenar os aqui Recorridos como litigantes de fé, numa multa de 40 (quarenta) UC´s, precisamente pela gravidade e consequências dessa mesma conduta dos aqui Recorridos.

Contra alegaram os AA, pugnando pela não admissão da revista  caso assim não se entenda, ser o Recurso apresentado pelo Recorrente julgado totalmente improcedente.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação.

É a seguinte a matéria de facto dada como provada pela Relação:

A) Está registado a favor dos AA o direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua ......., em ......., descrito na CRP ……. sob o n.º …38 da Freguesia ...... e inscrito na matriz sob o art….44 da Freguesia ......., que o A adquiriu de FF, falecido em ../12/1973, por sucessão hereditária.

B) Os RR habitam o imóvel referido em A) desde janeiro de 1976, aí pernoitando, tomando as suas refeições e recebendo a sua correspondência e os seus amigos.

C) Os AA enviaram aos RR, que a receberam, a carta constante de fls. 12v-13, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

D) Em resposta à carta referida em C), os RR enviaram aos AA, que os receberam, a carta e o recibo constantes de fls. 14-14v, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

E) Em resposta à carta referida em C), os AA enviaram aos RR, que a receberam, a carta constante de fls. 15-16, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

F) Os RR passaram a ocupar o imóvel referido em A) na sequência de terem acordado verbalmente com EE que poderiam morar no imóvel mediante o pagamento de um valor mensal de Esc. 340$00.

G) Os RR têm pago todos os meses, desde janeiro de 1976, o valor mensal acordado com EE.

H) No imóvel em causa nos autos, os RR:

i)   Substituíram o piso de madeira por soalho em cerâmica, tendo despendido a quantia de €1.750,00;

ii)  Retiraram o salitre e colocaram azulejos nas paredes interiores, despendendo a quantia de €1.000,00;

iii)  Construíram uma casa de banho um quarto e uma despensa, despendendo a quantia de €4.000,00;

iv)   Renovaram as telhas de cobertura, uma vez que o telhado carecia de reparação, tendo despendido uma quantia concretamente não apurada.


I) O Autor tinha conhecimento que o imóvel referido em A) se encontrava habitado.

A Relação deu como não provado:

1. EE assumira a gestão do património de FF.

2. O A teve sempre conhecimento da realização das obras referidas em H).

3. Na renovação das telhas de cobertura, os RR gastaram a quantia de €750,00.

4. Sem prejuízo do referido em iv) de H), a renovação das telhas de cobertura deveu-se ao facto de chover no interior do imóvel.

5. Ao contrário do que alegou na petição inicial e na réplica e do que quis fazer crer em audiência, ao prestar declarações de parte, o A tem perfeito conhecimento de que os RR passaram a ocupar o imóvel referido em A) na sequência de terem acordado verbalmente com EE que poderiam morar no imóvel mediante o pagamento de um valor mensal de Esc. 340$00 e que têm, todos os meses, desde janeiro de 1976, o valor mensal acordado com EE.


Fundamentação de direito.

A revista suscita a apreciação das seguintes questões:

- Alteração da matéria de facto pela Relação;

- Se a ocupação do imóvel pelos RR é legítima;

- Se a instauração da presente acção constitui um abuso de direito.

- Direito de retenção;

- Litigância de má fé.


Os Recorridos sustentam que a revista deve ser rejeitada por estar em causa apenas a decisão sobre a matéria de facto proferida pela Relação, questão que não pode ser objecto de revista nos termos dos artigos 662º, nºs 1 e 4, e Artigo 674º, nº 3 (por lapso, referiram o art. 664º), ambos do Código de Processo Civil.

Sem razão, no entanto.

A decisão da Relação sobre a matéria de facto não é a única, nem a mais importante, questão suscitada na revista. O que está em causa na revista é essencialmente saber se o Recorrente ocupa legitimamente a casa reivindicada pelos Recorridos e se a propositura da acção representa um abuso de direito. A revista é admissível uma vez que não ocorre dupla conforme, e se verificam os pressupostos gerais, quanto à natureza e conteúdo da decisão (art. 671º/1), do valor da causa e da sucumbência (art. 629º/1), legitimidade e tempestividade.

Dito isto, entremos na apreciação das questões suscitadas no recurso.


A discordância com a decisão da Relação que alterou a matéria de facto, sobretudo com a passagem para não provado do facto constante da alínea J), é algo que não pode ser submetido a escrutínio do STJ, que é um tribunal de revista, estando expressamente consagrado no nº 3 do art. 674º do CPC que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista”, salvo havendo ofensa de “disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”


Nenhuma destas excepções ocorre no caso em apreciação. No depoimento de parte o Autor reconheceu apenas que “sabia que a casa estava ocupada desde 1976”, e que não sabia “quem eram essas pessoas”. A partir daqui o tribunal deu como provado o facto enunciado em I), sem que do reconhecimento daquele facto se possa concluir que o Autor sabia que eram os Réus quem habitava o imóvel na “sequência de terem acordado verbalmente com EE, mediante o pagamento de um valor mensal de Esc. 340$00” (sic).


///



Estamos perante uma acção de reivindicação, um meio de defesa da propriedade previsto no art. 1311º do CCivil, que permite ao proprietário exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito e a consequente restituição do que lhe pertence.

Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, acrescenta o nº 2 da citada disposição.


No caso, não se suscita qualquer dúvida que os AA são os proprietários do imóvel, que se encontra inscrito a seu favor, gozando da presunção de propriedade que resulta do art. 7º do Código de Registo Predial, “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo existe.”

Direito que os RR não contestam. O que negam é o dever de restituição do imóvel alegando estarem a ocupá-lo legitimamente por o mesmo lhes ter sido dado de arrendamento por EE, em 1976, estando desde então a pagar a renda mensal de 340$00, por meio de depósito na CGD.


A sentença deu-lhes razão, considerando que os RR ocupam o imóvel ao abrigo de um contrato de arrendamento, que considerou ainda a pretensão dos AA, de pretenderem a restituição do imóvel ao fim de mais de 40 anos, um abuso de direito 


Outro foi o entendimento do acórdão recorrido que considerou inexistir um arrendamento, não tendo os RR legitimidade para ocuparem o prédio, nem constituir abuso de direito a pretensão dos AA. Daí que tenha revogado a sentença e condenado os RR a restituírem o imóvel aos AA.


Na revista, o Recorrente basicamente defende a revogação do acórdão para ficar a subsistir a sentença, por a presente acção constituir um abuso de direito.


Vejamos.


Constitui entendimento pacífico que na acção de reivindicação impende apenas sobre o autor o ónus de alegar e provar que é proprietário da coisa que reivindica e que esta se encontra em poder do réu.

O réu, por sua vez, se quiser evitar a condenação no pedido de restituição ou entrega da coisa, terá de alegar e provar que a sua detenção é legítima e oponível ao autor (cf., por todos, Código Civil anotado, 2ª edição, III, pag. 112, de Pires de Lima e Antunes Varela).


A detenção da coisa reivindicada pelo réu será legítima se assentar num outro direito real que justifique a posse, ou por virtude de um direito pessoal, como é o caso da locação ou do comodato (cf. Acórdão do STJ de 11.04.2013, P. 288/04, Sumários, 2013).


Sendo incontroverso o direito de propriedade dos AA, cabe averiguar se a detenção do imóvel pelos RR é legítima, por se basear num contrato de arrendamento.


O art. 1022º do CCivil define locação como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.” 

Incidindo o contrato sobre coisa imóvel, a locação diz-se arrendamento (art. 1023º).


A lei não exige para a validade do contrato que tenha de ser celebrado pelo proprietário.


Tem legitimidade para dar de arrendamento um determinado prédio quem tiver o poder de disposição atribuído pelo direito substantivo ao autor do acto jurídico (Ac. STJ de 26.06.2013, Proc. 57/2001, Sumários, 2013, pag. 447).


A legitimidade do locador determina-se pelo poder de administrar a coisa objecto da locação (art. 1024º). Assim, o locador poderá ser o proprietário, o usufrutuário ou o titular de qualquer outro direito real que confira a administração do bem. Além disso, também pode dar de locação o titular de um direito obrigacional de gozo sobre a coisa, que lhe confira o poder de a administrar, ou ainda quem, por via negocial, (p. ex. mandatário com representação, ou promitente comprador após tradição da coisa) ou legal (p. ex. representação legal) tem poderes de administração da coisa. (Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial), 2ª edição, 173).


No caso vertente, provou-se que os RR foram ocupar o imóvel no princípio de 1976, na sequência de um acordo verbal com o EE. Sucede que este não era, nem nunca foi o proprietário do imóvel, nem tinha quaisquer poderes de administração que o legitimassem a dá-lo de arrendamento.


O imóvel é pertença do Autor, que o adquiriu por sucessão hereditária de seu pai  GG, falecido em Dezembro de 1973, e irmão do EE.


A ocupação do imóvel, na sequência de uma autorização por parte de quem não tinha poderes de administração do imóvel, ainda que os RR sempre tenham depositado mensalmente na CGD, à ordem do Sr. Juiz de Direito, o valor acordado de 340$00, não resultando da matéria de facto que os AA hajam dado o assentimento, ainda que tácito, ao acordo entre o EE e os RR, não consubstancia um contrato de arrendamento válido.


A conclusão inevitável é a de que os RR não dispõem de título válido que possam opor ao direito de propriedade do Autor, de natureza imprescritível (art. 298º, nº 3 do CC), salvo se tivessem adquirido tal direito por usucapião, dada a imprescritibilidade da acção de reivindicação que decorre do art. 1313º do CC: “Sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, a acção de reivindicação não prescreve pelo decurso do tempo.”


Se a pretensão dos AA é ilegítima, por constituir um abuso de direito.

Nos termos do art. 334º do CCivil, “é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Como sublinhado no Acórdão do STJ de 21.09.1993, CJ Ac STJ, ano I, 3, pag. 21, “a figura do abuso de direito é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social…; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.”


Na formulação genérica do art. 334º cabem diversas categorias doutrinárias do abuso de direito, entre as quais o venire contra factum proprium e a suppressio


A primeira, a categoria de abuso de direito mais abrangente e frequente, abrange os casos de comportamentos contraditórios do titular do direito, frustrantes das expectativas criadas na contraparte e nas quais esta tenha legítima e razoavelmente confiado.


A supressio é uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inação do titular do direito.

Nas palavras de Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, parte geral, pag. 323, “a supressio por não dispor da precisão facultada pelo factum proprium (por definição, uma actuação positiva), vai requerer circunstâncias colaterais que melhor alicercem a confiança do beneficiário (...). Ela deverá, para ser relevante, reunir os elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida.”

           

No recente acórdão deste STJ de 12.01.2021, P. 2689/19.8T8GMR-B.G1.S1 (Maria Clara Sottomayor), fez-se aplicação desta modalidade de abuso de direito, constando do respectivo sumário:

“A suppressio traduz-se no não exercício do direito durante um certo lapso de tempo, suscpetível de criar na contraparte a confiança de que esse direito não mais será exercido. Mas não basta o exercício tardio do direito. É necessário que se atenda ao poder dos factos e sejam ponderadas todas as circunstâncias do caso, à luz do princípio da boa fé, e ainda que se verifique a obtenção de uma vantagem excessiva para o titular do direito, acompanhada da imposição de sacrifícios relevantes e injustificados para a contraparte.”


À luz dos princípios expostos, não vemos que a pretensão dos AA constitua um abuso de direito em qualquer das modalidades.


Não se verifica o venir contra factum proprium, dada a inexistência de um comportamento anterior dos AA apto a criar nos RR a confiança de que nunca lhes seria solicitado a restituição do imóvel. Não revelando da matéria de facto comportamentos contraditórios dos AA, não há abuso de direito.


Igualmente não se pode falar de suppressio já que esta modalidade de abuso de direito não se basta com a inação do titular por um determinado lapso de tempo, exigindo  outras circunstâncias – por exemplo, um reconhecimento do direito e a possibilidade de o exercer – para que se possa falar em confiança justificada de que ele não mais seria exercido, circunstancialismo que não ocorre na situação dos autos.


A entender-se de outro modo estar-se-ia a legitimar a expropriação do direito de propriedade dos AA, sem qualquer indemnização, contra o princípio constitucional do art. 62º da CRP que reconhece o direito de propriedade privada, e ao arrepio do art. 1308º do CCivil que expressamente estipula que “ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei.” 


Em suma, não há abuso de direito por banda dos AA, como decidiu o acórdão recorrido.


Na conclusão gg), os Recorrentes sustentam que, a proceder a revista, lhes seja reconhecido o direito de retenção sobre o imóvel até serem ressarcidos pelas benfeitorias que fizeram no imóvel, direito que a Relação lhes reconheceu, em valor a apurar em liquidação.

O direito de retenção é uma garantia especial das obrigações, cuja noção consta do art. 754º do Cód. Civil:

“O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”

Sucede que o eventual direito de retenção dos RR é suscitado pela primeira vez no recurso de revista, constituindo assim uma questão nova, que não sendo de conhecimento oficioso não é susceptível de apreciação por este tribunal, pois, conforme entendimento constante, os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova.

Motivo por que não se conhece da mesma.


Com o que improcedem na totalidade as conclusões do recurso.


Sumário:

I - Pode dar de arrendamento não apenas o proprietário, mas também quem tiver o poder de administração do imóvel;

II - Provando-se que os RR foram ocupar um imóvel na sequência de um acordo verbal com quem não era o proprietário nem tinha poderes de administração do imóvel, ainda que sempre tenham depositado na CGD a quantia acordada com aquele como “renda”, não existe uma relação de  arrendamento válida que legitime os RR, ao abrigo do nº2 do art. 1311º do CCivil,  a recusar a entrega do imóvel peticionada pelo proprietário;

III – A mera inação do exercício do direito de propriedade pelo seu titular, ainda que perdure por dezenas de anos, não configura por si só abuso de direito, na modalidade de supressio.


Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 17.11.2021


Ferreira Lopes (relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva