Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A197
Nº Convencional: JSTJ00042898
Relator: RIBEIRO COELHO
Descritores: REGISTO PREDIAL
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200203190001971
Data do Acordão: 03/19/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8104/01
Data: 10/04/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: MANDADA AMPLIAR A MATÉRIA DE FACTO.
Área Temática: DIR REGIS NOT.
DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 343 N1.
CNOT95 ARTIGO 89 N1 ARTIGO 96 N1.
CRP84 ARTIGO 2 N1 A ARTIGO 7 ARTIGO 43 N1 ARTIGO 116 N1 ARTIGO 100 ARTIGO 101 N2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1994/04/26 IN CJSTJ ANOII T2 PAG68.
Sumário : I - A acção de impugnação da escritura de justificação notarial é de apreciação negativa, pelo que incumbe ao réu o ónus da prova dos factos constitutivos no direito naquela afirmado.
II - Porém se a acção for deduzida após a efectivação do recurso, o ónus da prova cabe ao autor pois o réu goza da presunção do art. 7 do CRPredial.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, B e C, propuseram pelo Tribunal de Círculo de Torres Vedras contra D e E, uma acção com processo ordinário pela qual pediram a declaração da ilegalidade da escritura de justificação celebrada pelos réus e pela qual foi declarado serem estes donos de um prédio rústico por o terem comprado verbalmente e estarem na sua posse há mais de vinte anos, assim violando os direitos dos legítimos herdeiros de F, a qual, com seu marido, o comprara verbalmente e possuíra durante mais de vinte anos.
Após contestação, réplica, saneamento, condensação e audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou procedente a acção e declarou sem efeito a escritura impugnada, ordenando o cancelamento do registo feito a favor dos réus na Conservatória de Registo Predial de Torres Vedras sobre o prédio em causa.
Apelaram os réus, com êxito, já que a Relação de Lisboa proferiu acórdão que revogou a sentença e absolveu os réus do pedido.
Daqui trouxeram os autores o presente recurso de revista no qual, pedindo que se reponha a decisão da 1ª instância, formulam conclusões em que defendem o seguinte:
I- Os recorridos não beneficiam de inversão do ónus de prova porque a escritura é falsa, assentando em depoimentos errados, falsos e dolosos;
II- A escritura não lhes dá a presunção a que se refere o art. 7º do CRPredial;
III- A resposta negativa aos quesitos 1º a 5º e 8º a 15º fundou-se nos depoimentos das testemunhas de ambas as partes, assim se ilidindo a presunção registral;
IV- A desconformidade entre o teor da escritura e a realidade dos factos deve levar à declaração oficiosa da falsidade da escritura.

Houve resposta em que os recorridos defenderam a improcedência deste recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Não há controvérsia das partes a respeito dos factos que foram dados como assentes e não se levanta a propósito dos mesmos qualquer questão que deva ser tratada oficiosamente, pelo que se remete para a descrição que dos mesmos consta do acórdão recorrido, nos termos dos arts. 713º, nº 6 e 726º do CPC - o que, uma vez que nele se usou já a mesma faculdade, significa que a remissão agora feita se reporta, afinal, à sentença da 1ª instância.
Tais factos resumem-se, no que aqui nos interessa, ao teor da escritura de justificação celebrada em 1/8/95, tal como fora já retido no rol dos factos assentes elaborado por ocasião da condensação.
Da base instrutória apenas proveio, na sequência das respostas dadas aos quesitos 6º e 7º, a afirmação de que os recorridos exerciam a actividade de carvoeiros.
As questões a decidir serão compreendidas de modo mais perfeito se se fizer uma descrição dos termos em que a lide se desenvolveu até este momento.
Os autores alegaram na petição inicial, nomeadamente, que: a) em 1976 o prédio rústico em causa fora adquirido verbalmente por F e seu marido G, tendo este pago a respectiva sisa e feito inscrever o mesmo nas Finanças em seu nome; b) após essa aquisição o casal comprador tomou posse do prédio, permitindo que seus netos ali implantassem e explorassem fornos de carvão vegetal; c) os réus, querendo fazer seu esse prédio, promoveram a celebração da escritura de justificação aqui impugnada, nela fazendo exarar declarações falsas no sentido de terem sido eles, e não aqueles, quem o comprara verbalmente e posteriormente o possuíra, após o que haviam feito registar a aquisição a seu favor no registo predial.
Na contestação os réus contrapuseram, além do mais, a sua versão quanto à compra e posse do prédio e arguiram a nulidade por falta de forma da compra e venda alegada na petição, daí extraindo o pedido da sua absolvição quanto ao mérito.
No saneador, em sede de conhecimento desta excepção peremptória, aí julgada improcedente, foi dito que a impugnação feita quanto às declarações constantes da escritura tornava incerto o direito nela afirmado e por isso insuficiente para fundar a presunção do art. 7º do CRPredial e que a acção cabia na categoria das acções de simples apreciação negativa, com a consequência de os réus ficarem onerados com o encargo da prova dos factos constitutivos do seu direito.
Por isso, e passando à condensação, a base instrutória foi elaborada com inclusão dos factos, controvertidos, que os réus haviam alegado na contestação.
Em julgamento quase todos esses factos - designadamente os que constituíram os pontos 1º a 5º e 8º a 15º da base instrutória - foram julgados não provados.
Daí, coerentemente, resultou a sentença que deu procedência à acção visto que os réus não haviam provado os factos constitutivos do seu direito.
Mas a Relação veio dizer depois que o entendimento da 1ª instância quanto ao ónus de prova apenas tinha razão de ser nos casos em que os justificantes não tivessem conseguido efectuar o registo em seu favor; caso contrário, como foi o caso, beneficiam da presunção a que se refere o mencionado art. 7º, o que fará recair sobre quem impugna a escritura o ónus de provar o seu direito; e, na falta dessa prova, decidiu no sentido da improcedência da acção.
"Quid iuris"?
Uma vez que estão sujeitos a registo os actos que determinam a constituição ou a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis e que, em princípio, a respectiva inscrição só pode ser feita com base em documento que os comprove legalmente, a lei permite, como válvula de escape, que a falta deste seja suprida, entre outros meios, através de uma escritura de justificação notarial - cfr. arts. 2º, nº 1, al. a), 43º, nº 1 e 116º, nº 1 do CRPredial e arts. 89º, nº 1 e 96º, nº 1 do C. Notariado aprovado pelo DL nº 207/95, de 14/8 (antigos arts. 100º, nº 1 e 105º, nº 1 do Código anterior).
Para que esta escritura dê lugar à feitura do correspondente registo é necessário que seja publicada num jornal e que se emita certidão da mesma, não antes de decorrerem trinta dias sobre aquela publicação e, cumulativamente, desde que se não receba comunicação da pendência de impugnação judicial do facto justificado - cfr. arts. 100º e 101, nº 2 do mesmo CRPredial (antigos arts. 109º e 109º-A, nº 2 do anterior).
A jurisprudência vem entendendo pacificamente que a acção em que se faz esta impugnação é uma acção de simples apreciação negativa, visto que por ela se pretende destruir o facto gerador da aquisição contra a qual se reage - cfr. o acórdão deste STJ proferido em 26/4/94, Col. Jur. - STJ, 1994-II-68, bem como os da Relação de Lisboa de 15/5/97, Col. Jur. 1997-III-85, da Relação do Porto de 2/4/87, Col. Jur. 1987-II-227, e de 17/6/93, Col. Jur. 1993-III-231, e da Relação de Coimbra de 25/11/97, Col. Jur. 1997-V-23.
Daí decorre, em princípio, a aplicação do disposto no art. 343º, nº 1 do CC, que prescreve um regime especial de ónus de prova, fazendo-se recair sobre o réu o ónus de provar os factos constitutivos do direito afirmado na escritura impugnada.
Resta saber se assim é sempre, tendo aqui interesse uma curta incursão pelo regime legal que se acha delineado a propósito da justificação notarial.
Como se disse acima, esta modalidade de escritura é um instrumento usado para suprir a falta de documento bastante para a prova do direito de um interessado na efectivação da primeira inscrição.
O direito que se pretende justificar logra nela afirmação através das declarações dos interessados, confirmadas por declarantes.
É patente a insegurança deste meio, pelo que o legislador rodeou de cautelas razoáveis a consumação daquele suprimento, obrigando à sua publicitação e a um tempo de espera com vista a dar tempo a que eventuais opositores tomem a iniciativa da competente impugnação judicial.
Não surgindo entretanto qualquer impugnação, poderá ser emitida certidão da escritura e com base nela poderá promover-se a inscrição registral devida.
Surgindo alguma impugnação dentro daqueles trinta dias, a referida certidão não poderá ser emitida antes do averbamento da decisão definitiva da acção.
No entanto, ainda uma outra hipótese pode ser posta, qual seja a de - na primeira das duas alternativas acabadas de gizar - vir a ser deduzida uma impugnação judicial extemporaneamente - isto é, após o decurso dos mesmos trinta dias - e já depois de feita a inscrição registral da escritura de justificação; foi este o caso dos presentes autos.
Ora, enquanto que na hipótese de a impugnação judicial ser deduzida dentro daqueles trinta dias não oferece dificuldades a aplicação do citado art. 343º, nº 1, já assim não é no caso de impugnação deduzida extemporaneamente e após a efectivação do registo.
Na verdade, neste último caso avulta o disposto no art. 7º do CRPredial, de acordo com o qual se presume que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define.
E esta presunção não se coaduna com a imposição, ao réu, do ónus de provar os factos constitutivos do seu direito, já que impor este ónus ao réu, que é um titular inscrito, equivale a negar aquela.
A afirmação simultânea dessa presunção e desse ónus equivale à sua recíproca exclusão, por isso sendo inconciliáveis.
O acima referido acórdão deste STJ, proferido em 26/4/94, salientou que, sendo embora a escritura um documento com força probatória plena, esta limita-se ao que foi percepcionado pelo notário - ou seja, à emissão das declarações que dela constam como feitas pelos interessados e pelos declarantes -, não abrangendo a veracidade das declarações por ele atestadas como efectivamente produzidas; e, uma vez impugnada a escritura, tornar-se-ia incerto o direito nela afirmado com base naquelas declarações, ficando sem fundamento a aludida presunção.
Não parece, porém, que esta argumentação haja visado resolver o aludido conflito, existente na hipótese em apreço, no sentido de privilegiar a imposição do ónus de prova ao réu e sacrificar a presunção de que ele, enquanto titular inscrito, beneficiaria.
De facto, na hipótese versada nesse acórdão não houvera efectivação do registo, mas apenas da escritura de justificação, pelo que não estava em causa a aplicabilidade daquela presunção; e por isso o essencial era a constatação, feita nesse acórdão, de que as declarações feitas na escritura apenas relevavam para efeitos de descrição registral enquanto não fossem impugnadas; sendo-o, já não relevariam para esse efeito e, portanto, não viriam a dar lugar a que se invocasse a referida presunção.
Por isso, em tal caso a imposição do ónus de prova ao réu não contende com aquela presunção, então inexistente.
Diferentes são, todavia, as coisas na "fattispecie" que nos ocupa.
Os réus, aqui recorridos, são titulares inscritos, em condições de beneficiarem da referida presunção.
A distinção que há a fazer - e acima apontada - quanto ao âmbito da força probatória plena de uma escritura pública pode ser levada em conta numa acção em que apenas ela esteja em causa.
Não é isso que aqui se passa, pois que à escritura se seguiu a inscrição registral, com a inerente presunção.
Isto é, as reservas que se levantassem agora quanto ao conteúdo da escritura mas sem que se mostrasse ilidida essa presunção traduziriam a negação desta, sem que isso se mostre autorizado nem pela letra nem pelo espírito do citado art. 7º - destinado, como é, a fazer valer a fé pública do registo.
Estar-se-ia, ao fazê-lo, a pôr em causa o acto inscrito no registo sem se observar o que a lei exige para tanto.
Daí que, tal como entenderam o acórdão recorrido e também os atrás citados acórdãos de 2/4/87 e de 15/5 e 25/11/97, aquele regime especial decorrente do art. 343º, nº 1 do CC ceda perante a força da presunção a que se refere o art. 7º do CRPredial, fazendo operar, por respeito a esta, uma inversão do ónus da prova.
Onerados com este encargo estão, pois, os autores nesta acção, ora recorrentes.

Daí que as duas primeiras teses dos recorrentes, atrás mencionadas em súmula, não tenham sucesso.
Também a terceira tese dos recorrentes não pode ser aqui acompanhada.
É certo que os pontos 1º a 5º e 8º a 15º da base instrutória, que encerravam a tese dos recorridos, tiveram resposta de "não provado".
Tal não ilide, porém, a presunção advinda do registo.
O afastamento de uma presunção legal só pode ter lugar através da prova de factos que a contrariem - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pgs. 312-313.
Como é sabido, uma vez tido como não provado determinado facto, não se segue que possa ter-se como assente o seu contrário, tudo se passando como se nada a esse respeito houvesse sido averiguado.
Em confronto com a afirmação de um facto - "provado que aconteceu X" -, pode conceber-se a sua negação cabal - "X não aconteceu" - e ainda um estádio intermédio em que a realidade não foi reconstituída pela positiva, apenas se ficando numa situação de desconhecimento da realidade - "não provado que X aconteceu" -, o que, se não é incompatível com a segunda destas hipóteses, se mostra inidóneo para a afirmar.
Daí que as mencionadas respostas de "não provado" sejam obviamente insuficientes para dar como ilidida a presunção, não podendo pensar-se - ao contrário do que os recorrentes pensam - em recorrer à fundamentação das respostas à base instrutória nem ao suposto teor de depoimentos que não foram gravados em audiência para dar outro sentido ao conteúdo dessas respostas.
Não obstante a afirmada comunhão com as ideias nele defendidas, a solução ditada pelo acórdão recorrido não é de manter.
Afirmou-se nele, na parte final da fundamentação, o seguinte:
"Como nem os autores nem os réus - para além do registo - provaram os factos alegados para fundamentarem a usucapião do prédio, tem o pedido dos autores de improceder".
Mas relembremos o que acima dissemos ao descrever o desenvolvimento da lide.
Os autores, aqui recorrentes, alegaram na petição inicial factos tendentes à demonstração de que o direito de propriedade sobre o prédio teria sido adquirido pelo casal formado pela F e seu marido.
Dispuseram-se, pois, a fazer a prova da inexistência do direito afirmado na escritura impugnada.
No entanto, e dado o entendimento que no saneador se exprimiu sobre o regime de ónus de prova aplicável, à base instrutória apenas foram levados os factos alegados pelos réus na contestação, e não também aqueles que os autores haviam alegado e eram controvertidos.
Uma vez que, como se disse, aquele regime sobre ónus de prova não era o correcto, ressalta à vista que a falta de prova dos factos que podem viabilizar a pretensão dos autores se não deve a qualquer insucesso probatório, mas, apenas, à circunstância de não terem sido averiguados.
É caso de aplicação do disposto no art. 729º, nº 3 do CPC, devendo ser ordenada aqui a ampliação da matéria de facto por forma a ser colmatada essa lacuna.
Em face do exposto, manda-se que os autos baixem à Relação de Lisboa para que aí, se possível com intervenção dos mesmos Excelentíssimos Desembargadores, se providencie pela ampliação da matéria de facto nos termos indicados e por posterior repetição do julgamento da causa, com observância, na medida em que haja que fazer apelo ao regime de ónus de prova, daquele que se deixou definido.
As custas deste recurso serão suportadas consoante a responsabilidade que a final se determinar.

Lisboa, 19 de Março de 2002.
Ribeiro Coelho,
Ferreira Ramos,
Garcia Marques.