Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3/15.0IFLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
REVISTA EXCECIONAL
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
Apenso:
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Dispõe o art. 400.º, n.º 3, do CPP; “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”.

II - A jurisprudência do STJ tem entendido que o recurso em matéria cível se rege, subsidiariamente, pelo regime processual civil, mas não pode ter “a virtualidade de tornar recorrível o que, em função da matéria de que trata, é irrecorrível; no recurso da parte da sentença relativa à indemnização não poderão ser introduzidas questões que lhe sejam estranhas, designadamente as que se prendam com os pressupostos da condenação/absolvição penal” – acórdão do STJ, de 13-01-2010, proc. n.º 2569/01.3TBGMR-D. G1.S1, in www.dgsi.pt.

III - Assim, aos recursos em processo penal que visem a parte da decisão em matéria cível é aplicável o regime da revista consagrado no arts. 671.º, do CPC. Incluindo, evidentemente, a norma do n.º 3 que estabelece a denominada dupla conforme.

IV - O art. 671.º, n.º 3, do CPC, dispõe: “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (…)”.

V - No caso sub judice, o tribunal da Relação de Lisboa confirmou por unanimidade dos juízes do coletivo, a decisão proferida em 1.ª instância, em matéria cível.

VI - Analisando o acórdão objeto do presente recurso conclui-se que, para além de a decisão ter sido tomada sem qualquer voto de vencido, a mesma não apresentou fundamentação essencialmente diferente da constante da decisão proferida na primeira instância.

VII - Assim sendo, estamos perante um caso de dupla conforme, que, independentemente do valor da causa e da sucumbência torna inadmissível o recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

VIII - Neste sentido, o acórdão do tribunal da Relação é irrecorrível, motivo pelo qual não pode ser admitido o recurso, nos termos dos arts. 414.º, n.º 2, do CPP, e 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi do art. 4.º, do CPP, e terá que ser rejeitado, pois, o facto de ter sido admitido, não vincula o tribunal superior (art. 414.º, n.º 3, do CPP).

IX- Pretende ainda a recorrente que o recurso deve ser admitido por se verificarem os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista, estabelecidos no n.º 1 do artigo 672.º, do CPC, alegando que causa se encontram questões passíveis de se repetirem num número indeterminado de casos futuros, o que torna a admissão da revista claramente necessária para a melhor aplicação do direito; e por outro lado, as questões que pretende a Recorrente ver apreciadas em sede de revista revestem uma relevância social que lhe imprime a importância fundamental a que se reporta o n.º 1, do artigo 672.º do CPC, e que se assume como um dos pressupostos que justifica a admissibilidade do recurso de revista.

X - A norma invocada pela recorrente - art. 672.º, do CPC – prevê a revista excecional.

XI - Em processo penal e em matéria de recursos, o CPP prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso. E a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso num caso como o presente. Duplo grau de recurso que a Constituição não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do TC, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso. Grau este que, no presente caso, se mostra já assegurado, como supra se referiu.

XII - E as normas processuais civis cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, desde logo porque o art. 4.º, do CPP pressupõe a existência de uma lacuna, a qual não ocorre em matéria de recursos. Não ocorre seguramente ao nível das grandes linhas de organização do modelo e de classificação dos vários tipos de recursos, ordinários e extraordinários.

XIII – Pelo que, o recurso de revista excecional não é admissível, motivo pelo qual tem que ser rejeitado.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



1. RELATÓRIO

1.1. No Juízo Central Criminal ... – Juiz ... foram julgados em processo comum com intervenção do tribunal coletivo, os arguidos AA, “C... S.A.”, BB e CC, devidamente identificados nos autos e, por acórdão de 34/06/2019, foram condenados:

AA, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, n º 1, alínea a) e 104º, nºs 1, alíneas d) e e) e 2, alínea a), do RGIT, na redação originária da Lei nº 15/2001, de 15/06, quanto ao artigo 104º, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período temporal, sendo a suspensão condicionada ao pagamento pelo arguido (a par dos arguidos CC e BB), durante o período da suspensão, da quantia total de € 3.108.158,29;

“C... S.A.”, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7º, nº 1, 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nºs 1, alíneas d) e e) e 2, alínea a), do RGIT, na redação originária da Lei nº 15/2001, de 15/06, quanto ao artigo 104º, na pena de 1000 dias de multa, à taxa diária de € 500,00 no montante total de € 500.000,00;

BB, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nºs 1, alíneas d) e e) e 2, alínea a), do RGIT, na redação originária da Lei nº 15/2001, de 15/06, quanto ao artigo 104º, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período temporal, sendo a suspensão condicionada ao pagamento pelo arguido (a par dos arguidos AA e CC), durante o período da suspensão, da quantia total de € 3.108.158,29;

CC, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nºs 1, alíneas d) e e) e 2, alínea a), do RGIT, na redação originária da Lei nº 15/2001, de 15/06, quanto ao artigo 104º, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período temporal, sendo a suspensão condicionada ao pagamento pelo arguido (a par dos arguidos AA e BB), durante o período da suspensão, da quantia total de € 3.108.158,29.

Foram ainda os arguidos AA, “C... S.A.”, BB e CC, condenados a pagar ao demandante Estado Português a quantia de € 3.108.158,29, a título de indemnização civil, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados por referência aos termos iniciais e contabilizados em conformidade com o disposto no artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 73/99, de 16/03.

1.2. Inconformados com o acórdão dele interpuseram recurso os arguidos para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão de 01 de junho de 2021, negou provimento aos recursos interpostos pelos arguidos e confirmou integralmente o acórdão da primeira instância.

1.3. Ainda inconformada recorreu a arguida/demandada cível C... S.A, para este Supremo Tribunal, concluindo nos seguintes termos: (transcrição)

«A. O presente recurso de revista tem por objeto o Acórdão proferido pelo TR..., notificado à Recorrente em 07 de junho de 2021, que julgou improcedente o recurso apresentado da decisão proferida pelo Juízo Central Criminal ..., no segmento relativo ao pedido de indemnização cível, tendo mantido a decisão de condenação ao pagamento ao Estado Português da quantia de € 3.108.158,29, a título de indemnização civil, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados por referência aos termos iniciais e contabilizados em conformidade como disposto no artigo 3.º, n.º 1doDecreto-Lei n.º 73/99, de 16 de março;

DA ADMISSIBILIDADE

B. Os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista, estabelecidos no n.º 1 do artigo 672.º, do CPPT, encontram-se reunidos in casu, pelo que deve o mesmo ser admitido;

C. Desde logo porque em causa se encontram questões passíveis de se repetirem num número indeterminado de casos futuros, o que torna a admissão da revista claramente necessária para a melhor aplicação do direito;

D. Por outro lado, as questões que pretende a Recorrente ver apreciadas em sede de revista revestem uma relevância social que lhe imprime a importância fundamental a que se reporta o n.º 1, do artigo 672.º do CPC, e que se assume como um dos pressupostos que justifica a admissibilidade do recurso de revista;

E. Considerando que a Recorrente foi notificado do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo em 07 de junho de 2021, o presente recurso de revista afigura-se tempestivo, por ter sido interposto dentro do prazo de 30 dias previsto no n.º 1, do artigo 638.º do CPC.

F. Na verdade, são quatro as questões que se colocam no caso sub judice e que apresentam uma relevância jurídica e social essencial:

a. À luz do ordenamento jurídico português, qual o momento a partir do qual se pode afirmar que um Arguida condenado ao pagamento de uma quantia pecuniária no pedido de indemnização cível excretado no processo penal, decorrente da prática de um crime de fraude fiscal se constitui em mora?

b. É ou não admissível à luz do ordenamento jurídico português, considerar-se a apreensão das contas bancárias realizada no âmbito penal como suscetível de integrar uma garantia de pagamento ao Estado Português segura e plena de modo que a taxa de juro aplicável seja reduzida em metade?

c. À luz do ordenamento jurídico português o facto de não se ter ainda verificado o pagamento do montante fixado no pedido de indemnização cível excretado no processo penal, decorrente da prática de um crime de fraude fiscal implica a não aplicação da limitação na contabilização dos juros de mora devidos aos últimos cinco anos anteriores à data de pagamento?

d. Sendo negativa a resposta à questão identificada em a. e entendendo-se que os juros são contabilizados a partir do momento em que os montantes dos impostos devidos não entram nos cofres do Estado, é admissível à luz do ordenamento jurídico português, considerar-se que a tentativa de pagamento desses montantes constituiu o credor em mora?

G. Caso se entenda que não estarem preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista, o que por mera hipótese de raciocínio se equaciona, então, deve o presente recurso ser admitido nos termos gerais, de acordo com as normas conjugadas dos artigos 400.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (adiante, “CPP”) e do artigo 672.º, n.º 5 do CPC, dado que foi intenção do legislador limitar a admissibilidade do recurso para o STJ das decisões relativas ao pedido de indemnização cível apenas a dois requisitos: o valor da causa e o da sucumbência, não integrando a verificação da “dupla conforme”, como uma das causas de inadmissibilidade do recurso.

H. Assim, entende a Recorrente que as questões que traz a este Supremo Tribunal revestem uma especial relevância social, sendo, portanto, o recurso admissível à luz do regime da revista excecional, no entanto, e caso assim não se entenda, requerer-se que seja o recurso admissível nos termos gerais, ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 672.º do CPC e do n.º 2 do artigo 400.º do CPP.

DAS QUESTÕES DE DIREITO

I. A primeira questão que se coloca a este Tribunal está relacionada com a questão de saber a partir de que momento é que um Arguida num processo penal por fraude fiscal se constitui em mora no pedido de indemnização cível.

J. A Recorrente não concorda que sejam devidos juros de mora desde a data de vencimento da obrigação tributária, na medida em que não está em causa a responsabilidade tributária decorrente do não pagamento de uma obrigação tributária, mas sim, juros de mora decorrentes da responsabilidade civil resultante da prática de um crime, in casu, do crime de fraude fiscal.

K. Dado que, não podem ser devidos juros fora dos termos previstos para a responsabilidade civil extracontratual (que o Tribunal recorrido entende ser o caso), pelo que deve o Acórdão de que se recorre ser revogado nessa parte, condenando-se o arguida apenas pelos juros moratórios civis vencidos e a vencer desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até pagamento – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 966/13.0TAOER.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.

L. Se se entende que a taxa de juro a considerar no caso presente é a estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16.03, por maioria de razão, e porque tal é imposto pela coerência do sistema, teremos que entender que essa taxa é reduzida a metade sempre a dívida esteja coberta por garantias reais constituídas por iniciativa da entidade credora – cfr. o n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 73/99, de 16.03.

M. Efetivamente, independentemente da qualificação da apreensão das quantias bancárias à ordem destes autos como garantia real, a verdade é que o Estado detém uma garantia plena e segura de que o montante de€3.108.158,29será pago. Pelo que, deve o Arguida beneficiar da taxa de juros de mora reduzida a 0,5%, nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16.03 – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0886/05, disponível em www.dgsi.pt.

N. Sem conceder, o Acórdão recorrido é nulo, nos termos e para efeitos do disposto nos referidos artigos 379.º, n.º 1, alínea c), 425.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, uma vez que não se pronuncia sobre esta questão, nulidade essa que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos.

DA INCONSTITUCIONALIDADE

O. A interpretação da norma resultante do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16.03, isolada ou em conjunto com o disposto no artigo 3.º, n.º 4, do mesmo Decreto-Lei, no sentido segundo o qual, quando o montante de indemnização civil a cujo pagamento se venha a condenar os arguidos em processo criminal se encontrar garantido pelas quantias disponíveis em contas bancárias apreendidas ao abrigo dos autos, não é de subsumir os juros associados ao regime previsto no n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16.03, sempre redundará em norma materialmente inconstitucional, por violação do principio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que, para todos os efeitos legais, se deixa expressamente invocada.

P. Por outro lado, a teleologia do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16.03, e no espírito do Diploma – tratar de forma menos gravosa as situações de dívidas perante o Estado – é a de limitar a contabilização dos juros de mora devidos aos últimos 5 anos de incumprimento.

Q. Significa isto que os arguidos/demandados não podem ser condenados pelo pagamento de juros moratórios alegadamente devidos desde termos iniciais anteriores, em mais de 5 anos, da data de pagamento, só podendo tais juros ser calculados até ao limite dos 5 anos antes da data de pagamento – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do processo n.º 0841206, disponível em www.dgsi.pt.

R. A partir de 08 de setembro de 2016, a Arguida C... S.A., tentou por diversas vezes proceder ao pagamento das quantias em dívida, oque, apenas não logrou fazer por causa unicamente imputável à Credora, verificando-se, a partir daquela data, a constituição da mora da credora, com os efeitos legais daí decorrentes, nomeadamente, a paragem da contabilização de juros de mora a favor do Arguida – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 12/17.0T8SNT.L1.S1.

S. Por tudo isto o Tribunal a quo não intuiu, se impõe a pronúncia deste Supremo Tribunal em sede de revista.

T. Por outro lado, a decisão do TR... de não apreciar especificamente esta questão constitui omissão de pronúncia para os efeitos do disposto nos artigos 425/5, 379/1/c do CPP e 615/1 do CPC, pelo que o acórdão recorrido é nulo.

DA INCONSTITUCIONALIDADE

U. Caso assim, não se entenda a interpretação que o Tribunal recorrido faz do artigo 813 e 814/2 do Código Civil, no sentido de que não há mora do credor nos casos em que a Autoridade Tributária e/ou o Ministério Público omitiram os atos necessários para que o devedor pudesse efetuar o pagamento da divida tributária, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, da legalidade e da boa fé previstos nos artigos 1872, 20/4 e 266/2 da CRP.

Nestes termos e nos mais de Direito, se requer a V. Exas. se dignem admitir o presente recurso de revista e revogar o Acórdão recorrido, nos termos peticionados no presente recurso, com as demais consequências legais.

1.4. O recurso foi admitido.

1.5. No Tribunal da Relação ... não houve Resposta.

1.6. Neste Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer, nos seguintes termos:

«APRECIANDO:

Estatui o artº 129º do Código Penal:

“A indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil”

O artigo 129º do Código Penal (CP) toma posição no assunto. Mas, o Autor do Projeto inicial de 1963 ponderado na 1ª Comissão Revisora do Código de 1982, manifestou-se no sentido de” mesmo em face do texto proposto, (…) poderá continuar a considerar-se que o arbitramento da indemnização pode ou mesmo deve ser feito pelo jurisdição penal”.

“A Comissão Revisora do projeto de 1991 concordou em manter a redação do texto de 1982, anotando, porém, a existência de uma certa descrença no sistema existente, a reclamar eventuais alterações no domínio da lei processual” (Acta nº...1, ...13).

Hoje, conforme está legislado, a regra em matéria de indemnização civil decorrente de um crime é o da sua reclamação no próprio processo criminal.

Nos termos estatuídos no artº 3º, al. c) do RGIT, é subsidiariamente aplicável as disposições do código Civil e legislação complementar, no que respeita à responsabilidade civil resultante da aplicação do referido diploma legal.

E,

Estatui o artº 71ºdo Código de Processo Penal (CPP):

“o pedido de indeminização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”

É o chamado princípio de adesão, que impõe a dedução do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime no processo penal respetivo, com as exceções que a lei expressamente admite, a saber; os expressamente previstos no artigo 72º do CPP.

Assim, no pedido de indemnização civil em processo penal, a causa de pedir é o facto ilícito criminal que é objeto desse processo.

Ora, o pedido de indemnização civil formulado por via do princípio de adesão, no processo penal, é o que assenta nas perdas e danos emergentes do crime, como resulta dos arts. 71º do CPP e artº 129º do CP, conjugados.

Se os factos delituosos imputados ao arguido se provarem, naturalmente, a condenação em indemnização civil tem aí a sua base de sustentação.

Nos presentes autos, foi dado como provado que a recorrente praticou factos integradores do crime fraude qualificada (previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, 103.º, n.º 1, al. a), e 104.º, n.ºs 1, als. d) e e), e 2, al. a), do RGIT), por acórdão proferido em Primeira instância e confirmado em segunda instância, e por isso condenado na pena de mil dias de multa, à taxa diária de € 500,00 (quinhentos euros), no montante total de € 500.000,00 (quinhentos mil euros).

Logo, não nos restam dúvidas, que se encontram verificados os pressupostos constitutivos da obrigação de a arguida/recorrente, indemnizar o Estado pelas perdas e danos emergentes ou lucros cessantes, causados pelos factos delituosos que praticou, ao abrigo do disposto nos artigos 562º, 564º e 566º nºs 1 e 2 do Código Civil (CC).

Nestes termos, nada há a apontar à condenação da arguida/recorrente no pagamento ao Estado da indemnização de €3.108.158,29 (três milhões, cento e oito mil. Cento e cinquenta e oito euros e vinte e nove cêntimos).

QUANTO AOS JUROS DE MORA, VENCIDOS E VINCENDOS, E MOMENTO A PARTIR DO QUAL SÃO DEVIDOS E ATÉ QUE MOMENTO, DIREMOS:

Estatui o artº 804º do Código Civil:

1 – A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados.

Se a obrigação tiver prazo certo, o devedor fica constituído em mora, a partir do momento em que deveria ter cumprido a obrigação e não o fez (artº 805º CC).

Estatui o artº 806º do Código Civil:

1 – Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.

Como bem considerou o douto Acórdão recorrido,

“Quanto aos juros devidos e taxa de juro a atender, considerou o tribunal a quo ser de aplicar o estabelecido no artigo 3º, nº1, do Decreto-Lei nº73/99, de 16/03, fazendo apelo ao decidido no acórdão do STJ de 18/06/2015, Proc.nº623/10.T3SNT.L1, onde se pode ler:

Quanto à taxa dos juros de mora, entende-se que o tribunal deve atender à legislação especial existente sobre esta matéria, muito em particular não pode deixar de considerar a taxa de juros de mora das dividas ao Estado e outras pessoas coletivas públicas, resultante do Decreto-Lei nº73/99, de 16.03 com as alterações posteriormente introduzidas.

De acordo com os pressupostos da responsabilidade extracontratual, nestes casos, o dano ou prejuízo decorrente da prática do crime (…) há-de corresponder ao valor pecuniário das contribuições (…). Mas com o decurso do tempo, sem a satisfação desse valor pecuniário, o dano decorrente da prática do crime há de também ter correspondência com a subsequente privação do capital, a ressarcir mediante a atribuição de juros de mora.

Na realidade, em termos gerais, a indemnização pelo atraso no pagamento (ou cumprimento) de uma quantia pecuniária não pode deixar de corresponder aos juros a contar desde a data da constituição em mora por parte do devedor.

Ora, de acordo com o artº 559º nºs1 e 2 do CC, sob a epigrafe “taxa de juros”, por regra, são devidos os denominados juros legais, os juros civis, atualmente fixados em 4%, por força do disposto da Portaria nº291/03, de 08.04. Todavia, admite-se regime diverso, se for estipulada em legislação especial uma taxa de juros diferente.

É esta precisamente a situação da Segurança social, em que, por força da lei (ou seja, por força do disposto no artº 3º, nº1, do Decreto-Lei nº 73/99, de 16.03, com as suas sucessivas alterações), se mostram estipulados juros de mora de taxa diferente da resultante da aplicação da Portaria nº291/03, de 08.04.

Aliás, se a lei geral não revoga a lei especial, a não ser se for essa a inequívoca intenção do legislador, como resulta do disposto no artº7º, nº3, do CC, também aqui não se vislumbram quaisquer fundamentos para dar prevalência à taxa geral de juros, resultante da Portaria nº 291/03, em detrimento da taxa especial, resultante do artº, 3º, nº1, do Decreto-Lei nº73/99, de que beneficia o Estado e outras pessoas coletivas públicas.

Acresce também afirmar que, in casu, a vontade do legislador é precisamente a de dar prevalência à lei especial no que diz respeito à aplicação da taxa de juros de mora de que beneficia o Estado e a Segurança Social, o que levou à publicação do regime jurídico constante do Decreto-Lei nº73/99, de 16.03, como forma de combater situações de incumprimento fiscal ou à previdência social.

(…)

O art. 3º, nº1, do Decreto-Lei nº73/99, na sua versão original, estabelecia que a “taxa de juros de mora é de 1% se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição dos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente.

Mas, com a entrada em vigor da Lei nº3-B/2010, de 28.04, essa taxa de juros foi, na prática, reduzida na medida em que passou a resultar dos avisos a publicar anualmente pelo Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, que têm vindo a fixar taxa mais baixa (art.3º do Decreto-Lei nº73/99, por força do artº 165º da Lei nº3-B/2010, passou a ter a seguinte redação: “a taxa de juros de mora tem vigência anual com inicio em 1 de Janeiro de cada ano, sendo apurada e publicitada pelo Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, IP (IGCP,IP), através de aviso a publicar no Diário de República, até ao dia 31 de Dezembro do ano anterior.”) .

Por seu turno, também o art. 150º da Lei nº 55-A/2010, de 31.12, procedeu à alteração do art.3º, nº1, do Decreto-Lei nº73/99, de 16.03, nos seguintes termos: “a taxa de juro de mora tem vigência anual com inicio em 1 de Janeiro de cada ano, sendo apurada e publicada pelo Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, IP (IGCP,IP), através de aviso a publicar no Diário da República, até ao dia 31 de Dezembro do ano anterior, não se contabilizando, no cálculo dos mesmos juros, os dias incluídos no mês de calendário em que se fizer o pagamento (…)”.

Esclarecido fica assim, desde quando se contam e são devidos os juros de mora, bem como a taxa devida.

Bem andou o Tribunal a quo, não merecendo o Acórdão recorrido qualquer reparo.

Face ao exposto, emite-se o parecer no sentido de que:

Será de improceder o recurso em análise, mantendo-se o Douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos, no que à obrigação de indemnizar o Estado diz respeito e forma de calcular os respetivos juros de mora e desde quando e até quando são devidos.

1.7. Foi cumprido o art. 417º, do CPP.

1.8. Com dispensa de Vistos, o processo foi à conferência.


***

2. O DIREITO

2.1. Questão Prévia

Recurso no processo penal em matéria cível:

Dispõe o art. 400º n.º 3 do CPP; mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o recurso em matéria cível se rege, subsidiariamente, pelo regime processual civil, mas não pode ter a virtualidade de tornar recorrível o que, em função da matéria de que trata, é irrecorrível; no recurso da parte da sentença relativa à indemnização não poderão ser introduzidas questões que lhe sejam estranhas, designadamente as que se prendam com os pressupostos da condenação/absolvição penal”[1].

Assim, aos recursos em processo penal que visem a parte da decisão em matéria cível é aplicável o regime da revista consagrado no arts. 671º do Código de Processo Civil[2]. Incluindo, evidentemente, a norma do nº 3 que estabelece a denominada dupla conforme.

O art. 671º, nº 3 do CPC, dispõe o seguinte: “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (…)”.

No caso subjudice, o Tribunal da Relação ... confirmou por unanimidade dos juízes do coletivo, a decisão proferida em 1ª Instância, em matéria cível.

Analisando o acórdão objeto do presente recurso conclui-se que, para além de a decisão ter sido tomada sem qualquer voto de vencido, a mesma não apresentou fundamentação essencialmente diferente da constante da decisão proferida na primeira instância.

Assim sendo, estamos perante um caso de dupla conforme, que, independentemente do valor da causa e da sucumbência torna inadmissível o recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação ... é irrecorrível, motivo pelo qual não pode ser admitido o recurso, nos termos dos arts. 414º, nº 2 do CPP, e 671º, nº3, do CPC, aplicável ex vi do art. 4º, do CPP, e terá que ser rejeitado, pois, o facto de ter sido admitido, não vincula o Tribunal Superior (art. 414 º, nº 3 do CPP).


2.2. Pretende ainda a recorrente que o recurso deve ser admitido por se verificarem os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista, estabelecidos no n.º 1 do artigo 672.º, do CPC, alegando que causa se encontram questões passíveis de se repetirem num número indeterminado de casos futuros, o que torna a admissão da revista claramente necessária para a melhor aplicação do direito; e por outro lado, as questões que pretende a Recorrente ver apreciadas em sede de revista revestem uma relevância social que lhe imprime a importância fundamental a que se reporta o n.º 1, do artigo 672.º do CPC, e que se assume como um dos pressupostos que justifica a admissibilidade do recurso de revista.

A norma invocada pela recorrente - art. 672.º do CPC – prevê a revista excecional.


Em processo penal e em matéria de recursos, o Código (de processo penal) prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso. E a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso num caso como o presente. Duplo grau de recurso que a Constituição não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do Tribunal Constitucional, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso. Grau este que, no presente caso, se mostra já assegurado, como supra se referiu.

E as normas processuais civis cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, desde logo porque o art. 4.º do CPP pressupõe a existência de uma lacuna, a qual não ocorre em matéria de recursos. Não ocorre seguramente ao nível das grandes linhas de organização do modelo e de classificação dos vários tipos de recursos, ordinários e extraordinários.

Como se afirma, no AC do STJ de 27 de janeiro de 2021, processo nº 266/07.5TATNV.E1. S1, Relator Nuno Gonçalves, que seguimos de perto, «A jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal entende uniformemente que o regime dos recursos quanto à questão penal está regulado completa e autonomamente no CPP. Na motivação do AUJ n.º 9/2005, expendeu-se que: “O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respetivos prazos de interposição, está construído numa perspetiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.

O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo atualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.

No CPP/29, o recurso em processo penal seguia a forma do processo civil, sendo processado e julgado como o agravo de petição em matéria cível (artigo 649.º do CPP/29); não existia, então, como regra, regulamentação própria e autónoma, privativa do processo penal.

A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objetivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a conceção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspetiva autónoma e para uma regulação completa.

Os pontos 70 a 75 do n.º 2 do artigo 2.º da lei de autorização (sentido e extensão), referidos especificamente às orientações fundamentais em matéria de recursos, impunham, decisivamente, a construção de um modelo com autonomia, desligado da tradição da referência aos recursos em processo civil.

Por seu lado, a nota preambular do CPP/87, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, qualifica o regime de recursos como «inovador», estabelecido na perspetiva da obtenção de um amplo efeito («potenciar a economia processual numa ótica de celeridade e eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efetividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico»), assim autonomizado como modelo próprio para realizar finalidades específicas do processo penal.

A intenção e a autonomia do modelo mantêm-se após a reformulação do regime de recursos na reforma de 1998 (Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto), a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal coletivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunais da relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a constituir um sistema com regras próprias e específicas do processo penal (cf. a exposição de motivos da proposta de lei n.º 157/VII, nos 15 e 16).

A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipóteses que prevê”[4].

No Ac. de 15-11-2006, deste Supremo Tribunal sustenta-se: “o legislador do CPP87 conferiu ao sistema dos recursos em processo penal «uma tendencial autonomia relativamente ao processo civil”. “Por isso se deve entender que o CPP esgota a disciplina da matéria da admissibilidade do recurso, sem hipótese, pois, de apelo às regras do CPC, por não se verificar aí (não ser susceptível de se verificar) qualquer lacuna”[5].

Adianta-se que a autonomia do regime dos recursos em processo penal não consente a admissibilidade doregime processual civil da revista excecional, previsto no art. 671.º, n.º 3 d 672.º, do CPC). A arquitetura dos recursos no processo penal não foi influenciada – e podia tê-lo sido – com qualquer das alterações introduzidas no processo civil - mormente a partir do Dec. Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que introduziu a «revista excecional», (art. 721º - A CPC) reforma essa coeva, faça-se notar, da processual penal introduzida pela Lei nº 48/2007.[6]».

Do exposto se conclui que o recurso de revista excecional não é admissível, motivo pelo qual tem que ser rejeitado.

3. DECISÃO.

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em rejeitar o recurso interposto pela demandada cível “C... S.A.” nos termos dos arts. 400º, nº3 e 671º, nº s 1 e 3, do CPC.

Custas pela recorrente fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s, e ao abrigo do disposto no art. 420º, nº3, do CPP, em 4 (quatro) UC’s.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 18 de maio de 2022


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Paulo Ferreira da Cunha

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Ac. STJ de 13.01.2010, proc. 2569/01.3TBGMR-D. G1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Doravante designado pelas iniciais CPC