Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
981/17.5PBMTS.P2-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
ADVOGADO
IMPARCIALIDADE
Data do Acordão: 10/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
A intervenção do requerente como relator do recurso em que intervém como mandatário do assistente, o mesmo advogado que esse juiz mandatou numa ação que correu termos num Juízo de Execução, corre o risco de aos olhos de observadores externos poder ser considerada suspeita.
Decisão Texto Integral:





Processo 981/17.5PBMTS.P2.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA, Juiz Desembargador, veio ao abrigo do disposto no art. 43.º/1/4, CPP, pedir escusa de intervir como relator num recurso que lhe foi distribuído e em que é mandatário do assistente, o advogado BB invocando o seguinte:

«(…) O Ilustre mandatário da Assistente nos referido autos, Dr. BB, com escritório na Rua ..., no ..., foi seu advogado no Processo n.º 3419/12...., que correu termos no Juízo de Execução ... - Juiz ....

Considera que a situação é de molde a configurar a situação prevista no art.º 43.º, n.º 1, do CPP, por consubstanciar motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Nestes termos, solicita a Vª Excelência, que no processo n.º 981/17.5PBMTS.P2 se digne considerar justificado o pedido de escusa ora formulado».

Os factos relevantes são os constantes do requerimento.


O Direito.

1. Segundo o art. 43.º/1, CPP, «a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade». O n.º 4 que «o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2».

2. Basta admitir, como hipótese, que o recurso distribuído ao requerente seja decidido em sentido contrário ao interesse do arguido e favoravelmente ao interesse do assistente, para tal desfecho poder ser percecionado pelo arguido e observadores externos, não como a consequência inelutável de não ser procedente a sua argumentação, mas como um resultado «normal» quando quem julga é alguém que já recorreu aos serviços do mandatário do assistente. É este normalizar de suspeita que importa afastar da mente dos intervenientes não profissionais nos processos criminais e da comunidade em geral, em prol da realização da justiça, da integridade dos seus agentes e do Estado de Direito.

3. Na vertente objetiva – a única que está em questão – esse hipotético motivo de dúvida do arguido é suficientemente sério e grave para poder suscitar duvida, também ao comum dos cidadãos, sobre as condições de o requerente garantir aos seus olhos a objetividade e independência necessárias à função de relator num recurso em que o mandatário do assistente já foi mandatado pelo requerente numa ação judicial anterior. Mais do que garantir uma atuação dentro da legalidade, objetividade e independência, está em causa defender todo o sistema de justiça da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, reforçando por esta via a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados, de acordo com a velha máxima inglesa not only must Justice be done; it must also be seen to be done (Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, «Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», p. 12-13). Esta é uma exigência do processo justo e equitativo.

4. Convocando o acórdão deste STJ de 26.11.2020, ainda que não se duvide que o requerente decidiria de forma imparcial, não podemos deixar de concluir que, objetivamente e aos olhos da comunidade, aos do cidadão comum e externo ao mundo judiciário, poderiam suscitar-se dúvidas sobre a imparcialidade do julgador. O homem médio poderia suspeitar da decisão que o requerente viesse a adotar nos autos quando soubesse que o mandatário do assistente é o mesmo mandatário que o requerente escolheu em processo do seu foro pessoal. A Justiça não se compadece com dúvidas sobre a imparcialidade de uma decisão. Impõe-se que quem venha a decidir esteja livre de qualquer suspeição, assim se assegurando a necessária tranquilidade enquanto condição indispensável a um sadio sistema judicial.

5. Decorre do que fica dito que a intervenção do requerente como relator do recurso em que intervém como mandatário do assistente, o mesmo advogado que esse juiz mandatou numa ação que correu termos no Juízo de Execução ... - Juiz ..., corre o risco de aos olhos de observadores externos poder ser considerada suspeita.

Decisão.
Defere-se o pedido formulado pelo requerente AA, escusando-o de intervir no recurso interposto no processo 981/17.5PBMTS.P2 que corre termos no Tribunal da Relação do Porto.

Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça 20.10.2022.

António Gama (Relator)
João Guerra
Orlando Gonçalves