Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
360/08.5TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÂO
Relator: ANTÓNIO DA SILVA GONÇALVES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
INVALIDEZ ABSOLUTA E DEFINITIVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIOS JURÍDICOS / PROVAS.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO (RAMO / VIDA).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Almeida Costa, in R.L.J., 129, 20.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 419.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. I, pág. 153.
- Vaz Serra, in R.L.J., 111.º, 302.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 219.º, 220.º, 236.º, N.º1, 238.º, N.º1, 364.º,
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 674.º, N.º3, 682.º, N.ºS 2 E 3.
DEC. LEI N.º 446/85: - ARTIGOS 8.º, 11.º.
Sumário :
1. Uma incapacidade para o trabalho de 100%, ou uma inaptidão laboral assim equiparada, faz impossibilitar essa pessoa de usufruir o seu usual cargo funcional, tudo se passando neste contexto como se lhe tivesse sido retirada a remuneração que dele lhe advinha.

2. A invalidez total e permanente que resultou para a autora, em consequência do carcinoma da mama esquerda de que foi acometida, concretizou-se logo que nela se revelou uma IPP de 84%, isto é, em 25-09-2006; a validade deste criterioso entendimento está revelada na circunstância de se constatar que foi a partir desta data (25-09-2006) que se consolidou a sua incapacidade, passou a ser de 96% a partir de finais do ano de 2010 e perecendo em 12-12-2011.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA (entretanto falecida, tendo sido habilitados no seu lugar, os ora recorrentes BB, CC e DD) intentou contra “Companhia de Seguros EE, S.A.”, todos identificados nos autos, a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 46.029,80, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Este pedido foi ampliado, já na fase de julgamento, em mais € 6.009,83, quantia esta relativa a juros que os autores pagaram, relativamente ao capital em dívida no empréstimo contratado, desde a citação da ré para os termos da presente acção até àquele momento, acrescida ainda de juros legais desde a notificação deste pedido, e bem assim, dos juros que venham a ser pagos a mesmo título até ao pagamento do capital seguro.

Alegou, em síntese:

  - A autora e seu marido pretenderam obter um crédito bancário para utilizar no exercício do comércio a que o A. marido se dedicava e outro para pagar à Instituição bancária FF o valor que restava de um crédito bancário que esta lhes havia concedido para aquisição da fracção autónoma designada letra "D", que corresponde ao rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito na Avenida … nº …. …, freguesia de …, do concelho de Sintra, em que habitam;

- Para isso, solicitaram condições ao Banco GG, na sua Agência no Cacém, o qual, entre outras, exigiu a celebração de um contrato de seguro do Ramo Vida para ambos, tendo como cobertura principal a morte e como cobertura complementar a invalidez total e permanente das pessoas seguras, e hipoteca a seu favor da fracção autónoma em que habitam;

- Após acordo verbal com os representantes do Banco GG sobre valores que teriam de despender com o capital, respectivos encargos e o tempo necessário para pagamento dos mesmos, aguardaram para a celebração formal dos respectivos contratos, tendo sido designado o dia 13 de Maio de 2003, para se deslocarem ao 4.º Cartório Notarial de Lisboa onde, após leitura, foram outorgadas as escrituras de mútuo e hipoteca;

- Previamente, a A. e seu marido haviam assinado o documento necessário à celebração do contrato de seguro de vida com a Companhia de Seguros EE, S.A., para cobertura dos riscos de morte e invalidez permanente, cobrindo o capital de € 56.149,00 correspondente à soma dos dois empréstimos;

- Em 28 de Maio de 2003, a Ré, que pertence ao grupo económico do Banco GG, remeteu para a residência da A., em nome de seu marido, BB, a carta que junta acompanhada de documento, emitido no mesmo dia 28 de Maio de 2003, intitulado "Certificado Individual de Seguro", mediante o qual a A. e seu marido figuram nele como pessoas seguras, nele constando como tomador do seguro o Banco GG;

  - Depois, e no início de cada um dos anos seguintes, a Ré remeteu, tal como o fizera em 28 de Maio de 2003, actas adicionais ao contrato do seguro, pelas quais dava a conhecer qual o valor do capital coberto nesse ano;

    - Antes do ano de 2005, a A. passou a efectuar exames de rotina para saber do seu estado de saúde e em Março de 2005, após ter sentido algumas dores na mama esquerda, a A. recorreu ao seu médico de família a fim de saber se algo de anormal se passava consigo tendo-lhe sido passada, nesse exame, pelo médico de família, credencial a fim de efectuar uma mamografia e após observar os documentos referentes à mamografia a que, imediatamente, foi submetida, o seu médico assistente de família remeteu-a para o Instituto Português de Oncologia - Dr. HH;

- Após ter sido observada no dito Instituto Português de Oncologia, a A. passou nele a ser seguida, a partir do mês de Junho de 2005, por apresentar carcinoma localmente avançado da mama esquerda, com 6 centímetros de diâmetro;

  - Em virtude da situação clínica de que padece, a A. foi submetida a um exame por Junta Médica, no dia 25 de Setembro de 2006, na Sub-Região de Saúde de Lisboa, que lhe atribuiu uma incapacidade permanente parcial de 0,84, de harmonia com o Capítulo XVI, número 4.4 e o Capítulo III, número 7, ambos da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n° 341/93, de 30 de Setembro;

   - Nos termos do artigo 1.º , alínea e), das Condições Gerais da apólice, uma incapacidade permanente parcial superior a 66%, atribuída pela Tabela Nacional de Incapacidades, é considerada, para efeitos de cobertura, como sendo igual a 100% - das Condições Gerais;

      Nos termos das Condições Particulares da apólice, o beneficiário do seguro é:

       a) Em caso de morte, o Banco GG, S.A. pelo capital em dívida e, pelo excesso, os herdeiros legais;

       b) Nas outras coberturas, é beneficiária a pessoa segura, ou seja, no caso, a própria Autora;

   - Por isso, dirigiu-se ao balcão da Rua do Ouro do Banco GG onde solicitou, por escrito, o pagamento do capital seguro;

   - Por carta de 7 de Agosto de 2007 a Ré solicitou à A. o que dela consta e por carta de 27 de Dezembro de 2007, a A. remeteu à Ré os documentos que ela solicitou;

    - O capital seguro no ano de 2007 era de € 46.029,80, montante cujo pagamento a autora reclama da ré, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.


A ré contestou, opondo, em síntese:

    Entre a ora Ré e o Banco GG, S.A. foi celebrado um Contrato de Seguro de Grupo, associado ao crédito imobiliário, do Ramo Vida, Temporário, Anual e Renovável, titulado pela Apólice n.° …, sendo a autora Pessoa Segura, dada a sua qualidade de mutuária do citado Tomador de Seguro (Banco GG, S.A) e a sua adesão ao contrato de seguro;

     Pelo seguro, a Ré garantiu o pagamento de "...um capital, nos termos das Condições Especiais, Condições Particulares, e Certificados Individuais", na hipótese de morte (cobertura principal) ou de Invalidez Total e Permanente da Pessoa Segura; O beneficiário do pagamento era, em relação à parte do capital em dívida, o Banco GG, S.A., e, em relação ao remanescente, em caso de morte, os herdeiros legais e, nos demais casos, a Pessoa Segura;

     Carecendo a autora de legitimidade para pedir a totalidade do capital seguro;

       A incapacidade de que a A. alegadamente ficou a padecer não é definitiva, nem impeditiva do exercício de uma actividade remunerada, não sendo susceptível de ser considerada como Invalidez total e permanente, nos termos definidos na alínea e) do artigo 1.° das Condições Especiais da Apólice dos Autos, pois que não se encontram preenchidos os três requisitos cumulativos ali exigidos para a sua verificação;

   Desconhece se a autora se encontra impossibilitada de exercer uma actividade remunerada, pois que não se reformou por invalidez;

A autora replicou, defendendo a sua posição na acção. E, à cautela, pediu que, caso se conclua que das condições contratuais do seguro resulta que, em caso de invalidez, a parte em dívida ao Banco GG, SA, deve ser paga pela ré, que esta seja condenada nesse pagamento, e a pagar o excesso à autora.

No seguimento, a autora foi convidada a aperfeiçoar a petição inicial, esclarecendo se a sua incapacidade era definitiva e impeditiva do exercício de actividade remunerada, convite a que não respondeu.

Foi dispensada a audiência preliminar e proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente excepção de ilegitimidade deduzida. E foi seleccionada a matéria de facto assente e a submeter a julgamento.

Procedeu-se a exame médico-legal na pessoa da autora, que faleceu antes de o mesmo estar concluído.

A ré apresentou articulado superveniente, alegando só agora ter tomado conhecimento de que a autora sofria de espondilite anquilosante desde os 15 anos de idade, e de atralgias das articulações dos joelhos e tíbio-társicas desde os oito anos de idade, tendo omitido essa informação na proposta de seguro, o que é causa de nulidade/anulabilidade do contrato celebrado, nos termos do art. 2.°, n.° 3 das respectivas condições gerais e do art. 429.° do Código Comercial.

Em resposta, os sucessores da autora opuseram que a ré teve conhecimento da factualidade que agora invoca através do relatório médico de fls. 208, de que foi notificada a 12-12-2009, pelo que teria caducado o direito de invocar tal anulabilidade.

Estes sucessores ampliaram o pedido, pedindo que a ré fosse ainda condenada pagar-lhes a quantia de € 6.009.83, relativa a juros que pagaram, relativamente ao capital em dívida no empréstimo contratado, desde a citação da ré para os termos da presente acção até àquele momento, acrescida de juros legais desde a notificação deste pedido, e bem assim, dos juros que venham a ser pagos ao mesmo título até ao pagamento do capital seguro.


Procedeu-se a julgamento, com registo da prova produzida, tendo a matéria de facto sido decidida pela forma que consta de fls. 467 a 470.


Seguiu-se a sentença, com a seguinte decisão:

«Nestes termos e de acordo com o exposto e de harmonia com o disposto nos preceitos legais supra citados, julgo a presente acção procedente e, em consequência, condeno a ré Companhia de Seguros EE, S.A.. a pagar aos autores BB, CC e DD, enquanto beneficiários remanescentes do seguro dos autos, o valor remanescente relativamente ao necessário para solver, com o limite de € 46.029,80 (quarenta e seis mil e vinte nove euros e oitenta cêntimos) o que, à data da citação, se encontrava em dívida ao Banco GG, S.A., primeiro beneficiário do seguro dos autos, relativamente à garantia dele objecto, acrescido de juros, contabilizados à taxa supletiva geral de 4% ao ano, vencidos desde a citação e vincendos até efectivo e integral pagamento, relativamente à quantia devida aos autores.

Julgo não verificada qualquer litigância de má fé, no comportamento processual das partes. Custas pela ré.»


Desta sentença apelaram a ré e os autores, para a Relação de Lisboa que, por acórdão de 12.12.2013 (cfr. fls.642 a 683), julgou improcedente o recurso interposto pela ré, mas procedente - pois que o decaimento não tem significado - o recurso interposto pelos autores, alterando-se a decisão recorrida no sentido de condenar a ré Companhia de Seguros EE, S.A.. a pagar aos autores:

a) O capital seguro de € 46.029,80 (quarenta e seis mil vinte e nove euros e oitenta cêntimos), deduzido do valor em dívida ao Banco GG, S.A, na data da citação da ré para os termos da presente acção, no âmbito do contrato de crédito garantido pelo seguro dos autos, acrescido de juros moratórios, à taxa legal, ora de 4% ao ano, desde a citação e até pagamento;

   b) O valor correspondente às amortizações do capital mutuado, efectuadas e a efectuar pela A. e seus sucessores habilitados nos autos, desde a citação da ré para a presente acção, no montante de € 9.594,55 (nove mil quinhentos e noventa e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos) até 02/11/2012, acrescido de juros moratórios, à taxa legal e anual de 4%, contados sobre o montante de cada amortização de capital, desde a respectiva data de pagamento, e até efectivo e integral pagamento;

c) Os juros contratuais pagos e a pagar pela A. e seus sucessores, desde a citação da ré para os termos da acção, no montante de € 6.009,83 (seis mil nove euros e oitenta e três cêntimos) até 02/12/2012, acrescidos de juros moratórios, à taxa legal e anual de 4%, contados, em relação ao montante de € 6.009,83, desde a notificação do articulado de ampliação do pedido, e em relação a cada uma dos montantes pagos posteriormente, desde o respectivo pagamento. Custas, em ambos os recursos, pela ré.

Irresignada, recorre agora para este Supremo Tribunal a ré “Companhia de Seguros EE, S.A..”, que alegou e conclui pela forma seguinte:

I. Na proposta de adesão ao contrato de seguro dos autos, a primitiva autora declarou que tomou conhecimento de todas as informações necessárias à celebração desse contrato, que lhe foram entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, de que tomou integral conhecimento, e foram, ainda, prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições contratuais, nomeadamente sobre as garantias e exclusões aplicáveis, com as quais concordou.

II. Por força do disposto no artigo 376.° do Código Civil, os quesitos 2.° e 3.° da Base Instrutória deverão ser Julgados como provados.

III. O Tribunal "a quo", ao Julgar verificados os três requisitos da cobertura de Invalidez Total e Permanente acordada, violou o disposto no artigo 236.° do Código Civil e na alínea e) do artigo 1.° das Condições Especiais do contrato de seguro dos Autos.

IV. Para que a cobertura de Invalidez Total e Permanente acordada se tivesse verificado tornava-se necessário que a incapacidade que a Pessoa Segura tivesse ficado a padecer fosse cumulativamente: (i) Total, ou seja, igual a 100%, considerando-se como tal as incapacidades superiores a 66,6%; (ii) Definitiva, isto é, irreversível; e (iii) Impeditiva do exercício de uma actividade remunerada.

V. A incapacidade que a primitiva A. alegou padecer, embora superior a 66,6% e, como tal, nos termos acordados, total, não era, contudo, definitiva, nem impeditiva do exercício de actividade remunerada.

VI. Consta do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso que a incapacidade de 84% verificada em 25.09.2006 é susceptível de reavaliação ao fim de 10 anos.

VII. Após ter sido submetida a mastectomia e a tratamentos de quimioterapia e radioterapia, a primitiva autora continuou em vigilância em consulta externa de oncologia médica, "sem evidência de recidiva ou de disseminação".

VIII. O Relatório do IML de fls. 208 a 212, datado de 24.11.2009, estipula a data de 25.09.2006 como aquela em que ocorreu a consolidação médico-legal das lesões, fixando em 60% a incapacidade do foro oncológico a atribuir à primitiva Autora e determina que «as sequelas descritas são, em termos de rebate profissional, compatíveis com a profissão com adaptação do posto de trabalho.».

IX. No Relatório do IML de fls. 310 consta que a primitiva Autora "Manteve-se em remissão completa até Junho 2009 quando lhe é diagnosticada (...) metástase em gânglio supraclavicular esquerdo".

X. Só no Relatório do IML, datado de 31 de Janeiro de 2012, a IPP de 0,60 do foro oncológico anteriormente atribuída à primitiva autora foi alterada para 0,95.

XI. O grau de incapacidade atribuído à primitiva Autora poderia não se ter agravado. Antes, podia até ter regredido, caso as metástases que lhe foram diagnosticadas em Junho de 2009 não tivessem ocorrido.

XII. Os factos provados e o teor dos Relatórios médico-legais dos Autos não corroboram o entendimento do tribunal "a quo" que considera "(...) a IPP de 84% de que a falecida autora estava afectada a 25-09-2006, era definitiva, no sentido de que não era, então, previsível qualquer melhoria. Pelo contrário, a autora apresentava sinais de mau prognóstico, que viria a confirmar-se, com a progressão sistémica da doença verificada em finais do ano 2010 e que, aparentemente, conduziu à sua morte, ocorrida no dia 12-12-2011. (...)".

XIII. Helena Gomes declarou, em 09.02.2009, à Sra. Perita do IML que "(...) era costureira. Actualmente mantém a mesma profissão com adaptação do posto de trabalho.".

XIV. O Tribunal "a quo" incorre em erro quando considera que «(...) uma IPP de 100% é totalmente incapacitante para o exercício de qualquer actividade, remunerada ou não. (...)».

XV. A incapacidade que afectava a primitiva Autora, pelo menos até ao final de 2010, não preenchia os três requisitos exigidos para a cobertura "Invalidez Total e Permanente" contratada. E, afectando-a desde essa data, só foi devidamente constatada em 31 de Janeiro de 2012.

XVI. O Acórdão do Tribunal "a quo", ao decidir como decidiu, violou, também, o disposto no artigo 236.° do Código Civil e na al. e) do artigo 1.° das Condições Especiais do contrato de seguro dos Autos.

Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido, de modo que sejam considerados “não provados” os quesitos 2.° e 3.° da BI e a presente acção seja julgada totalmente improcedente, ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente, que se julgue que a primitiva autora só se encontrou em situação de Invalidez Total e Permanente a partir de 31 de Janeiro de 2012.

Contra-alegaram os recorridos pedindo a manutenção do julgado.


Corridos os vistos legais cumpre decidir.

A Relação, reapreciando o julgamento da matéria de facto, considerou provados os factos seguintes:

1) AA e seu marido BB pretenderam obter um crédito bancário para utilizar no exercício do comércio a que o marido se dedicava e outro para pagar à Instituição bancária FF o valor que restava de um crédito bancário que esta lhes havia concedido para aquisição da fracção autónoma designada letra "D", que corresponde ao rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito na Avenida …, n.º …, freguesia de …, do concelho de Sintra, em que habitavam (cfr. alínea A) da matéria de facto assente);

2) Para isso, solicitaram condições ao Banco GG, na sua Agência no Cacém, o qual, entre outras, exigiu a celebração de um contrato de seguro do Ramo Vida para ambos, tendo como cobertura principal a morte e como cobertura complementar a invalidez total e permanente das pessoas seguras, e hipoteca a seu favor da fracção autónoma em que habitam (cfr. alínea B) da matéria de facto assente);

3) Após acordo verbal com os representantes do Banco GG sobre valores que teriam de despender com o capital, respectivos encargos e o tempo necessário para pagamento dos mesmos, aguardaram para a celebração formal dos respectivos contratos (cfr. alínea C) da matéria de facto assente);

4) Posteriormente, foi-lhes designado o dia 13 de Maio de 2003, para se deslocarem ao 4.o Cartório Notarial de Lisboa onde, após leitura, foram outorgadas as escrituras de mútuo e hipoteca (cfr. alínea D) da matéria de facto assente);

5) Previamente, AA e seu marido haviam assinado o documento necessário à celebração do contrato de seguro de vida com a Companhia de Seguros EE, S.A., para cobertura dos riscos de morte e invalidez permanente, cobrindo o capital de € 56.149,00 (cinquenta e seis mil cento e quarenta e nove euros), correspondente à soma dos dois empréstimos (cfr. alínea E) da matéria de facto assente);

6) Nessa intitulada "proposta de adesão/seguro", documentada a fls. 95-98, consta, no que respeita a "Beneficiário(s)":

«1. Relativamente à parte do capital em dívida: a Entidade Credora (a cláusula beneficiária é irrevogável na parte relativa ao capital em dívida).

2. Pelo eventual remanescente: Em caso de morte: os Herdeiros Legais; outras coberturas; a Pessoa Segura.» (cfr. alínea F) da matéria de facto assente);

7) Por carta de 28 de Maio de 2003, a Ré, que pertence ao grupo económico do Banco GG, remeteu para a residência de AA, em nome de seu marido, BB, a carta inserta a fls. 31 dos autos (doc. n.º 3 da p.i.), acompanhada de um documento, emitido no mesmo dia 28 de Maio de 2003, intitulado "Certificado Individual de Seguro", que também se mostra junto aos autos, a fls. 32 e 33 (doc. n.º 4), mediante o qual se verifica que a AA e seu marido figuram nele como pessoas seguras, nele constando como tomador do seguro o Banco GG (cfr. alínea G) da matéria de facto assente);

8) Depois, e no início de cada um dos anos seguintes, a Ré remeteu, tal como o fizera em 28 de Maio de 2003, actas adicionais ao contrato do seguro, pelas quais dava a conhecer qual o valor do capital coberto nesse ano (cfr. alínea H) da matéria de facto assente);

9) Antes do ano de 2005, AA passou a efectuar exames de rotina para saber do seu estado de saúde (cfr. alínea 1) da matéria de facto assente);

10) Em Março de 2005, após ter sentido algumas dores na mama esquerda, AA recorreu ao seu médico de família a fim de saber se algo de anormal se passava consigo (cfr. alínea J) da matéria de facto assente);

11) Nesse exame, pelo médico de família foi-lhe passada uma credencial a fim de efectuar uma mamografia (cfr. alínea K) da matéria de facto assente);

12) Após observar os documentos referentes à mamografia a que, imediatamente, foi submetida, o seu médico assistente de família remeteu-a para o Instituto Português de Oncologia Dr. HH (cfr. alínea L) da matéria de facto assente);

13) Após ter sido observada no dito Instituto Português de Oncologia, AA passou nele a ser seguida, a partir do mês de Junho de 2005, por apresentar carcinoma localmente avançado da mama esquerda, com 6 centímetros de diâmetro (cfr. alínea M) da matéria de facto assente);

14) Por virtude do carcinoma que apresentava, nela foi verificado e efectuado o seguinte:

     "Os exames de estadiamento não mostravam disseminação da doença";

"Fez quimioterapia neoadjuvante ("FEC"), de que administrámos 4 ciclos";

"A 29/12/2005 foi submetida a mastectomia radical modificada à esquerda. O exame anátomo-patológico da peça operatória não mostrava tumor residual macroscópico, embora microscopicamente houvesse tumor viável (<5% de carcinoma ductal)";

    "Havia permecção linfática e metástases em I dos 10 gânglios axilares isolados "

"Os receptores quer de estrógeneos, quer de progesterona eram negativos e o Cerb B2 era negativo ";

"Administrámos 4 ciclos de quimioterapia citostática adjuvante com Docetaxel, após o que fez radioterapia complementar, que terminou a 17/06/2006";

"Continua em vigilância em consulta externa de Oncologia Médica, sem evidência de recidiva ou de disseminação", tudo conforme relatório médico, datado de 18 de Julho de 2006, e subscrito pelo Dr. II, Assistente Hospitalar de Oncologia Médica do Instituto Português de Oncologia, junto por cópia a fls. 35 dos autos (doc. n.º 5 da p.i.) (cfr. alínea N) da matéria de facto assente);

15) Em virtude da situação clínica de que padecia, AA foi submetida a um exame por Junta Médica, no dia 25 de Setembro de 2006, na Sub-Região de Saúde de Lisboa (cfr. alínea O) da matéria de facto assente);

16) Em 23 de Agosto de 2007, AA, por intermédio do Banco GG, solicitou à Ré "as condições gerais e particulares da apólice n.º … relativo a seguro vida associados ao crédito habitação" - teor do documento junto a fls. 36 (doc. n.° 7 da p.i.) -, que lhas remeteu em 29 de Agosto de 2007, conforme documento junto a fls. 37-47 (doc. n.º 8 da p.i.) (cfr. alínea P) da matéria de facto assente);

17) No artigo 1.º, alínea e), das Condições Especiais da Apólice consta o seguinte:

«Invalidez Total e Permanente - A Pessoa Segura encontra-se na situação de Invalidez Total e Permanente se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou Incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades, ser superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo iguala 100%.» (cfr. alínea Q) da matéria de facto assente);

18) Nas ditas Condições Especiais, estipula-se, no seu artigo 7o, sob o título "liquidação das importâncias seguras":

«1. O pagamento do Capital Seguro será efectuado pela seguradora à pessoa segura, salvo convenção em contrário estipulada nas Condições Particulares ou Certificado Individual;

2. O pagamento do Capital seguro ao abrigo desta cobertura complementar determina a resolução do contrato de seguro, salvo convenção em contrário estipulada nas Condições Particulares ou Certificado individual» (cfr. alínea R) da matéria de facto assente);

19) No denominado “Certificado Individual de Seguro", inserto a fls. 32/33 dos autos, consta:

«1.ª " Pessoa Segura

Beneficiários em caso de morte

Pelo capital em dívida:

Banco GG, SA

Pelo eventual excesso para o capital seguro:

Em caso de morte: Os Herdeiros Legais

Outras coberturas: A Pessoa Segura

2.ª Pessoa Segura

Beneficiários em caso de morte

Pelo capital em dívida:

Banco GG, SA

Pelo eventual excesso para o capital seguro:

Em caso de morte: Os Herdeiros Legais

Outras coberturas: A Pessoa Segura» (cfr. alínea S) da matéria de facto assente);

20) AA dirigiu-se pessoalmente ao balcão da Rua do Ouro do Banco GG onde solicitou, por escrito, o pagamento do capital seguro (cfr. alínea T) da matéria de facto assente);

21) Por carta de 7 de Agosto de 2007, inserta a fls. 49 dos autos (doc. n.º 9) a Ré Gomes o "envio de:

- Relatório Médico onde conste a data de Início da sintomatologia que conduziu à situação de Invalidez;

-  Certificado autenticado da veracidade de pensionista por invalidez, com indicação da data de início" (cfr. alínea U) da matéria de facto assente);

22) Por carta de 27 de Dezembro de 2007, registada com aviso de recepção, AA remeteu à Ré os documentos que esta solicitou (cfr. alínea V) da matéria de facto assente);

23) A acta adicional que, em 30 de Janeiro de 2007, a Ré remeteu ao marido de AA, actualizando o capital coberto nesse ano pelo contrato de seguro, junta a fls. 52-54 (doc. n.º 11 da p.i.) mostra que o capital seguro é, nesse ano, de € 46.029,80 (quarenta e seis mil e vinte e nove euros e oitenta cêntimos) (cfr. alínea W) da matéria de facto assente);

24) O contrato de seguro teve o seu início no dia 13 de Maio de 2003 (cfr. alínea X) da matéria de facto assente, aditada conforme despacho proferido em 27/06/2008);

25) A apólice que titula o contrato de seguro, que compreende os documentos juntos com a petição inicial sob o n.° 4 e com a contestação sob os docs. n.º s 2 e 3, foi emitida em 28 de Maio de 2003 (cfr. alínea Y) da matéria de facto assente, aditada conforme despacho proferido em 27/06/2008);

26) AA faleceu em 12 de Dezembro de 2011, no estado de casada com BB (cfr. certidão de assento de óbito à mesma respeitante, de que se encontra cópia a fls. 304-305 dos autos) (cfr. alínea Z) da matéria de facto assente);

27) A falecida autora tinha, em 25-09-2006, uma incapacidade permanente parcial de 84%, que, entretanto, se agravou, sendo 96% a partir de finais do ano de 2010 (resposta acima dada ao art. 1.° da BI);

27-A) Antes de a autora as ter solicitado em 23 de Agosto de 2007 à ré, nunca lhe fora entregue o articulado da apólice, com as condições gerais e especiais, de que só teve conhecimento quando recebeu o documento junto a fls. 37-47 (resposta acima dada aos art. 2.º e 3.° da BI);

28) A falecida AA padecia de espondilite anquilosante desde os 15 anos de idade (cfr. resposta dada ao artigo 4o) da base instrutória);

29) A falecida AA teve atralgias das articulações dos joelhos e das tíbio-társicas aos 8 anos de idade, as quais se mantiveram até aos 13 anos de idade (cfr. resposta dada ao artigo 5o da base instrutória);

30) A ré tem conhecimento do referido em 28) desde 12/12/2009 e do referido em 29) desde 23/07/2011 (cfr. resposta dada aos artigos 6o) e 9o) da base instrutória);

31) Aquando da elaboração da proposta de seguro - 25/02/2003 -, AA não declarou à ré que padecia das patologias referidas em 28) e 29) (cfr. resposta dada ao artigo 7o) da base instrutória);

32) A ré não pagou à primitiva autora, nem aos ora autores o capital seguro de € 46.029,80 (cfr. resposta dada ao artigo 10°) da base instrutória);

33) Por tal motivo, a A. e os seus herdeiros habilitados nos autos como seus sucessores tiveram de continuar a pagar o empréstimo contratado, procedendo mensalmente ao pagamento de amortizações do capital mutuado, as quais, desde 07-02-2008 até 02-11-2012, somaram a quantia total de € 9.594,55 (cfr. resposta ao artigo 11o) da base instrutória);

34) E pagaram, no mesmo período, juros contratuais vencidos no montante total de € 6.009,83 (cfr. resposta dada ao artigo 12°) da base instrutória).


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A autora AA e seu marido BB, pretendendo obter específico crédito bancário, solicitaram ao Banco GG, S.A. a satisfação desta exigência da sua vida particular e consubstanciada na necessidade de obter crédito bancário com o intuito de o utilizar no exercício do comércio a que o marido se dedicava e, também, para pagar à Instituição bancária FF o valor que restava de um crédito bancário que esta lhes havia concedido para aquisição de identificada fracção autónoma.


Para tanto e entre outras imposições, o Banco GG, S.A. exigiu-lhes a celebração de um contrato de seguro do Ramo/Vida, tendo como cobertura principal a morte e, complementarmente, a invalidez total e permanente das pessoas seguras.

Neste contexto assim delineado, tendo as atinentes escrituras de mútuo e hipoteca sido outorgadas em 13 de Maio de 2003, a autora AA e seu marido subscreveram, ainda anteriormente, o documento necessário à celebração do contrato de seguro de vida com a “Companhia de Seguros EE, S.A.”, para cobertura dos riscos de morte e invalidez permanente, cobrindo o capital de € 56.149,00, correspondente à soma dos dois empréstimos.

A AA e seu marido figuram nele como pessoas seguras e como tomador do seguro o Banco GG e este contrato de seguro teve o seu início no dia 13 de Maio de 2003.

A AA faleceu em 12 de Dezembro de 2011, no estado de casada com BB e tinha, em 25-09-2006, uma incapacidade temporária permanente de 84%, que, entretanto, se agravou, sendo 96% a partir de finais do ano de 2010.

A autora só teve conhecimento das condições gerais e especiais do contrato de seguro que havia assinado quando recebeu da ré o documento junto a fls. 37-47 e que lhe foi remetido em 29 de Agosto de 2007.

Argumenta a Seguradora ré que os quesitos 2.° e 3.° da BI deverão ser julgados como “não provados” - por lapso escreveu-se que os quesitos 2.° e 3.° da BI deverão ser julgados como provados (conclusão II) - e que a incapacidade  da primitiva autora embora superior a 66,6%, não era, contudo, definitiva, nem impeditiva do exercício de actividade remunerada.

De qualquer modo ela só se encontrou em situação de invalidez total e permanente a partir de 31 de Janeiro de 2012, conclui a recorrente.

Vejamos se assiste razão à recorrente “Companhia de Seguros EE, S.A..”


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I. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (n.º 3 do artigo 674.º do atual C.P.Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, em vigor desde o dia 1 de Setembro de 2013 e aplicável ao caso “sub judice”),


Neste circunstancialismo jurídico-processual havemos de ter em conta que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º do atual C.P.Civil (n.º 2 do art.º 682.º do atual C.P.Civil) e que “o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito” (n.º 3 do art.º 682.º do atual C.P.Civil).

Quer isto dizer que, funcionando como tribunal de revista e, por isso, excluído por regra da possibilidade de abordar questões de facto, o Supremo Tribunal de Justiça só nos particularizados termos admitidos pelos números 2 e 3 do art. 682.º do atual C.P.Civil lhe é permitida ingerência em matéria de facto, ou seja, neste domínio só é admissível a sua intervenção no campo da designada prova vinculada, isto é, quando a lei exige determinado tipo de prova para certas circunstâncias factuais ou quando atribui específica força probatória a determinado meio probatório.

Às instâncias cabe averiguar, exclusivamente, todo o circunstancialismo factual envolvente da acção, reservando-se para a Relação o último passo a dar sobre esta temática.

Todas estas medidas que a lei congrega no Juiz (da 1.ª Instância ou da Relação) se inserem no âmbito da livre apreciação da prova que lhe está cometida e, por isso, retirada da atribuição do Supremo Tribunal de Justiça como Tribunal de revista. 

É neste contexto jurídico-processual, ou seja, da circunstância de a Relação, depois de ter ponderado o depoimento de cada uma das testemunhas que depuseram sobre os quesitos 2.º e 3.º (os depoimentos acima transcritos indiciam de forma bastante segura que a Seguradora não fez entrega das condições contratuais, pois que a sua colaboradora afirmou que essa entrega incumbia ao Banco e que o Banco também não fez essa entrega…- pág. 662 do acórdão recorrido) que há-de ser mantida a matéria factual incluída nos artigos 2.º e 3.º da BI., tudo porque a Relação julgou provada esta facticidade.

Lembremos a este propósito que sempre devemos ter em consideração que um documento autêntico não prova plenamente que as declarações nele contidas são válidas e eficazes (V. Serra; RLJ, 111.º, 302) e que é admissível a impugnação, através de testemunhas, das declarações constantes de documento particular admitido como verdadeiro.


Está, assim, este Supremo Tribunal impossibilitado de se pronunciar sobre a problemática do erro sobre o julgamento da matéria de facto posta no recurso.


II. Contrato de seguro é a convenção por virtude da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado), a assumir um risco ou conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado - Prof. Almeida Costa (in R.L.J.; 129; 20).

É um contrato rigorosamente formal, isto é, a sua validade intrínseca está dependente da sua redução a escrito em documento designado por apólice de seguro.

Por ser um negócio formal, implicando a exigência de documento escrito “ad substantiam” - sem apólice não há contrato de seguro (artigos 364.º, 219.º e 220.º, do C. Civil) - todas as dúvidas que eventualmente surjam na determinação do conteúdo das declarações de vontade nele exaradas terão de ser esclarecidas com o recurso aos critérios legais de interpretação referentes aos negócios jurídicos adiantados pelo disposto no artigo 236.º, n.º1, do Cód. Civil, que consagra a denominada teoria da impressão do destinatário com a nota de que para que tal sentido possa valer é preciso que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este possa razoavelmente contar com ele (art.º 236.º, n.º1, in fine, do C.C.) e sem olvidar que nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.º 238.º, n.º1, do C.Civil).

     Em cumprimento desta imposição legal tem o julgador de ter em conta que a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição de real declaratário, lhe atribuiria; considera-se real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável (Prof. Mota Pinto; Teoria Geral do Direito Civil; pág. 419); e a normalidade do declaratário que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante (Prof. Pires de Lima e Antunes Varela; Cód. Civil Anotado; Vol. I; pág. 153).


Acresce ainda que, porque estamos juridicamente a caminhar no quadro interpretativo do contrato de adesão, adstrito às regras consagradas no Dec. Lei n.º 446/85, havemos de alcançar o que nele se descreve sobre o tratamento a dar às cláusulas ambíguas, as quais devem valer com o sentido que lhes atribuiria um o normal cidadão colocado na posição do real pré-contratante e que, na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente (art.º 11.º), deste modo corrigindo o individualizado proponente que se desviou da responsabilidade de ser claro e preciso na redacção dos termos do contrato que propôs aos seus possíveis interessados e que o disposto no art. 8.º também lhe comete.


III. Nos termos do estipulado no artigo 1.º, alínea e), das Condições Especiais da Apólice que titula o contrato de seguro, subscrito pela ré/seguradora e autora, a “Invalidez Total e Permanente” é assim caracterizada:

- A Pessoa Segura encontra-se na situação de Invalidez Total e Permanente se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou Incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades, ser superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo iguala 100%.

Posicionados naquele contexto contratual - a definir o declaratário normal - é que vamos interiorizar o que é que se deve entender por “invalidez total e permanente” e descrevê-la no contexto de uma pessoa que ficou, completa e definitivamente, incapaz de prover à sua subsistência, mercê de ter ficado impossibilitada de se apoiar na retribuição da sua actividade laboral, circunstancialismo que lhe determinou a impossibilidade de, irreversivelmente, obter meios para a sua sustentação.

Quer isto dizer que a definição de “invalidez total e permanente”, a descobrir, pressupõe uma situação de total impossibilidade de a pessoa dela afrontada poder angariar os indispensáveis proventos à sua sobrevivência e, ainda, que essa contingência esteja inflexivelmente consolidada, isto é, quando o segurado, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, como está contratualmente assinalado.

Esta caracterizada ocorrência encontramo-la firmada na autora/segurada AA.

Na verdade, estando comprovado que a falecida autora, por apresentar carcinoma localmente avançado da mama esquerda, com 6 centímetros de diâmetro, passou a partir do mês de Junho de 2005 a ser observada no IPO, a partir de 25.09.2006 passou a ter uma IPP de 84%, incapacidade esta que se agravou para 96% a partir de finais do ano de 2010, vindo a falecer em 12.12.2011, desta pontificada contingência se depreende, clara e inequivocamente, que daquela enfermidade lhe adveio uma global impossibilidade de, futura e irreversivelmente, poder prover à sua subsistência, sendo relevante para este particularizado discernimento a circunstância de a saúde da autora se ter sempre e gradualmente agravado após ter sido surpreendida com carcinoma localmente avançado da mama esquerda.

Estamos em condições de dizer que a incapacidade parcial permanente de 84%, que sobreveio à autora AA, preenche a categoria de “invalidez total e permanente” consignada pela recorrente no convencionado contrato.

Como bem entenderam as instâncias, o estado clínico da autora processou-se sempre, no sentido do seu agravamento a partir de 25.09.2006, momento em que passou a ter uma IPP de 84%; e tal padecimento, como nos ensinam as regras da experiência da vida, não permitiria que ela pudesse, natural e concludentemente, mesmo assim, alcançar os necessários proventos compensatórios para coadjuvar a gestão da sua vida familiar: uma incapacidade parcial permanente de 84%, que é equipara por vontade das partes a uma incapacidade permanente total, lógica racionalmente, torna a autora uma pessoa que, profissionalmente, arrasta consigo uma invalidez total permanente.

IV. Sustenta a seguradora/recorrente no sentido de que, muito embora dos três requisitos necessários à cobertura de invalidez total permanente se verifique um deles - a incapacidade de 100% (considerando-se como tal a incapacidade superior a 66,6% e a autora apresentava uma incapacidade temporária permanente de 84%), todavia não estão conferidos os restantes dois requisitos, mais precisamente, a incapacidade definitiva da autora e a sua incapacidade impeditiva de exercício de uma actividade remunerada.


Não acompanhamos esta deduzida argumentação.

Como ficou sobejamente demonstrado, desde que lhe foi detetado o carcinoma da mama, que a degradação desta doença oncológica arraigada na autora teve sempre uma visível evolução degenerativa, usual neste tipo de doença quando só tardiamente é conhecida, a culminar com o seu decesso.

Este circunstancialismo jurídico-factual, que a recorrente pôde trouxe consigo a juízo e visivelmente evidenciado na ação, haveria sempre de ser ajuizado pelo Julgador no sentido de que a sua integral e definitiva invalidez se processou, terminantemente, logo em 25.09.2006, ou seja, quando a sua incapacidade temporária permanente atingiu os 84%.

Convenhamos também que, repetimos, uma incapacidade para o trabalho de 100%, ou uma inabilidade laboral assim equiparada (incapacidade superior a 66,6%, como contratualmente foi acordado), faz impossibilitar essa pessoa de usufruir o seu usual cargo funcional, tudo se passando, neste contexto, como se lhe tivesse sido retirada, irreversivelmente, a possibilidade de assegurar a remuneração que anteriormente lhe advinha.

Prosseguindo, entende a recorrente que, porque só no Relatório do IML, datado de 31 de Janeiro de 2012, a IPP de 0,60 do foro oncológico anteriormente atribuída à primitiva autora foi alterada para 0,95, apenas a partir desta data é que ela se encontrou em situação de invalidez total e permanente.

   Esta asseveração está destituída do exigido rigor que dela haveria de sobressair.

     Na verdade, a invalidez total e permanente que resultou para a autora, em consequência do carcinoma da mama esquerda de que foi acometida, concretizou-se logo que nela se revelou uma IPP de 84%, (mais de 66,6%), isto é, em 25-09-2006.

A validade deste criterioso entendimento está revelada na circunstância de se constatar que foi a partir desta data (25-09-2006) que se consolidou a sua incapacidade, passou a ser de 96% a partir de finais do ano de 2010 e perecendo em 12-12-2011.

Desta facticidade não pode, todavia, concluir-se que só a partir de 31 de Janeiro de 2012, altura em que lhe foi diagnosticada a negativa evolução da sua doença, é que ficou incapaz de obter a usual remuneração do seu trabalho. Já antes, em 25-09-2006, isto é, quando apresentou uma IPP de 84%, tal contrariedade, de modo absoluto, se conferia à autora.

A autora encontrou-se em situação de invalidez total e permanente a partir de 25-09-2006, por ser a partir desta data que, por lhe ter sido atribuída uma IPP de 84%, ficou impossibilitada de auferir a remuneração condizente com a sua dignidade humana.  


Concluindo:

1. Uma incapacidade para o trabalho de 100%, ou uma inaptidão laboral assim equiparada, faz impossibilitar essa pessoa de usufruir o seu usual cargo funcional, tudo se passando neste contexto como se lhe tivesse sido retirada a remuneração que dele lhe advinha.

2. A invalidez total e permanente que resultou para a autora, em consequência do carcinoma da mama esquerda de que foi acometida, concretizou-se logo que nela se revelou uma IPP de 84%, isto é, em 25-09-2006; a validade deste criterioso entendimento está revelada na circunstância de se constatar que foi a partir desta data (25-09-2006) que se consolidou a sua incapacidade, passou a ser de 96% a partir de finais do ano de 2010 e perecendo em 12-12-2011.


Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de julho de 2014


Silva Gonçalves (Relator)

Fernanda Isabel

Pires da Rosa