Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
139/09.7TCGMR.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CESSÃO DA EXPLORAÇÃO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
REGIME APLICÁVEL
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
Data do Acordão: 09/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Área Temática: ÁREA TEMÁTICA: DIREITO CIVIL / DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATO DE ARRENDAMENTO / CONTRATO DE CONCESSÃO COMERCIAL / QUALIFICAÇÃO JURÍDICA / INTERPRETAÇÃO DA VONTADE / MATÉRIA DE FACTO / CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
Doutrina: Manuel de Andrade «Teoria Geral da Relação Jurídica», vol. II, Coimbra 1987, pág. 311;
Legislação Nacional: CÓDIGO DE NOTARIADO DE 1960: ART. 88.º, AL. I) E AL. H)
LEI N.º 2030, DE 22-06-1948: ART. 37.º
CÓDIGO CIVIL DE 1867: ART. 684.º, 686.º;
CC: ART. 219.º, 236.º, 237.º, 238.º
NCPC (2013): ART. 683.º
NRAU (APROVADO PELA LEI N.º 6/2006, DE 27-02): ARTS. 26.º, N.º 4,, AL. C), E N.º 6, AL. A),27.º, 28.º E 65.º.
Jurisprudência Nacional: AC. STJ DE 27-10-2010, PROCESSO 971/08TVPRT.P1.S1;
AC. STJ 12-06-2012, PROC. N.º 3650/10.3TBVFR.P1.S1;
AC. STJ DE 22-05-2014, PROC. N.º 2264/06.7TVLSB.L1.S1
AC. STJ DE 23-09-2008, PROCESSO N.º 08B2346;
AC. STJ DE 16-04-2009, PROC. N.º 77/07.8TBCTB.C1.S1;
AC. STJ DE 04-11-2010, PROC. N.º 2916-05.9TBVCD.P1.S1;
AC. STJ DE 25-03-2010, PROC. N.º 983/06.7TBBGR.G1.S1;
Sumário :
I - As regras aplicáveis à interpretação e à determinação da validade de um contrato são as que vigoram à data da sua celebração.

II - A conclusão sobre a vontade real (contratual) das partes é insusceptível de censura pelo STJ, posto que este está vinculado pelo entendimento que as instâncias alcançaram da interpretação dos factos, nomeadamente com recurso a presunções judiciais.

III - Tanto no contrato de cessão de exploração, ou de locação de estabelecimento industrial, como no contrato de arrendamento de um imóvel com a finalidade de nele funcionar um estabelecimento industrial, o direito de gozo do imóvel é transferido temporariamente para pessoa diversa do respectivo proprietário, sendo que no primeiro o gozo do imóvel integra o estabelecimento locado, cuja titularidade se mantém no locador, e no segundo, por virtude do arrendamento do local, o gozo vai integrar-se no estabelecimento de que é titular o arrendatário do prédio.

IV - Não é conciliável com a natureza do contrato de cessão de exploração de estabelecimento a circunstância de, na escritura em que se formalizou o contrato, resultar uma transferência temporária do imóvel, sem que da mesma resulte que ela acompanhe a locação do estabelecimento em que se integra, bem como a circunstância de nele haver referências às condições de um eventual trespasse.

V - Verifica-se, por isso, uma contradição insanável entre o que resulta da escritura (com cláusulas típicas de um contrato de arrendamento) – sendo certo que dos factos provados consta “28. A escritura pública referida em A) traduz a efectiva vontade das partes, confirmada perante notário” – e a conclusão das instâncias de que a vontade real das partes foi a de celebrar um contrato de cessão de exploração.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA instaurou contra BB, Ldª, uma acção na qual pediu que fosse «declarado e reconhecido

a) Que a Autora é dona do estabelecimento hoteleiro denominado “Hotel CC”, instalado no seu prédio urbano identificado no art.º 1.º e na escritura referida no artº 16º, ambos desta petição.

b) Que o identificado prédio onde está instalado o Hotel CC, faz parte integrante do estabelecimento comercial do Hotel CC e dele depende a existência do próprio hotel;

c) Que entre a Autora e (…) DD foi celebrado um contrato de cessão de exploração do “Hotel CC”, com início no dia 1 de Fevereiro de 1961, mas só formalizado no dia 15 de Junho de 1961, pela escritura pública aludida no art.º 16.º d(…)a petição.

d) Que a escritura aludida no art.º 16.º desta petição titula um contrato de cessão de exploração do estabelecimento hoteleiro denominado “Hotel CC” e não um contrato de arrendamento do prédio nela identificado, como erradamente, nela foi identificado;

e) Que a denúncia do contrato feita pela Autora, para o dia 31 de Janeiro de 2009, é lícita e eficaz e foi feita em tempo».

E que a ré fosse condenada:

«a) A reconhecer que a Autora é dona do estabelecimento comercial denominado “Hotel CC”, instalado no seu prédio urbano identificado no art.º 1.º d(…)a petição.

b) A reconhecer que a ocupação e exploração que faz deste estabelecimento hoteleiro a partir do dia 31 de Janeiro de 2009 é ilícita e não titulada e contra a vontade da Autora.

c) A restituir à Autora o seu identificado estabelecimento denominado “Hotel CC”, com todos os bens móveis e o imóvel que o integravam à data da escritura aludida no art.º 16.º, menos os bens móveis que a Autora, entretanto, vendeu ao DD (…);

d) A pagar à Autora uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, para ressarcimento dos prejuízos que lhe está a causar desde o dia 31 de Janeiro de 2009 com a ocupação e exploração ilícita e abusiva do Hotel CC e lhe continuará a causar até à data da sua efectiva restituição».

Para o efeito, e em síntese, alegou ser titular do estabelecimento hoteleiro “Grande Hotel CC”, instalado num prédio de sua propriedade, que criou e deu em concessão a sucessivos concessionários; que, em 1 de Fevereiro de 1961, entregou a respectiva exploração a DD, por contrato formalizado pela escritura de 15 de Junho seguinte, pelo prazo renovável de um ano, apesar de nela constar a celebração de um arrendamento; que o contrato se manteve até 26 de Junho de 2006, data em que DD lhe comunicou por escrito que trespassara à ré, gratuitamente, “o estabelecimento comercial instalado no prédio” da autora; que, por carta de 27 de Novembro de 2008 a autora comunicou à ré a denúncia do contrato para 31 de Janeiro de 2009; mas que a ré não aceitou.

A ré contestou, sustentando a ilegalidade e ineficácia da denúncia., uma vez que o contrato que em 1961 foi celebrado com DD foi um contrato de arrendamento industrial do prédio, e não uma cessão de exploração de “um negócio ou estabelecimento”; que as partes sempre se comportaram como tal; que, por efeito do trespasse, adquiriu a posição de arrendatária; que, tendo em conta a data do arrendamento, a senhoria não goza do direito de denúncia (artigos 26º, nº 4, c), 27º e 28º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro).

A autora replicou. Por entre o mais, alegou a nulidade do trespasse, “porque o trespassante era simples locatário ou concessionário do estabelecimento hoteleiro” e salientou que a ré foi constituída em 2006 pelos filhos de DD, que dela são gerentes e titulares de quotas iguais.

A acção foi julgada procedente, pela sentença de fls. 386, cuja parte decisória foi a seguinte:

“(…) julgo a acção (…) procedente por provada e, em consequência, declaro que:

a) a A. é dona do estabelecimento hoteleiro denominado Hotel CC, instalado no seu prédio urbano identificado no art.º 1.º;

 b) o identificado prédio onde está instalado o Hotel CC faz parte integrante do estabelecimento comercial do Hotel CC e dele depende a existência do próprio hotel;

c) entre a A. e DD foi celebrado um contrato de cessão de exploração do Hotel CC, com início no dia 01-02- 1961, mas só formalizado no dia 15-06-1961, pela escritura pública aludida em A) dos factos provados;

d) a escritura aludida A) dos factos provados titula um contrato de cessão de exploração do estabelecimento hoteleiro denominado Hotel CC e não um contrato de arrendamento do prédio nela identificado, como erradamente, nela foi identificado;

e) a denúncia do contrato feita pela A., para o dia 31 de Janeiro de 2009, é lícita e eficaz e foi feita em tempo,

e, ainda, condeno a R. BB, Ldª.,

f) a reconhecer que a A. é dona do estabelecimento comercial Hotel CC, instalado no seu prédio urbano identificado A) dos factos provados;

g) a reconhecer que a ocupação e exploração que faz deste estabelecimento hoteleiro a partir do dia 1 de Fevereiro de 2009 é ilícita e não titulada e contra a vontade da A;

h) a restituir à A. o seu identificado estabelecimento denominado Hotel CC, com todos os bens móveis e o imóvel que o integravam à data da escritura aludida A) dos factos provados, menos os bens móveis que a A, entretanto, vendeu ao DD (…);

i) a pagar à A. uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, para ressarcimento dos prejuízos que lhe está a causar desde o dia 01 de Fevereiro de 2009 com a ocupação e exploração ilícita e abusiva do Hotel CC e lhe continuará a causar até à data da sua efectiva restituição, correspondentes à diferença entre os montantes pagos à A. a título de rendas e os que esta poderia auferir pela exploração do estabelecimento se a A. tivesse tido a possibilidade de o ter transformado numa unidade hoteleira adequada ao turismo de qualidade”.


 Em síntese, “atendendo às cláusulas da escritura e aos demais factos provados”, o tribunal entendeu que o contrato celebrado entre a autora e DD “teve como objecto a exploração de um estabelecimento hoteleiro que a A. criou, de que era dona, e do qual se não demitiu, continuando o mesmo a ser explorado, além de outros, pelo DD e o efeito jurídico visado pelos contraentes foi a transferência dessa exploração com carácter temporário e oneroso, para o referido DD”; que a autora podia denunciar o contrato e que a ré estava obrigada a entregar-lhe o estabelecimento e, não o fazendo, a indemnizar a autora, pela “diferença entre os montantes pagos à A. a título de rendas e os que esta poderia auferir pela exploração do estabelecimento”.

A ré recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, pelo acórdão de fls. 547, confirmou a sentença.


2. Novamente recorreu a ré, agora para o Supremo Tribunal de Justiça (revista excepcional). O recurso foi admitido pela formação a que se refere o nº 3 do artigo 672º do Código de Processo Civil.

Deixando de lado as que respeitam aos pressupostos da revista excepcional, a recorrente formulou as seguintes conclusões, nas alegações:

«Do Direito a aplicar

M) O contrato celebrado entre a Recorrida na qualidade de dona e possuidora, e DD na qualidade de inquilino, mediante escritura pública de 15-06- 1961 no Cartório Notarial de Guimarães é um contrato de arrendamento tendo por objecto Prédio urbano denominado "EE", inscrito na competente matriz sob o artigo sessenta e sete e descrito na Cons. do Reg. Predial de Guimarães sob o número trinta e quatro mil cento e vinte e seis, a fls. setenta e seis verso, do Livro B noventa e cinco, para nele ser explorada a indústria hoteleira (facto provado A}).

N) Tal contrato traduziu a efectiva vontade das partes, confirmada perante Notário (facto provado 36°).

O) Tal contrato teve como "projecto" a Acta da Recorrida de 20 de Março de 1961, (facto provado D), cfr. fls. 20 a 21), onde se encontram todas cláusulas que foram transpostas para a escritura de arrendamento em crise. (vd. fundamentação da resposta à matéria de facto), onde aliás é dito que, "não poderá, de maneira alguma dizer-se que o Notário quando elaborou a escritura de fls 23 a 28, o classificou de arrendamento, ao contrário da vontade das partes".

P) Todas as cláusulas da escritura pública, são típicas de um contrato de arrendamento comercial, prevendo-se, entre outras, a possibilidade de trespasse do estabelecimento do inquilino DD, que nessa hipótese ficaria constituído fiador com o trespassário.

Q) O inquilino DD foi o dono do estabelecimento hoteleiro que instalou no arrendado, tendo-o trespassado à Recorrente em 26-06-2006 (facto provado E».

R) O inquilino DD não sucedeu na exploração de qualquer estabelecimento comercial pré-existente como unidade económica apta ao exercício do comércio. Antes, foi ele quem executou e/ou pagou as obras e adquiriu os bens necessários à criação e desenvolvimento do seu estabelecimento (factos provados C) e F).

S) Na execução deste contrato, a Recorrida sempre agiu uniformemente ao longo de 50 anos como senhoria, exercendo os direitos e deveres respectivos e reconhecendo o inquilino DD como arrendatário (facto provado n° 32).

T) Como resulta de ter (i) Aumentado as rendas, (ii) submetido à apreciação de comissão esse aumento de rendas, (iii) com recurso para o Tribunal de Guimarães (30, 31 e 33 dos factos provados): (i v) recebido rendas com dedução de IRS por rendimentos prediais e que ambas as partes trataram com tal (26, 27, 28 e 29 dos factos provados); (v) ser o arrendatário DD quem pagava o Imposto de Turismo (35 dos factos provados): e (vi) quem era titular do alvará de licença sanitária (34 dos factos provados).

U) A cessão de exploração de estabelecimento comercial pressupõe acordo entre detentor de estabelecimento comercial e outro sujeito, tendo por objecto a transferência onerosa e temporária para este da exploração de um estabelecimento comercial ou industrial, englobando a transmissão de instalações, utensílios, mercadorias, trabalhadores, licenças ou outros elementos que integrem o estabelecimento. Nenhum destes elementos materiais ou imateriais, se existiam, se encontra mencionado nestes autos como constante do negócio formalizado pela escritura pública de 15/06/1961.

V) Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade." Cf. Art.º 238º do Código Civil.

W) O sentido que a Recorrida pretende fazer valer prevalecer – o de se tratar de um contrato de cessão de exploração de um estabelecimento comercial – não tem qualquer correspondência com o texto da declaração e com a execução do contrato.

X) Antes ficou provado que a vontade real das partes foi a da celebração de um contrato de arrendamento (facto provado n° 36).

Y) A utilização de provas exteriores ao documento, para serem atendíveis, haveriam de conduzir a um sentido da declaração que nela tivesse um mínimo de correspondência. O que manifestamente também não acontece.

Em síntese

Z) Adquirida a correspondência entre a vontade declarada e a vontade real dos outorgantes na escritura de arrendamento de 15-06-1961, à relação contratual só pode aplicar-se o regime jurídico do arrendamento, constituindo erro de direito a subsunção da relação controvertida ao regime da cessão de exploração.»


A autora contra-alegou, concluindo nestes termos:

«(…) Sétima: A Recorrente não impugnou as decisões da parte dispositiva da douta sentença recorrida, das alíneas a), b), e), f), g), h) e i):

a) a A. é dona do estabelecimento hoteleiro denominado Hotel CC, instalado no seu prédio urbano identificado no art. 1.º da p.i.;

b) o identificado prédio onde está instalado o Hotel CC, faz parte integrante do estabelecimento comercial do Hotel CC e dele depende a existência do próprio hotel;

e) a denúncia do contrato feita pela A., para o dia 31 de Janeiro de 2009, é lícita e eficaz e foi feita em tempo, e, ainda, condeno a R. BB, Ldª:

f) a reconhecer que a A. é dona do estabelecimento comercial Hotel CC, instalado no seu prédio identificado em A) dos factos provados;

g) a reconhecer que a ocupação e exploração que faz deste estabelecimento hoteleiro, a partir do dia 01 de Fevereiro de 2009 é ilícita e não titulada e contra a vontade da A.;

h) a restituir à A. o seu identificado estabelecimento Hotel CC, com todos os bens móveis e o imóvel que o integravam à data da escritura aludida em A) dos factos provados menos os bens móveis que a A., entretanto, vendeu ao DD;

i) a pagar à A. uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, para ressarcimento dos prejuízos que lhe está a causar desde o dia 01 de Fevereiro de 2009 com a ocupação e exploração ilícita e abusiva do Hotel CC e lhe continuará a causar até à data da sua efectiva restituição, correspondente à diferença entre os montantes pagos à A. a título de rendas e os que esta poderia auferir pela exploração do estabelecimento se a A. tivesse tido a possibilidade de o ter transformado numa unidade hoteleira adequada ao turismo de qualidade.", as quais foram confirmadas pelo douto acórdão recorrido e transitaram em julgado, nos termos do disposto nos artigos 632.° n.ºs 2 e 3 e 628.° do NCPC.

Oitava: As partes contratantes quiseram celebrar e celebraram, entre si, um contrato de locação ou de cessão de exploração do estabelecimento denominado "HOTEL CC", e não um contrato de arrendamento do prédio onde o mesmo se encontra instalado e dele faz parte integrante.

Nona: O conceito de "renda" respeita ao proveito de qualquer actividade económica, incluindo, nomeadamente, o preço devido pela locação ou cessão da exploração de estabelecimento, não sendo, portanto, exclusivo do contrato de arrendamento de prédios rústicos ou urbanos.

Décima: Da cobrança das rendas não podem extrair-se conclusões necessárias acerca do objecto e da substância do contrato em que foram estipuladas, e ou acerca da posição dos contratantes, quanto à qualificação jurídica da respectiva relação contratual.

Décima Primeira: Pelo documento junto com a contestação sob o título "Contrato de Trespasse", os ditos DD e mulher só puderam transmitir e transmitiram, para a Recorrente, a posição contratual que detinham no contrato titulado pela escritura de 15-06-1961, pois o estabelecimento denominado "HOTEL CC" pertencia e pertence à Autora.

Décima Segunda: A Autora, ora Recorrida, comunicou a denúncia do contrato titulado pela escritura de 15-06-1961, para o termo do prazo da renovação, então, em curso, por carta registada com aviso de recepção que enviou à Ré, ora Recorrente, na sua qualidade de cessionária da posição contratual do outorgante DD.»

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido, com numeração):

1. Por escritura pública outorgada no dia 15 de Junho de 1961, no 1º. Cartório Notarial de Guimarães, FF, outorgando como Juiz da Mesa da AA e DD, declaram, além do mais, por aquele, como primeiro outorgante na sobredita qualidade, “que a referida AA, que o primeiro outorgante representa, é dona e possuidora de um prédio urbano denominado “EE, também conhecida por “Grande Hotel CC”, situado no lugar do seu nome, da indicada freguesia da …, inscrito na competente matriz sob o artigo sessenta e sete e descrito na Cons. do Reg. Predial deste concelho sob o número trinta e quatro mil cento vinte e seis, a fl.s setenta e seis verso, do Livro B noventa e cinco, ao qual atribui o valor de duzentos mil escudos. Que, pela presente escritura, na indicada qualidade e usando dos poderes que lhe foram conferidos, dá de arrendamento ao segundo aquele designado prédio, pelo tempo, renda e condições seguintes: Primeira: este arrendamento é pelo prazo de um ano, prorrogável enquanto convier a ambas as partes e teve o seu início em um de Fevereiro último; Segundo: o referido prédio destinar-se-á a nele ser explorada, pelo segundo outorgante, a indústria hoteleira; Terceira: nos cinco primeiros anos que durar o presente contrato, a contar do dia indicado dia um de Fevereiro, a renda anual será de seis mil escudos, pagável em duodécimos de quinhentos escudos no primeiro dia útil do mês a que disser respeito; Quarta: nos cinco anos subsequentes, a renda aludida será de trinta e seis mil escudos, pagável em duodécimos de três mil escudos, nas indicadas condições; Quinto: se o arrendamento durar por mais de dez anos, a renda anual será, a partir do décimo ano, de sessenta mil escudos, igualmente pagável em duodécimos, mas de cinco mil escudos, nas sobreditas condições; Sexto: o arrendatário, segundo outorgante, fica obrigado a realizar no prédio, objecto deste contrato, as obras de beneficiação estabelecidas pela Mesa da referida Irmandade, conforme o plano por esta já aprovado; … Décimo. No caso de o segundo outorgante arrendatário trespassar o estabelecimento hoteleiro instalado no prédio arrendado, manter-se-ão as cláusulas deste arrendamento e o mesmo segundo outorgante ficará responsável como fiador e principal pagador das rendas devidas. Pelo segundo outorgante foi dito: que aceita este contrato”. (A).

2. O estabelecimento hoteleiro Grande Hotel CC foi classificado, pela Direcção Geral de Turismo, no dia 10 de Agosto de 1949, como “Hotel com a categoria de 2ª classe” e reclassificado no dia 07 de Agosto de 1953, como “Hotel com a categoria de 1ª classe”. (B).

3. Por carta datada de 01-01-1961, DD, residente na rua …, Porto, comunicou à administração da AA, além do mais que “ … pretendendo tomar conta do Hotel CC vem por este meio fazer a seguinte proposta:

1º De entrada entrego a quantia exigida pela AA para as obras do Hotel.

2º Pago ao Sr. GG todo o recheio do Hotel que lhe pertencer…

3º Além das obras que a AA se propõe fazer, ainda faço por minha conta as obras de limpeza necessárias para que os quartos possam ser habitados, visto não estarem em condições para receberem hóspedes, bem como uma revisão nos móveis utensílios a fim de que seja dada outra apresentação às ditas habitações;

4º Proponho-me efectuar arranjos nas lojas e armazéns…;

5º Satisfazer as necessidades mais urgentes em roupas, materiais de metal e louças para a sala de jantar….

Outros melhoramentos há a fazer em pequenas coisas que de momento não posso recordar tudo mas que se tornam indispensáveis arranjar, a fim de dar nova e melhor apresentação do hotel.” – doc. de fl.s 17 a 19. (C).

4. Em reunião extraordinária da Mesa da AA do dia 20 de Março de 1961, os respectivos “mesários”, deliberaram dar de arrendamento ao dito DD a EE onde está instalado o Hotel CC, para exploração da indústria hoteleira, com início no dia 01-02-1961, pela renda e demais condições mencionadas na acta de fl.s 20 a 21. (D).

 5. Por carta de 26-06-2006, registada, com aviso de recepção, DD à A. que cedera à Ré, por trespasse gratuito, o estabelecimento comercial instalado no prédio urbano denominado EE – doc. de fl.s29. (E).

 6. Por deliberação da Mesa da AA, do dia 17-07-1966, foram vendidos ao dito DD, os artigos de miudezas de louças, culinária, talheres e roupas da Irmandade, que estavam a uso, pelo preço de três mil escudos. – doc. de fl.s 3º a 31. (F).

7. Por carta registada com aviso de recepção do dia 27-11-2008 a A. comunicou à R., nomeadamente:

1- Pela escritura de arrendamento, a AA cedeu o gozo do seu estabelecimento hoteleiro, instalado no seu prédio urbano denominado EE, com todos os referidos bens que o integravam, ao dito senhor DD, para exploração desse estabelecimento, pelo prazo e pela renda nela indicados.

2- Não convém, à A., a continuação do contrato para além do termo do prazo da renovação em curso, e por isso declara a sua vontade de o denunciar e, efectivamente, o denuncia para o dia 31 de Janeiro de 2009, data em que lhe deverá ser restituído o prédio e o estabelecimento hoteleiro nele instalado, com todos os bens de equipamento que o compunham à data da escritura de arrendamento, com excepção dos artigos de miudezas de louças, culinária, talheres e roupas da Irmandade que estavam a uso do senhor DD e lhe foram vendidos, pelo preço de três mil escudos, conforme deliberação da Mesa da Irmandade do dia 17-07-1996. doc. de fl.s 32 a 34. (G).

8. Por carta datada do dia 23-01-2009, a R. comunicou à A. que não aceita a denúncia do contrato – cfr. fl.s 35. (H).

9. A A. construiu a unidade hoteleira Grande Hotel CC, no primeiro quartel do século XX. (1.º).

10. O estabelecimento hoteleiro vem dispondo de:

a) um número variável de quartos de dormir, entre 18 e 25 destinados aos hóspedes, alguns com quarto de banho privativo;

b) Cozinha dotada de equipamentos necessários para confeccionar e servir refeições;

c) Sala de jantar para servir, as refeições mencionadas na alínea anterior;

d) Sala de estar ou de visitas;

e) Adega;

f) Rouparia. (2.º).

11. O estabelecimento hoteleiro está e sempre esteve aberto ao público, pelo menos a partir de 1946 e é e sempre foi explorado por terceiros. (3.º e 4.º).

12. No dia 12-06-1960, a categoria do estabelecimento do Hotel CC baixou para hotel de 2ª classe. (5.º).

13. O estabelecimento hoteleiro estava instalado no prédio identificado em A). (7.º).

14. Era dotado de bens de equipamento. (8.º).

15. (…) estava devidamente licenciado e encontrava-se aberto ao público e em normal funcionamento. (9.º).

16. A A. e o dito DD celebraram o contrato referido em A), o qual teve início em 1-02-1961 e que o mantiveram até 26-06-2006. (10.º, 11.º e 12.º).

 17. A A. pretende proceder à transformação do Hotel CC numa unidade hoteleira, adequada ao turismo de qualidade. (14.ºe 15.º).

18. A AA emitiu recibos de renda que entregou ao arrendatário DD, deles constando a retenção de IRC sobre rendimentos prediais. (26.º).

19. A AA participou o arrendamento à Administração Fiscal em 30 de Janeiro de 1964. (27.º).

20. Apresentou declarações de rendas pagas e os montantes retidos como rendimentos prediais. (28.º).

21. O arrendatário DD declarou as rendas pagas e os montantes retidos como rendimentos prediais. (29.º).

22. Após a cessação da proibição legal de actualização das rendas, a AA requereu a fixação de renda pela Comissão de Avaliação, tendo havido recurso para o Tribunal Judicial de Guimarães que fixou a renda em 18.000$00 mensais, por sentença proferida no processo nº 36/81. (30º).

23. A AA requereu tal avaliação afirmando-se proprietária e senhoria e reconhecendo DD como inquilino. (31º).

24. Nunca a AA pôs em causa a qualidade de inquilino/arrendatário de DD. (32º).

25. Ao longo da vigência do contrato de arrendamento a A. procedeu a actualização de rendas. (33º).

26. O Alvará de Licença Sanitária para exploração de Hotel, sito na …, instalado em prédio pertencente à AA, foi, pela Câmara Municipal de Guimarães, concedido a DD em 12-01-1993.(34º).

27. Era o arrendatário DD quem efectuava o pagamento do Imposto de Turismo. (35º).

28. A Escritura Pública referida em A) traduz a efectiva vontade das partes, confirmada perante Notário. (36º).


4. A questão fundamental a resolver neste recurso reside em saber se o contrato celebrado em 1961 entre a autora e DD foi um contrato de cessão de exploração de estabelecimento, ou de locação de estabelecimento ou, antes, um contrato de arrendamento para fins industriais (indústria hoteleira). Da conclusão a que se chegar depende saber se o contrato se mantém ou cessou, bem como a eventual necessidade de ser apreciada a ampliação do objecto do recurso de apelação, requerida pela autora e considerada prejudicada pelo acórdão recorrido.

Exclui-se desde já o obstáculo suscitado pela recorrida, na contra-alegação, de não terem sido impugnadas e, portanto, de terem transitado em julgado (pontos 5 e 6 das contra-alegações) “as decisões das alíneas a), b), e), f), g), h) e i) da sentença” (fls. 663), acima transcritas.

Com efeito, da leitura das alegações do recurso de apelação, em particular das suas conclusões, resulta manifestamente impugnado pelas recorrentes o que ali se decidiu, salvo quanto às alíneas a) e b), que não suscitam controvérsia.

5. O contrato sobre cuja qualificação as partes divergem data de 1961. Sem prejuízo de saber qual o regime aplicável ao trespasse comunicado por DD à autora, por carta de 26 de Junho de 2006, ou à denúncia dirigida à ré por carta registada com aviso de recepção de 27 de Novembro de 2008, a verdade é que a interpretação do próprio contrato há-de ter em conta as regras vigentes à data da sua celebração, e não as do Código Civil de 1966. As regras aplicáveis à interpretação e à determinação da validade de um contrato são as que vigoram à data da sua celebração (assim, apenas a título de exemplo, cfr. os acórdãos deste Supremo Tribunal de 27 de Outubro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 971/08.9VPRT.P1.S1, ou de 12 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3650/10.3TBVFR.P1.S1).

Ao que acresce que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no controlo da interpretação de declarações de vontade se encontra limitada pelos seus poderes de cognição, restritos à matéria de direito. Ou seja: está subtraído à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça “o controlo da interpretação de declarações negociais, no que se refere à determinação do sentido da vontade real dos intervenientes, por se tratar de questão ainda situada no domínio dos factos, como o Supremo Tribunal de Justiça repetidamente tem salientado; apenas lhe é permitido avaliar a aplicação dos critérios legais de interpretação” (acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Maio de 2014, www.dgsi.pt, proc. nº 2264/06.7TVLSB.L1.S1; cfr. ainda, apenas a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Setembro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2346, de 16 de Abril de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 77/07.8TBCTBCTB.C1.S1, ou de 4 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 2916/05.9TBVCD.P1.S1)

A conclusão sobre a vontade real é insusceptível de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça, que está vinculado pela conclusão que as instâncias alcançarem da interpretação dos factos. O que implica, desde logo, que estejam excluídas da revista quaisquer presunções que se pudessem pretender retirar da actuação da autora, com o objectivo de estabelecer essa vontade real.

6. O referido contrato foi celebrado por escritura pública, como ao tempo se exigia, quer para o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial (artigo 88º. al. i) do Código do Notariado de 1960, aprovado pelo Decreto-Lei nº 42933, de 20 de Abril de 1960: “Devem celebrar-se por escritura pública, sob pena de nulidade: i) Os contratos de transferência da propriedade de estabelecimentos comerciais ou industriais, os que tenham por objecto o gozo destes estabelecimentos e os de sublocação ou cessão de direito ao arrendamento dos locais aos mesmos destinados”), quer para o arrendamento para comércio ou indústria (artigo 37º da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948 e artigo 88º do mesmo Código do Notariado, al. h: “Os arrendamentos para comércio, indústria ou profissão liberal e os sujeitos a registo”)).

Para o interpretar, vale em primeiro lugar a regra constante do artigo 684º do Código Civil de 1867, segundo a qual a “intenção ou vontade dos contraentes” se há-de descobrir dos “termos, natureza e circunstâncias” do contrato, ou do uso, costume ou lei”. Como esclarecia Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol.II, Facto jurídico, em especial negócio jurídico, 2ª reimp., Coimbra, 1987, pág. 311, “do artigo 684º tira-se a seguinte norma de interpretação: os contratos devem ser interpretados conforme os seus termos, natureza e circunstâncias’ e ainda conforme o ‘uso, costume ou lei’”, procurando alcançar “aquele sentido objectivo que se obtenha do ponto de vista do declaratário concreto, mas supondo-o uma pessoa razoável”. Ou seja: tendo em conta a protecção do declaratário e da segurança do comércio jurídico, e tal como fundamentalmente veio a constar do artigo 236º do Código Civil actual, as declarações dos contraentes devem valer, por princípio, com o sentido que um declaratário medianamente diligente e informado, colocado na posição do real declaratário, lhes atribuiria. Este último ponto significa que se devem tomar em conta os conhecimentos que o concreto declaratário possuía: se o declaratário conhecia a vontade efectiva do declarante, é de acordo com ela que a declaração deve ser entendida.

Esta directiva comportava (e comporta) várias correcções, ou adaptações, hoje constantes da lei (cfr., por exemplo, o nº 2 do artigo 236º ou o disposto no artigo 238º para os negócios formais), existindo regras supletivas de solução de dúvidas (cfr. por ex., o artigo 685º do Código Civil de 1867 e o artigo 237º do Código actual, para os negócios gratuitos ou onerosos).

Interessa agora especialmente o caso particular dos negócios formais, expressamente analisados por Manuel de Andrade (op. cit., pág. 315), relativamente aos quais não poderá ser considerado um sentido que não tenha um mínimo de correspondência com o respectivo texto, sob pena de inutilização da exigência de forma.

Como se escreveu já no acórdão deste Supremo Tribunal de 25 de Março de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 983/06.7TBBGR.G1.S1), “costumam apontar-se fundamentalmente três ordens de razões justificativas do abandono do princípio da liberdade da forma (artigo 219º do Código Civil) e da exigência de maior ou menor formalismo como condição de validade de uma declaração negocial tem em vista (reconhecidamente sintetizadas de forma elucidativa no conhecido relatório do Decreto-Lei nº 32.032, de 25 de Maio de 1942): assegurar uma correcta ponderação dos outorgantes quanto aos efeitos que do negócio resultam para a sua esfera jurídica; permitir aos interessados, sobretudo se a forma se reveste de publicidade (documento autêntico, por exemplo), tomar conhecimento dos efeitos que de algum modo os possam afectar; provar o acto realizado.”

Como hoje se esclarece no (actual) artigo 238º, nº 2, do Código Civil, um negócio formal poderá ainda valer com o sentido que corresponda à vontade real das partes, que não se encontre minimamente traduzida no texto do contrato, se as razões determinantes da exigência de forma se não opuserem a que possa valer com esse sentido. O mesmo se deverá entender para a lei anterior, não se havendo irremediavelmente como nulo o negócio em causa; imprescindível é o respeito da razão de ser da imperatividade da forma, sob pena de incongruência com essa imperatividade.

7. Quer a sentença, quer o acórdão recorrido entenderam que o contrato constante da escritura de 15 de Junho de 1961 foi um contrato de cessão de exploração do estabelecimento hoteleiro criado pela autora e anteriormente explorado por terceiros. Mais rigorosamente: concluíram que a vontade real dos contraentes foi a de celebrar um contrato de cessão de exploração e que o texto da escritura consente que o contrato possa valer como tal.

Escreveu-se, no acórdão recorrido, o seguinte:”Ou seja, é claro, também para nós, que, não obstante o uso do termo arrendamento de prédio, o que se pretendeu foi formalizar um negócio de cessão de exploração de um estabelecimento hoteleiro, aliás não afastado pelo que se expressou na escritura de 1961. Antes pelo contrário, manifestou-se ali o desígnio de o prédio se destinar à exploração da indústria hoteleira, pelo que, revelando a matéria fáctica supra exposta que sempre existiu e funcionou o estabelecimento hoteleiro, não se pode agora concluir, como pretendido pela Recrte. que apenas se deu de arrendamento um prédio urbano. Tanto mais que a identidade do titular do arrendamento era coincidente com a identidade daquele que ficou na exploração do negócio ali instalado.” E na sentença: “Apesar de nos diversos documentos juntos ao processo, nomeadamente as actas da A., e na própria escritura que formalizou o negócio celebrado entre esta e eo DD, e a generalidade das testemunhas se utilizar, referindo-se a tal negócio o termo ‘arrendamento’, certo é que tal qualificação não está correcta, pois que ambas as partes, a A. e o DD o que pretenderam celebrar era o negócio para a exploração do Hotel, instalado no prédio (…) e não o prédio em si (…)”.

8. A verdade é que não se encontra na escritura nenhum traço de um contrato de cessão de exploração de um estabelecimento.

Todos conhecemos a diferença entre um contrato de cessão da exploração ou de locação de um estabelecimento (industrial) instalado num determinado imóvel, de que é proprietário o titular do estabelecimento, e um contrato de arrendamento de um imóvel com a finalidade de nele funcionar um estabelecimento (industrial). Em ambos os casos, o direito de gozo do imóvel é transferido temporariamente para pessoa diversa do respectivo proprietário. No primeiro, porque o gozo do imóvel integra o estabelecimento locado, cuja titularidade se mantém no locador; no segundo, porque, por virtude do arrendamento do local, o gozo vai integrar-se no estabelecimento de que é titular o arrendatário do prédio.

Da escritura resulta essa transferência temporária, mas em resultado de um arrendamento; em caso algum o texto indicia sequer que ela acompanhe a locação do estabelecimento em que se integra. Para além do mais, a referência às condições de um eventual trespasse por parte de DD é inconciliável com uma interpretação literal que conclua no sentido de se tratar de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento.

No pressuposto de que vem assente que a vontade real dos contraentes foi a de celebrar um contrato de cessão de exploração, e não de arrendamento, importaria saber se a razão de ser da exigência permitiria considerar validamente celebrado tal contrato; ou, diferentemente, se obrigaria a concluir pela respectiva nulidade, por falta de forma (artigos 686º do Código Civil de 1867 e 88º, al. i) do Código do Notariado de 1960).

Entende-se que, não obstante o texto da escritura pública de 1961 não revelar um contrato de locação de estabelecimento, a verdade é que a razão pela qual se exigia escritura pública para a celebração desse contrato se encontra satisfeita com a escritura de 1961 – oneração do direito de propriedade sobre um imóvel com a atribuição do direito de gozo a pessoa diversa do seu proprietário, identificada na escritura. A cessão de exploração não seria, assim, nula por falta de forma.

9. A recorrente, todavia, contesta a correcção daquele pressuposto, recorrendo, nomeadamente, ao que vem provado em resposta ao quesito 36º (ponto 28º dos factos provados): “ 28. A Escritura Pública referida em A) traduz a efectiva vontade das partes, confirmada perante Notário. (36º)”.

Ora a correcta compreensão desta afirmação obriga a interpretar o julgamento de facto, constante de fls. 330 e segs. (em conjugação com a base instrutória, de fls. 141 e segs.). Lê-se na fundamentação: “Conjugando todos estes depoimentos e essencialmente os prestados pelas testemunhas HH e II, com os documentos juntos ao processo, bem como com as regras da experiência, o Tribunal logrou formar uma sólida convicção para responder pela forma supra referida aos artigos da base instrutória. Com efeito, se analisarmos as actas da AA, verificamos que em todas elas o contrato celebrado por esta e pelo DD é sempre referido como de arrendamento, cfr, nomeadamente fls, 30 a 31, 177 a 187, 190 a 195. Também aquando da avaliação fiscal a AA figura como proprietária do imóvel onde está instalado o hotel e DD como «arrendatário do identificado prédio», cfr. fls. 316. Em conclusão em todas as actas o contrato é referido como de arrendamento e o contrato celebrado contém todas as cláusulas típicas de um contrato de arrendamento. E não poderá, de maneira alguma, dizer-se que o Notário quando elaborou a escritura de fls 23 a 28, o classificou de arrendamento, ao contrário da vontade das partes, até porque tal contrato tem como «projecto a acta da Irmandade de 20 de Março de 1961, cfr. fls. 20 e 21, onde se encontram as cláusulas que foram depois transpostas para a referida escritura de arrendamento. E a corroborar tal afirmação encontra-se, ainda, junto aos autos, fls. 311 a 314, um outro documento, de 08-11-1972, onde, agora sim as partes pretenderam formalizar um contrato de concessão. Estranho é também que só passados tantos anos, após a celebração do mesmo e o aceitar, é que AA se insurja contra o referido contrato”.

Neste contexto, compreendem-se, por um lado, as respostas restritivas a diversos quesitos (cfr. o referido julgamento de facto) e, por outro, a resposta ao quesito 36º, cujo significado não pode assim deixar de ser o de que a vontade real das partes foi a de celebrar um contrato de arrendamento. Com este alcance, o quesito 36º e respectiva a resposta situam-se apenas no âmbito da matéria de facto, exprimindo o sentido da vontade real dos contraentes, que naturalmente carecia de ser provada.

Todavia, quer a sentença, quer o acórdão recorrido assentam no já referido pressuposto de que a vontade real das partes foi antes a de celebrar um contrato de cessão de exploração, ou de locação de estabelecimento, e não de arrendamento, criando por esta via uma contradição insuperável na matéria de facto, que este Supremo não pode ultrapassar.

E a verdade é que se trata de um ponto fulcral para a qualificação do contrato que as partes efectivamente quiseram celebrar, com influência evidente no desfecho da causa.

Assim, cumpre anular o acórdão recorrido, para que seja resolvida a contradição apontada, quanto ao sentido da vontade real dos contraentes.

10. De acordo com o que vem previsto no nº 1 do artigo 683º do Código de Processo Civil, cumpre definir o direito aplicável, sendo certo que, se a Relação vier a concluir que a vontade real dos contraentes foi a de celebrar um contrato de locação de estabelecimento, manter-se-á a procedência da acção, por se dever ter como válida e eficaz a denúncia, apesar de ter sido dirigida à ré, nos termos decididos pelo acórdão recorrido.

Se, diferentemente, ficar assente que o contrato querido pelas partes foi um contrato de arrendamento do prédio, a acção improcede, como decorre do disposto nos artigos 27º, 28º, 26º, nº 4, c) e nº 6, a) e 65º, nº 2 do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro. Nessa eventualidade, caberá à Relação ajuizar sobre se a resolução da contradição tornou ou não desnecessário pronunciar-se sobre o recurso subordinado.

11. Nestes termos, decide-se anular o acórdão recorrido, para que seja resolvida a apontada contradição, pelos juízes que proferiram o acórdão recorrido, se possível.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 11 de Setembro de 2014

Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego