Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | DEVERES DE SEGURANÇA NO TRÁFEGO RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL OMISSÃO PERIGO ILICITUDE DEVER DE DILIGÊNCIA CULPA DO LESADO DANO CAUSADO POR COISAS OU ATIVIDADES PRESUNÇÃO DE CULPA INTERPRETAÇÃO DA LEI NULIDADE DE ACÓRDÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO QUESTÃO NOVA | ||
Data do Acordão: | 12/20/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA IMPROCEDENTE. | ||
Sumário : |
I - Não tendo a recorrente incluído nas conclusões da apelação quer a impugnação da decisão de facto sobre a qual discordava, quer a insuficiência da respectiva fundamentação, tratando-se de questões que não integram o dever de conhecimento oficioso, não podia o tribunal a quo proceder à apreciação das mesmas, não incorrendo o acórdão recorrido em nulidade por omissão de pronúncia. II - Embora se encontre consignado no artigo 486.º, do Código Civil, que o dever jurídico de praticar o acto resulta da lei ou de negócio jurídico, tem vindo a ser entendido pela doutrina e pela jurisprudência que a nossa lei consagra o princípio geral de que quem “cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir danos com ela relacionados”. III - O acolhimento dos deveres de prevenção do perigo (denominados também de deveres de segurança no tráfico ou de deveres de tráfego), impondo ao agente o dever de tomar as providências necessárias para evitar a produção de danos a terceiros, permite alargar a responsabilidade civil (extracontratual) por omissão a quem exerce o domínio de facto sobre uma coisa (móvel ou imóvel) ou sobre uma actividade. IV – Uma estrutura de ferro colocada junto à passadeira de peões no parque de estacionamento do IKEA, a ser entendida como um ponto de perigo (ainda que cognoscível e fácil de evitar), imporia a obrigação de conduta de prevenção de riscos reconduzida a um dever de sinalização (de aviso de obstáculo com a colocação de eventual painel a alertar os transeuntes). Nessa medida, a falta de sinalização constitui a omissão de actuação exigível na gestão do risco desencadeado pela referida estrutura de ferro. V- Estando demonstrado nos autos que a autora caminhava desatenta (porque focalizada na segurança do neto que seguia à sua frente) no parque de estacionamento, fora da passadeira de peões (ainda que junto à mesma), há que considerar que a falta de aviso sinalizador da estrutura de ferro não foi condicionante (prévia e determinantemente) da conduta daquela, mostrando-se ilidida a presunção ínsita no artigo 493.º, n.º1, in fine, do Código Civil | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
I – relatório 1. AA intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra IKEA PORTUGAL, MÓVEIS E DECORAÇÃO LDA, IKEA DE ... e Seguradora da IKEA (identificação que referiu desconhecer), pedindo a condenação solidária das Rés no pagamento da quantia de 140.154,65€, a título de danos (110.154,65€ por danos patrimoniais e 30.000,00€ a título de danos não patrimoniais), acrescida de juros à taxa legal, desde a citação. Fundamentou a acção na responsabilidade das Rés pelas consequências do acidente (queda) sofrido no parque de estacionamento subterrâneo da Ré IKEA DE ..., ocorrido quando, após ter efectuado compras no estabelecimento da 2.ª Ré e ao dirigir-se para a viatura automóvel ali estacionada, tropeçou num ferro (não visível) colocado na passadeira destinada ao percurso de peões.
2. Após citação, a IKEA PORTUGAL, MÓVEIS E DECORAÇÃO LDA, apresentou contestação invocando a inexistência jurídica da IKEA DE ... e a ineptidão da petição inicial, com consequente nulidade de todo o processo. Impugnou parte da factualidade alegada e, imputando o acidente à culpa exclusiva da Autora, concluiu pela improcedência da acção. Requereu a intervenção[1], da MAPFRE SEGUROS DE VIDA SA, para quem transmitiu a sua responsabilidade civil.
3. Citada, a Ré MAPFRE SEGUROS DE VIDA, SA contestou excepcionando a ininteligibilidade da causa de pedir e pedido, a sua ilegitimidade e a exclusão de cobertura. Alegando, ainda, a existência de culpa do lesado na produção do acidente concluiu pela improcedência da acção.
4. Realizada audiência prévia, foi proferido saneador que julgou verificada a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da Ré Ikea ..., absolvendo a mesma da instância. Foram as demais excepcões julgadas improcedentes. Fixado o valor da causa (140.154,65€), foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. 5. Em 29-10-2021 a Autora apresentou articulado superveniente, invocando danos não patrimoniais no montante de 139.100,00€, ampliando o pedido inicial em conformidade.
6. Por despacho de 15-11-2021 foi admitido o articulado superveniente e a respectiva ampliação do pedido, tendo sido alterado o valor da acção para o valor de 249.254,65€.
7. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo as Rés do pedido.
8. A Autora apelou tendo o Tribunal da Relação de Évora julgado improcedente o recurso.
9. Interpôs a Autora recurso de revista excepcional, com fundamento nas alíneas a) e c) do n.º1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil (relevância jurídica e oposição de acórdãos), formulando as seguintes conclusões (transcrição): “i. O presente recurso, é interposto, visando que se assente matéria de direito de particular relevância social, pela importância que assume nos dias de hoje nos eventos de massas. ii. A admissão do presente recurso deve ainda considerar a vasta jurisprudência sobre o assunto sub judice, que apresenta diferente fundamentação, à mesma questão jurídica é dado enquadramento jurídico diverso e consequentemente resultam decisões antagónicas, decisões essas que contrariam as directivas europeias transpostas para ordem interna portuguesa, mediante normas de proteção para os consumidores. iii. Destarte, não está claro na jurisprudência, a possibilidade de aplicação dos deveres de tráfego, por recurso a uma cláusula geral de tipo aberta, nos termos do disposto no artigo 483.º n.º1 do CC, em situações que não encontrem arrimo no artigo 493.º do CC, pelo que deve ser afirmada a possibilidade de aplicação da cláusula geral do artigo 483 n.º1do CC, ainda que não exista inobservância de deveres de cuidado não positivados, bastando que se verifique a omissão de deveres de boa-fé e de especial do consumidor, sendo o julgador onerado com a obrigação de determinar qual a conduta devida ou omitida, através de uma ficção judicial. iv. O acórdão colocado em crise, ao decidir como decidiu, considerou só ser de aplicar a cláusula geral do artigo 483.º n.º 1, quando exista uma norma positivada que obrigue a adopção de determinado comportamento, o que não se afigura correto. v. A inexistência de norma legal habilitante que obrigue à prática ou omissão de facto, não exclui a responsabilização por omissão de deveres de segurança no tráfego. vi. A fundamentação do acórdão em crise, encontra-se em flagrante contradição com o fundamento de acórdão recente deste supremo, o Acórdão STJ – Processo 433/18.6T8MTA.L1.S1 do Relator Barateiro Martins, enquadra a queda ocorrida dentro de um supermercado, na cláusula geral do artigo 483.º n.º 2, a cliente sinistrada, in casu, tropeçou numa palete que se encontrava abandonada no corredor. Decidiu o tribunal que não tendo havido o cuidado de retirar uma palete, nem de a colocar de modo a evitar acidentes, houve uma violação de dever de segurança no tráfico, o perigo criado, sem que tenham sido observadas as medidas de segurança necessárias, de acordo com as circunstâncias, para a proteção dos clientes, consubstanciou numa omissão que configura um facto ilícito, na medida em que havia o dever jurídico especial de remover o perigo. vii. Sendo certo que, a fundamentação do acórdão aqui colocado em crise, baseia-se na inexistência de norma habilitante, que proibisse a aqui recorrida de praticar determinada conduta. Ao contrário do arresto mencionado no artigo precedente, que decidiu, e bem, aplicar a cláusula geral constante do n.º 1 do artigo 483.º por violação de um dever de cuidado (não escrito). viii. Face ao exposto, e com o devido respeito, cabe uma tomada de posição deste Supremo. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo, violou princípios constitucionais, como princípio da igualdade, o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, nos termos do disposto no artigo 13.º e 20.º da CRP. ix. A legislação aplicada por ambos os arestos é exatamente a mesma, inclusive num contexto factual igual, a questão de direito solevada é a mesma. x. A fundamentação dos dois acórdãos é contraditória, não existe acórdão para uniformização de jurisprudência sobre a matéria. Razões pelas quais deve o presente recurso ser admitido. xi. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos art. 483.º n. º1 do CC. xii. Por fim, há que atender à falta de pronúncia do tribunal à quo, que omitiu ainda o dever legal de fundamentação, pois o recorrente colocou em crise determinado facto dado como assente, por considerar não ter sido efectuada prova da versão dada como provada (a queda provocada por um ferro fora da passadeira), no entanto o tribunal à quo não se pronunciou, pelo que nessa parte o acórdão é nulo, devendo os autos serem reenviados ao Tribunal da Relação de Évora, para que fundamente a sua convicção, ou para que efectue a renovação da prova. xiii. Sendo certo que, o artigo 607.º, n.º 5, do CPC, dispõe que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, tem pois, o tribunal da relação o dever de efectuar do mesmo modo, a reapreciação da prova, que passa pela averiguação do modo de formação da “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade comos meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. xiv. Em suma, andou mal o Venerando Tribunal da Relação de Évora, que primeiramente não enquadrou corretamente a violação de deveres gerais de tráfego não positivados e posteriormente imiscui-se de se pronunciar sobre matéria colocada à sua interpretação. ao decidir sem qualquer fundamentação, violou o disposto na alínea a) e d) do n.º1 e do n.º4 do artigo 615.º do CPC, ex vi artigo 666.º do CPC.”.
10. Em contra-alegações a Ré MAPFRE SEGUROS DE VIDA, SA. defende a inadmissibilidade do conhecimento do objecto do recurso, a improcedência do mesmo, requerendo, ainda, para o caso da sua procedência, a ampliação do âmbito do conhecimento do recurso. Conclui nos seguintes termos (transcrição): “1.ª A Recorrente não demonstra que estamos perante uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito ou que estão em causa interesses de particular relevância social, inexistindo também fundamentação diversa entre o acórdão recorrido e a sentença do Tribunal de 1ª instância, ou qualquer contradição de julgados, pelo que o presente recurso deve ser liminarmente rejeitado, ex vi dos arts. 671º e 672º do CPC (v. art. 640º do CPC); 2.ª No caso sub judice, a atuação do A. Recorrente, ao caminhar fora da passadeira carregada de sacos e ao não tomar os devidos deveres de cuidado e precauções necessários à situação em causa, sua condição física e idade avançada, com patologias várias associadas, concorreu exclusivamente para a produção e agravamento do acidente e dos danos e prejuízos invocados, ex vi dos arts. 570º, 592º e 813º e segs. do C. Civil, pelo que a Recorrente é a única e exclusiva culpada e responsável pelo acidente (v. art. 483º e segs. do C. Civil). 3.ª O Recorrido IKEA agiu com a diligência que era exigida nas circunstâncias em que ocorreram os factos ilícitos em causa – não lhe podendo ser imputados quaisquer juízos de ilicitude e/ou culpa –, tendo ilidido a presunção de culpa prevista no art. 493º/1 do C. Civil; cfr. art. 350º do C. Civil. 4.ª A Recorrente não invocou ou demonstrou – como lhe competia (v. art. 342º do C. Civil) –, nem se verificam in casu os pressupostos de que dependeria a responsabilidade dos RR. pelos pretensos prejuízos invocados, pelo que o douto acórdão recorrido não enferma de qualquer erro de julgamento (v. arts. 9º, 342º, 350º, 483º e segs., 493º, 496º, 562º a 566º e 798º e segs., do C. Civil. 5.ª No caso sub judice, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 636º do CPC, o âmbito do presente recurso, perante a possibilidade da sua procedência – o que apenas por mera hipótese se admite – deverá ser ampliado, conhecendo-se as seguintes questões: - Da exclusão da apólice e da franquia: a) A cobertura da apólice ... ora em análise contratada com a ora Recorrida IKEA Portugal – Móveis e Decoração, Lda. e a eventual responsabilidade civil da ora Recorrida Mapfre, considerando o pedido e causa de pedir da presente ação, está assim claramente excluída ex vi das suas Cláusulas 1ª e 2ª das Condições Particulares, pelo que a ora Recorrida deverá ser absolvida do respetivo pedido (v. Doc. ... junto com a Contestação da ora Recorrida de 2021.03.02 e arts. 576º/1 e 3, 578º e 579º do CPC; cfr. arts. 46º e 141º da LCS). b) In casu, a ora Recorrida, definiu de forma adequada e suficiente a franquia contratualizada no valor de € 5.500,00, que foi alegada na sua contestação e provada, não merecendo qualquer contestação nessa parte por qualquer dos intervenientes processuais dos presentes autos pelo que do montante limite de indemnização contratualizado na referida apólice – sempre deveria ser descontada a franquia geral contratada, no montante de € 5.500,00 a qual, nos termos contratualizados, fica a cargo exclusivo do Segurado IKEA e pelo qual a ora Recorrida não poderá ser responsabilizada (v. Ac. RE de 2010.07.08, Proc. 1190/08.0TBSTC.E1, www.dgsi.pt; Cfr. RC 2012.04.24, Proc. 347/11.0TJCBR.C1, www.dgsi.pt).”.
11. A Ré IKEA PORTUGAL, MÓVEIS E DECORAÇÃO LDA., contra alegou defendendo a inadmissibilidade do recurso e a sua improcedência. Concluiu (transcrição): “1. O recurso interposto não é admissível porquanto verifica-se uma situação de dupla conforme e não estão reunidos os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso excecional de revista, como decorre do disposto nos artigos 671.º, n.º 3, 672.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CPC. 2. A Recorrente não impugnou a decisão quanto à matéria de facto, pelo que esta decisão transitou em julgado e será com base nessa mesma matéria de facto que deve ser sindicado o recurso interposto ao nível da aplicação do Direito ao caso concreto. 3. A Recorrente apresenta, nas suas alegações de recurso, uma interpretação deturpada do Acórdão recorrido, procurando fazer crer a este Tribunal que a questão jurídica em discussão se centraria em torno do requisito da ilicitude (inexistência de norma que obrigue à colocação de ferros em cima da passagem destinada a peões), o que não corresponde inteiramente à verdade, porquanto o Acórdão recorrido começou por considerar inexistir, sequer, um facto gerador de responsabilidade. 4. Resultou demonstrado nos autos que a queda sofrida pela Recorrente não se deveu a qualquer ação ou omissão da parte da Recorrida, mas antes à atuação da própria Recorrente, que, estando a circular no parque de estacionamento da Recorrida, não utilizou a passadeira para peões, devidamente assinalada no pavimento com tinta branca, encontrando-se antes a circular junto à mesma, o que levou a que tropeçasse num ferro, perfeitamente visível, que aí se encontrava e que se destinava a balizar um ecoponto para embalagens de papel. 5. A ausência de sinalização relativa à existência tal ferro deve-se ao facto de o mesmo não se encontrar numa zona de circulação, mas antes numa área que pura e simplesmente não se destina à circulação, nem de pessoas, nem de veículos, sendo expectável que os peões utilizem a passadeira identificada para o efeito aquando da circulação. 6. Não estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil, não recaindo sobre a Recorrida qualquer obrigação de indemnizar a Recorrente. 7. O presente recurso não pode deixar de improceder, nada havendo a apontar ao Acórdão recorrido.”.
12. Foi proferido acórdão pela Formação que admitiu a revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Civil.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), mostram-se colocadas no recurso interposto as seguintes questões:
Os factos provados
Os factos não provados
2. O direito 1. Da omissão de pronúncia Defende a Autora que acórdão recorrido não se debruçou nem fundamentou a decisão fáctica provada sobre a qual se insurgiu na apelação: ter a queda sido provocada por um ferro situado fora da passadeira. A omissão de pronúncia, vício que inquina a decisão (de nulidade - artigo 615.º, n.º1, alínea d), 1ª parte, do CPC), ocorre nas situações em que o julgador deixa de apreciar questão[2] que se lhe impunha conhecer, porquanto a lei lhe atribui o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (cfr. artigo 608.º, n.º2, do CPC), sendo as conclusões das alegações que definem o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento (cfr. artigos 635.º, n.º4 e 639.º, ambos do CPC). O teor das conclusões da apelação evidencia a falta de razão da Recorrente. Com efeito, embora a Recorrente/Apelante tenha afirmado no ponto 6 das conclusões que “não se conforma com a decisão proferida porquanto entende não ter existido por parte da Mma. Juiz a quo, uma correta apreciação da matéria de facto e consequentemente correta aplicação dessa matéria às regras de direito”, alegando igualmente (ponto n.º 10) que “Dos fotogramas juntos aos autos pela Recorrente e da prova produzida em audiência de discussão e julgamento ficou provado que o acidente ocorreu numa zona de circulação para pões, vulgo passadeira, que se encontrava parcialmente obstruída por uma base de uma estrutura metálica - colocada mesmo em cima da passadeira.”, limita-se a concluir que a queda sofrida se deveu à “existência dessa estrutura metálica numa zona adstrita à circulação de peões”(ponto 11) e ainda que a “Autora foi sem mais, colhida de surpresa por um objecto que não devia nem podia estar localizado em cima de uma zona de passagem para peões” (ponto 60), sem colocar em causa a decisão fáctica, ou seja, sem proceder à impugnação da decisão de facto e ao cumprimento dos ónus que para esse efeito a lei impõe nas alíneas a) a c) no n.º 1 do artigo 640.º do CPC (indicação: dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios constantes do processo que imporiam decisão diversa da recorrida; da decisão que no seu entender devia ser proferida sobre a(s) questão (ões) de facto impugnadas). Assim sendo, uma vez que a Recorrente não se insurgiu relativamente à decisão de facto, designadamente no que se reporta à insuficiência de fundamentação, não tendo incluindo tais questões nas suas alegações de recurso, tratando-se de aspectos que não integram o conhecimento oficioso, não ocorre por parte do tribunal a quo qualquer falta de conhecimento sobre questões que se lhe impusesse apreciar e, consequentemente, não se encontra o acórdão ferido de nulidade por omissão de pronúncia. Importa ainda realçar que, ao invés do que parece ser o entendimento da Recorrente expresso na conclusão xii (no sentido de imputar ao tribunal a quo violação do dever de reapreciação da matéria de facto[3], infere-se, em desrespeito do disposto na alínea d) do n.º2 do artigo 662.º do CPC, traduzida na pretensão de suprir falta de fundamentação da matéria de facto provada), tal situação não só não integra nenhum dos vícios de nulidade de decisão (que se encontram taxativamente previstos nas alíneas a) a e), do n.º1 do artigo 615.º do CPC), como constitui questão nova (não suscitada em sede de apelação) não passível de ser conhecida neste âmbito. Improcedem, pois, as conclusões xi, xii e xiii da revista. 2. Da omissão de deveres de prevenção do perigo e de segurança no tráfego Quer a sentença, quer o acórdão recorrido concluíram pela inexistência da obrigação de indemnizar a Autora relativamente aos prejuízos decorrentes da queda sofrida pela mesma e ocorrida no parque de estacionamento da Ré IKEA, por não se verificar um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: o acto ilícito (por incumprimento do dever de segurança no que respeita a uma estrutura de ferro não assinalada). Refere a sentença a tal propósito: “Inexiste norma de segurança que impeça a colocação daquela estrutura de ferro no parque de estacionamento, para o fim a que a primeira ré o destinava. E a colocação de aviso no local também não é exigida por qualquer norma legal. Por comparação, podemos afirmar que o embate na estrutura de ferro se assemelha a um caso em que um peão, circulando no passeio, vai embater num sinal de trânsito, numa papeleira ou banco de jardim, por distração. Equipamentos que servem determinado propósito, de utilização coletiva, sem que esteja violada qualquer norma de segurança e, consequentemente, advenha qualquer responsabilidade para a entidade que os colocou. Daqui, no nosso entender, decorre que a primeira ré não violou qualquer norma de manutenção e conservação do parque de estacionamento, na origem da queda da autora e demais consequências que advieram. (…) entendemos que a primeira ré não omitiu o cumprimento dos seus deveres, não lhe sendo exigível, atentas as circunstâncias do caso, que tivesse atuado de forma diferente e, por esse motivo, não ficou demonstrado que, por ação ou omissão, tenha praticado qualquer facto ilícito, violador de direitos de terceiro. Ou seja, em conclusão, a queda sofrida pela autora não é imputável a desleixo da primeira ré, não ocorreu em virtude da falta de atuação desta ao nível da manutenção e conservação do parque de estacionamento e da sinalização de obstáculos ocasionais lá existentes. O que vale por dizer que não basta provar que a primeira ré mantinha uma estrutura de ferro no parque de estacionamento, não sinalizada, sendo exigível que resultasse alegado e provado que a mesma representava um perigo que aquela estava obrigada a conhecer e a prevenir, nomeadamente através de adequada sinalização, o que não se verifica. Desde logo porque essa estrutura não se localiza em local de passagem, assinalado, para os utentes.”. Em sentido algo idêntico, mas fazendo ênfase na responsabilidade exclusiva da Autora na produção do acidente, mostra-se ponderado no acórdão recorrido: “Ora conforme resulta provado a estrutura de ferro, na qual a autora tropeçou, o que a levou a cair, não está localizada na passadeira para peões, conforme alegado pela autora, o que logo consequência o inêxito da sua pretensão. Ademais, inexiste norma de segurança que impeça a colocação daquela estrutura de ferro no parque de estacionamento, no local onde se encontrava e para o fim a que a primeira ré o destinava, além de que a colocação de aviso no local também não é exigida por qualquer norma de segurança. Soçobra assim a pretensão da autora, ficando prejudicada a apreciação dos demais pressupostos da responsabilidade civil, já que inexiste o facto ilícito fundamento da acção, o que consequência desde logo (…) a queda da autora ocorreu por sua exclusiva culpa, ao circular fora da passadeira e não reparar na estrutura de ferro que repita-se, não se encontra na passadeira de peões, e indo embater na referida estrutura porque seguia com atenção ao neto com receio que este fosse atingido pelos veículos que circulavam no parque. Ademais a dita estrutura não constitui factor de risco para a segurança dos transeuntes, mesmo sem tomar especial cautela, de modo a exigir da ré a sua sinalização, de forma a alertar os utentes para a possibilidade de ocorrência de situações causadoras de perigo, com as quais não lhes era exigível contarem”. Insurge-se a Autora alegando que o acórdão recorrido fez uma errada subsunção jurídica dos factos, defendendo a aplicabilidade do artigo 493.º, do Código Civil. Alicerça-se, para o efeito e fundamentalmente, na seguinte ordem de argumentos, fazendo ainda apelo ao decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), proferido no Processo n.º 433/18.6T8MTA.L1.S1[4]: - as grandes superfícies comerciais são intrinsecamente portadoras de perigosidade e geradoras de risco; - a Ré, ao explorar uma grande superfície comercial para proveito próprio, cria ou mantém uma “fonte especial de perigo”, encontrando-se, por isso, onerada com o dever de agir por forma a evitar a ocorrência de danos; - impendendo sobre a Ré tal dever de comportamento e demonstrada a falta de adopção de medidas tendentes a evitar a ocorrência de acidentes, cabe presumir a sua responsabilidade pela produção dos danos. Vejamos.
2.1 Não merece controvérsia nos autos o facto de estar em causa a responsabilidade civil extracontratual da Ré IKEA por acto ilícito (artigo 483.º, do Código Civil), geradora da obrigação de indemnizar. A questão sob litígio reporta-se em saber se, no caso, estão (ou não) preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, quer por (não) ocorrer a prática de qualquer acto ilícito por parte da Ré IKEA (ao gerir e deter uma grande superfície comercial encontrar-se-ia adstrita ao dever genérico de prevenção de perigo)[5], quer por o acidente sofrido pela Autora (não) lhe ser exclusivamente imputável ao caminhar distraída e fora do local (passadeira) destinada ao percurso de peões (uma vez que se encontrava num parque de estacionamento de circulação de automóveis e se lhe impunha percorrer os espaços assinalados ao trânsito de peões). Embora se encontre consignado no artigo 486.º, do Código Civil, que o dever jurídico de praticar o acto resulta da lei ou de negócio jurídico, tem vindo a ser entendido pela doutrina[6] e pela jurisprudência[7] que a nossa lei consagra o princípio geral de que quem “cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir danos com ela relacionados”. O acolhimento dos deveres de prevenção do perigo (denominados também de deveres de segurança no tráfico ou de deveres de tráfego) permitiu alargar a responsabilidade civil (extracontratual) por omissão a quem exerce o domínio de facto sobre uma coisa (móvel ou imóvel) ou sobre uma actividade, passível de causar danos a terceiros, impondo-lhe o dever de tomar as providências necessárias para evitar a produção dos mesmos[8]. O conteúdo destes deveres tem subjacente o conceito de agir com cuidado[9] e depende de múltiplos factores como sejam a probabilidade do acidente, a gravidade dos efeitos danosos, as medidas preventivas adequadas e a possibilidade de auto-protecção do eventual lesado. Faz-se salientar no sumário do acórdão deste STJ, de 22-09-2021, proferido no Processo n.º 19707/18.0T8LSB.L1.S1[10], que a “responsabilidade delitual prevista no art. 493.º, n.º 1, do CC, assenta na omissão de um dever de vigilância a cargo do proprietário-detentor com poder sobre coisa imóvel ou móvel na qual têm origem os danos causados na esfera jurídica alheia. II - Esse dever de vigilância consiste numa obrigação de supervisão, controlo, monitorização e informação sobre as fontes (nomeadamente se possíveis e/ou previsíveis) de risco de produção e eclosão de prejuízos das coisas detidas, no sentido da prevenção desse especial perigo enquanto origem de danos para terceiros e da precaução necessária para evitar o dano. Afigura-se como dever (de segurança) no tráfico, integrado em norma legal de protecção que visa prevenir um perigo abstracto, e dever instrumental para a decisão e a execução de medidas e providências – mesmo que a realizar por terceiro e a solicitação do vigilante – para evitar essa produção de danos e promover a protecção de terceiros, danos esses relativos ao especial risco da coisa que ultrapassa o “limiar da normalidade”. III - Esse dever de vigilância corresponde a uma manifestação de um mais amplo dever de cuidado (na veste de dever de conduta), enquanto obrigação de os proprietários e detentores de coisas, potencialmente munidas de risco na sua fruição ou utilização, cumprirem com diligência as faculdades jurídicas atribuídas pelo título que lhes permite gozar da coisa “arriscada” ou “perigosa”, de acordo com a bitola que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares.”. Nesta ordem de ideias e revertendo tais considerações para a situação sob apreciação, atenta a factualidade apurada nos pontos 6 a 11 (No parque de estacionamento [da loja da Recorrida, sita em ...] existia assinalada no pavimento, com tinta branca, uma passadeira para peões. A autora caminhava junto a essa passadeira para peões com compras nas mãos. E com atenção ao neto que caminhava à sua frente, com receio que este se desviasse para direita, onde circulavam veículos. A autora não se apercebeu da presença de uma estrutura em ferro, colocada junto da passadeira para peões, sem sinalização. Cuja base de apoio ocupava dimensão não concretamente apurada da passadeira, cf. imagem de fls.5vº, cujo teor se dá por reproduzido. A autora embateu na estrutura em ferro, perdeu o equilíbrio e caiu ao solo), resulta que a Autora, embora caminhasse junto do local devidamente assinalado para a circulação de peões, fazia-o fora desse espaço (no qual se encontrava a estrutura de ferro onde a mesma foi embater). Por outro lado, decorre ainda da matéria provada, que a Autora caminhava com compras nas mãos e com a atenção dirigida para o neto (criança de cinco anos, que seguia à sua frente) com receio de que ele se desviasse para a direita, onde circulavam veículos. Perante as circunstâncias concretas da situação, não há dúvida de que a Autora poderia ter agido de forma diferente por forma a assegurar a sua própria segurança (desde logo, utilizando a passadeira e tendo, pelo menos, uma das mãos livres para segurar, se necessário, o neto). Nessa medida, temos de concordar com as instâncias ao concluírem no sentido de que a Autora não actuou com a diligência necessária, ou seja, incumprindo o dever objectivo de cuidado para além do risco permitido em função das exigências da vida; consequentemente, tal comportamento não pode deixar de ser tido como determinante para a verificação da queda. Coloca-se, porém, a questão de saber se, igualmente, caberá imputar à Ré IKEA responsabilidade pela queda sofrida pela Autora por violação do dever de agir, traduzido na omissão de actuar por forma a assegurar a segurança dos transeuntes. Nesta óptica, não se revela despiciendo considerar que se poderá estar na presença de um ponto de perigo (estrutura em ferro) cognoscível e fácil de evitar[11], dispensando, por isso, medidas de protecção e segurança especiais. Todavia, ainda que assim não se entendesse, tendo em conta que o objecto passível de originar danos para terceiros era uma estrutura de ferro, que balizava um ecoponto para utilização do público[12], a obrigação de conduta de prevenção de riscos poderia reconduzir-se a um dever de sinalização, de aviso de obstáculo (com a colocação de eventual painel de aviso a alertar os transeuntes[13]). Dado que tal estrutura não se encontrava assinalada, a considerar-se que a Ré IKEA havia omitido uma actuação que lhe era exigível na gestão do risco desencadeado pela referida estrutura de ferro,[14] a matéria de facto evidencia que, naquela concreta situação, a falta de aviso sinalizador não foi condicionante (prévia e determinantemente) da conduta da Autora, atento o facto de a mesma caminhar desatenta, porque focalizada na segurança do neto. Consequentemente, sempre se deveria considerar ilidida a presunção ínsita no artigo 493.º, n.º1, in fine, do Código Civil[15]. Assim sendo, há que considerar que a queda da Autora se ficou a dever, apenas, ao seu comportamento imprevidente de caminhar desatenta e sem utilizar convenientemente a passadeira (não consentâneo com os cuidados que se exigiam a um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso – artigo 487.º, n.º2, do Código Civil). Improcedem, por isso, na sua totalidade, as conclusões da revista.
IV. DECISÃO Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a revista. Custas pela Autora.
Graça Amaral (Relatora) Maria Olinda Garcia Ricardo Costa
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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[1] Por despacho de 18-12-2020 foi ordenada a citação da seguradora, por ter sido entendido que estando apenas em causa a identificação da Seguradora solicitada na petição não era necessária a pretendida intervenção da mesma. [3] Conforme decorre da fundamentação à factualidade provada ínsita nos pontos, o tribunal de 1.ª instância socorreu-se de uma presunção justificando-a em conformidade. As presunções judiciais constituem meio legal de prova através do qual o julgador retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - artigos 349º e 351º, ambos do Código Civil. Enquanto instância final na fixação da matéria de facto pode o Tribunal da Relação não só alterar tais juízos de experiência, ou das considerações de probabilidade/razoabilidade como lançar mão dos mesmos. A possibilidade da Relação emitir juízos de valor sobre a matéria de facto por forma a completar o julgamento da matéria de facto decidido e/ou corrigir ou rectificar a mesma, inserindo-se no âmbito dos poderes/deveres funcionais da Relação, não é, em princípio, sindicável pelo STJ (o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não podem ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). |