Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1020/13.0TBCHV-D.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REENVIO PREJUDICIAL
REPETIÇÃO DE ALEGAÇÕES
DECISÃO SUMÁRIA
Data do Acordão: 09/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO COMUNITÁRIO - PROCESSOS DE INSOLVÊNCIA / COMPETÊNCIA INTERNACIONAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- António Pinto Pereira, A Directiva Comunitária, 570/587.
- Jónatas Machado, Direito Da União Europeia, 573/595.
- Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil”, Anotado, Volume 3º, Tomo I, 2.ª edição.
- Leite de Campos, Manual de Direito Comunitário, 4ª edição, 421-424.
- Miguel Gorjão-Henriques, Direito Comunitário, 3ª edição 347/361.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 629.º, N.º2, ALÍNEA A), 656.º.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO (CE) N.º1346/2000, DE 29 DE MAIO: - ARTIGO 3.º, N.ºS 2 E 3.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE): - ARTIGO 267.º.
Jurisprudência Internacional:
Sumário :

I. Do artigo 3º, nº2 e 3 do Regulamento (CE) nº1346/2000, de 29 de Maio resulta a competência dos Tribunais Portugueses para o processamento de insolvência de devedora espanhola, mas limitada aos bens existentes no nosso país, aberto que seja um processo de insolvência num outro Estado membro, no caso, em Espanha.

II. Questão prejudicial é aquela que um órgão jurisdicional nacional de um qualquer Estado-Membro considera necessária para a resolução de um litígio pendente perante si, e é relativa à interpretação, ou à apreciação de validade, do Direito da União (com excepção da apreciação de validade dos Tratados).

III. Perante ela, o órgão jurisdicional nacional pede ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) – (intérprete máximo do Direito da União) – que se pronuncie, de forma a ficar esclarecido sobre o correcto entendimento, ou se for caso disso validade, das disposições europeias que condicionam a solução do litígio concreto que é chamado a julgar, nos termos do artigo 267º do TFEU.

IV. O reenvio prejudicial só tem cabimento quando existem dúvidas de interpretação de determinados normativos e não quando haja uma não concordância da Recorrente com a aplicação dos mesmos pelas instâncias, maxime, quando no caso sujeito estas decidiram pela competência dos Tribunais Portugueses para o processamento da insolvência da devedora, limitada aos bens existentes no nosso país.

V. A repetição das alegações recursivas permite ao Tribunal ad quem a prolação de uma decisão sumária e singular, em que se limite a remeter para a decisão recorrida.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I Nos presentes autos de insolvência de P, S. L., sociedade comercial de direito espanhol, constituída em 2002, com sede em Espanha e um estabelecimento (Lar de Terceira Idade) na Estrada Nacional…Portugal, veio o credor Grupo A requer que fosse declarada a incompetência internacional dos Tribunais portugueses para conhecer da mesma, alegando em síntese, que a P, S. L., é uma sociedade comercial de direito espanhol, constituída em 2002, que tem sede em X, Espanha e um estabelecimento (Lar de Terceira Idade) na Estrada Nacional…Portugal, o qual é actualmente explorado ao abrigo de um contrato de cessão de exploração de 28 de Fevereiro de 2011, pela Sociedade Comercial que gira sob a firma “Residencial, Lda.”, a qual tem como sócio e gerente E.

Mais alega que a P, S. L. foi declarada insolvente como vem anunciado no Boletín Oficial Del Estado de 9 de Maio de 2013, pelo Juzgado de Primera Instancia nº 4 de X, pelo que não têm os Tribunais portugueses competência para declarar a insolvência da P, sociedade de direito espanhol já declarada insolvente pelos Tribunais espanhóis e que no âmbito do processo de insolvência a correr termos no referido Tribunal espanhol, foram suspensas as funções do administrador e nomeado administrador da insolvente J.

Foi decidida, além do mais, a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do pleito, nos seguintes termos:

 «(…) Um dos pressupostos mais importantes, relativo aos tribunais, é o da sua competência.

Tal requisito resulta do facto de o poder jurisdicional estar repartido, segundo diversos critérios, por vários tribunais (nacionais e internacionais), tendo depois, cada um destes competência para determinadas matérias de direito.

Como refere Castro Mendes, in Lições de Direito Processual Civil, pág.379, qualquer causa, por força da lei definidora dos pertinentes pressupostos de conexão, deve ser instruída e julgada por determinado tribunal ou juízo, resultando daí um nexo jurídico de competência, sendo a lei de processo que, determina qual o tribunal em que a ação deve ser intentada.

No caso concreto veio o credor Grupo A. invocar a incompetência deste Tribunal para a declaração de insolvência da sociedade P, S.L., sociedade de direito espanhol, com sede em …, Espanha, invocando que, como ainda não transitou em julgado a sentença de insolvência (por terem sido deduzidos embargos), tal decisão pode ainda ser tomada pelo Tribunal.

Quanto à questão suscitada pelo Credor Grupo A na ordem jurídica portuguesa encontramos determinados normativos a ter em consideração.

Dispõe o art.59.º do Novo Código de Processo Civil (NCPC) que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos arts.62 e 63 ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.94.º”.

Acrescenta ainda a alínea e) do art.63.º do NCPC que “Os tribunais portugueses são exclusivamente competentes (…) em matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas coletivas ou sociedade cuja sede esteja situada em território nacional”.

Contudo, por estarmos perante um processo de insolvência de entes coletivos que exercem a sua atividade em mais do que país da comunidade europeia, há que lançar mão do disposto no Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000.

A este propósito há que ter em consideração o disposto no art.3.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência onde se lê que: “Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária”.

Compulsados os autos constata-se que, efetivamente, foi proferido uma decisão, pelos Tribunais Espanhóis, que declarou a insolvência de PER-VAZ-PORT, S.L., sociedade de direito espanhol, com sede em … Espanha e suspendeu as funções do administrador e nomeou administrador da insolvente J, decisão ainda não transitada em julgado.

Contudo, salvo melhor opinião, este Tribunal apenas declarou a insolvência da Representação Permanente, nos termos da certidão permanente junta ao PER como doc.1 – cfr. fls.27 e seguintes –) e não da sociedade mãe espanhola (Representada).

Acresce que, devemos de ter em consideração que o centro de interesses principais da sociedade devedora que foi declarada insolvente é o local onde o devedor exerce atualmente a administração dos seus interesses reconhecível por terceiros.

Assim sendo, atento o teor do disposto dos normativos supra citados, uma vez que a dita sociedade tem um estabelecimento comercial domiciliado em território português (mais precisamente um Lar de Terceira Idade, sito na Estrada Nacional …Portugal), entendido este como uma organização de capital e de trabalho destinado ao exercício de qualquer atividade económica (art.5.º do CIRE), são os tribunais portugueses competentes, e neste caso o Tribunal de Y, para a insolvência e para os atos de apreensão e liquidação dos bens que estão em Portugal.

Pelo exposto, sem necessidade de quaisquer outros considerandos, julga-se improcedente a exceção dilatória de incompetência internacional dos Tribunais portugueses para conhecer da insolvência, concluindo-se pela competência deste Tribunal para apreciar e decidir a insolvência da Devedora.(…)».

Inconformada com esta decisão (e outras que aqui se não curam) veio da mesma interpor recurso de Apelação o credor Grupo A, recurso esse que veio a ser julgado improcedente, tendo-se confirmado a decisão que declarou o tribunal português internacionalmente competente, com os seguintes fundamentos:

«(…) Ora perante as pretensões recursivas da Apelante, cabe chamar à colação o disposto no art.º59º do NCPC, segundo o qual “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos deconexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”.

Já a alínea e) do artigo 63º do mesmo diploma legal, prescreve que “os tribunais portugueses são exclusivamente competentes em matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas colectivas ou sociedade cuja sede esteja situada em território nacional”.

Perante tais disposições legais e voltando ao caso concreto, há que salientar que perante os elementos constantes dos autos, resulta assente que a P, S.L. é uma sociedade comercial de direito espanhol, constituída em 2002, que tem a sua sede em …, Espanha.

Está igualmente assente que a mesma sociedade tem uma representação permanente em Portugal, constituída em 21.03.2005, a qual tem a sua sede social na Estrada Nacional…Portugal, local onde ao abrigo de um contrato de cessão de exploração datado de 28.02.2001 e sob a firma Residencial Lda, explora um Lar de Terceira Idade.

Tendo em conta tais factos e como aliás bem se referiu no despacho recorrido, a questão que aqui é colocada não pode deixar de ser enquadrada, em primeiro lugar, no âmbito do Regulamento (CE), nº1346/2000 do Conselho da União Europeia, de 20-05-2000, com as alterações introduzidas pelos regulamentos (CE), nº603/2205, de 12-04-2005 e nº694/2006 de 27-04-2006.

Assim e como vem sendo entendido, (cf. entre outros os Acórdãos desta Relação de 22.04.2008, processo nº0820286 e de 18.05.2009, processo nº3175/06.1TBPRD.P1, ambos em www.dgsi.pt.jtrp), o citado Regulamento (CE), assenta nos seguintes três princípios nucleares:

1) O princípio de que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro de interesses principais do devedor, a que é atribuído alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor – artigo 3º e considerando (12);

2) O princípio do reconhecimento imediato e automático por todos os Estados-Membros das decisões relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como das decisões proferidas em conexão directa com esses processos, o que deve conduzir a que os processos conferidos ao processo pela lei do Estado de abertura do processo se estendam a todos os outros Estados-Membros – artigos 16º e 17º e considerando (22);

3) O princípio de que deve aplicar-se a lei do Estado-Membro de abertura do processo (lex concorsus), que “determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência – artigo 4º e considerando (23).

Ora como também se salientou no despacho recorrido, compulsados os autos, constata-se que foi proferida uma decisão, pelos Tribunais Espanhóis, (no caso, o Tribunal de Primeira Instância de X), que declarou a insolvência da P. SL, suspendeu as funções do administrador e nomeou um novo administrador da insolvente.

Acresce que segundo os elementos que aos estão ao nosso dispor no processo, tal decisão à data da prolação do despacho recorrido, não teria ainda transitado em julgado.

Mesmo em face deste conjunto de circunstâncias e como antes já vimos, a Sr.ª Juiz “a quo” acabou por considerar que o Tribunal Judicial de Y (Portugal )era competente para tramitar e decidir o pedido de declaração de insolvência da dita P. SL.

E isto por entender que “o Tribunal de X (Espanha) apenas declarou a insolvência da sua Representação Permanente” e ainda “por haver que ter em consideração que o centro de interesses principais da sociedade devedora que foi declarada, insolvente é o local onde o devedor exerce actualmente a administração dos seus interesses reconhecível por terceiros”.

Perante tal argumentação é fundamental trazer aqui o disposto no art.º 271º do D.L. Nº537/2004 de 18 de Março (CIRE), segundo o qual “sempre que do processo resulte a existência de bens do devedor situados noutro Estado membro da União Europeia, a declaração de insolvência indica sumariamente as razões de facto e de direito que justificam a competência dos tribunais portugueses, tendo em conta o disposto no nº1 do artigo 3º do Regulamento (CE) nº1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio, adiante designado Regulamento”.

E ainda o preceituado no art.º272º, o qual no seu nº1 prescreve do seguinte modo:

“Aberto um processo principal de insolvência em outro Estado membro da União Europeia, apenas é admissível a instauração ou prosseguimento em Portugal de processo secundário, nos termos do capítulo III do título XV”.

Assim e como afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume II, pág.261, “na hipótese aqui contemplada, a indicação dos fundamentos da competência internacional do tribunal constitui, consequentemente, uma das menções obrigatórias da sentença declaratória da insolvência que acresce às estipuladas no art.36º do CIRE”.

Mostra-se em nosso entender evidente que no despacho recorrido, a Sr.ª Juiz “a quo” não deixou de cumprir esta exigência legal.

Ora é em face destes argumentos que cabe apurar se deve ou não proceder a pretensão recursiva da Apelante.

Vejamos pois:

Nos termos do que decorre do disposto no antes aludido art.º272º do CIRE, importa ter em conta o exarado no art.º296º do mesmo código, segundo o qual:

“1.O reconhecimento de um processo principal de insolvência estrangeiro não obsta à instauração em Portugal de um processo particular, adiante designado processo secundário.

2.O administrador da insolvência estrangeiro tem legitimidade para requerer a instauração de um processo secundário.

3.No processo secundário é dispensada a comprovação da situação de insolvência.

4.O administrador da insolvência deve comunicar prontamente ao administrador estrangeiro todas as circunstâncias relevantes para o desenvolvimento do processo estrangeiro.

5.O administrador estrangeiro tem legitimidade para participar na assembleia de credores e para a apresentação de um plano de insolvência.

6.Satisfeitos integralmente os créditos sobre a insolvência, a importância remanescente é remetida ao administrador do processo principal”.

Como resulta expressamente do nº1, o processo secundário constitui uma modalidade do processo particular que tem como elemento característico exclusivo o facto de ser instaurado na sequência de um processo principal em curso no estrangeiro.

Por ser assim, são aplicáveis ao processo secundário, para além das determinações constantes dos números seguintes deste artigo, as especialidades de regime identificadas no art.º295º.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, obra supra citada, a pág.310 e 311, este art.º296º do CIRE mostra-se decididamente influenciado pelo regime do Regulamento nº1346/2000 (CE).

Deste modo, “de acordo com o Regulamento, a competência para a abertura de um processo de insolvência secundário assenta portanto no critério do estabelecimento” (cf. Maria Helena Brito, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág.215 e seguintes). Nos termos aí também referidos, “os pressupostos para a abertura de tal processo constam dos artigos 3º, nº2, e 27º do Regulamento (e ainda do artigo 3º, nº4, no que diz respeito ao caso excepcional de abertura de um processo secundário antes da abertura de um processo principal de insolvência)”.

Ora não se questiona, que como decorre do nº1 do art.º294º do CIRE e sob a epígrafe “pressupostos de um processo particular”, o processo particular de insolvência apenas pode abranger os bens do devedor situados em território português.

No entanto, nada no texto deste artigo pode levar a esclarecer o que se deve entender por estabelecimento para os efeitos da aplicação do seu nº2.

Por ser assim, para suprir tal omissão deve pois recorrer-se à noção facultada pelo art.º2º, alínea h) do Regulamento (neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág.307), no qual o mesmo se define como “o local de operações em que o devedor exerça de maneira estável uma actividade económica com recurso a meios humanos e a bens materiais”.

Perante esta definição, é no caso de primordial importância e para além dos factos tidos como provados e aos quais já antes fizemos expressa referência, ter em conta o que também resulta do exarado pelo Administrador Judicial no relatório que elaborou no processo do “Juzgado de primeira Instancia nº4 de X/Espanha” e cujo conteúdo está devidamente certificado nos presentes autos (cf. fls.44 e seguintes).

Assim, no dito relatório o mesmo Administrador Judicial refere expressamente que “El centro de los interesses de la mercantil conforme a la definitión dela articulo 10 de la LC, se encuentra em Y (Portugal). sin que conste em X la realización de atividade alguna, no de emplegados y ni siqueira la existência de um domicílio social”.

Em face de tal facto e estando comprovado como está nos autos que é em Portugal que a sociedade continua a exercer alguma da actividade do seu objecto social, deve pois considerar-se que o processo principal é este que corre em Chaves, sendo secundário o que correu (ou ainda corre) termos em Espanha.

Nestes termos, bem andou pois o Tribunal “a quo” quando se considerou internacionalmente competente para tramitar e decidir o processo aqui em apreço.(…)»

II Desta decisão e de novo inconformado, aquele Grupo, veio recorrer de Revista tendo sido proferida decisão singular pela Relatora na sequência de tal impugnação do seguinte teor:

«(…) A única questão que se coloca no âmbito do presente recurso é a de saber se os Tribunais portugueses são ou não competentes para conhecer do processo de insolvência.

Todavia, antes de se abordar essa problemática coloca-se-nos uma questão prévia, qual é, da repetição das alegações e conclusões recursivas.

A Recorrente, no seu acervo conclusivo, repete ipsis verbis os argumentos anteriormente expendidos em sede de recurso de Apelação.

O que se tem questionado em alguns arestos deste Supremo Tribunal é se tal repetição poderá conduzir a uma apreciação mais sucinta do objecto do recurso e/ou a uma remissão para a decisão de que se recorre, uma vez que se o Recorrente em sede de impugnação de Acórdão se limitar a reproduzir as alegações e conclusões formuladas aquando do recurso para o Tribunal da Relação, 674º e 682º do NCPCivil, cfr neste sentido os Ac de 22 de Junho de 2006 (Relator Ferreira Girão), de 8 de Maio de 2008 (Relator Pereira da Silva) e de 8 de Janeiro de 2009 (Relator Rodrigues dos Santos), in www.dgsi.pt.

Como deflui do normativo inserto no artigo 674º, nº1, alíneas a) e b) do NCPCivil «A revista pode ter como fundamento: a) a violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável; b) A violação ou errada aplicação da lei de processo;» aplicando-se a esta espécie de recurso no que tange à sua interposição as mesmas regras da Apelação, cfr artigo 679º do mesmo diploma, de onde, em termos formais, ser aplicável à Revista, além do mais, o preceituado no artigo 639º, nº1 e 2 do CPCivil, impendendo sobre o Recorrente o ónus de alegar e formular conclusões, sendo que estas terão de versar, obrigatoriamente, sobre as razões da discordância do Recorrente em relação à Lei aplicada no Acórdão recorrido, porque este recurso de Revista abrange, unicamente, a violação desta, sendo a função do STJ neste conspectu corrigir os eventuais erros de interpretação e de aplicação das normas jurídicas cometidos pelo Tribunal da Relação, cfr José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume VI, 1953, pag 2.

In casu, a Recorrente, repete a tese que defendeu, não apontando especificamente as razões da sua dissidência com o Acórdão da Relação de que recorre, imputando-lhe a mesma violação de Lei que já havia imputado antes à decisão de primeiro grau.

Quer dizer, até parece que o Recorrente continua a atacar a decisão de primeira instância e não o Acórdão que a confirmou.

Impor-se-á, nesta situação, em que a decisão proferida nada adianta em relação à primeira e a discordância da parte se mantém porque continua a entender que não foram bem interpretadas e até violadas as regras substantivas, que se elabore uma decisão sumária, atenta a simplicidade, tendo em atenção o preceituado no artigo 656º do NCPCivil, aplicável ex vi do disposto no artigo 679º do mesmo diploma.

Assim sendo, tendo em atenção que o argumentário recursivo  em nada inova em relação ao que em idênticas circunstâncias foi aduzido na segunda instância e tendo em atenção a decisão plasmada no Acórdão proferido, para a mesma se remete, soçobrando pois as alegações de recurso.(…)».

Irresignada com tal desfecho, vem a Requerente reclamar para a conferência, aduzindo a seguinte fundamentação:

- Salvo melhor opinião, não se encontra na norma invocada (artigo 656º do CPC) o acolhimento da tese sufragada na douta decisão singular que permita o conhecimento singular sumário da revista.

- Aquela norma tem como pressuposto(s) que o autorizam: a simplicidade da decisão, "designadamente por já ter sido jurisdicionalmente apreciada de modo uniforme e reiterado"; ser o recurso manifestamente infundado e nenhum desses pressupostos é invocado em sede de saneamento.

- Assim, sempre ressalvando melhor opinião, sobre a questão colocada no recurso não podia recair decisão singular sumária por não estarem verificados os pressupostos legais.

- Quanto ao mérito da decisão, salvo o devido respeito, as alegações e conclusões da apelação versam diversas questões que foram apreciadas no Tribunal da Relação do Porto, versando as alegações da revista interposta apenas a questão da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses.

- Com efeito, actualmente correm dois processos de insolvência relativamente à PER-VAZ-PORT, S.L., sociedade de direito espanhol, com sede em Ourense, Espanha. O primeiro deles foi instaurado em Espanha. Só depois de esta sociedade ter sido declarada insolvente em Espanha foi instaurado um processo de insolvência em Portugal relativo à representação permanente, com sede em Chaves (como aliás se pode actualmente comprovar pela certidão permanente com o nº 1481-1553-2159 - de que se junta versão impressa).

- A Recorrente tem defendido em todas as instâncias que os Tribunais Portugueses têm competência apenas para um processo de liquidação da representação.

- A 1ª Instância entendeu que o Tribunal Português apenas decretou a insolvência da Representação permanente em Portugal da sociedade espanhola, daí advindo a competência internacional.

- O Venerando Tribunal da Relação do Porto decidiu que os Tribunais Portugueses são competentes para o processo de insolvência daquela sociedade espanhola, assim decidindo o conflito de competência entre os Tribunais Espanhóis e os Tribunais Portugueses.

- A motivação da revista atende à decisão proferida no douto acórdão da Relação, é diversa e bem mais extensa daquela que foi apresentada na apelação.

- Porém, a questão da incompetência internacional que se coloca na revista, salvo melhor opinião, tem o mesmo enquadramento legal quer seja apreciada na 1ª instância quer pela mais alta instância jurisdicional, ou seja, as normas jurídicas alegadamente violadas pelas instâncias são sempre as mesmas, nem de outro modo poderia ser, uma vez que, a questão em apreço, a competência internacional, constitui matéria de direito que no período de tempo que decorreu desde a decisão da 1ª Instância até à interposição da revista não sofreu alteração.

- Os pressupostos de facto e os fundamentos jurídicos subjacentes ao recurso são, também, os mesmos, na primeira instância e na Relação, razão pela qual, sejam quais forem os argumentos utilizados na motivação, as normas jurídicas alegadamente violadas são as mesmas, assim, salvo melhor opinião, as conclusões a que chega a Recorrente são idênticas, apesar de nas conclusões da revista interposta se alegar adicionalmente as razões jurídicas da discordância em relação à interpretação do Venerando Tribunal da Relação do Porto, as normas do CIRE e do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000 que aquele Tribunal, alegadamente, violou.

- Na revista, a recorrente, submete ainda à douta consideração deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça a oportunidade do reenvio prejudicial para interpretação uniforme das normas em crise do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, nomeadamente do artigo 3°, nº 3.

Não foi produzida qualquer resposta.

Vejamos então.

Prima facie e ao arrepio do que vem esgrimido pela Reclamante, assistia toda a legitimidade à Relatora para produzir uma decisão singular como o fez, já que, o normativo inserto no artigo 656º do NCPCivil apenas indica como «índice não exclusivo» da simplicidade, o facto de a questão de mérito já ter sido decidida de modo uniforme e reiterado pelos Tribunais portugueses, de onde o advérbio «designadamente», cfr para melhor entendimento sobre a interpretação do indicado normativo Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Tomo I, 2ª edição.

Secundum, não obstante seja certo que as questões abordadas na Apelação tenham sido outras para além da questão da competência internacional dos Tribunais Portugueses, versando as alegações da Revista interposta apenas esta problemática, tal circunstância deve-se ao facto de apenas ser susceptível de recurso para este Supremo Tribunal a decisão proferida nesta sede, de harmonia com o disposto no artigo 629º, nº2, alínea a) do NCPCivil e não também as demais temáticas tratadas no Aresto de segundo grau, sempre se dizendo todavia, no que toca à questão solvenda, que a Recorrente, aqui Reclamante, se limita a reproduzir as alegações e conclusões apresentadas no recurso de Apelação.

Quanto à substância recursiva proprio sensu, não se antolha que as instâncias hajam decidido diversamente a excepção levantada, ex adverso do que é esgrimido pela Recorrente, uma vez que o primeiro grau decretou a insolvência da Representação permanente em Portugal da sociedade espanhola, o que decorre inequivocamente dos termos decisórios que supra se transcreveram, maxime, para a apreensão e liquidação dos bens existentes em território português sic «(…) Assim sendo, atento o teor do disposto dos normativos supra citados, uma vez que a dita sociedade tem um estabelecimento comercial domiciliado em território português (mais precisamente um Lar de Terceira Idade, sito na Estrada Nacional….Portugal), entendido este como uma organização de capital e de trabalho destinado ao exercício de qualquer atividade económica (art.5.º do CIRE), são os tribunais portugueses competentes, e neste caso o Tribunal de Y, para a insolvência e para os atos de apreensão e liquidação dos bens que estão em Portugal.(…)», o que veio a ser integralmente confirmado pelo segundo grau, conforme dispositivo do Acórdão produzido sic «(…) Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação, assim se confirmando integralmente a decisão recorrida.(…)».        

Inexistiu qualquer decisão divergente da anteriormente produzida no que tange à competência dos Tribunais Portugueses e muito menos qualquer decisão dirimente de um eventual conflito de competência entre Tribunais nacionais e Tribunais Espanhóis que nunca foi colocada, a qual não tinha, nem tem, qualquer cabimento no âmbito destes autos.

 

E, ao contrário do que nos é aventado pela Reclamante, a questão da incompetência internacional que se colocaria na Revista, face aos termos em que a mesma nos é agora delineada na reclamação, não tem o mesmo enquadramento legal da que lhe foi dada pelas instâncias, uma vez que, no entender daquela, afinal das contas, o pronunciamento que foi feito em sede de sentença e de Acórdão da Relação foi diverso, pois enquanto aquela decretou a insolvência da Delegação Permanente em Portugal da Requerente P, S. L., com vista à apreensão e liquidação dos bens que a mesma tem em Portugal, defende a Reclamante que a segunda instância decretou a insolvência da própria sociedade P, S. L. e assim sendo, diverso teria de ser, necessariamente, o seu argumentário recursivo, não se podendo pois limitar a reproduzir, sem mais, a motivação ensaiada aquando do recurso de Apelação, como fez e continua a fazer agora em sede de reclamação.

Por último, no que toca à oportunidade do reenvio prejudicial para interpretação uniforme das normas constantes do Regulamento (CE) 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio, maxime as constantes do seu artigo 3º, carece a pretensão da Reclamante de qualquer fundamento.

 

Se não.

Questão prejudicial é aquela que um órgão jurisdicional nacional de um qualquer Estado-Membro considera necessária para a resolução de um litígio pendente perante si, e é relativa à interpretação, ou à apreciação de validade, do Direito da União (com excepção da apreciação de validade dos Tratados).

Perante ela, o órgão jurisdicional nacional pede ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) – (intérprete máximo do Direito da União) – que se pronuncie, de forma a ficar esclarecido sobre o correcto entendimento, ou se for caso disso validade, das disposições europeias que condicionam a solução do litígio concreto que é chamado a julgar, nos termos do artigo 267º do TFEU, cfr Miguel Gorjão-Henriques, Direito Comunitário, 3ª edição 347/361; António Pinto Pereira, A Directiva Comunitária, 570/587; Leite de Campos, Manual de Direito Comunitário, 4ª edição, 421-424; Jónatas Machado, Direito Da União Europeia, 573/595.

Na especie não se suscitou aos Tribunais envolvidos quaisquer dúvidas na interpretação das normas em causa, nomeadamente das constantes no artigo 3º do Regulamento, supra enunciado, as quais, aliás, são claras precisas e concisas e foram conformemente interpretadas e aplicadas em ambas as instâncias.

A interpretação consiste numa operação lógica que antecede a aplicação do direito.

«Por interpretação entende-se a definição do sentido e do significado de uma disposição quando a sua redacção não é clara. Isto é diferente da aplicação de uma norma a um caso concreto, ou seja, a análise da questão de saber se determinados factos podem estar abrangidos por uma disposição legal, e a apreciação dos factos que daí resulta. Os limites entre interpretação e aplicação são por vezes difíceis de traçar, sobretudo quando a interpretação se limita a um determinado aspecto e quando o problema de interpretação é ilustrado pela exposição dos factos a que procede o tribunal “a quo”, o que se pode mostrar útil para facilitar a a tarefa do Tribunal de Justiça.», conclusões do advogado –geral Roamer, no caso Van Gend & Loos, citado por António Pinto Pereira, l.c., 574/575.

Questão outra, diversa da aqui abordada em sede de recurso e de reclamação, é a da aplicação das normas do CIRE e do Regulamento CE, que a Recorrente insiste em dizer que foram mal interpretadas, para chamar à colação o instituto do reenvio prejudicial, quando, ao cabo e ao resto o que se cura é da pertinência da aplicabilidade do preceituado no artigo 3º, nº2 do Regulamento (CE) nº1346/2000, de 29 de Maio feita nestes autos pelas instâncias, mas que a Recorrente persiste em não aceitar a sua bondade, porque continua a insistir que os Tribunais Portugueses se declararam competentes para o processo principal da Recorrida Per-Vaz-Port, SL, quando resulta inequivocamente dos autos que assim não aconteceu, sendo certo que também não aceita a competência dos mesmos para a apreensão e liquidação dos bens da devedora existentes em território nacional, o que afinal ficou decidido.

Nesta específica situação, confrontamo-nos não com uma dúvida de interpretação daquele preciso normativo, mas antes com a não concordância da Recorrente com a aplicação do mesmo pelas instâncias, quando estas decidiram pela competência dos Tribunais Portugueses para o processamento da insolvência da devedora, limitada aos bens existentes no nosso país, aliás no escrupuloso cumprimento dos segmentos normativos contidos nos nºs 2 e 3 daquele ínsito, o que sempre levaria ao indeferimento do requerido neste «conspectu», caso existissem razões para reanalisar a questão da competência internacional dos Tribunais Portugueses. 

Porque nada de novo nos foi suscitado no que tange à abordagem recursiva, óbvio se torna que a decisão reclamada é de manter.

III Destarte, indefere-se a reclamação apresentada, mantendo-se o decidido.

Custas pela Reclamante com taxa de justiça em 2 Ucs

Lisboa, 30 de Setembro de 2014

(Ana Paula Boularot)

(Pinto de Almeida)

(Nuno Cameira)