Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B934
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ200205090009342
Data do Acordão: 05/09/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2254/01
Data: 10/18/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 612.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1998/11/10 IN CJSTJ ANOVI TOMO III PÁG106.
ACÓRDÃO STJ DE 2000/02/15 IN CJSTJ ANOVIII PÁG91.
Sumário : I - Para integrar o conceito de má fé, para efeito do art. 612 do C.C., basta a mera representação, o conhecimento negligente da possibilidade da produção do resultado (o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor).
II - Não é necessário que, ao realizarem o acto, o devedor e o terceiro tenham procedido com a intenção de prejudicar o credor.
III - Porém, não basta que a precária situação patrimonial do devedor seja do conhecimento deste e do terceiro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
O Banco A, na presente acção de impugnação pauliana, sob a forma ordinária, que intentou contra B, C e D, pede que seja declarada a ineficácia da transmissão da fracção habitacional que, por escritura de compra e venda de 20 de Março de 1992, o B fez ao D, com o objectivo de diminuir as garantias patrimoniais do autor relativamente a um crédito que detém sobre o réu B, titulado por seis livranças que este avalizou e já dadas à execução.
Os réus contestaram, defendendo a improcedência da acção por não se verificarem os pressupostos da impugnação pauliana.
A acção foi julgada improcedente em ambas as instâncias.
Insiste o autor na procedência da acção, com o presente recurso de revista, onde formula as seguintes conclusões:
1. Os actos praticados causaram a diminuição das garantias patrimoniais;
2. Dos mesmos resultou impossibilidade de satisfação do crédito por parte do credor ora recorrente;
3. O acto praticado é susceptível de impugnação pauliana;
4. Para haver má fé não é indispensável a consciência subjectiva ou o intuito de prejudicar o credor;
5. Torna-se bastante que se tenha actuado com o propósito de obter bens facilmente sonegáveis, como aqui sucede;
6. Os réus, após a alienação a que procederam ficaram sem quaisquer bens pelos quais o Banco recorrente possa conseguir o pagamento das livranças;
7. Foram, assim, violados os artigos 610, 611 e 612 do Código Civil.

Contra-alegou o recorrido D, batendo-se pela improcedência do recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Foram dados como provados os seguintes factos:
1º A autora é legítima portadora das seguintes livranças todas emitidas m 29/5/1992 e subscritas pela sociedade comercial denominada «X, Ldª»: vencida em 30/6/92, no montante de 514110 escudos; vencida em 30/7/92, no montante de 527011 escudos; vencida em 30/8/92, no montante de 539106 escudos; vencida em 30/9/92, no montante de 551201 escudos; vencida em 30/10/92, no montante de 563697 escudos; vencida em 30/11/92, no montante de 10671140 escudos;
2º Todas as referidas livranças foram avalizadas, com aval prestado à subscritora entre outros, pelo réu B;
3º Apresentadas para cobrança nas datas de vencimento, aquelas livranças não foram pagas, pelo que se procedeu ao correspondente protesto, no que a autora despendeu a quantia de 1860 escudos;
4º Por esse motivo, em 471/93, a autora instaurou execução com processo ordinário contra a subscritora das livranças e os avalistas, acção que correu os seus termos pelo 1º Juízo Cível do Funchal, sob o nº 2/93 e na qual foram nomeados bens à penhora;
5º Os montantes dos créditos titulados pelas livranças identificadas no nº 1 são os valores a que se encontram reduzidos, depois de sucessivas reformas, unificação e subdivisão, os seguintes financiamentos à sociedade subscritora, titulados em livranças garantidas pelos mesmos avalistas, entre os quais o réu B: livrança de 15000000 escudos, emitida e avalizada em 9/5/90, com vencimento em 8/6/90; livrança de 3000000 escudos, emitida e avalizada em 19/7/90, com vencimento em 30/8/90; livrança de 3589644 escudos, emitida e avalizada em 27/9/90, com vencimento em 29/10/90; livrança de 4122916 escudos, emitida e avalizada em 22/11/90, com vencimento em 29/12/90;
6º Nas datas dos financiamentos referidos no número anterior, o réu B era casado, sob o regime da comunhão de adquiridos, com a ré C e era dono da fracção ou unidade habitacional designada por «F Onze», situada no 3º andar do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o nº 688/201173, fracção essa cuja aquisição, por compra, está registada a seu favor pela inscrição G197-200004-ApA, de 10/2/97;
7º No dia 20/3/92, no Cartório Notarial da Câmara de Lobos, perante a ajudante em exercício neste Cartório, os réus B e C declararam vender ao réu D e este declarou aceitar a venda, pelo preço de 6000000 escudos, a fracção habitacional identificada no artigo anterior;
8º A aquisição, por compra, da aludida fracção está agora registada a favor do réu D pela inscrição G19930609014, de 9/6/93;
9º O réu D ofereceu aquela fracção habitacional a Y, SA, como garantia de um crédito de 30000000 escudos por responsabilidades que ele ou a sociedade Z - Agência de Viagens e Turismo, Ldª tenham assumido, individual ou conjuntamente, quer sejam principais, quer sejam acessórias, perante aquele banco;
10º O réu D é irmão do réu B;
11º À data da propositura desta acção, o montante do crédito da autora é de 20675556 escudos, sendo 13366256 escudos de capital, 7307431 escudos de juros vencidos e 1860 escudos de despesas de protesto das livranças;
12º A sociedade X, Ldª não tem bens patrimoniais penhoráveis e está à beira da falência ou na iminência de encerramento porque, tal como a do réu B, a sua situação económica é ruinosa;
13º A fracção habitacional alienada pelo réu E era o seu único bem disponível com valor vultoso, já que dois dos outros prédios que também lhe pertenciam foram penhorados e vendidos em hasta pública por 45000000 escudos, num processo de execução em que os créditos verificados atingiram o montante de 222198040 escudos;
14º Para além desses prédios o réu B não tem outros bens penhoráveis;
15º O valor comercial da unidade habitacional vendida pelos réus B e mulher era de 12 a 15 mil contos;
16º O réu D conhecia a situação económica do irmão B;
17º Entre Março e Julho de 1991 o réu D pagou uma dívida no montante de 12500000 escudos que o réu B tinha para com o Engº E;

18º O réu B nunca reembolsou o D dessa quantia;
19º O réu D aceitou a proposta do réu B de receber em pagamento a fracção habitacional em causa que aquele já habitava como inquilino;
20º Foi na sequência desse acordo que os réus D e B outorgaram a escritura pública que constitui fls. 57 a 59 dos autos e, assim, ambos se declararam reciprocamente pagos.
Estamos perante uma acção de impugnação pauliana em que a única questão a solucionar é a decantada questão do requisito da má fé, exigido pelo artigo 612 do Código Civil para os actos onerosos, como é o caso.
As instâncias concluiram pela inverificação desse requisito e, por isso, julgaram a acção improcedente.

O Banco autor insiste em que ele se verifica, argumentando que para haver má fé não é indispensável a consciência subjectiva ou o intuito de prejudicar o credor, tornando-se bastante que se tenha actuado com o propósito de obter bens facilmente sonegáveis, como aqui sucede.

O objecto da presente impugnação pauliana é uma fracção habitacional vendida pelo réu B ao seu irmão B, venda esta que agravou a impossibilidade de o Banco recorrente satisfazer o seu crédito -- anterior a esse acto translativo - através do património do vendedor B, um dos responsáveis pelo pagamento, porque avalista das livranças que titulam esse crédito.

Provados os requisitos gerais exigidos pelos artigo 610 do Código Civil - existência de determinado crédito, anterioridade deste relativamente à venda impugnada e, como consequência desta, impossibilidade ou agravamento da impossibilidade da satisfação integral do crédito - resta saber se, como defende o recorrente, os factos provados integram o tal requisito específico da má fé.

Conforme concluíram as instâncias, pode considerar-se pacífico, pelo menos no âmbito jurisprudencial, o entendimento de que, para se dar como verificada a má fé para o efeito em causa -- e definida no nº 2 do artigo 612 do C.C. como sendo a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor - basta a mera representação, o conhecimento negligente da possibilidade da produção do resultado (o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor) em consequência da conduta do agente (cfr. acórdãos do STJ, de 10/11/98, CJSTJ, ano VI, tomo III, página 106 e de 15/2/2000, CJSTJ, ano VIII, tomo I, pag. 91).
O que significa que:
-- se é certo que, por um lado, não é de exigir o intuito de prejudicar (animo nocendi), isto é, que o devedor e o credor, ao realizarem o acto, tenham procedido com a intenção de prejudicar o credor;
-- não menos certo é que, por outro lado, não basta que a precária situação patrimonial do devedor seja do conhecimento do devedor e do terceiro, porquanto a correspectividade prestacional dos actos onerosos implicará que, por via de regra, o valor saído do património do devedor terá como contrapartida o mesmo valor entrado.

Ora, face a este entendimento, concluiu a Relação que os factos apurados não permitem retirar a conclusão de se verificar o requisito em apreço, designadamente face às respostas negativas dadas aos quesitos 7º e 8º e à resposta restritiva que mereceu o quesito 6º.
Efectivamente, sobre o que se perguntava neste último quesito, deu-se como provado que o réu D conhecia a situação económica do réu B, mas já não se deu como provado que «a unidade habitacional por ele adquirida era a única garantia sólida para os credores, entre os quais se encontrava a autora».
E no que concerne à matéria constantes dos quesitos 7º e 8º deu-se como não provado que «com a venda dessa fracção habitacional, os réus quiseram subtraí-la à penhora que se avizinhava» e que «todos os réus sabiam que com essa alienação a autora ficava impossibilitada de obter a satisfação do seu crédito através do património do réu B».

Vê-se, assim, que todos estes factos alegados pelo Banco recorrente como integrantes do requisito da má fé, submetidos à produção de prova directa e plena, perante o Colectivo, não lograram comprovação.

A Relação considerou - e bem - que não podia alterar estas respostas, quer por inexistência de documentos com força probatória bastante, quer com recurso a presunções judiciais (de uso legítimo para completar, mas nunca para contrariar respostas assentes na prova directa).

Daí que não tenha cabimento a (suposta) contradição apontada pelo recorrente ao acórdão recorrido na parte em que nele se conclui que «...nem se apura se o Réu D conhecia a circunstância do imóvel por ele adquirido ser a única garantia sólida para os credores.».
Não é outra coisa o que resulta da prova, como se acaba de confirmar.

Argumenta o recorrente que se o D conhecia a situação económica do réu B e que ela era ruinosa, «não podia deixar de saber que o imóvel que adquiriu ao irmão era a única garantia sólida para os credores.».

No fundo, o que com isto pretende o recorrente é a alteração da resposta ao quesito 6º (parte final), com recurso à prova indirecta, por presunção judicial.

A verdade, porém, é que se a Relação não o fez pelas razões apontadas, muito menos o poderá fazer o Supremo, atentas os consabidos cerceamentos que lhe são impostos por lei no âmbito da sindicabilidade da matéria de facto (cfr. artigos 722 e 729 do Código de Processo Civil).
Conforme se decidiu nesta mesma secção, na revista nº 2218/01, tendo como relator o Exmº Conselheiro Ferreira de Almeida, a existência da «consciência do prejuízo que o acto causa ao credor» a que se refere o nº 2 do artigo 612 do C.C., é conclusão a extrair dos factos que a patenteiam, pois que atinente à descoberta da real intenção ou estado de espírito das partes ao emitir a declaração negocial - o chamado animus contrahendi; trata-se de pura matéria de facto cujos conhecimento e apuramento são apanágio exclusivo das instâncias.».
DECISÃO
Pelo exposto nega-se a revista, com custas pelo Banco recorrente.

Lisboa, 2 de Maio de 2002.
Ferreira Girão,
Moitinho de Almeida,
Joaquim de Matos.