Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
499/18.9YRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: RAUL BORGES
Descritores: EXTRADIÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 07/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO / M.D.E.
Decisão: INDEFERIDA A ARGUIÇÃO DE NULIDADES
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I – Notificado do acórdão proferido em 22 de Abril de 2020, constante de fls. 1210 a 1273 destes autos, que negou provimento ao recurso interposto pelo cidadão chinês AA, confirmando o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-11-2019, constante de fls. 991 a 995, complementado pelo acórdão de 9-01-2020, constante de fls. 1121 a 1123, que indeferiu o pedido de declaração de irregularidades apresentado pelo recorrente, e autorizou a extradição do mesmo para a República Popular da China, vem o aludido AA, ao abrigo do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea c), 380.º, n.º 1, alínea b), aplicáveis ex vi do artigo 425.º, n.º 4, e do artigo 105.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, arguir a respectiva nulidade.

Apreciando.

II – 1 – Cláusula Humanitária – Pontos 1 a 10.

A propósito desta questão, versando o artigo 4.º, alínea b), do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, e o artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, exposta nas conclusões L a DD, foram no acórdão de 22-04-2020 citados acórdãos deste Supremo Tribunal onde se perfila questão de inconstitucionalidade.

A primeira norma reporta pessoa reclamada e a segunda pessoa visada, não estando em causa consequências ao nível da idade (actualmente o recorrente conta 49 anos de idade) e da saúde do requerido, aliás, não alegadas.

III – A propósito da invocação de versão incorrecta do artigo 135.º da Lei n.º 23/2007, consta do ponto 10: “ Ora, o Recorrente invocou justamente a norma não na redacção originária da Lei n.º 23/2007, conforme erroneamente se escreveu no aresto em apreço, mas sim na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 59/2017, de 31 de Julho, e que, até ao presente momento, não sofreu alterações: “1 – Não podem ser afastados coercivamente ou expulsos do País os cidadãos estrangeiros que: c) Tenham filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assumam efetivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”.

IV – Consta da conclusão Y: “De harmonia com o disposto no artigo 135.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, não podem ser expulsos do país cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores, residentes em território português, relativamente aos quais assumam responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”, não se fazendo referência expressa à Lei n.º 59/2017, mas a verdade é que apresenta o novo texto de forma sincopada.

V – Na verdade, a Lei n.º 59/2017, de 31 de Julho, Diário da República, 1.ª série, n.º 146, de 31-07-2017, procedeu à quarta alteração à Lei n.º 23/2007, alterando os artigos 88.º, 89.º e 135.º, este relativo a limites à expulsão.

Segue o novo texto do artigo 135.º (…) Cotejando esta redacção com a que constava da Lei n.º 29/2012, de 9 de Agosto, transcrita a págs. 51 do acórdão e fls. 1260 dos autos, verifica-se que a actual alínea c) corresponde à alínea b) da versão anterior, com ligeiras alterações sem interferir na substância. Conclui-se, assim, que a versão a aplicar é a actual, a da Lei n.º 59/2017.    

VI – 2 – Alteração da qualificação jurídica - Pontos 13 a 16.

Invoca o recorrente omissão de pronúncia relativa a inconstitucionalidade do artigo 16.º, n.º 2, a contrario, da Lei n.º 144/99.

A questão de alteração da qualificação jurídica foi abordada a págs. 55 a 59 do acórdão e fls. 1264 a 1268 dos autos, então se afirmando que não houve qualquer alteração de qualificação jurídica, o que determina a falência de âncora para suscitar inconstitucionalidade, que necessariamente pressupunha a efectiva alteração, como decorre da parte final, onde se afirma que improcede a pretensão recursória condensada nas conclusões EE a LL, onde se abrange naturalmente a conclusão LL, onde foi suscitada a inconstitucionalidade. Improcede a arguição de nulidade por omissão de pronúncia.

VII – 3 – Questões de natureza civil – Pontos 17 a 21.

Aqui o apontado vício situa-se na outra margem. Invocado vem excesso de pronúncia.

Esta questão, sintetizada pelo recorrente nas conclusões MM a SS, foi analisada a págs. 59 a 61, do acórdão ora impugnado, e fls. 1268 a 1270 dos autos.

O recorrente então aduziu que se não verificavam os crimes de burla, de infidelidade e de actividade ilícita de recepção de depósitos, reconduzindo-se as condutas por si perpetradas a meras questões civis.

Começou-se por relembrar que os crimes imputados eram os constantes do pedido de extradição e não os enunciados, frisando-se que não cabia no âmbito dos autos apurar se o extraditando praticou ou não os factos imputados, por o processo de extradição não visar o julgamento dos factos que fundamentam o pedido.

Tratou-se de avançar explicitação de que o que efectivamente em causa está são questões criminais e não do foro do pactum servanda no plano do artigo 405.º do Código Civil, e não será obviamente por aqui que se poderá congeminar a presença do vício apontado, pois que ao afirmar-se que o que está em causa é matéria crime e não civil não se concebe como a tal postura possa ser assacado o conhecimento de questão de que não se podia tomar conhecimento, como injunge a parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, tratando-se tão só de uso de linha argumentativa supletiva.

Improcede a arguição de nulidade pro excesso de pronúncia.

VIII – 4 – Inexistência de garantias jurídicas de salvaguarda dos Direitos do Homem – Pontos 22 a 29.

A matéria está compreendida no tema “Pena de prisão perpétua ou de duração indefinida”, vertida nas conclusões TT a QQQ, agora restrito a conclusões HHH a QQQ.

A questão foi abordada a págs. 61 a 63 do acórdão e fls. 1270 a 1272 dos autos, dizendo-se a finalizar: “Improcede o alegado na síntese das conclusões TT a QQQ”.

O recorrente invoca o afirmado na conclusão 23.ª, onde se lê: “… reiterou a informação que já havia prestado oportunamente ao Tribunal da Relação de Lisboa de que os seus sogros haviam sido pressionados pelas autoridades chinesas para que fizessem com que o Recorrente e a sua mulher aceitassem a extradição e regressassem à China”, afirmando verificar-se nulidade por omissão de pronúncia.

Entende o arguente estar em causa uma questão.

O que vem invocado é uma informação prestada pelo recorrente ao Tribunal da Relação de Lisboa.

Pergunta-se, como apreciar o que se contém numa informação prestada pelo interessado, sem passar pelo crivo do contraditório?

Decisão que venha a ser tomada face a uma informação prestada pelo interessado, sem contraditório, estará coberta pelo manto da conformação constitucional?

Decididamente, não nos parece.

Daí que seja de julgar improcedente a arguição de nulidade por omissão de pronúncia.

IX – Concluindo: Feita a correcção quanto à versão da Lei n.º 59/2007, é de indeferir o pedido de declaração de nulidades apresentado pelo recorrente AA.

Decisão Texto Integral:

Notificado do acórdão proferido em 22 de Abril de 2020, constante de fls. 1210 a 1273 destes autos, que negou provimento ao recurso interposto pelo cidadão chinês AA, confirmando o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-11-2019, constante de fls. 991 a 995, complementado pelo acórdão de 9-01-2020, constante de fls. 1121 a 1123, que indeferiu o pedido de declaração de irregularidades apresentado pelo recorrente, e autorizou a extradição do mesmo para a República Popular da China, vem o aludido AA, ao abrigo do disposto nos artigos  379.º, n.º 1, alínea c), 380.º, n.º 1, alínea b), aplicáveis ex vi do artigo 425.º, n.º 4, e do artigo 105.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, arguir a respectiva nulidade, nos termos e com os fundamentos seguintes:

1 – CLÁUSULA HUMANITÁRIA.

  1. No recurso interposto perante esse Venerando Tribunal, invocou o Recorrente a necessidade de aplicação in casu da designada “cláusula humanitária”, prevista no art.º 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (Lei n.º 144/99) e, bem assim, no art.º 4.º, al. b) do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição.

  2. A par deste argumento, o Recorrente, suscitou, desde logo, e porque inequivocamente haviam sido normas aplicadas  ao caso concreto, a inconstitucionalidade dos referidos preceitos, se interpretados e aplicados no sentido de ser admitida a extradição de uma pessoa que tenha filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assuma efetivamente responsabilidades parentais e a quem assegure o sustento e a educação, por violação do disposto nos arts. 13.º, 36.º, n.º 6, 67.º, 68.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) – cfr. capítulo II b. e conclusão DD do recurso.

   3. Sucede, porém, que esse Venerando Tribunal não se pronunciou sobre tal inconstitucionalidade, expressa, oportuna e devidamente suscitada.

   4. Com efeito, concluiu-se apenas, no aresto ora em apreço, que: “(…) a expulsão não se confunde com a extradição, medida de cooperação internacional, não sendo convocável o preceito em causa”.

    5. À luz do disposto no art.º 204.º da CRP, os tribunais, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça, têm o dever de recusar a aplicação de normas (ou interpretações normativas segundo as quais uma norma foi aplicada no caso concreto) incompatíveis com a Lei Fundamental.

   6. Ora, tendo sido invocada a inconstitucionalidade de duas normas plenamente aplicáveis ao processo em questão, e tendo a mesma sido levada às conclusões do recurso, fazia-se mister que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma se pronunciasse.

   7. Trata-se, pois, de uma questão autónoma das demais colocadas em sede de recurso, designadamente daqueloutra relativa à apreciação dos mesmos preceitos enquanto normas convocáveis para a resolução do caso, na medida em que contêm causas de recusa da extradição.

   8. Termos em que padece o acórdão de nulidade por omissão de pronúncia, ao abrigo do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c), aplicável ex vi do art.º 425.º, n.º 4 do CPP, nulidade essa que deverá ser declarada e suprida em conformidade.

 9. Ainda no âmbito deste segmento da decisão, cumpre referir que, salvo melhor opinião, laborou em erro esse Venerando Tribunal ao constatar que o Recorrente havia invocado a versão incorrecta do art.º 135.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho (Regime de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional ou Lei n.º 23/2007).

  10. Ora, o Recorrente invocou justamente a norma não na redacção originária da Lei n.º 23/2007, conforme erroneamente se escreveu no aresto em apreço, mas sim na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 59/2017, de 31 de Julho, e que, até ao presente momento, não sofreu alterações: “1 – Não podem ser afastados coercivamente ou expulsos do País os cidadãos estrangeiros que: c) Tenham filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assumam efetivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”.

  11. Com efeito, a versão que esse Venerando Tribunal sustenta ser a aplicável (correspondente à redacção conferida ao preceito pela Lei n.º 29/2012, de 9 de Agosto) foi subsequentemente alterada, pela Lei n.º 59/2017, de 31 de Julho, acima mencionada.

 12. Nestes termos, requer-se a V. Exas. que se dignem proceder à correcção do lapso identificado, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 380.º, n.º 1, al. b) do CPP.

2 – ALTERAÇÃO DE QUALIFICAÇÃO JURÍDICA.

  13. O Recorrente, a propósito do seu entendimento de que não se encontrava verificado o requisito da dupla incriminação e de que existia um risco de desrespeito pela regra da especialidade, suscitou a inconstitucionalidade do art.º 16.º, n.º 2, a contrario da Lei n.º 144/99, se interpretada e aplicada no sentido de ser permitido ao Estado Requerido alterar a qualificação jurídica dos factos, de molde a permitir que ao Extraditando seja imputado crime diverso daquele por que foi solicitada a sua extradição pelo Estado Requerente, por violação dos arts. 20.º, n.º 4, in fine e 32.º da CRP (cfr. capítulo III c. e conclusão LL do recurso).

  14. Também neste tocante deixou esse Venerando Tribunal de se pronunciar quanto à questão de inconstitucionalidade expressamente suscitada pelo Recorrente.

 15. Valem pois, a este respeito, as razões explanadas supra quanto à necessidade de o Tribunal se pronunciar sobre a questão de inconstitucionalidade, ainda que o venha a fazer em sentido discordante daquele que é propugnado pelo Recorrente.

  16. Nestes termos, o acórdão enferma de nulidade por omissão de pronúncia, ao abrigo do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, aplicável ex vi do art.º 425.º, n.º 4, cujo reconhecimento e declaração mui respeitosamente se requer.

3 – QUESTÕES DE NATUREZA CIVIL.

   17. A propósito do enquadramento que o Recorrente faz dos factos constantes do pedido de extradição (apenas e somente para concluir que os mesmos não se reconduzem a ilícitos de natureza criminal mas, quando muito, civil), esse Venerando Tribunal refere que a “[N]ão cabe no âmbito destes autos apurar se o extraditando praticou ou não os factos que lhe vêm imputados, pois que o processo de extradição não visa o julgamento dos factos que fundamentam o respectivo pedido”, concluindo que a “sindicância probatória está expressamente vedada”.

   18. Sem embargo, com o devido respeito, é no próprio aresto que se vai mais além, ali se introduzindo uma nota que não deixa de versar sobre a apreciação dos factos: “[O]ra, quem efectua fuga após angariação de fundos no território nacional não pode ser considerado como um singelo inadimplente contratual, não se está no domínio do pactum sunt servanda, no plano do disposto no artigo 405.º do CódigoCivil, mas perante factos ilícitos típicos previstos no Código Penal da República Popular da China, merecendo igualmente enquadramento jurídico criminal no Código Penal Português”.

19.  O certo é que o Supremo Tribunal de Justiça jamais poderia conhecer dessa matéria, pronunciando-se sobre uma eventual fuga do Recorrente e, sobretudo, sobre o significado a atribuir a tal fuga no contexto dos factos imputados ao aqui Recorrente.

20.   E, diga-se, não poderá colher a tese de que a questão foi suscitada pelo próprio Recorrente. Na verdade, é bem diferente analisar-se o conjunto dos factos constantes do pedido de extradição de molde a concluir pela (não) verificação do requisito da dupla incriminação – o que pretendia o Recorrente – e a elaboração de conjecturas sobre as razões e propósitos determinantes da vinda do Recorrente para Portugal, para daí se extrair ilações quanto à presumível prática dos ilícitos criminais, assim se exorbitando os limites de cognição da questão submetida ao julgamento desse Venerando Tribunal.

21.    Nestes termos, dúvidas não podem restar de que ocorreu excesso de pronúncia gerador do vício de nulidade do acórdão desse Venerando Tribunal, ao abrigo do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.

4 – INEXISTÊNCIA DE GARANTIAS JURÍDICAS DE SALVAGUARDA DOS DIREITOS DO HOMEM.

22.   O Recorrente dedicou um subcapítulo completo do seu recurso à invocação da inexistência de garantias jurídicas de salvaguarda dos Direitos Humanos no ordenamento jurídico chinês e, em particular, do risco real desse desrespeito vir a acontecer no caso do Recorrente (cfr. capítulo III f. e conclusões HHH a QQQ do recurso).

  23. Com efeito, o Recorrente, ademais de ter dado nota de diversos indicadores e juntado documentação vária no sentido de que o processo justo e equitativo não é uma realidade no ordenamento jurídico da República Popular da China, reiterou a informação que já havia prestado oportunamente ao Tribunal da Relação de Lisboa de que os seus sogros haviam sido pressionados pelas autoridades chinesas para que fizessem com que o Recorrente e a sua mulher aceitassem a extradição e regressassem à China.

 24. Ora, sobre tais circunstâncias o silêncio desse Venerando Tribunal foi absoluto.

 25. Na esteira do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro OLIVEIRA MENDES: “[A] nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar artigo 660°, n° 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4°, do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado n° 2 do artigo 660° do Código de Processo Civil.(1)” (Sublinhado nosso.)

 26. Efectivamente, o que se peticionava junto do Supremo Tribunal de Justiça não era que se pronunciasse acerca de um qualquer argumento apresentado na defesa do Recorrente, mas sim sobre uma verdadeira questão, neste caso, sobre uma específica causa de recusa de extradição, prevista na al. a) do art.º 6.º da Lei n.º 144/99, que não havia sido colocada sob apreciação em nenhum outro momento do recurso e do acórdão.

  27. E, neste sentido, escreve PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE que as nulidades da sentença são, designadamente, “[A] omissão de pronúncia sobre factos concretos da acusação, da pronúncia ou da contestação que sejam relevantes para a boa decisão da causa”(2).

 28. O que, mutatis mutandis, é aplicável ao caso vertente, pois particularmente a informação relativa à pressão exercida sobre os sogros do Recorrente é um facto concreto que bem espelha os atropelos aos direitos fundamentais deste e da sua família – que já se começaram a verificar e ainda nem sequer se deu a entrega à República Popular da China – e, como tal, um facto concreto oferecido no recurso com relevo para a boa decisão da causa.

 29. À luz do que antecede, é, pois, evidente que também neste segmento o acórdão padece de nulidade por omissão de pronúncia, de harmonia com o disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.

   30. Nestes termos, requer-se mui respeitosamente a V. Exas. que se dignem proceder ao reconhecimento das nulidades supra indicadas e, bem assim, à correcção do lapso igualmente identificado, nos termos e para os efeitos, respectivamente, dos arts. 379.º, n.º 1, al. c) e 380.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP.

     Termos em que se requer, de harmonia com o disposto no art. 374.º, n.º 2, al. c), aplicável ex vi do art.º 425.º, n.º 4, ambos do CPP, que seja reconhecida e declarada a nulidade do acórdão proferido por esse Venerando Tribunal, pelos vícios de omissão de pronúncia e de excesso de pronúncia, e, bem assim, que seja corrigido o lapso identificado, ao abrigo do disposto no art.º 380.º, n.º 1, al. b), tudo com as devidas consequências legais.


***


     A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, de fls. 1299 a 1300 verso, respondeu nos termos seguintes:

1 - O extraditando e recorrente AA vem arguir a nulidade do acórdão proferido por este Supremo Tribunal a 22/04/2020, nos termos do disposto nos arts 379, nº 1, al. c), 425, nº 4 e 105, nº 1, todos do CPP, alegando:

a) omissão de pronúncia relativamente às seguintes questões:

- da inconstitucionalidade do disposto no art. 18, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto e art. 4, al. b) do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre extradição, quando interpretados no sentido de ser admitida a extradição de uma pessoa com filhos menores, de nacionalidade de Estado terceiro, residentes em Portugal, relativamente aos quais assuma efectivamente responsabilidades parentais e a quem assegure o sustento e a educação, por violação dos arts 13, 36, nº 6, 67, 68 e 69, da Constituição da República Portuguesa;

- da inconstitucionalidade do art. 16, nº 2, a contrario, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, se interpretada no sentido de ser permitido ao Estado requerido alterar a qualificação jurídica dos factos, de molde a permitir que ao extraditando seja imputado crime diverso daquele por que foi solicitada a extradição, por violação dos arts 20, nº 4, in fine e 32, da Constituição da República Portuguesa;

- a inexistência de garantias jurídicas de salvaguarda dos direitos do Homem na República Popular da China;

b) excesso de pronúncia, quando, na sequência da afirmação do recorrente sobre a natureza não criminal dos factos constantes do pedido de extradição, o Tribunal refuta esse entendimento e reafirma a natureza criminal dos mesmos, extraindo ilações sobre as razões e propósitos determinantes da vinda do recorrente para Portugal.

2- Porém, não vemos, ao contrário do alegado, qualquer omissão, ou excesso, de pronúncia no acórdão em causa, como resulta, cremos, da simples leitura do mesmo.

3- Com efeito, o acórdão em causa contém pronúncia, clara e aprofundada, sobre todas as questões indicadas.

4- Acresce que tais questões integram, até, a lista dos descritores que antecedem o texto do acórdão.

5- Assim, de fls 43 a 54 do acórdão, sob a epígrafe «Questão III - Revogação do acórdão recorrido» - «A- Cláusula humanitária», o Tribunal, fazendo referência expressa às conclusões da motivação de recurso em que a questão é sintetizada, enuncia a pretensão do recorrente e a alegação que lhe subjaz, bem como a inconstitucionalidade suscitada, passando, depois, a uma análise rigorosa e fundamentada dessa questão face às disposições do Tratado referido e da Lei 144/99, mas também do regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional e do respectivo enquadramento constitucional. Refuta a alegação de inconstitucionalidade citando jurisprudência deste Supremo Tribunal e doutrina e conclui não haver violação das normas constitucionais invocadas pelo recorrente.

6- Também no que respeita à suscitada omissão de pronúncia sobre a alegada alteração da qualificação jurídica da factualidade constante do pedido de extradição, não assiste qualquer razão ao requerente. Com efeito, o acórdão, a fls 55, sob a epígrafe «B- Alteração de qualificação jurídica» («Questão III - Revogação do acórdão recorrido»), indica as conclusões da motivação em que o recorrente sintetiza a sua alegação quanto a tal questão, bem como à invocada inconstitucionalidade do art. 16, nº 2, da Lei nº 144/99, consigna a análise que efectuou do acórdão recorrido e conclui que “não houve qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos constantes do pedido de extradição”, que “uma coisa é afirmar que os crimes imputados ao extraditado encontram correspondência a crimes previstos no ordenamento jurídico nacional, outra bem diversa é operar a correspondência entre a incriminação realizada pela República Popular da China e o nosso ordenamento jurídico, alterando a subsunção jurídica”. Em suma, o Tribunal é claro, não fez uma interpretação inconstitucional de qualquer norma, o que diz é que não houve alteração da qualificação jurídica dos factos constantes do pedido de extradição.

7- Não assiste, igualmente, qualquer razão ao requerente quando invoca omissão de pronúncia quanto à questão que suscitou relativa à pretensa inexistência de garantias jurídicas de salvaguarda dos direitos do Homem. Basta atentar no ponto III - D- Pena de prisão perpétua ou de duração indefinida, fls 61 a 63 do acórdão, para concluir que o Tribunal não só se pronunciou sobre a questão, como o fez de forma fundamentada, concluindo, a final, improceder “o alegado na síntese das conclusões TT a QQQ”.

8- Do mesmo modo no que se refere ao alegado excesso de pronúncia. O Tribunal mais não fez do que pronunciar-se sobre a alegada natureza não criminal dos factos subjacentes ao pedido de extradição - conclusões da motivação MM a SS, nas quais procurou demonstrar que aqueles factos não constituem crimes perante a lei portuguesa, reconduzindo-se a meras questões civilistas. O acórdão, fazendo expressa menção do “que consta dos autos” e referindo que não cabe no âmbito do processo de extradição apurar se o recorrente praticou ou não os factos que lhe são imputados, concluiu que quem pratica aqueles factos não pode ser considerado como «um singelo inadimplente contratual», merecendo igualmente enquadramento jurídico criminal no Código Penal Português. Não se vê, assim, como e onde o Tribunal extravasou os seus poderes/deveres de pronúncia, uma vez que não conheceu “de questões de que não podia tomar conhecimento” - al. c), parte final, do nº 1, do art. 379, do CPP.

9- Afigura-se-nos, assim, que o acórdão não padece das nulidades que lhe são imputadas e não violou o disposto no art. 379, nº 1, al. c), do CPP, dado que se pronunciou sobre todas as questões relevantes suscitadas e fê-lo de forma fundamentada e não se pronunciou sobre qualquer questão cujo conhecimento lhe estivesse vedado.

10- Pelo exposto, deve o requerimento em apreço ser indeferido.


 *****


       Apreciando.

    1 – Cláusula Humanitária – Pontos 1 a 10.

   A propósito desta questão, versando o artigo 4.º, alínea b), do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, e o artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, exposta nas conclusões L a DD, foram no acórdão de 22-04-2020 citados acórdãos deste Supremo Tribunal onde se perfila questão de inconstitucionalidade.

     A primeira norma reporta pessoa reclamada e a segunda pessoa visada, não estando em causa consequências ao nível da idade (actualmente o recorrente conta 49 anos de idade) e da saúde do requerido, aliás, não alegadas.

      A propósito da invocação de versão incorrecta do artigo 135.º da Lei n.º 23/2007, consta do ponto 10: “ Ora, o Recorrente invocou justamente a norma não na redacção originária da Lei n.º 23/2007, conforme erroneamente se escreveu no aresto em apreço, mas sim na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 59/2017, de 31 de Julho, e que, até ao presente momento, não sofreu alterações: “1 – Não podem ser afastados coercivamente ou expulsos do País os cidadãos estrangeiros que: c) Tenham filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assumam efetivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”.

    Consta da conclusão Y: “De harmonia com o disposto no artigo 135.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, não podem ser expulsos do país cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores, residentes em território português, relativamente aos quais assumam responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”, não se fazendo referência expressa à Lei n.º 59/2017, mas a verdade é que apresenta o novo texto de forma sincopada.

  Na verdade, a Lei n.º 59/2017, de 31 de Julho, Diário da República, 1.ª série, n.º 146, de 31-07-2017, procedeu à quarta alteração à Lei n.º 23/2007, alterando os artigos 88.º, 89.º e 135.º, este relativo a limites à expulsão.

      

       Segue o novo texto.

                                                        Artigo 135.º

                                                 (Limites à expulsão)

1 – Não podem ser afastados coercivamente ou expulsos do País os cidadãos estrangeiros que:

  a) Tenham nascido em território português e aqui residam;

  b) Tenham efetivamente a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa a residir em Portugal;

   c) Tenham filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assumam efetivamente responsabilidade parentais e a quem assegurem o sustento e a educação;

  d) Que se encontrem em Portugal desde idade inferior a 10 anos e aqui residam.

2 – O disposto no número anterior não é aplicável, em caso de suspeita fundada na prática de crimes de terrorismo, sabotagem ou atentado à segurança nacional ou de condenação pela prática de tais crimes


      Cotejando esta redacção com a que constava da Lei n.º 29/2012, de 9 de Agosto, transcrita a págs. 51 do acórdão e fls. 1260 dos autos, verifica-se que a actual alínea c) corresponde à alínea b) da versão anterior, com ligeiras alterações sem interferir na substância.

      Conclui-se, assim, que a versão a aplicar é a actual, a da Lei n.º 59/2017.     


    2 – Alteração da qualificação jurídica - Pontos 13 a 16.

   Invoca o recorrente omissão de pronúncia relativa a inconstitucionalidade do artigo 16.º, n.º 2, a contrario, da Lei n.º 144/99.

       A questão de alteração da qualificação jurídica foi abordada a págs. 55 a 59 do acórdão e fls. 1264 a 1268 dos autos, então se afirmando que não houve qualquer alteração de qualificação jurídica, o que determina a falência de âncora para suscitar inconstitucionalidade, que necessariamente pressupunha a efectiva alteração, como decorre da parte final, onde se afirma que improcede a pretensão recursória condensada nas conclusões EE a LL, onde se abrange naturalmente a conclusão LL, onde foi suscitada a inconstitucionalidade.

     Improcede a arguição de nulidade por omissão de pronúncia.


   3 – Questões de natureza civil – Pontos 17 a 21.

    Aqui o apontado vício situa-se na outra margem. Invocado vem excesso de pronúncia.

       Esta questão, sintetizada pelo recorrente nas conclusões MM a SS, foi analisada a págs. 59 a 61, do acórdão ora impugnado, e fls. 1268 a 1270 dos autos.

      O recorrente então aduziu que se não verificavam os crimes de burla, de infidelidade e de actividade ilícita de recepção de depósitos, reconduzindo-se as condutas por si perpetradas a meras questões civis.

      Começou-se por relembrar que os crimes imputados eram os constantes do pedido de extradição e não os enunciados, frisando-se que não cabia no âmbito dos autos apurar se o extraditando praticou ou não os factos imputados, por o processo de extradição não visar o julgamento dos factos que fundamentam o pedido.

      Tratou-se de avançar explicitação de que o que efectivamente em causa está são questões criminais e não do foro do pactum servanda no plano do artigo 405.º do Código Civil, e não será obviamente por aqui que se poderá congeminar a presença do vício apontado, pois que ao afirmar-se que o que está em causa é matéria crime e não civil não se concebe como a tal postura possa ser assacado o conhecimento de questão de que não se podia tomar conhecimento, como injunge a parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, tratando-se tão só de uso de linha argumentativa supletiva.

       Improcede a arguição de nulidade pro excesso de pronúncia.

    4 – Inexistência de garantias jurídicas de salvaguarda dos Direitos do Homem – Pontos 22 a 29.


     A matéria está compreendida no tema “Pena de prisão perpétua ou de duração indefinida”, vertida nas conclusões TT a QQQ, agora restrito a conclusões HHH a QQQ.

     A questão foi abordada a págs. 61 a 63 do acórdão e fls. 1270 a 1272 dos autos, dizendo-se a finalizar: “Improcede o alegado na síntese das conclusões TT a QQQ”.

    O recorrente invoca o afirmado na conclusão 23.ª, onde se lê: “… reiterou a informação que já havia prestado oportunamente ao Tribunal da Relação de Lisboa de que os seus sogros haviam sido pressionados pelas autoridades chinesas para que fizessem com que o Recorrente e a sua mulher aceitassem a extradição e regressassem à China”, afirmando verificar-se nulidade por omissão de pronúncia.

       Entende o arguente estar em causa uma questão.

       O que vem invocado é uma informação prestada pelo recorrente ao Tribunal da Relação de Lisboa.

      Pergunta-se, como apreciar o que se contém numa informação prestada pelo interessado, sem passar pelo crivo do contraditório?

      Decisão que venha a ser tomada face a uma informação prestada pelo interessado, sem contraditório, estará coberta pelo manto da conformação constitucional?

      Decididamente, não nos parece.

      Daí que seja de julgar improcedente a arguição de nulidade por omissão de pronúncia.

      

      Concluindo: Feita a correcção quanto à versão da Lei n.º 59/2007, é de indeferir o pedido.

Decisão

 Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de declaração de nulidades apresentado pelo recorrente AA.

Custas pelo recorrente/arguente.

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Tem voto de conformidade do Exmo. Conselheiro adjunto Manuel Pereira Augusto de Matos.

 Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 15 de Julho de 2020

Raul Borges (Relator)