Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1049/18.2T8GMR-A.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PRESSUPOSTOS
FUNDAMENTOS
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
HABILITAÇÃO DO ADQUIRENTE
EMBARGOS DE TERCEIRO
EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA CERTA
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTÂNCIA / COMEÇO E DESENVOLVIMENTO DA INSTÂNCIA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / NOÇÃO DE TRÂNSITO EM JULGADO.
Doutrina:
- A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, p. 694;
- M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 319 e ss.;
- Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, p. 394;
- Miguel Teixeira de Sousa, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325º, p. 79.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 263.º, N.º 3 E 628.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 09-05-1996, IN CJSTJ, 2º, P. 55;
- DE 19-05-2010, PROCESSO N.º 3749/05.8TTLSB.L1.S1;
- DE 12-09-2013, PROCESSO N.º 239/09.3TBVRS.E1.S1;
- DE 04-06-2015, PROCESSO N.º 177/04.6TBRMZ.E1.S1;
- DE 17-11-2015, PROCESSO N.º 34/12.2TBLMG.C1.S1.
Sumário :

I - A insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 628.° do CPC) é uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dando expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante urna composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver: a intangibilidade (tendencial) do caso julgado visa evitar a existência de decisões, em concreto, incompatíveis.

II - A força e autoridade do caso tem por finalidade evitar que a regulação definitiva da relação jurídica material possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica. A vinculação à anterior decisão pressupõe o trânsito desta e, diferentemente da excepção do caso julgado, depende apenas da verificação da identidade subjectiva dos litigantes, da existência de uma evidente conexão entre os objectos de cada uma da acções, havendo ainda que apurar se o conteúdo daquela decisão se deve ter como prejudicial em relação à decisão a tomar na acção sequente.

III - A força de "res judicata" só é, no entanto, conferida ao conteúdo da decisão sobre as questões ou pretensões suscitadas e às respectivas premissas, se absolutamente determinantes, pois o caso julgado destina-se, apenas, a obstar a decisões concretamente incompatíveis.

IV - Não tendo os embargantes sido habilitados na qualidade de adquirentes e não sendo o bem imóvel por eles adquirido caracterizável, à data da transmissão, como um bem litigioso, é inviável opor-lhes, por via do n.º 3 do art. 263.º do CPC, a autoridade do caso julgado formado pela sentença dada à execução.

Decisão Texto Integral:
                                                                                             

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           


AA e, mulher, BB instauraram embargos de terceiro por apenso à execução que CC e DD intentou a outros sujeitos, invocando a sua aquisição da propriedade sobre o imóvel cuja entrega é pedida na execução.
A exequente/embargada opôs o caso julgado formado na sentença dada à execução, proferida na que movera aos ora demais embargados e mediante a qual estes foram aí condenados a reconhecer o seu (da exequente) direito de propriedade sobre o mesmo imóvel que os ora embargantes pretendem ter adquirido dos demandados naquela acção.
Os embargantes responderam, alegando que o dito imóvel cuja propriedade adquiriram por escritura pública outorgada em 18-04-2008 e que possuem, tal como os seus antecessores, é distinto do que foi objecto de apreciação na sentença dada à execução e adquirido pela exequente/embargada.

A Sra. Juíza proferiu saneador, julgando verificada a excepção do caso julgado e absolvendo os embargados da instância, por considerar que na sentença dada à execução ficou definitivamente fixado o direito dos intervenientes no processo, sendo definido com rigor o direito da exequente, pelo que não poderia agora o Tribunal decidir a mesma factualidade em sentido diverso.

Os embargantes interpuseram revista per saltum (art. 678º nº1 do CPC), delimitando o objecto do recurso com conclusões em que suscitam a questão de saber se não estão vinculados pelo caso julgado formado na acção que se debruçou sobre a “identidade do prédio”, por serem terceiros na relação jurídica nela estabelecida, não tendo tido oportunidade de exercer nela o contraditório.
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Importa apreciar a questão suscitada, para o que deve atender-se ao antecedentemente relatado, e aos factos (com relevo para o conhecimento do recurso) em que se baseou a decisão recorrida, de que se extrai, em suma:
Por decisão transitada em julgado proferida na acção declarativa nº 493/13.6TBCBT foram condenados os aí RR EE e mulher FF, GG e marido HH a: reconhecer o direito de propriedade da A CC sobre o prédio sito próximo do cruzeiro de Molares, com dois pisos, sendo o r/ch destinado a comércio, onde funcionou um estabelecimento comercial explorado pelos primeiros RR, e o 1º andar destinado a habitação e habitado pelos primeiros RR; a entregar à A o referido prédio.
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O recurso envolve a necessidade de saber se a pronúncia pretendida pelos embargantes/recorrentes sobre a pretensão executiva deduzida nos autos apensos é susceptível de ofender a precedente decisão, transitada em julgado, de condenação no pedido que a exequente havia formulado no anterior processo declarativo, em que os ora embargantes não haviam sido demandados.
A insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 628º) é uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver: a intangibilidade (tendencial) do caso julgado é um princípio do nosso ordenamento jurídico com que se pretende evitar, não uma colisão teórica de decisões, mas a contradição de julgados, a existência de decisões, em concreto, incompatíveis.
A eficácia do caso julgado material varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior.
Se o âmbito subjectivo e objectivo da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i.e., se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado (arts. 580º e 581º do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria [art. 577º i) do CPC]: verificando-se a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, a decisão goza de força obrigatória, no processo e fora dele, não podendo o mesmo tribunal ou um outro ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão, destinando-se a excepção a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual.

É certo que, a par mas não confundível com a “excepção do caso julgado”, também se impõe ao juiz a “força e autoridade do caso julgado”, sendo que, se a primeira pressupõe a aludida tríplice identidade (de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a segunda dispensa-a: a autoridade do caso julgado pressupõe uma decisão (transitada) de determinadas questões que já não podem voltar a ser discutidas e, diversamente daquela excepção, pode funcionar independentemente da verificação de tal tríplice identidade ([1]).

Logo, mesmo não ocorrendo completa identidade do âmbito objectivo na relação entre a acção em que foi proferida a decisão transitada e a acção subsequente, nem por isso, o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o mesmo objecto vale entre as mesmas partes de ambas as acções como autoridade de caso julgado e, quando tal suceda, o tribunal da acção posterior está vinculado à decisão proferida na causa anterior, mesmo sem a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa de pedir. O que significa que, mesmo sem essa completa identidade, o tribunal está vinculado na acção subsequente a tudo o que esteja coberto pela autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida na causa anterior. A força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica.

Por fim, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (art. 621º do CPC). Embora se saiba que sobre a questão da exacta delimitação dos limites objectivos do caso julgado se manifestam posições não inteiramente convergentes, deve admitir-se que «os fundamentos da sentença pedem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado» ([2]).

«A decisão sobre o pedido e causa de pedir fica imutável, impedindo não só que o tribunal decida diferentemente sobre o mesmo objecto ou mesmo, e mais de uma vez, do mesmo modo. Os limites objectivos do caso julgado situam-se no segmento decisório da sentença. Mas sendo esta a conclusão do silogismo judiciário terão de ser ponderadas as premissas, como antecedente lógico do referido segmento, e se absolutamente determinantes (desde que não se traduzam, apenas em meros argumentos de exegese jurídica ou de exposição doutrinária) é-lhes conferida a força de “res judicata”. Como antecedente lógico da “leitura” da parte decisória, há que proceder à respectiva interpretação, o que implica seguir o “iter” que conduziu à conclusão encontrada e que contem pressupostos dados por assentes a constituírem a fundamentação.» ([3]).

Em prol da economia processual, do prestígio dos tribunais e da estabilidade e certeza das relações jurídicas, vem sendo entendido sistematicamente pela jurisprudência que, uma vez assente a identidade subjectiva e sendo o objecto do processo anterior parcialmente idêntico ou conexo com o do posterior, a força obrigatória do caso julgado naquele formado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita: «Efectivamente, a decisão não é mais nem menos do que a conclusão dos pressupostos lógicos que a ela conduzem – precisamente os fundamentos – e aos quais se refere» ([4]).

Cumpre, ainda, registar o que o STJ já lembrou, no seu citado Ac. de 17-6-2014:

«(…) No caso concreto, a limitação dos poderes cognitivos do Tribunal, impedido de conhecer do mérito relativamente a questões decididas por sentença transitada em julgado, respeita o juízo de proporcionalidade na ponderação de bens ou valores em conflito e não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça. Com efeito, a força obrigatória reconhecida ao caso julgado material repousa na necessidade de assegurar estabilidade às relações jurídicas, não permitindo que litígios, entre as mesmas partes e com o mesmo objecto, se repitam indefinidamente, em prejuízo da paz jurídica, que ao Estado, como defensor do interesse público, compete assegurar. Sendo, precisamente, pela imposição, aos litigantes, desse comando jurídico indiscutível – a decisão transitada sobre o mérito da causa – que o Estado prossegue essa finalidade, assegurando o prestígio dos tribunais e garantindo a certeza e segurança jurídicas nas relações interpessoais.».

Realmente, a segurança jurídica assume-se como basilar do Estado de Direito Democrático e tem o caso julgado como seu postulado destacado, como também expendeu o já invocado Ac. do STJ de 29-5-2014: «A figura do caso julgado tem proteção constitucional alicerçada, quer no disposto no n.º 3 do artigo 282.º, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2.º, ambos da Constituição, conforme reiterado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 15/2013, de 17.6, com texto disponível no sítio do próprio Tribunal».

Entendemos, pelo exposto, que os pressupostos e/ou considerandos conducentes ao dispositivo da decisão proferida na anterior acção declarativa poderão estar, ou não, abrangidos pelo caso julgado material, consoante o sentido e o alcance que a sua interpretação lhes fixe, a qual aferirá da eficácia do caso julgado. Como se disse, a força de “res judicata” só é conferida ao conteúdo da decisão sobre as questões ou pretensões suscitadas e às respectivas premissas, se absolutamente determinantes, pois o caso julgado destina-se, apenas, a obstar a decisões concretamente incompatíveis.

Todavia, reiteramos que o reconhecimento de tal força dependeria da constatação de que, neste procedimento e na mencionada acção anterior, estaríamos perante a mesma relação jurídica, com os mesmos sujeitos e com evidente conexão entre os objectos de ambas as acções, ainda que não se verificasse inteira identidade quanto ao pedido e à causa de pedir nelas apresentadas. Depois, haveria que aferir se poderia ser tido por prejudicial, «em relação ao caso sub judice», o conteúdo da decisão condenatória proferida em tal acção sobre questão ou pretensão nelas suscitadas e das respectivas premissas se absolutamente dela determinantes.
Ora, está fora dessa cogitação a aludida decisão condenatória tomada na acção 493/13.6TBCBCT porque nela não intervieram os mesmos sujeitos da ora em apreciação: neste caso, não estamos perante a mesma relação jurídica, com identidade de sujeitos, em ambas as mencionadas acções, apesar da potencial conexão entre os respectivos objectos.
É certo que a recorrida contrapôs ao apontado obstáculo à actuação da autoridade do caso julgado a extensão da sua eficácia, que, no seu entender, se retiraria do preceituado no nº 3 do art. 263º do CPC (“Legitimidade do transmitente - Substituição deste pelo adquirente”).
Porém, nos termos desse preceito, a ventilada extensão de efeitos pressupõe: (i) a transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso; (ii) a substituição, por meio de habilitação, do transmitente pelo adquirente.
Ora, não só não ocorreu a habilitação dos embargantes na precedente acção – aliás, apenas intentada em 2013 –, como a transmissão de 2008, tal como vem invocada, não é configurável, nessa data, como sendo de coisa ou direito litigioso.
Por outro lado, esse adejado argumento incorre num patente vício de raciocínio: a sua ponderação imporia que fosse um dado assente nestes autos a invocada qualidade dos embargantes enquanto “adquirentes” do prédio que os demandados na acção precedente foram condenados a entregar.
Contudo, esse é um elemento que até poderá vir a demonstrar-se, mas, por ora, não só é controverso como constitui o núcleo da pretensão e respectiva causa de pedir formuladas pelos embargantes. Com efeito, estes arrogam-se serem titulares da propriedade e da posse dum imóvel distinto do que foi objecto de apreciação na sentença dada à execução e do qual, por isso, não serão os “adquirentes”. Razão pela qual também não colheria, por ora, o fundamento da identidade de pedidos nos dois processos.
Como tal, não se verificando o invocado impedimento formado pelo caso julgado, deve o Tribunal prosseguir a normal tramitação dos autos, a fim de julgar a pretensão formulada pelos embargantes.

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Decisão:

Pelo exposto, concedendo a revista, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o normal prosseguimento dos autos para o julgamento da pretensão formulada pelos embargantes.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 14 de Maio de 2019

Alexandre Reis (Relator)

Lima Gonçalves

Fátima Gomes

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[1] Cf., entre muitos outros, os Acs. do STJ de 4-6-2015 (177/04.6TBRMZ.E1.S1), de 19-5-2010 (3749/05.8TTLSB.L1.S1) e de 12-9-2013 (239/09.3TBVRS.E1.S1). E, na doutrina, neste sentido, M. Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 319 e s), bem como, entre outros:
- Miguel Teixeira de Sousa («Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente»  – cfr. “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, in BMJ 325º-179).
- Mariana França Gouveia, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, p. 394” («A excepção de caso julgado implica uma não decisão sobre a nova acção e pressupõe uma total identidade entre as duas. A autoridade de caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial» (…) «os efeitos do caso julgado material projectam-se em processo subsequente necessariamente como autoridade do caso julgado material em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objecto posterior ou como excepção de caso julgado em que a existência de decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objecto posterior»).
[2] A. Varela e outros in “Manual de Processo Civil”, p. 694.
[3] Ac. desta Secção de 17-11-2015 (P. 34/12.2TBLMG.C1.S1).
[4] Ac. do STJ de 9-5-1996, in CJSTJ, 2º-55.