Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20346/20.0T8LSB-D.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
CRÉDITO COMUM
CRÉDITO FISCAL
PLANO DE INSOLVÊNCIA
HOMOLOGAÇÃO
INEFICÁCIA
Data do Acordão: 09/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I - O crédito da Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) emergente de taxas que lhe compete legalmente cobrar constitui um crédito tributário submetido ao princípio da indisponibilidade fixado no n.º 2 do art. 30.º da Lei Geral Tributária,

II - Tendo sido aprovado plano de insolvência (plano de liquidação) - e sem prejuízo da possibilidade de poder ser homologado - é o mesmo ineficaz relativamente a tal crédito.

III - É indiferente para o caso que o crédito tenha natureza comum (e não privilegiada).

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 20346/20.0T8LSB-D.L1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Lisboa

+

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Tendo sido oportunamente (29 de janeiro de 2021) declarada a insolvência de Urbanos-Distribuição Expresso, S.A., apresentou o Administrador da Insolvência a lista de créditos reconhecidos, da qual era feito constar crédito (de €11.741,75, mas que depois, após impugnação à lista, passou a ser de €16.104,90) da Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) - doravante designada simplesmente por ANACOM - como tendo natureza comum.

Em 30 de abril de 2021 apresentou a Insolvente um plano de liquidação da massa insolvente.

Tal plano previa, relativamente aos créditos comuns, a) o perdão integral de juros vencidos e vincendos após a data da declaração da insolvência, b) o pagamento da totalidade do valor do capital e juros em dívida, à data da declaração de insolvência em 28 prestações trimestrais, vencendo-se a primeira no 22º dia subsequente à aprovação e homologação do plano de liquidação.

O plano veio a ser aprovado em assembleia de credores.

A ANACOM requereu então a não homologação desse plano.

Alegou para o efeito, em síntese, que o seu crédito, que resulta de um tributo de natureza parafiscal (taxa anual de prestação de serviços postais) e de coima e custas processuais, emerge da sua atividade administrativa e tem natureza pública, devendo por isso, e sob pena de violação dos princípios da legalidade e da igualdade dos credores, assumir a mesma natureza (crédito privilegiado) e ter o mesmo tratamento (mais favorável) que no plano eram atribuídos ao crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira. Além disso, o seu crédito, na medida em que é tributário, é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua modificação com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária. Condição esta que, mais alega, o plano não cumpre.

Veio depois a ser proferida sentença onde foi desatendida a pretensão da ANACOM, tendo o plano sido homologado, mas declarado ineficaz relativamente aos créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Instituto da Segurança Social, IP.

Inconformada com o assim decidido, apelou a ANACOM.

Fê-lo sem êxito pois que a Relação de Lisboa, ainda que com fundamentação diversa, manteve a sentença.

Mantendo-se inconformada pede a ANACOM revista.

Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

A. Vem a Recorrente interpor o presente recurso contra o Acórdão do Venerando TRL de 05.04.2022, que julgou improcedente o seu pedido de não homologação do plano de insolvência, apresentado no âmbito dos presentes autos e relativo à insolvente Urbanos, nos termos do disposto no artigo 216.º, n.º 1, alínea a) do CIRE, com fundamento na violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 194.º do mesmo diploma, bem como o pedido (alternativo) de declaração de ineficácia do plano de insolvência em relação à ora Recorrente, por não terem sido previstas condições de ressarcimento do seu crédito em consonância com a sua qualidade de pessoa coletiva de natureza pública, detentora de um crédito público.

B. O Acórdão recorrido concluiu pela improcedência dos pedidos com fundamento na dissemelhança entre os interesses da Recorrente e do Estado, os quais implicariam um diferente grau de proteção, tendo sido entendido que inexistiam elementos que permitissem concluir pela existência de um desrespeito injustificado no tratamento dos credores que fosse merecedor da recusa da homologação do plano aprovado.

C. A interpretação sufragada pelo Venerando Tribunal a quo no Acórdão ora recorrido tem como consequência que o crédito da Recorrente seja considerado disponível, à luz do regime aplicável aos créditos tributários (e, consequentemente, do tratamento que lhes é dado no âmbito dos processos de insolvência) – como se de um crédito privado se tratasse –, mantendo-se, in casu, o plano de insolvência aprovado e homologado eficaz em relação à Recorrente e permitindo-se, assim, que os juros sobre os tributos que lhe são devido, vencidos e vincendos, após a data de declaração de insolvência, sejam integralmente perdoados, para além de se permitir também que o pagamento da totalidade do valor do capital e juros em dívida à data de declaração de insolvência seja efetuado em 28 prestações trimestrais (e não mensais), tudo com desrespeito das normas tributárias em vigor e a cujo cumprimento a ANACOM e os demais sujeitos processuais estão adstritos.

D. O Acórdão de que ora se recorre encontra-se em manifesta oposição com o Acórdão proferido por esse STJ no processo n.º 243/20.0T8FND.C1.S1, datado de 05.10.2021 (“Acórdão em oposição”) – junto como Documento 1.

E. Desde logo, contrariamente ao entendimento sufragado pelo Venerando Tribunal a quo, no Acórdão em oposição foi tido por essencial para a resolução da questão a qualificação das dívidas resultantes da falta de pagamento de taxas como tributos, nos termos dos artigos 3.º e 4.º, n.º 2, da LGT, entendendo-se por suficiente a qualificação da taxa como tributo para que o mesmo seja um crédito indisponível, por aplicação do disposto no artigo 30.º, n.º 2 da referida lei.

F. Refere o mencionado Acórdão em oposição que “A portagem devida pelos utentes da auto-estrada constitui uma taxa e, como tal, um tributo nos termos do art. 4.º, n.º 2, da LGT, sendo, por isso, esse crédito indisponível, como se prevê no art. 30.º, n.º 2, do mesmo diploma legal. II - Essa indisponibilidade estende-se, por identidade de razão, a outros vínculos creditícios complementares da relação jurídica tributária, como o direito a juros, e obrigações acessórias de carácter procedimental. (…) VII - Deve ser declarada a ineficácia do plano aprovado e homologado em relação aos créditos reclamados pela ATA, respeitantes a taxas de portagem, juros e respectivos custos administrativos (excluindo-se dessa declaração os relativos a coimas e respectivos encargos).”

G. E, ainda: “Assim, a interpretação dos arts. 3º, 2 e 4º, 2 da LGT no sentido de que se incluem as taxas de portagem, como taxas "assentes na utilização de um bem do domínio público", não viola qualquer norma ou princípio constitucional. 4. Do entendimento exposto decorre que se devem considerar abrangidos pelo princípio da indisponibilidade tributária as taxas de portagem, respectivos juros e custos administrativos, impondo-se, assim, a distinção entre esses créditos tributários e aqueles que se considerou não possuírem essa natureza: os que resultam das coimas aplicadas e respectivos encargos. No acórdão recorrido seguiu-se, neste ponto sem impugnação das partes, o entendimento que tem sido adoptado no Supremo no sentido de que, em casos como o destes autos o plano aprovado, ao prever, em relação aos créditos tributários, um perdão de parte substancial do capital e da totalidade dos juros e uma moratória no pagamento, importa uma significativa alteração desses créditos, com desrespeito da sua indisponibilidade, implicando uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo (art. 215º do CIRE) –, esta violação não impede a homologação do plano, devendo, no entanto, decretar-se a ineficácia deste relativamente aos créditos tributários.(…) (destaques nossos).

H. O relevante raciocínio expendido no Acórdão em oposição não só não foi feito pelo Venerando Tribunal a quo, como (surpreendentemente) foi contrariado por este.

I. O Venerando Tribunal a quo entendeu que, por os créditos da Recorrente (resultantes da falta de pagamento de taxas) não gozarem de privilégios creditórios, lhes era aplicável, na íntegra, o disposto no plano de insolvência em matéria de condições de pagamento previstas para os créditos comuns, o que implica a respetiva disponibilidade, fixando assim, nesse âmbito, a aplicação de um cut-off, e violando, de forma gritante, o estipulado no artigo 30.º, n.ºs 2 e 3 da LGT.

J. Isto quando a aplicabilidade da referida norma da LGT a taxas liquidadas pela Administração Tributária, ainda que no âmbito de um plano de insolvência, já tinha sido claramente defendida pelo Acórdão do STJ em oposição (bem como noutros, de que são exemplo os demais Acórdãos citados no próprio Acórdão em oposição), resultando desta a indisponibilidade desses mesmos créditos.

K. O Tribunal a quo limitou-se, assim, a aferir da eventual equiparação do crédito da Recorrente aos demais créditos do Estado à luz da regra dos privilégios creditórios, por forma a justificar a inexistência destes mesmos privilégios relativamente ao crédito da Recorrente.

L. Contudo, esta qualificação não tem relevância para o que se discute relativamente às condições de pagamento previstas no plano de insolvência, porquanto, e na esteira do entendimento do Acórdão do STJ em oposição, mesmo sendo comum, sempre seria de se aplicar ao crédito da Recorrente sub judice o disposto no artigo 30.º, n.º 2 da LGT – ou, dito de outra forma: o facto de o crédito ser comum não afasta (não pode afastar) crédito tributário –, o que o Venerando Tribunal a quo, erradamente, não fez.

M. Mais entende o Acórdão recorrido que a Recorrente “é uma pessoa coletiva pública distinta da Administração estadual”, razão pela qual o seu crédito não gozaria do mesmo privilégio que os demais créditos do Estado;

N. Recusando, assim, a bondade da jurisprudência segundo a qual a Recorrente, enquanto entidade administrativa independente, integra a Administração estadual.

O. Mas ainda que assim não fosse, e para o que ora releva, a conclusão de que a Recorrente é um organismo público, pertencente à Administração Pública – que integra – e pertencendo também à Administração Tributária, nos termos do artigo 1.º da LGT – no que concerne à liquidação e cobrança de tributos –, é suficiente para que mereça, nos processos de insolvência, o mesmo tratamento que é dado aos demais entes públicos (independentemente de os respetivos créditos serem, ou não, privilegiados).

P. E dúvidas não restam de que assim é atendendo ao disposto no artigo 1.º, n.ºs 2 e 3 da LGT, para efeitos daquela lei.

Q. Note-se que no Acórdão em oposição, as taxas em causa – taxas de portagem – não eram também devidas à “Administração estadual”, e nem por isso a interpretação desse Venerando STJ foi diferente.

R. Também no caso sub judice, a taxa em causa constitui, indubitavelmente, um tributo – o que não é posto em causa pelo Venerando Tribunal a quo sendo até feita essa ressalva –, cuja liquidação e cobrança incumbe a uma entidade pública, com a natureza de entidade administrativa independente (cfr., designadamente, os artigos 1.º, 37.º e 38.º dos Estatutos da ANACOM, e os artigos 3.º e 4.º da LGT) que, conforme ficou demonstrado, integra a Administração Pública e, para efeitos de liquidação e cobrança daqueles tributos, a Administrativa Tributária;

S. E, tal como sucede relativamente às taxas a que se refere o Acórdão em oposição, também no caso da taxa sobre a qual versa o Acórdão recorrido, em caso de falta de pagamento tempestivo por parte dos sujeitos passivos, a respetiva cobrança coerciva cabe à Administração Tributária [cfr. artigo 37.º dos Estatutos da ANACOM e artigo 148.º, n.º 1, alínea a) do CPPT];

T. Pelo que a equiparação do crédito da Recorrente aos demais créditos do Estado – e o tratamento que o mesmo deve merecer por força das regras tributárias aplicáveis – nada tem que ver com a existência ou inexistência de privilégios creditórios, uma vez que estes constituem garantias especiais das obrigações, estabelecidas na Lei, que, tendo em conta a causa do crédito, e não o respetivo titular, conferem a certos credores o direito de serem pagos com prioridade ou preferência face a outros credores – o que não está em discussão nestes autos.

U. Estando o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo em oposição com os entendimentos já sufragados pelo “Acórdão em oposição” –, que decidiu de forma divergente as mesmas questões fundamentais de Direito –, torna-se imperativo      que estas questões sejam definitivamente esclarecidas, aconselhando a intervenção da última instância jurisdicional, razão pela qual o caso sub judice preenche o fundamento excecional de recorribilidade previsto no artigo 14.º, n.º 1 do CIRE.

V. Mais, considerando a situação sub judice, e caso se considere que é ainda necessário verificar o preenchimento dos pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 629.º do CPC – o que se equaciona por mera cautela e dever de patrocínio –, verifica-se que in casu o Tribunal de 1.ª instância não corrigiu o valor da causa fixado pela Insolvente na p.i., considerando o respetivo ativo real apurado no decurso do processo.

W. Assim sendo, e para este efeito, deve considerar-se o valor da ação indicado na p.i., e que ascende ao montante de € 30.000,01, o que se afigura superior ao mínimo da alçada dos Tribunais da Relação fixado na LOSJ, verificando-se o preenchimento do pressuposto da alçada.

X. Ainda, no que concerne ao presente recurso, não se pode, em rigor, considerar que existe um valor de sucumbência.

Y. No caso sub judice, em que se questionam as condições de tratamento da Recorrente no contexto do plano de insolvência aprovado pelos credores, e salvo melhor opinião, a sucumbência não é qualificável, devendo, antes, considerar-se o valor da causa, nos termos da supra referida parte final do n.º 1 do artigo 629.º do CPC, estando os pressupostos de admissibilidade previstos no citado artigo 629.º do CPC verificados.

Z. Ainda que assim não se entenda – o que, sem conceder, apenas se equaciona para efeitos de raciocínio –, o valor da sucumbência apenas poderia corresponder ao valor do crédito da Recorrente que, in casu, ascende a €16.104,90, pelo que este se afigura superior ao mínimo fixado na norma supra enunciada da LOSJ.

AA. Atenta-se, ainda, também por mera cautela, aos pressupostos de admissibilidade estabelecidos no artigo 671.º do CPC, os quais se encontram preenchidos no caso sub judice.

BB. Desde logo é patente que in casu o TRL, ao apreciar o recurso de apelação, conheceu o mérito da causa, ao ter aplicado o Direito aos factos alegados e concluído pela improcedência do recurso, através de um julgamento de mérito (ainda que tenha andado mal, na opinião da ora Recorrente).

CC. Por outro lado, não obstante o TRL ter vindo confirmar a decisão do Tribunal de 1.ª instância, não decidiu com os mesmos fundamentos – pelo que os fundamentos das decisões das duas instâncias não são coincidentes, sendo que o próprio TRL termina o seu Acórdão confirmando esse entendimento, quando julga improcedente a apelação “ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes” (aos do Tribunal da 1.ª instância, leia-se).

DD. Estipula o artigo 1.º dos Estatutos da Recorrente, que esta é uma pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente, dotada de autonomia administrativa, financeira e de gestão, bem como de património próprio.

EE. A especificidade da missão, atribuições e competências das entidades administrativas independentes e, principalmente, a      supra indicada independência orgânica e funcional, suscitam a inevitável questão de saber onde se inserem estas entidades, no quadro da organização administrativa do Estado – havendo doutrina que tende a considerá-las inseridas na Administração independente, mas não põem em causa o facto de estas integrarem a Administração Pública.

FF. A este respeito atente-se, desde logo, ao disposto no artigo 267.º da CRP, bem como no artigo 2.º, n.º 4, alínea c) do CPA.

GG. Assim sendo, e salvo o devido respeito, torna-se inevitável censurar o entendimento perfilhado no Acórdão recorrido, quando se refere que “O ponto é que, como resulta do que se expôs, a ANACOM é uma pessoa coletiva  pública distinta da Administração estadual pelo que a afirmação da apelante de que a ANACOM é “uma credora pública”, não legitima a conclusão de que o crédito respetivo, tendo por fonte/origem, a taxa aludida, relativa ao ano de 2019, goza do mesmo privilégio que os créditos de que é titular o Estado, cobrados pela Autoridade Tributária e Aduaneira e configurados no Plano em diferente categoria” (destaque e sublinhado nossos).

HH. A Recorrente pertence à Administração estadual, sendo, por isso, uma credora pública, razão por que se torna incompreensível a interpretação do Tribunal a quo quando invoca a existência desta diferença para, com base nesse argumento, concluir que o crédito da Recorrente não beneficia “do mesmo privilégio” que os créditos de que é titular o Estado.

II. Ora, com a devida vénia, o Tribunal a quo parece relacionar duas realidades totalmente distintas, isto é, entende que a justificação para o crédito da Recorrente não gozar “do mesmo privilégio” que os créditos de que é titular o Estado é o facto de a mesma, (apenas) no entender do Tribunal a quo, não pertencer à Administração estadual.

JJ. Não só a Recorrente pertence à Administração estadual, o que já ficou acima demonstrado, como os privilégios creditórios são atribuídos tendo em consideração a causa do crédito, e não a qualidade do credor – a que acresce que, conforme ficou já também referido, o que está em causa, nos presentes autos, não é a qualificação dos créditos como privilegiados, mas sim a necessidade – e obrigatoriedade – de observar as disposições tributárias, mesmo quando esteja em causa um processo de insolvência, quando os créditos reclamados (ainda que através de impugnação) são créditos públicos e têm natureza tributária.

KK. A atribuição de privilégios creditórios está relacionada com a origem do crédito, e não, como parece fazer crer o Acórdão recorrido, com o titular do crédito.

LL. Tanto assim é que no plano de insolvência homologado nos presentes autos parte dos créditos do Estado foram qualificados como créditos privilegiados e outra parte como créditos comuns.

MM. Note-se que ao longo do processo – e também nos recursos interpostos, quer para o TRL, quer para o STJ (o presente recurso) –, a ora Recorrente apenas reclamou que o seu crédito fosse tratado como crédito de natureza tributária (natureza que possui) e, como tal, que lhe fossem aplicáveis as condições que decorrem das disposições legais vigentes em matéria tributária, que são vinculativas, mesmo no âmbito dos processos de insolvência (cfr., por exemplo, o artigo 30.º, n.º 3 da LGT e o artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro) – o que implica, designadamente, a indisponibilidade daquele crédito, nos termos do artigo 30.º, n.º 2 da LGT, com a consequente impossibilidade de perdão de juros, e a obrigatoriedade, quer de observância do número de prestações, quer da periodicidade – mensal – prevista para o pagamento destas, que decorrem do disposto no artigo 196.º do CPPT;

NN. Não tendo, nunca, reclamado qualquer privilégio quanto ao pagamento do seu crédito com preferência (ou de forma antecipada) sobre outros.

OO. Ora, o Acórdão recorrido transmite o entendimento de que a Recorrente não goza “do privilégio” dos demais créditos do Estado, porque não pertence à Administração estadual, e para além de a Recorrente pertencer, de facto, à Administração estadual, a atribuição de privilégios creditórios ao Estado, reitera-se, não só não está relacionada coma pertença, ou não, à Administração estadual (mas sim com a fonte do crédito em questão), como também não está em discussão nestes autos.

PP. Note-se que o próprio Acórdão recorrido cita o disposto no artigo 50.º da LGT, ao abrigo do qual se conclui que é a própria lei – seja o CC, as leis tributárias ou outras – que confere especificamente os privilégios creditórios ou outras garantias consoante a origem e causa do crédito em questão.

QQ. O plano de liquidação fez uma diferenciação expressa entre (i) a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”); (ii) o Instituto Gestão Financeira da Segurança Social IP (“ISS”), (iii) os créditos privilegiados (trabalhadores), (iv) os créditos comuns (entre eles instituições financeiras, fornecedores e prestadores de serviços) e, por último, (v) os créditos subordinados/intragrupo.

RR. Não tendo sido previstas condições especiais de liquidação do crédito da ora Recorrente, não pode deixar de se considerar que este se integra na categoria dos créditos comuns, cujas condições de liquidação dos respetivos créditos previstas no plano são distintas dos outros dois credores públicos (AT e ISS), terem sido consideradas aplicáveis as regras previstas nos artigos 30.º, n.º 2 e 36.º, n.º 3 da LGT (quanto aos créditos da AT) e 196.º e 199.º do CPPT (no caso dos 2 credores).

SS. E, ainda assim, com os fundamentos que são aduzidos na Sentença que proferiu, o Tribunal de 1.ª instância declarou o plano ineficaz relativamente aos créditos reconhecidos e verificados a favor dos “credores públicos” da AT e do ISS, por violação do disposto no artigo 196.º do CPPT.

TT. Ora, é precisamente o mesmo tipo de tratamento que a Recorrente reclama, quando alega que, também em relação ao seu crédito, que resulta da falta de pagamento de tributos e correspondentes juros de mora, se devem observar as regras tributárias constantes daquelas disposições legais (e foi pelo facto de assim não ter sucedido que invocou a violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 194.º do CIRE);

UU. Não tendo, nunca, requerido que o pagamento do crédito da ANACOM precedesse o de qualquer outro credor.

VV. Com efeito, mesmo que se entenda que o crédito da Recorrente é um crédito comum, a verdade é que tal não impede que esse crédito seja considerado um crédito público, devido a uma credora de natureza pública, e que, em termos de condições de pagamento, face às disposições tributárias a respeitar, seja equiparado à posição dos créditos da AT e do ISS, para efeitos da sua qualificação como crédito indisponível.

WW. Como se referiu supra, a questão em apreço tem de ser analisada no contexto daquilo que foi pedido ao Tribunal, tendo sido concretamente peticionada a não homologação do plano de insolvência ou, no limite, a declaração de ineficácia do mesmo em relação ao crédito da Recorrente, uma vez que este é indisponível (e não é também admissível o desrespeito das regras tributárias relativas ao pagamento em prestações), não porque seja classificado como crédito comum ou privilegiado, mas sim porque lhe é aplicável o artigo 30.º, n.º 2 (e o artigo 196.º) da LGT.

XX. No fundo, mesmo que o crédito da Recorrente seja classificado como comum, e alguns créditos do Estado sejam classificados como privilegiados – podendo, em virtude dessa circunstância, ser pagos em momentos distintos –, a verdade é que era expectável, e exigível, que o Venerando Tribunal a quo tivesse aplicado ao caso o disposto no artigo 30.º, n.º 2 da LGT– o que não ocorreu;

YY. Tanto mais que o n.º 3 da mesma disposição legal prevê expressamente a prevalência da regra da indisponibilidade dos créditos tributários estabelecida no n.º 2 da mesma norma sobre legislação especial e o artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, prescreve que “O disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos”.

ZZ. Note-se que, no Acórdão em oposição, estavam em causa créditos resultantes da falta de pagamento de portagens, que esse STJ considerou inquestionável que deveriam ser qualificadas como taxas (e, como tal, como tributos) – constituindo, por isso, verdadeiros créditos tributários;

AAA. Tendo ainda entendido que, assim sendo, tais créditos eram indisponíveis, “(…) como se prevê no art. 30º, 2, do mesmo diploma legal [LGT]”, sendo que tal indisponibilidade se estendia, “por identidade de razão, a outros vínculos creditícios complementares da relação jurídica tributária, como o direito a juros[13], e obrigações acessórias de carácter procedimental (…)”.

BBB. Considerou ainda, o Acórdão em oposição, que não era pelo facto de tais taxas serem cobradas por uma concessionária que as conclusões que antecedem deveriam ser diferentes, já que o bem público em causa era “gerido pelo[a] concessionário[a], em substituição da Administração (…)” e, como tal, ao substituir a Administração Pública, a concessionária atuava “como entidade pública e presta[va] um serviço público”;

CCC. Pelo que, “Não é pelo facto de ser prestado por entidade privada que o serviço perde a natureza pública; a concessionária colabora desse modo com a Administração na realização dos interesses gerais” (sublinhado nosso).

DDD. Também o crédito da ANACOM em discussão nestes autos tem natureza pública, e constitui um crédito tributário, pelo que lhe é aplicável o princípio da indisponibilidade (bem como as regras tributárias que limitam a possibilidade de pagamento em prestações);

EEE. Sendo que, tal como resulta (desde logo) do requerimento de impugnação de créditos apresentado pela ora Recorrente, sobre os tributo são devidos juros de mora vencidos e vincendos, juros esses que têm que ser contados nos termos previstos no artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de março.

FFF. O crédito da Recorrente decorre essencialmente de taxas devidas pelo exercício da atividade da Insolvente de prestação de serviços postais em território nacional, com suporte em rede postal própria, na sequência de licença emitida pela Recorrente para o efeito, importando, assim, chamar à colação o estipulado na LGT.

GGG. Oartigo1.ºdaquela LGT prevê que “3 -Integram a administração tributária, para efeitos do número anterior, a Autoridade Tributária e Aduaneira, as demais entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos, o Ministro das Finanças ou outro membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário, e os órgãos igualmente competentes dos Governos Regionais e das autarquias locais”.

HHH. Prevê ainda o artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, que “1 - Os tributos podem ser: // a) Fiscais e parafiscais; […] // 2 - Os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas”.

III. Estipula o seu artigo 30.º que “1 - Integram a relação jurídica tributária: // a) O crédito e a dívida tributários; // b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; // c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; // d) O direito a juros compensatórios; // e) O direito a juros indemnizatórios. // 2 - O crédito tributário é indisponível, podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária. // 3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.

JJJ. A Recorrente é uma entidade pública legalmente incumbida da liquidação e cobrança de tributos, nomeadamente de taxas, nos termos do disposto no artigo 37.º, n.º 1 dos seus Estatutos, pelo que não só integra a Administração Tributária, como é sujeito ativo nas relações jurídico-tributárias que estabelece na liquidação das referidas taxas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º, n.º 1 da LGT.

KKK. A Recorrente é, assim, titular de créditos que constituem receitas da “administração tributária”, créditos tributários aos quais é aplicável o disposto no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, e que, por isso, são indisponíveis, dado que a referida norma legal prevalece sobre qualquer legislação especial, nomeadamente o CIRE.

LLL. O legislador vinculou a Administração a prosseguir a satisfação dos créditos tributários, em abono dos princípios da igualdade tributária, da legalidade e da prossecução do interesse público, não podendo o Estado demitir-se ou renunciar, no todo ou em parte, a esse seu direito creditício e à respetiva cobrança, reiterando-se, a este respeito, o entendimento expresso por esse STJ no Acórdão em oposição, onde a qualificação do crédito como taxa ou tributo foi suficiente para que o mesmo fosse considerado indisponível.

MMM. Para além de o crédito tributário ser indisponível os “elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes” e a Administração tributária “não pode [também] conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei”, não podendo ainda suspender a cobrança coerciva (cfr. artigos 36.º, n.ºs 2 e 3 da LGT e 85.º, n.ºs 3 e 4 do CPPT).

NNN. Por esse motivo, a Douta Sentença proferida em 10.11.2021, ao julgar o plano de insolvência (ou liquidação) ineficaz quanto aos créditos da AT e do ISS, devia ter reconhecido também sua ineficácia em relação aos créditos da Recorrente, o que não ocorreu – violando, dessa forma, o princípio da igualdade previsto no artigo 194.º do CIRE.

OOO. O crédito da Recorrente, enquanto entidade pertencente à Administração Pública e Tributária, deveria ter sido equiparado aos demais créditos do Estado, sendo o seu crédito reconhecido também como indisponível.

PPP. Como tal não se verificou, a Recorrente foi colocada numa posição manifestamente mais desfavorável do que aquela que lhe devia ter sido reconhecida, em violação do direito aplicável e entra em contradição com o que foi decidido no Acórdão em oposição, na medida em que (i) o crédito tributário cujo pagamento reclamou integra a categoria de créditos do Estado; (ii) a Recorrente integra a Administração estadual e Tributária; e (iii) o seu crédito é indisponível, para além de (iv) terem que ser ainda observadas as regras de pagamento em prestações que se encontram estabelecidas no artigo 196.º do CPPT, e que implicam que o  pagamento das  prestações  tenha que ser feito com a periodicidade mensal.

QQQ. As dívidas à ANACOM, de natureza tributária, quando não são pagas voluntariamente dentro dos prazos estabelecidos para o efeito, são objeto de cobrança coerciva, através da instauração de processos de execução fiscal [cfr. artigo 37.º dos Estatutos da Recorrente e artigo 148.º, n.º 1, alínea a) do CPPT].

RRR. Salvo o devido respeito, a manutenção do plano de insolvência nos exatos termos em que foi homologado tem como consequência que os créditos da Recorrente que tenham sido reclamados no âmbito de um processo de insolvência tenham um tratamento totalmente díspar consoante, no momento em que seja apresentada a reclamação de créditos (ou a impugnação prevista no artigo 130.º do CIRE), se encontrem já em fase de cobrança coerciva (por ter sido, entretanto, solicitada a instauração do competente processo de execução fiscal por parte do Serviço de Finanças competente) ou estejam ainda em fase de pagamento voluntário, junto da Recorrente.

SSS. Nos termos do disposto no artigo 37.º, n.º 4 dos Estatutos da Recorrente, entende o Acórdão de que ora se recorre que esta equiparação é feita “(exclusivamente) para efeitos de cobrança coerciva que pode, aliás, nos termos do nº5 do mesmo artigo, ser promovida pela Autoridade Tributária e Aduaneira –, no âmbito do processo de execução fiscal, não sendo lícito retirar do preceito, que tem uma projeção no campo do direito adjetivo, um sentido e alcance que o mesmo não comporta”.

TTT. Contudo, e salvo o devido respeito, a aplicação prática desta interpretação, no contexto de um processo de insolvência, deixa patente a sua total incoerência.

UUU. Como se sabe, nos termos da Lei, a ora Recorrente cobra taxas às empresas e outras entidades  sujeitas aos seus poderes de regulação, em conformidade com o disposto no artigo 37.º, n.º 1 dos seus Estatutos.

VVV. E, quando os seus regulados não procedem ao pagamento voluntário e atempado das referidas taxas, a respetiva cobrança coerciva deve ser promovida pela AT, nos termos do n.º 5 do mesmo artigo.

WWW. A referida cobrança prossegue os termos de um processo de execução fiscal, regulado pelo CPPT, sendo que, nos termos do artigo 180.º, n.ºs 1 a 3 do CPPT, uma vez declarada a insolvência, são sustados os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes e todos os que de novo vierem a ser instaurados contra a insolvente, logo após a sua instauração, devendo o tribunal judicial competente avocar os processos de execução fiscal pendentes, os quais são apensados ao processo de insolvência, “onde o Ministério Público reclama o pagamento dos respetivos créditos pelos meios aí previstos, se não estiver constituído mandatário especial” – devendo os “processos de execução fiscal, antes de remetidos ao tribunal judicial, serão contados, fazendo-se neles o cálculo dos juros de mora devidos”.

XXX. Ora, nas palavras do Douto Acórdão recorrido, “o crédito da apelante não se coloca na mesma posição dos créditos do Estado, nem fundamento para a pretendida equiparação entre os créditos do Estado e os créditos da apelante, enquanto entidade reguladora, pelo menos com o âmbito e na vertente pretendida pela apelante”.

YYY. Isto (admite-se) porque foi a Recorrente a reclamar os seus créditos, e não o Ministério Público, em representação da AT;

ZZZ. Pois caso tivesse sido o Ministério Público, em representação da Fazenda Pública/AT, a reclamar os créditos da Recorrente, objeto de processo de execução fiscal, estes teriam o tratamento previsto no Plano para os créditos da AT, sendo observada a regra da mencionada indisponibilidade, prevista no artigo 30.º da LGT, e as condições de pagamento previstas nos artigos 196.º e 199.º do CPPT.

AAAA. Ou seja, aplicando (na prática) a interpretação do Acórdão de que se recorre, em caso de declaração de insolvência do devedor, os mesmos créditos da Recorrente, provenientes da falta de pagamento de taxas – ou seja, os mesmos créditos tributários –, devem merecer um tratamento diferente consoante sejam reclamados diretamente pela ANACOM ou pelo Ministério Público (quando se encontrem em fase de cobrança coerciva) – interpretação que, salvo o devido respeito, não é admissível, por não ser consentida por lei.

BBBB. Note-se que ao que antecede acresce o facto (ou “agravante”) de, tanto a AT, como a Recorrente, integrarem a Administração Tributária, para efeitos de cobrança de tributos;

CCCC. Não existindo qualquer fundamento que justifique um tratamento desigual dos mesmos créditos em função da entidade que apresenta o requerimento de reclamação ou de impugnação de créditos.

DDDD. Aquela interpretação apenas pode merecer um juízo de censura, por violadora do princípio da igualdade e por ser incompatível com as regras (especiais) previstas, neste âmbito, na LGT e no CPPT (já sobejamente referidas).

EEEE. Perante o exposto, mais não resta a esse STJ senão dar provimento ao presente recurso – o que se REQUER.

Termina dizendo que deve ser recusada a homologação do plano de insolvência apresentado pela Insolvente, ou, no limite, ser declarada a ineficácia (não oponibilidade) do plano relativamente aos créditos da ora Recorrente.

+

Não se mostra oferecida qualquer contra-alegação.

+

Por despacho do relator, transitado em julgado (uma vez que não foi suscitada qualquer reclamação para a conferência), foi julgado inadmissível e rejeitado o recurso na parte relativa ao crédito por coimas e custas processuais, de sorte que não há que conhecer do seu objeto nessa estrita parte.

+

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

+

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

+

É questão a conhecer:

- Recusa da homologação do plano de liquidação ou, pelo menos, declaração da sua ineficácia relativamente ao crédito da ANACOM (por taxas em dívida e inerentes juros).

+

III - FUNDAMENTAÇÃO

Plano factual

Dão-se aqui por reproduzidas as incidências factuais acima (no relatório) descritas.

Plano jurídico

Está em questão saber se havia de ter sido recusada a homologação do plano de insolvência (na modalidade de plano de liquidação) que foi apresentado pela Insolvente, ou, pelo menos, se havia de ter sido declarada a sua ineficácia (não oponibilidade) relativamente ao crédito da ANACOM por taxas em dívida e juros.

As instâncias entenderam que não, embora à luz de fundamentos não coincidentes.

Diferente é, porém, o posicionamento da Recorrente, ANACOM.

Vejamos.

Nos termos dos respetivos estatutos (aprovados pelo Decreto-Lei n.º 39/2015, de 16 de março) a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) é uma pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente[1], que tem como missão a regulação do setor das comunicações, incluindo as comunicações postais (art. 1º).

A ANACOM cobra taxas às empresas e outras entidades sujeitas aos seus poderes de regulação, bem como às empresas e outras entidades destinatárias da sua atividade e dos seus serviços. A cobrança coerciva das taxas cuja obrigação de pagamento esteja estabelecida na lei segue o processo de execução fiscal, regulado pelo Código do Procedimento e de Processo Tributário, sendo os créditos da ANACOM equiparados a créditos do Estado (art. 37.º).

Por seu turno, a Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto (sucessivamente alterada), que aprova a lei-quadro das entidades reguladoras (estabelece os princípios e as normas por que se regem as entidades administrativas com funções de regulação), estabelece que as entidades reguladoras são pessoas coletivas de direito público, com a natureza de entidades administrativas independentes, e reconhece como entidade reguladora a Autoridade Nacional de Comunicações (então designada por ICP - ANACOM). Às entidades reguladoras compete, e entre o mais, fixar ou colaborar na fixação de taxas (art.s 1.º, 2.º, 3.º e 40.º do respetivo Anexo).

Nos termos da Lei n.º 17/2012, de 26 de abril (sucessivamente alterada), que estabelece o regime jurídico aplicável à prestação de serviços postais, a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) é a autoridade competente para desempenhar as funções de regulação, supervisão e fiscalização no setor dos serviços postais, cabendo-lhe, e entre o mais, a emissão de licenças individuais para a prestação de serviços postais (art. 8.º). Estão sujeitos ao pagamento de taxa, e nomeadamente, a emissão, alteração e renovação da licença. Todos os prestadores de serviços postais estão sujeitos ao pagamento de taxas anuais pelo exercício da atividade, tendo por base os custos decorrentes da regulação, supervisão e fiscalização das suas atividades, cujo produto constitui receita da ANACOM (art. 44.º).

Nos termos da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (sucessivamente alterada), integram a administração tributária, e entre outras, as entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos. Por sua vez, os tributos compreendem, entre outros, as taxas, assentando estas, e nomeadamente, na prestação concreta de um serviço público e na utilização de um bem do domínio público (art.s 1.º, 3.º e 4.º). O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária, o que prevalece sobre qualquer legislação especial (art. 30.º).

Perante este conjunto normativo resulta que a Credora ANACOM, pessoa coletiva de direito público, é uma entidade ou organismo que realiza uma atividade que é formal e materialmente administrativa e que os seus créditos por taxas, nomeadamente no âmbito do setor da prestação de serviços postais, constitui um crédito tributário. Nesse estrito domínio a ANACOM integra a administração tributária, estando por isso os seus créditos submetidos ao referido princípio da indisponibilidade.

Sendo assim, como é, não podia o plano de liquidação - e à semelhança do que sucedeu com os créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Instituto da Segurança Social IP - ter sido homologado relativamente ao crédito da ANACOM emergente de taxa devida pela Insolvente e juros respetivos. Estamos aqui perante um crédito indisponível que, porém, foi alvo de autorregulação quer quanto ao montante (perdão integral de certos juros) quer quanto ao vencimento (pagamento faseado em 28 prestações trimestrais) que não foi objeto de prévia aceitação por parte da Credora nem está coberta por qualquer norma legal (nomeadamente a do art. 196.º do CPPT, que aliás se reporta a dívida por impostos, e não é o caso; cfr também os art.s 85. e 148.º, n.º 1º do mesmo CPPT e o art. 37.º dos Estatutos da ANACOM).

Neste tipo de situação, e conforme linha de orientação pacífica no Supremo Tribunal de Justiça (assim, e entre muitos outros, os acórdãos de 18 de fevereiro de 2014, processo n.º 1786/12.5TBTNV.C2.S1; de 17 de abril de 2018, processo n.º 5781/16.7T8VIS-D.C1.S1; de 24 de março de 2015, processo n.º 664/10.7TYVNG.P1.S1; de 9 de junho de 2021, processo n.º 1412/20.9T8VNF.G1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt), é o plano, sem prejuízo de poder ser homologado e produzir efeitos quanto aos demais créditos, ineficaz relativamente ao credor titular do crédito indisponível.

Pelo exposto, deverá proceder o presente recurso, ainda que apenas na dimensão pretendida subsidiariamente: declaração de ineficácia do plano homologado relativamente ao crédito da ANACOM (por taxa e juros). Já quanto à pretendida recusa de homologação do plano, suscitada por via principal, não pode ser dada procedência ao recurso, precisamente porque o efeito a que conduz a indisponibilidade do crédito tributário é o da ineficácia relativa e não o da recusa da homologação (no quadro do art. 216.º do CIRE) do plano (que é eficaz quanto ao mais).

Observe-se, a propósito, que a circunstância de estarmos aqui perante um crédito de natureza comum (e não privilegiado) nada tem de relevante, na medida em que a indisponibilidade do crédito tributário vale por si mesma, nada tem a ver com a sua natureza ou titularidade (basta até ver que o privilégio creditório tem por base a causa do crédito – art. 733.º do CCivil - e não a pessoa do credor).

Entretanto, o acórdão recorrido coloca alguma essencialidade no facto de o crédito da ANACOM - e contrariamente ao que sucedia com os créditos do Estado - não gozar de qualquer privilégio creditório. A Recorrente entende que nem por isso o acórdão podia ter decidido como decidiu.

É verdade que o crédito da ANACOM não goza de qualquer privilégio creditório. Sobre isto nem sequer importa estar-se aqui com melhor demonstração, visto que se trata de temática que sai fora do objeto do presente recurso (em sítio algum a Recorrente sustenta o contrário, pese embora - e neste capítulo temos alguma dificuldade em entender o que se afirma nas conclusões MM. e NN. - ter chegado a defender o contrário: cfr. os pontos 21 e 22 do requerimento que apresentou a suscitar a recusa da homologação do plano de liquidação). Contudo, repete-se, essa circunstância (inexistência de privilégio creditório) nada tem de relevante, na medida em que uma coisa é a indisponibilidade do crédito (com a ineficácia que lhe está associada), outra coisa é a natureza do crédito. Privilegiado ou não o crédito aqui em causa, sempre se imporia considerar ineficaz o plano de liquidação relativamente ao mesmo.

Procede pois o recurso, não sendo de manter o que foi decidido pelo acórdão recorrido (e sentença da 1ª instância) quanto ao crédito aqui em causa da ANACOM.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido (com a sucedânea revogação da sentença da 1ª instância) na parte aqui impugnada, declarando ineficaz o plano de liquidação relativamente ao crédito da ANACOM por taxas e juros respetivos.

Regime de custas:

Custas da 1ª instância, da apelação e da revista a cargo da massa insolvente.

+

Lisboa, 6 de setembro de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

                                                           ++

Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

_____________________________________________________


[1] Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias (Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 4ª ed., pp. 78 e 79) explicam: “A Administração independente é constituída por organismos criados pelo Estado, para realizarem tarefas administrativas que lhe competem (como a administração indireta) mas que o mesmo Estado isenta de subordinação e controlo (como se se tratasse de administração autónoma). (…) Também se podem considerar entidades independentes as que detêm poderes reguladores (…)”. Mais observam que para alguma doutrina estas entidades integram-se na Administração estadual indireta (administrações indiretas independentes).
Francisco Ferreira de Almeida (Direito Administrativo, pp. 97 e 98) também explica que «A administração independente é constituída por organismos criados pelo Estado, com vista à realização de tarefas administrativas que lhe competem (tal como sucede na administração estadual indirecta), mas que lhe não estão subordinadas nem sujeitas ao seu controlo (à semelhança do que ocorre com a administração autónoma) (Vital Moreira). (…) Num sentido mais amplo, integram a administração independente as demais entidades reguladoras, que alguma doutrina identifica com as “autoridades administrativas independentes”, previstas no n.º 3 do art. 267.º da CRP.»