Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A4034
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ANTERIORIDADE DO CRÉDITO
CONSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
VENCIMENTO
PLURALIDADE DE CRÉDITOS
LIVRANÇA
Nº do Documento: SJ20071213040346
Data do Acordão: 12/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
IO crédito resultante da assinatura de uma livrança constitui-se na data da respectiva emissão e não na do vencimento desta .
II – Se o credor dispuser de vários créditos que pretenda acautelar, por via da impugnação pauliana, basta provar os montantes e anterioridade de alguns deles relativamente ao acto que deseja ver anulado, e não todos eles .
III – Não é necessário que o crédito já se encontre vencido para que o credor possa reagir contra os actos de impugnação da garantia patrimonial anteriores ao vencimento, contanto que a constituição do crédito seja anterior ao acto .
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :



O Banco AA, S.A., instaurou contra BB, CC e DD a presente acção de impugnação pauliana, pedindo se declare a ineficácia, em relação ao autor, da transmissão de dois terços indivisos da fracção autónoma correspondente ao rés do chão esquerdo do prédio sito na Rua ..., nº0, Charneca da Caparica .
Alega, para tanto, ser credor do 1º réu, em virtude de aval por este prestado em duas livranças subscritas em 23- 11-95 e 19-8-98, vencidas e não pagas .
Por escritura de 22-7-98, o 1º réu e sua mulher doaram aos 2º e 3º réus aquela fracção autónoma, na proporção de duas terças partes que lhe pertenciam.
Desse acto resultou a impossibilidade do autor se pagar do seu crédito.
Os réus contestaram, no sentido de serem absolvidos.
Dizem, em síntese, que o crédito do autor não foi constituído em data anterior ao acto impugnado, que o 1º réu não agiu com intenção de furtar o património a garantir o cumprimento das suas obrigações e que não desapareceram as garantias patrimoniais do crédito do autor.

Houve réplica.

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No saneador, o Ex.mo Juiz conheceu do mérito da causa e declarou a ineficácia da transmissão, em relação ao autor, da nua propriedade de duas terças partes indivisas da fracção autónoma A, constituído pelo rés do chão esquerdo, do prédio urbano sito na Rua do ...., nº0, Charneca da Caparica, descrito na 2º Conservatória do Registo predial de Almada sob o nº 1433, e que ao autor assiste o direito de obter a satisfação integral do seu crédito à custa daquelas duas terças partes indivisas da identificada fracção autónoma que foram do 1º réu .
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Apelou o réu BB, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 17–5-07, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida .
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Continuando inconformado, o réu BB pede revista, pugnando pela revogação do Acórdão recorrido, onde resumidamente conclui :
1 – Não se verificam os pressupostos objectivos e subjectivos da impugnação pauliana, designadamente o pressuposto da anterioridade do crédito da autora em relação à outorga do contrato de doação, nem a intenção deste, nem dos donatários nessa outorga, de impedir a realização do direito de crédito do Banco autor .
2 – Se é certo que a partir do momento em que o subscritor da livrança a entrega a outrem, fica o primeiro vinculado àquela convenção, sem que possa impedir o exercício pelo segundo do seu direito potestativo de dela extrair plenamente os concernentes efeitos jurídicos, tal não implica que o direito de crédito cambiário se constitua no momento da emissão das livranças, principalmente em situações como a que está aqui em análise .
3- Com efeito, no caso vertente, a emissão das livranças, com o fim restrito de garantia, ocorreu em momento em que o Banco autor não dispunha de qualquer direito de crédito contra a subscritora, e a capacidade de disposição dos títulos de garantia ficou dependente do incumprimento por ela do contrato de concessão de crédito que estava em curso de formação .
4 – As obrigações cambiárias, quer da subscritora “EE, L.da”, quer do recorrente, no que concerne às livranças, só surgiram no momento do respectivo vencimento, respectivamente, em 19-11-98 e 29-12-98, sendo posteriores à escritura de doação protagonizada em 22-7-98.

Não houve contra-alegações .

Corridos os vistos, cumpre decidir :

A Relação considerou provados os factos seguintes :

1- O réu BB deu o seu aval a duas livranças, ambas subscritas por EE, Sociedade de Construções, L.da, sendo uma emitida em 23-11-95, no valor de 15.413.511$00, e outra em 19-8-98, no valor de 4.040.926$00, com vencimento, respectivamente, em 19-11-98 e 29-12-98, que não foram pagas .

2 – Mediante escritura de doação de 22-7-98, o réu BB e mulher Maria Luísa, doaram aos 2º e 3º réus, em comum e partes iguais, com reserva para eles, doadores, do usufruto simultâneo e sucessivo, a nua propriedade da fracção autónoma, designada pela letra A, que faz parte do prédio urbano sito na Rua ..., nº0, Charneca da Caparica, concelho de Almada.

3 – A fracção autónoma doada pertencia ao réu BB, na proporção de duas terças partes .

3 – Em 17-6-99, o autor instaurou contra o réu BB e Outros acção executiva para haver o pagamento da quantia de 19.889.851$00, servindo de títulos executivos as livranças referidas em 1.

4 – Nessa execução não foi possível a penhora de bens do réu BB, conforme certidão de fls 138 a 142.

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A questão fulcral a decidir consiste em saber se existe anterioridade do crédito em relação ao contrato de doação .

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Não sofre dúvida que só os titulares de créditos anteriores ao acto impugnado se podem considerar lesados com a sua prática, porque só eles podiam legitimamente contar com os bens saídos do património do devedor como valores integrantes da garantia patrimonial do seu crédito – art. 610, do Cód. Civil .
Causaria grande perturbação no comércio jurídico se os negócios pudessem ser impugnados em resultado de dívidas posteriormente contraídas.
No Acórdão recorrido, foi considerado que “ foi no momento da assinatura das livranças pelos avalistas que estes se obrigaram a pagar, em regime de solidariedade com a subscritora, a quantia inscrita na livrança, na data do respectivo vencimento . Foi, por isso, nesse momento que o Banco, independentemente do direito de crédito correspondente à relação substancial sobre a sociedade, assumiu a posição de credor relativamente aos avalistas que, a partir de então, ficaram co-responsáveis pelo pagamento da quantia inscrita na livrança “ (fls 279) .
Assim, foi julgado que, relativamente à livrança emitida em 23-11-95 e vencida em 19-11-98, no valor de 15.413.511$00, o crédito se constituiu em data anterior à doação titulada pela escritura de 22-7-98.
E que, se o credor dispuser de vários créditos que pretenda acautelar, por via da impugnação pauliana, basta provar os montantes e a anterioridade de alguns deles relativamente ao acto que pretende ver anulado e não necessariamente de todos eles .
Além de que não é necessário que o crédito já se encontre vencido para que o credor possa reagir contra os actos de impugnação da garantia patrimonial anteriores ao vencimento, contanto que a constituição do crédito seja anterior ao acto ( Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ª ed., pág. 448, nota 1) .

Ora, o acórdão impugnado decidiu correctamente as questões postas, com ampla fundamentação de facto e de direito, apoiado em citação de diversa jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, de aplicação pertinente ao caso .
Na presente revista, o recorrente limita-se a repetir as alegações e conclusões que já apresentou no recurso de apelação, sem algo lhes acrescentar de novo .
Consequentemente, como o Acórdão recorrido se encontra devidamente fundamentado e estruturado, só resta confirmar a decisão impugnada, pela fundamentação que dele consta, com que se concorda e a que se adere .
Com efeito, há que atender ao momento da constituição do crédito e não ao do seu vencimento .
Ora, o crédito resultante do aval constante da livrança emitida em 23-11-95 constituiu-se no momento da emissão dessa livrança, pois, como se decidiu no Acórdão do S.T.J. de 22-6-04 ( www.dgsi.pt.jstj) “é, pelo menos, então que a prestação na relação subjacente é posta à disposição do devedor o que, quando levado á relação cartular, significa que a obrigação cambiariamente nasce e fica constituída e que a responsabilidade do subscritor pelo respectivo pagamento, na data do vencimento, fica estabelecida com e pelo acto de subscrição da livrança (arts 75-I, 78 -1 e 28 - I da LULL) “.
Não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível, por o vencimento dessa livrança só ocorrer em 19-11-98, ou seja, depois da outorga da escritura de doação, face ao disposto no art. 614, nº1, do C.C.
A solução aí consagrada é paralela à fixada no art. 607, do C.C., em matéria de sub-rogação .
Vaz Serra ( Responsabilidade Patrimonial, nº 49, Bol. 75), justifica a solução do nº1, do citado art. 614, escrevendo que o “direito do credor já é certo e este pode ter interesse legítimo em impugnar o acto antes de vencido o seu crédito, para impedir que os bens se percam ou se inutilizem as provas a produzir na acção “ .
Embora o crédito titulado pela livrança emitida em 19-8-98 e vencida em 29-12-98, seja posterior à doação impugnada, tal não impede a procedência da acção, pois a outra livrança emitida em 23-11-95, com vencimento em 19-11-98, só por si, é suficiente para justificar a impugnação em questão ( Ac. S.T.J. de 15-6-94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º, 142) .
E, tratando-se de um negócio gratuito de doação, a impugnação procede ainda que o devedor e o terceiro agissem de boa fé – art. 612, nº1, 2º parte, do C.C.
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Termos em que negam a revista .
Custas pelo recorrente .

Lisboa, 13 de Dezembro de 2007

Azevedo Ramos (relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira