Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
654/16.6T8ABT.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
ACIDENTE DESPORTIVO
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
INVALIDEZ
FRANQUIA
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
JOGADOR DE FUTEBOL
SEGURO OBRIGATÓRIO
SEGURO FACULTATIVO
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / APELAÇÃO / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Ana Brilha, O Novo Regime do Seguro Desportivo – Verdade Inovação?, Revista Jurídica do Desporto “Desporto & Direito”, Ano VI, Janeiro/Abril 2009, p. 293 e ss.;
- José Vasques, In Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, p. 47.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 640.º, N.º 2, ALÍNEA B) E 662.º, N.º 1.
LEI DO CONTRATO DE SEGURO (LCS), APROVADA PELO DL N.º 72/2008, DE 16-04: - ARTIGO 175.º.
REGIME JURÍDICO DO SEGURO DESPORTIVO OBRIGATÓRIO, APROVADO PELO DL N.º 10/2009, DE 12-01: - ARTIGOS 16.º, ALÍNEAS A), C), D) E E) E 19.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06-04-2017, PROCESSO N.º 335/10.4TTOAZ-P1.S1;
- DE 04-10-2018, PROCESSO N.º 4575/15.1 T8BRG.G1;
- DE 09-05-2019, PROCESSO N.º 1751/14.8TBVCD.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :  
  I. O contrato de seguro desportivo obrigatório regulado no Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12-01, pelo menos nas vertentes de cobertura do risco por morte e por invalidez permanente, absoluta ou parcial, assume a natureza de um contrato de seguro de acidentes pessoais inerentes a atividade desportiva.    

 II. Nessa base, tal contrato pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória, conforme o preconizado no n.º 2 do artigo 175.º da Lei do Contrato de Seguro (LCS) aprovada pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16-04.

III. Assim, as coberturas dos montantes mínimos de capital devido por morte ou por invalidez permanente, absoluta ou parcial, estabelecidas, respetivamente, nas alíneas a), c) e d) do artigo 16.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, devem ser configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões e do grau de incapacidade fixado no caso de invalidez permanente parcial, independentemente do valor do dano efetivo.

IV. Nesses casos, atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no quadro desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados, diferenciação essa, de cariz objetivo, que se encontra bem patente no artigo 16.º, alíneas c) e d) do Dec.-Lei n.º 10/2009.

V. Não se afigura, por isso, que as exclusões previstas no artigo 6.º desse diploma devam ter um alcance tal que conduzam à obliteração dessa diferenciação legal.

VI. O artigo 19.º do Dec.-Lei n.º 10/2009 só prevê que as partes estabeleçam livremente franquias, a suportar pelo segurado, quanto às coberturas a que se referem as alíneas b) e e) do respetivo artigo 16.º, ou seja, para os casos de despesas de funeral e de despesas de tratamento e repatriamento.

VII. Estando em causa apenas a indemnização pela invalidez permanente parcial prevista na alínea d) do artigo 16.º daquele diploma, a estipulação de franquia em tal hipótese contende com as normas conjugadas desse normativo e do referido artigo 19.º, tidas por imperativas, não devendo assim ser considerada a dedução daquela franquia.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório  


1. AA (A.) intentou, em 30/11/2016, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, S.A. (R.), alegando, em resumo, o seguinte:

   . O A., jogador de futebol …, …, desde os seis anos de idade, na época de 2013/2014, encontrava-se vinculado, por contrato, à Associação Desportiva de …;

   . Em 06/04/2014, o A. interveio, como jogador sénior da União Desportiva de …, num encontro de futebol com o Grupo Desportivo de …, no âmbito do Campeonato Distrital de Futebol Sénior da 1.ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de …, no decurso do qual, numa disputa de bola, sofreu lesões graves no membro inferior esquerdo;

  .  O A. foi tratado pela R., que acabou por considerá-lo curado sem qualquer desvalorização;

. Porém, o A. continuou com marcha claudicante, a padecer dores e incapacitado para a prática desportiva, nomeadamente de futebol;

    . Em virtude disso, o A. perdeu os rendimentos que auferia, a título do contrato desportivo e com a sua atividade profissional, no valor de € 9.600,00;

    . Pelos danos morais já sofridos e pelos decorrentes de ter cessado a sua carreira de jogador de futebol, o A. deverá ser compensado no valor de € 30.000,00.

       Concluiu pedindo que a R. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 30.000,00, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, bem como a indemnização que viesse a ser apurada em função do coeficiente de incapacidade física a arbitrar.

   2. A R. BB contestou, invocando, além do mais, a sua ilegitimidade, alegando ter agido como entidade prestadora dos serviços de regularização do sinistro desportivo por conta e ordem da “CC - Companhia de Seguros, S.A..”.          

3. Seguidamente, o A. requereu a intervenção principal passiva daquela seguradora, o que foi admitido pelo despacho de fls. 86/87, tendo a Interveniente deduzido contestação, em sede de defesa por impugnação e por exceção perentória, sustentando que:

. Celebrou com a Associação de Futebol de … um contrato de seguro de grupo, no ramo “Acidentes Pessoais”, com início em 01/07/2013 e termo em 30/06/2014, tendo por objeto o risco de acidente resultante da prática desportiva desenvolvida pelas pessoas seguras, desde que em representação ou sob o patrocínio da tomadora do seguro, com a cobertura, por pessoa e acidente, de invalidez permanente pelo capital de € 27.500,00 e de despesas de tratamento pelo capital de € 7.500,00, deduzida a franquia de € 100,00;

. O referido contrato de seguro não contempla a alegada perda de rendimentos, no valor de € 9.600,00, e exclui a indemnização por danos morais;

. Por outro lado, o A. teve alta clínica sem desvalorização a 12/05/2016, não existindo assim qualquer incapacidade permanente a considerar nos termos previstos no sobredito contrato.         

Concluiu a Interveniente pela improcedência da ação e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.

4. Foi realizada audiência prévia no decurso da qual, fixado o valor da causa em € 39.600,00, foi proferido despacho saneador a julgar improcedentes as exceções de ilegitimidade suscitadas pela R. e pela Interveniente, seguindo-se os despachos de fixação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova.  

5. No decurso da audiência final, o A. desistiu do pedido quanto à R. BB, o que foi homologado pela decisão de fls. 379-380, tendo a ação prosseguido apenas contra a Interveniente “CC - Seguros”.

6. Finda a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 407-426, de 10/12/2018, a julgar a ação parcialmente procedente, condenando-se a Seguradora Interveniente a pagar ao A. a quantia total de € 27.500,00, sem prejuízo da dedução da franquia contratualmente estabelecida, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos por ele em consequência do acidente, absolvendo-se a mesma Interveniente do mais peticionado.  

7. Inconformada, a Seguradora Interveniente recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, em sede de impugnação de facto e de direito, tendo sido proferido o acórdão de fls. 479-495, datado de 11/04/2019, no qual foi decidido alterar a decisão de facto e julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão da 1.ª instância e absolvendo-se a Interveniente do pedido em que vinha condenada.   

8. Desta feita, veio o A. pedir revista para o que formulou as seguintes conclusões:

Quanto à alteração da matéria de facto:

1.ª - Tribunal “a quo”, sugestionado pelas alegações da apelante, modificou a matéria de facto indicada na alínea d) da sentença, eliminando a expressão “marcha claudicante”. De facto, no âmbito do relatório clínico e exame médico, não se indica que a marcha é claudicante.

2.ª - Suscitada que foi, em alegações, a contradição entre o que foi dado por provado e o que resulta do exame pericial, também em sede de contra-alegações, a este propósito específico foi suscitada a possibilidade e necessidade de audição da prova testemunhal, mormente dos médicos e especialistas que efetuaram no decurso do tratamento do A., a análise clínica e estiveram com o A., afim de proceder à avaliação médica.

3.ª - Só no confronto da alegação por referência a documento e a alegação por referência aos depoimentos dos próprios médicos que efetuaram a análise médica se pode concluir se existe lapso, como se acredita, no próprio exame (perícia) médico, junto aos autos, ou não, tendo, após, reflexos na possibilidade e no sentido da alteração da matéria de facto;

4.ª - A alteração da matéria dada na alínea S) dos factos provados, não pode apenas atender, em exclusividade ao que resulta do dito exame pericial sem que, por evidência, confirme de forma evidente tudo o que se provou (por documentos e prova testemunhal) por respeito ao documento, referido nos autos, mormente a sua apreciação em sede de julgamento, que mereça a “revisão” da matéria de facto. Tal não foi feito pela Relação, pondo em causa, o que ora se suscita a alteração da matéria de facto, indicada como alínea S).

5.ª - É que, como é amplamente sabido e conhecido e até mesmo verificado, notoriamente e por evidência, nas diversas sessões de audiências do Tribunal da 1.ª Instância o A. apresenta, na realidade, marcha claudicante. A presença do próprio A. como sinistrado e a forma como se desloca, quer no Tribunal, quer na sua vida quotidiana, revela-se de uma forma evidente que não tem uma marcha normal. Trata-se pois de um erro notório que o Tribunal da Relação confirmou e que, quem assistiu ao julgamento, quem lida (e vê) com o A., sabe, e não pode necessariamente desconhecer que o A. efetivamente claudica.

6.ª - O Tribunal da Relação deu, erradamente, confirmando, apenas o resultado de um exame médico, por evidente lapso, não ouvindo – seguramente - as declarações (por prova testemunhal) de médicos, nem assistiu de facto à forma como “anda” o A. … reconhecendo, seguramente, que não é uma marcha normal, mas antes claudicante.

7.ª - Daí que, conhecendo a limitação dos poderes do STJ, também não se desconhece, no âmbito do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, que este Tribunal pode efetivamente ter uma margem de intervenção que lhe permite a modificação, neste ponto em concreto da matéria de facto, porque, desde logo, se trata de um erro notório e patente verificado em concreto pela Relação e porque a alteração da matéria de facto, baseada em documento não pode olvidar, e deixar de ser comparável com declarações de médicos, por especialistas, que assistiram de forma direta à avaliação do Autor, ora sinistrado.

8.ª - Deve manter-se, pois, a matéria de facto apurada em 1.ª Instância, mormente a indicada na alínea S).

Quanto à questão de direito

9.ª - A questão em causa nos autos resume-se a saber e conhecer se, no âmbito do seguro desportivo - que o Tribunal da Relação não deixa de admitir como contrato aplicável aos autos nem tal foi posto em causa pela recorrente R. –, os danos não patrimoniais são, “in casu”, merecedores da tutela de direito;

10.ª - Entende o A. que, em conformidade com a sentença da 1.ª Instância, os danos não patrimoniais no âmbito do contrato de seguro desportivo ou em resultado de qualquer acidente desportivo estão cobertos pelo contrato de seguro, na melhor das interpretações, sendo efetivamente indemnizáveis;

11.ª - Como refere Menezes Cordeiro, o seguro de pessoas “é um desenvolvimento recente, tecido a partir do seguro de vida”, estando em causa “valores humanos de natureza não patrimonial”, especificidade que molda o conteúdo do contrato, assim se distinguindo do seguro de danos – neste último, joga-se, diversamente, “uma prestação, isto é, uma aportação patrimonial destinada a suprimir um dano”.

12.ª - E acrescenta o mesmo Autor, agora quanto aos danos morais, que, se a evolução do direito dos seguros leva a admitir já os danos morais no quadro do seguro de danos (este tradicionalmente ligado a direitos patrimoniais), com franca possibilidade de inclusão nos seguros de responsabilidade civil nos seguros de pessoas, a cobertura de tais danos é claramente de admitir, já que “aí, por definição, não há exigência de patrimonialidade”, sendo o respetivo risco segurável por comportar “um interesse digno de proteção legal”.

13.ª - Não podem os danos não patrimoniais ser ”irradiados” do contrato de seguro, porque, como por vezes é referido, não estarem textualmente indicados.

14.ª - Conforme reafirmado por jurisprudência abundante, o contrato de seguro refletido nos autos é, antes de mais, um contrato de grupo e o facto dos danos morais não terem sido individualizados, (dificilmente o seriam) nesse mesmo contrato, não poderá só por si dizer-se que se encontram excluídos. A exclusão pressupõe uma norma concreta ou uma condição particular expressamente transcrita. No seguro de grupo – sujeito ao Regime das Cláusulas Contratuais Gerais – o texto, em si do contrato, não é ajustado e negociável com o próprio praticante ou por quem contrata o seguro. De facto, como é referenciado pela jurisprudência e aplicável a qualquer seguro de acidentes pessoais, nestes casos, aplica-se o princípio “in dubio contra stipulatorum“.

15.ª - De facto, o seguro de acidentes pessoal não é de danos, mas de pessoas. Está em causa valores humanos de natureza não patrimonial e permitindo a inclusão da cobertura de risco quanto a danos não patrimoniais ou morais. Só que, quando não é permitida essa negociação prévia, redigindo o segurador o contrato de seguro, quanto ao seu âmbito de cobertura/garantia com recurso a cláusulas contratuais gerais, deve o enunciado predisposto do contrato ser interpretado, na dúvida contra a parte que o redigiu e fixou as respetivas cláusulas valendo neste âmbito o principio “in dubio contra stipulatorum“ (reforçando o que resulta do Ac. do TRC Proc.º 4285/15. 0T8CBR.C1);

16.ª - Neste sentido, pode aludir-se à equidade como critério nos termos do disposto do artigo 496.º, n.º 1, do CC, tendo por atenção todas as circunstâncias nos termos previstos neste diploma nos artigos 494.º e 496.º, n.º 4, a par da apreciação da natureza das lesões sofridas e a gravidade das suas consequências, tendo por atenção a interpretação autorizada pelas cláusulas da apólice de seguro, em face do princípio previsto no artigo 236.º do CC. Ao não conceder neste critério, o Tribunal “a quo” não considerou adequadamente a quantificação dos danos morais.

17.ª – Atentos os danos provados, o recorrente, em face da impossibilidade de praticar atividade física e mormente futebol, desporto que praticava desde os seis anos de idade, sendo jogador conhecido e reconhecido, tendo em atenção que estava no auge da sua carreira, sendo expetável a prática ainda da sua atividade como futebolista, é natural, tendo em atenção quer o seu passado quer o futuro impossibilitado, que o dito atleta (ora Recorrente) seja compensado por danos morais.

18.ª - O direito, subentendendo a justiça, não pode, nem deve deixar, como sucedeu no acórdão recorrido, de reconhecer que, no caso concreto, há efetivamente danos morais. E esses danos morais não podem ser excluídos de qualquer contrato de seguro, porque tal, põe definitivamente em causa a referida justiça, e inclusive a compensação indemnizatória por qualquer atleta, impossibilitado da prática desportiva.

19.ª - Como se sabe a maior mágoa de um atleta é definitivamente deixar de praticar desporto, enquanto carreira e em atividade semi-profissional, regular e plenamente inserida na sua vida quotidiana, em virtude de acidente desportivo. O maior sofrimento é quando a lesão não é recuperável, e a enorme expetativa de continuar a carreira é efetivamente negada;

20.ª - De facto, o contrato de seguro desportivo obrigatório é um contrato de/ e sobre - pessoas, inserido nos seguros de acidentes pessoais. Tal não obsta, quando se trata de um contrato de seguro de grupo, não negociável, imposto nas suas cláusulas que não seja concedida a compensação a título de danos morais aplicando-se o critério geral da equidade previsto na própria lei civil;

21.ª - Mesmo a noção de morte ou invalidez permanente total ou parcial, reconhecendo-se nestas situações os próprios reflexos a título de danos morais, não exclui, pelo contrário, indica implicitamente, que se conheça e avalie a compensação de danos de natureza não patrimonial. Ao fazer interpretação diversa, não considerou os regimes aplicáveis derivados do DL n.º 10/2009, de 12/1, além do que referia o DL n.º 146/93 de 26/4;

22.ª - Acresce que se compreenderá que no contrato de seguro desportivo, ou mesmo na própria legislação que o regula, não seja indicada qualquer situação expressa sobre danos morais, nomeadamente, em termos de cobertura, a par, e idêntico sentido das coberturas que nele já constam. É que, como se compreenderá, só poderá haver duas posições entendíveis; a primeira resultante de uma cláusula expressa, e clarificadora de não abrangência de danos morais, a segunda, a referência e instituição de um montante fixo por limite (como sucede nos limites das coberturas) a título de danos morais

23.ª- Quanto à primeira situação por evidência, não há norma expressa de não cobertura de danos morais e tal, a existir, seria atentatório - por nulidade - do Regime Geral do Seguro e dos princípios legais e constitucionais do Direito. E quanto à segunda situação, é natural, e daí até se entenda, que não haja qualquer norma expressa instituindo cobertura, em face da impossibilidade de fixar limite aos danos morais, porque avaliáveis apenas conforme as circunstâncias, “in casu”, e por recurso de facto, à equidade

24.ª - Sendo assim entende-se porque não se prevê qualquer limitação a titulo de danos morais, dado que, ou se excluíam textualmente, no texto do contrato ou na lei, ou teriam que ser fixados nos seus limites, o que tornaria tal facto, uma evidente nulidade, em face das características e natureza desses danos, em confronto com os mais elementares princípios de Direito

25.ª - Por outro lado ainda, ao contrário do indicado no acórdão recorrido, não põe em causa a CC Portugal, SA, da vigência de um contrato de seguro desportivo. Mormente, que o seguro contratualizado abrange a situação descrita nos autos, e foi contratada em nome e por conta, subsidiariamente pelo clube onde o A. tinha a sua atividade desportiva;

26.ª- Pelo que, de facto, as razões aludidas, pelo acórdão recorrido, extravasando inclusive o que lhe havia sido proposto em alegações da recorrente mormente, quando põe em causa a existência de seguro desportivo e a responsabilidade da própria entidade, sem que tal fosse suscitado, interpretou – o que merece ser com respeito, corrigido – que o A., ora recorrente, pese embora tivesse tido danos morais, os mesmos não estão abrangidos, em face da natureza do contrato pelo seguro desportivo.

Em síntese, pede o Recorrente que se revogue acórdão recorrido e se decida no sentido de:

a) - Não se ter por modificada a matéria de facto, mantendo o que foi apurado em 1.ª Instância quanto à alínea S), dos Factos Provados;

b) - Atribuir, a título de danos não patrimoniais, o valor indemnizatório e compensatório que resultou da sentença da 1.ª Instância;

c) - Ou, se assim não for entendido, serem considerados os danos sofridos pelo A., mesmo que o critério para o seu apuramento e fundamentação indicada na 1.ª Instância seja substancialmente diversa.

  9. A R. apresentou contra-alegações, rematando com o seguinte quadro conclusivo:

1.ª - O Recorrente não se conformou com o acórdão recorrido porque continua a defender que os danos não patrimoniais estão incluídos nas garantias do seguro de acidentes pessoais ajuizado.

2.ª - No âmbito do seguro obrigatório de acidente de trabalho também não estão incluídos os danos não patrimoniais.

3.ª- Os danos morais peticionados pelo A. não estão incluídos na garantia da apólice dos autos porque o contrato dos autos é um contrato de acidentes pessoais, integrável na categoria de seguro de pessoas – art.º 175.º e seguintes do RJCS – DL n.º 72/2008, de 16/04.

4.ª - Tal ramo não contempla obrigatoriamente prestações de natureza indemnizatória como o seguro de responsabilidade civil – art.º 123.º e seguintes do RJCS.

5.ª - E, tendo em conta que é invocada cláusula de exclusão, não está em causa saber se o regime legal consente na indemnização por danos não patrimoniais ou na aplicação do princípio “in dubio contra stipulatorum” mas antes saber se o regime relativo aos seguros pessoais impõe essa indemnização, contratualmente excluída.

6.ª - No seguimento do entendimento do acórdão recorrido, a cláusula de exclusão de indemnização de danos morais invocada pela Recorrida – art.º 2.1 das Condições Gerais da Apólice – não é nula pois, a prestação por parte da seguradora não assenta na responsabilidade civil mas na obrigação de atribuição de um capital seguro, o que faz toda a diferença.

7.ª - Mas, mesmo que se considere que se aplica o regime do seguro desportivo obrigatório, prevê o art.º 5.º, nº 2, do Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12/01, em termos mínimos, que seja realizado um pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva.

8.ª - Tal requisito não contende com a indemnização de danos de natureza não patrimonial, cujo fundamento jurídico é diferente.

9.ª - Uma invalidez é essencialmente uma incapacidade funcional, tal como consta da apólice e da tabela aplicada na perícia dos autos e esta expressa-se, primordialmente, num dano patrimonial, associado desde logo a uma incapacidade para o trabalho.

10.ª - Tratando-se de uma invalidez parcial, não existe norma imperativa que obrigue a seguradora a pagar a totalidade do capital que se paga em caso de morte ou invalidez total.

11.ª - Pelo exposto, a cláusula de exclusão dos danos não patrimoniais não se revela contrária ao seguro nem esvazia o seu objeto, não ocorrendo qualquer violação ao art.º 6.º do já citado diploma. Tal só ocorreria se fosse uma apólice de responsabilidade civil pois, estava a excluir um dano previsto nesse instituto jurídico.

12.ª - Assim, a apólice dos autos é integralmente válida, não contém nulidades ou outros vícios que impeçam de se aplicar todo o clausulado aos factos provados, incluindo o art.º 2.º que prevê a cobertura de Invalidez Permanente das Condições Particulares e o art.º 2.º das Condições Gerais, ponto 1 que excluí as indemnizações por danos morais;

13.ª - Ao contrário do que peticiona o A., não deve aplicar-se o art.º 496.º do CC por não estarmos perante um facto ilícito gerador de responsabilidade civil, mas antes de um acidente desportivo regulado pelo DL n.º 10/2009, de 12/01.

14.ª - Por fim, o seguro desportivo obrigatório cabe às federações desportivas e a tomadora do seguro dos autos é a associação de Futebol de … .

15.ª - Sendo assim, de acordo com o art.º 20.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12/01, no caso de eventual incumprimento de celebração e manutenção dos contratos de seguro desportivos obrigatórios, nunca a Recorrida podia ser condenada por ocorrer falta de seguro que inclua todo o âmbito da cobertura obrigatória.

16.ª - Impõe-se, assim, face ao alegado, a integral confirmação do acórdão recorrido.


Cumpre apreciar e decidir.


II – Delimitação do objeto do recurso


Atento o teor das conclusões do Recorrente em função do qual se impõe delimitar o objeto da presente revista, as questões a resolver são as seguintes:

i) – Em primeiro lugar, a questão de saber se devem ou não ser mantidos os segmentos de facto dados por provados pela 1.ª Instância nas alíneas S) e AN) e que foram objeto de alteração por parte da Relação;   

ii) – Independentemente da solução a dar a essa questão, saber se assiste ao A. o direito a ser indemnizado pelos danos emergentes do acidente desportivo que sofreu em 06/04/2014, a coberto do contrato de seguro desportivo celebrado entre a Interveniente, ora Recorrida, e a Associação de Futebol de …, constante da apólice n.º 20…1 com início em 01/07/2013 e termo em 30/06/ 2014, pelo capital garantido de € 27.500,00, a título de danos não patrimoniais ou, subsidiariamente, segundo critério ou fundamentação diversos dos adotados pela 1.ª instância.


III – Fundamentação


1. Factualidade dada como provada


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. O Autor (A.) nasceu no dia …/09/1978 – alínea A) dos factos provados pelas instâncias;  

1.2. O A. foi praticante de futebol …, como jogador federado, desde os seis anos de idade – alínea B);

1.3. Iniciou-se no … de …, tendo efetuado, como jogador, todos os escalões de prática, até sénior – alínea C)

1.4. Sem qualquer interrupção, jogou futebol por várias equipas, sendo reconhecido por jogadores, treinadores e clubes – alínea D)

1.5. Era um jogador titular das equipas onde jogava e era capitão de equipa – alínea E)

1.6. Foi selecionado, durante vários anos, para a seleção distrital de …, por ser um dos melhores jogadores do Distrito de … – alínea F)

1.7. A carreira de futebolista do A. consolidou-se, ao longo do tempo, tendo o mesmo a expetativa de ingressar em outros clubes – alínea G

1.8. Na época 2013/2014, o A. encontrava-se a representar a Associação Desportiva de …, como jogador de futebol sénior, desempenhando as funções de capitão de equipa, sendo um jogador titular – alínea H);

1.9. Encontrava-se a representar esse clube, desde o ano de 2005 – alínea I)

1.10. No dia 6/4/2014, durante o jogo de futebol do Campeonato Distrital de Futebol Sénior da 1.ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de …, disputado entre a Associação Desportiva de … e o Grupo Desportivo de …, no Campo DD, em …, o A. lesionou-se, com gravidade, enquanto disputava uma bola – alínea J)

1.11. Tendo abandonado, de imediato, o recinto do jogo e sido transportado à Urgência do Centro Hospitalar do …, Unidade de … – alínea K); .

1.12. O A. sofreu uma luxação tíbio társica esquerda e uma luxação do tornozelo da perna esquerda, bem como uma lesão parcial dos ligamentos e do perónio astragalino anterior, perónio calcâneo e ligamento Deltoideu – alínea L);

1.13. Iniciou, então, tratamento através de rede de assistência médica da R. – alínea M);  

1.14. Andou com o pé engessado, aproximadamente durante 30 dias – alínea N);

1.15. Após os exames, designadamente as radiografias e ecografias, foi ponderada a possibilidade de operação, em face das lesões sofridas – alínea O);  

1.16. Os serviços médicos da R. optaram, antes, por engessar a perna do A., sem promoverem qualquer operação – alínea P);  

1.17. Posteriormente, o A. acabou por ser intervencionado cirurgicamente, por duas vezes, em Lisboa, cerca de um ano após se ter lesionado no referido jogo de futebol, após ter efetuado várias consultas médicas e ter sido sujeito a tratamentos médicos – alínea Q);  

1.18. Após as operações, o que já tinha também sucedido antes, o A. locomoveu-se com o apoio de canadianas, durante um período de tempo não concretamente apurado – alínea R);  

1.19. Atualmente, mesmo locomovendo-se sem o apoio de canadianas, o A. tem dores – alínea S) alterada pela Relação;  

1.20. Desde a data do acidente, o A. está praticamente impedido de praticar desporto, em face das limitações físicas resultantes das lesões sofridas – alínea T);  

1.21. A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo A. em consequência do acidente dos autos, é fixável em 1/2/2017 – alínea U);  

1.22. O A. teve um período de défice temporário total, fixável em 2 dias – alínea V);

1.23. O A. teve um período de défice funcional temporário parcial fixável em 1032 dias – alínea W);

1.24. O A. teve um período de repercussão temporária na atividade profissional total fixável em 1034 dias – alínea X);  

1.25. O quantum doloris do A. é de 6 graus em 7 – alínea Y);

1.26. O dano estético permanente do A. é de 2 graus em 7 – alínea Z);

1.27. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do A. é fixável em 8 pontos, pela Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil – alínea AA);  

1.28. As sequelas do acidente, em termos de repercussão permanente na atividade profissional do A., são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas importam esforços suplementares – alínea AB);  

1.29. A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer do A. é fixável é de 6 graus em 7 – alínea AC);

1.30. A R. «BB» não é uma companhia de seguros, tendo por objeto a prestação de serviços, gestão, Assistência e consultadoria a pessoas e bens, no ramo de qualquer sinistro, bem como a gestão de quadros clínicos e outros e a prestação de serviços médicos e outros – alínea AD);  

1.31. A R. «BB» é a entidade prestadora de serviços de regularização dos sinistros desportivos, por conta e ordem da «CC - Companhia de Seguros, S.A.» – alínea AE);  

1.32. Entre a Interveniente e a Associação de Futebol de …, como tomadora, foi celebrado um contrato de seguro do ramo «acidentes pessoais grupo», titulado pela apólice n.º 20…1, com início às 00h00 do dia 01/07/2013 e termo às 24h00 do dia 30/06/2014 – alínea AF);  

1.33. Este seguro teve por objeto a garantia do risco de acidente resultante da prática desportiva, ou da prática de outras atividades culturais e recreativas, desenvolvida pelas pessoas seguras, entre as quais o A., em qualquer parte do mundo, desde que em representação ou sob o patrocínio do tomador do seguro, em competição ou atuação, treino ou ensaio, estágio ou preparação, bem como das deslocações para e dos locais onde são exercidas as atividades referidas – alínea AG);  

1.34. O seguro cobre a invalidez permanente por acidente, com capital para cada pessoa segura, até € 27.500,00, e despesas de tratamento por acidente, com capital de € 7.500,00, com franquia de € 100,00, por pessoa – alínea AH);  

1.35. No âmbito dos tratamentos e assistência médica prestada pela R. ao A., relativamente ao sinistro dos autos, a Interveniente gastou a quantia de € 5.840,00 – alínea AI);  

1.36. No âmbito dos tratamentos e assistência médica prestada pela R., ao A., relativamente ao sinistro dos autos, os serviços clínicos da R. concluíram pela falta de necessidade de internamento e de cirurgia, tendo sido prescrita a realização de sessões de fisioterapia ao Autor, às quais o mesmo se submeteu, inicialmente em número de 15; posteriormente 70, porque existiram complicações na evolução do tratamento das lesões e, posteriormente, 80 sessões, após a realização de artroscopia – alínea AJ);

1.37. Após avaliação médica, pelos serviços clínicos da R., o A. teve alta clínica, sem desvalorização no dia 12/5/2016 – alínea AK);

1.38. O A. não concordou com a data desta alta, uma vez que continuava com dores e marcha claudicante, o que ainda hoje acontecealínea AL);  

1.39. Em resultado das lesões sofridas no acidente, o A. deixou de receber a quantia mensal de € 350,00 que recebia da Associação Desportiva de …, enquanto prestador de serviços – alínea AM);

1.40. O A., ao longo de todo o processo de tratamentos, ficou perturbado e ansioso, sobretudo pelo facto de não poder continuar a praticar desporto, face às dores que ainda hoje apresenta, tendo tido várias consultas de psicologia – alínea AN, conforme o alterado pela Relação;  

1.41. No âmbito do contrato de seguro estão excluídas quaisquer indemnizações por danos morais – alínea AO);  

1.42. No âmbito do mesmo contrato, quanto à invalidez permanente por acidente, a mesma surge, contratualmente prevista, como sendo a situação irreversível resultante da perda anatómica ou impotência funcional de membros ou órgãos, suscetível de constatação médica objetiva, sobrevinda em consequência de lesões corporais produzidas por um acidente coberto pelo presente contrato, sendo que o capital seguro, a este título, é de € 27.500,00 por pessoa – alínea AP.

Em extensão do facto constante do ponto 1.32, ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, aplicável por via da sucessiva remissão dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC, considera-se ainda assente que:

1.43. Das “Condições Particulares” do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 202204771 consta a alínea f) do artigo 1.º com o seguinte teor:

«O seguro de Acidentes Pessoais de Agentes Desportivos é obrigatório nos termos da legislação em vigor. As Coberturas deste seguro serão, no mínimo, as estabelecidas como obrigatórias na legislação, respeitando os capitais seguros mínimos, os valores igualmente fixados na Lei. Estes valores serão atualizados, em Janeiro de cada ano, de acordo com o índice de preços do consumidor do ano anterior, publicado pelo INE.»

1.44. Do artigo 2.º das mesmas “Condições Particulares”, sob a epígrafe coberturas, no parágrafo respeitante a Invalidez Permanente por Acidente, consta o seguinte:

«c) – Em caso de Invalidez Permanente clinicamente constatada, na condição de que se comprove que a mesmo foi consequência direta de Acidente coberto pela Apólice, a CC Portugal pagará a parte de capital da cobertura correspondente ao grau de desvalorização resultante do Acidente.

e) – A atribuição do grau de desvalorização, efetuada de acordo com a Tabela Nacional para Avaliação de incapacidades Permanentes em Direito Civil, pressupõe a alta ou cura clínica da Pessoa Segura, ou seja, a situação em que as lesões resultantes do acidente se apresentam como insuscetíveis de modificação com terapêutica adequada.

f) – As lesões não enumeradas na tabela de avaliação de incapacidades referida na alínea anterior, mesmo que de importância menor, são indemnizadas em proporção da sua gravidade comparada com a dos casos enumerados, sem ter em conta a profissão exercida pela pessoa sinistrada.»


2. Do mérito da revista


2.1. Quanto à questão da alteração da decisão de facto


Começou o A. aqui Recorrente por impugnar a alteração introduzida pela Relação ao facto dado como provado na alínea S) da sentença da 1.ª Instância, suprimindo dele o segmento final em que se afirmava que o A. “coxeia”, considerando não provada esta vicissitude.

Argumenta o Recorrente que a Relação, para tanto, se ateve apenas ao resultado dum exame médico sem que tivesse auditado a prova testemunhal (de médicos) nem assistido à forma como “anda” o A., de que decorria a prova daquele facto.

Como é sabido, em face do preceituado no artigo 674.º, n.º 3, do CPC, a contrario sensu, não cabe a este tribunal de revista sindicar o erro na apreciação da prova livre, que no caso foi feita, podendo apenas debruçar-se sobre a ilicitude ou irregularidade processual do uso dos poderes da Relação nesse âmbito, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo.

Significa isto que compete aqui somente ajuizar se a Relação, ao proceder à referida modificação da decisão de facto da 1.ª instância, agiu em conformidade com os limites e alcance do seu poder de cognição nessa matéria, em especial, à luz do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC.


Vejamos.


No que aqui releva, a 1.ª instância deu como provado o seguinte:

«S) – Actualmente, mesmo locomovendo-se sem o apoio de canadianas, o Autor ainda coxeia e tem dores.

AN) – O Autor, ao longo de todo o processo de tratamentos, ficou perturbado e ansioso, sobretudo pelo facto de não poder continuar a praticar desporto, face às dores e marcha claudicante que ainda hoje apresenta, tendo tido várias consultas de psicologia.»

     Na motivação da decisão de facto, foi consignado, nesse particular, o seguinte:

 «O teor deste relatório médico legal, conjugado com toda a documentação médica e clínica que consta dos autos, junta com os articulados das partes, evidencia o seguinte:

a) o Autor não ficou curado, conforme o determinaram os serviços clínicos da Ré, segundo os quais o Autor teve alta clínica, sem desvalorização no dia 12/5/2016. A consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor apenas foi fixável foi fixável no dia 1/2/2017 (quase um ano depois) e o Autor apresenta sequelas (O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do Autor, é fixável em 8 pontos, pela Tabela de Avaliação e Incapacidades Permanentes em Direito Civil; as sequelas do acidente, em termos de repercussão permanente na actividade profissional do Autor, são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas importam esforços suplementares e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer do Autor, é fixável é de 6 graus em 7 ).

Por isso, o Autor não está curado, ele ainda tem dores e coxeia;

b) - Tal não significa, necessariamente, que os serviços clínicos da Ré tenham trabalhado mal. Como referiu a testemunha EE, médico ortopedista, o qual referiu ter observado o Autor, ao longo do processo terapêutico: «as lesões não são matemática», «cada doente reage à sua maneira». Ou seja, apesar de todos os tratamentos efectuados, as lesões do Autor não ficaram curadas, existem sequelas, o que se pode dever ao próprio organismo do Autor, que reagiu de uma determinada maneira às lesões e à sua terapêutica ou processo curativo. Perante as mesmas lesões, algumas pessoas ficam bem, outras, infelizmente, como sucedeu com o Autor, não ficam bem. Aqui, no entender do Tribunal, a responsabilidade não é de ninguém. É a própria natureza do organismo humano, que ninguém sabe, à partida, como vai reagir ao tratamento. Podia sempre dizer-se que era possível fazer mais, mas em todas as actividades da vida é sempre possível fazer-se mais. No entanto, do ponto de vista médico, não pode dizer-se, com a devida segurança, que existiram más práticas ou práticas insuficientes. A percepção que o Tribunal teve e que se retira do conjunto de todos os documentos médicos, clínicos e do relatório médico-legal, é que as lesões do Autor evoluíram de uma determinada maneira, que não era a desejada, mas que seria sempre possível. Há sempre um risco na evolução de qualquer tratamento médico ou terapêutico, nunca pode existir a garantia absoluta de cura, nem essa garantia, no nosso entendimento, pode ser dada ao paciente;

(…)

- quanto à descrição de todos os tratamentos médicos e clínicos a que o Autor foi sujeito, foi igualmente tido em conta o depoimento dos médicos FF, EE; GG e HH, que participaram ao longo de todo o processo terapêutico, embora em fases diferentes, tendo cada uma destas testemunhas descrito os actos que praticou e qual a situação física do Autor em todos esses momentos;

- quanto às repercussões das lesões e do tratamento na saúde psíquica do Autor, o Tribunal teve em consideração o depoimento da testemunha II, psicóloga, que observou o Autor em consultas de psicologia e que descreveu o estado de saúde psíquico do mesmo»

    Desta motivação não se colhe a indicação dum meio de prova pessoal concreto nem de qualquer perceção específica de imediação, por parte do tribunal, em que assente o juízo probatório afirmativo de que o A. coxeia ou tenha marcha claudicante.


      Sucede que a Interveniente apelante, impugnou aquele juízo probatório, sustentando a fls. 437 que: 

«(…) o relatório pericial final datado de 5 de Junho de 2018 não evidencia qualquer situação de claudicação, como erradamente considerado. O que consta no relatório – página 6 – é que o “Examinando é dextro e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.”

      Por sua vez, o A./apelada, nas respetivas contra-alegações, limitou-se, nessa parte, a argumentar (fls. 466) o seguinte:

            «(…)

b) Quanto ao ponto (S) dos factos provados, o apuramento deste facto resulta obviamente da perceção real do Julgador, em face da presença do Autor (inclusive, da Ilustre Mandatária da Seguradora), bem como, do que resulta na sua conjugação com o que é referido nas alíneas AN) e em especial do que resulta dos factos não provados, mormente (J);

Ora, o que consta do relatório pericial, sendo certo que foi seguramente um lapso, é facilmente rebatível pelo próprio conteúdo do relatório pericial, e em especial pelas inúmeras testemunhas, inclusive médicos, que prestaram o seu depoimento. Aliás, o Julgador, como se verifica, deu como provado o que consta da alínea AL) com menção inclusive da própria sentença, onde se refere;

”por isso, o Autor não está curado, ele ainda tem dores e coxeia".

14 – Pelo que, também no que diz respeito a este ponto, por matéria exclusivamente factual, não foi sequer indicado no âmbito das alegações, prova de que realmente o Autor não claudica, melhor coxeia. (Roça aliás, o sentido de má-fé perante uma evidência verificada por todos, (arriscaria dizer, por todo o concelho...) da situação do Autor no próprio Tribunal, aquando da sua presença, que ora se pretende omitir).»

Desta argumentação depreende-se que o próprio A./apelado nem tão pouco indicou ou convocou meios concretos de prova pessoal, como lhe incumbia nos termos do artigo 640.º, n.º 2, alínea b), do CPC, de modo a contrariar aquela impugnação do apelante, limitando-se a aludir, de forma genérica, a “inúmeras testemunhas, inclusive médicos, que prestaram o seu depoimento.”

Foi perante este quadro que o tribunal a quo considerou que:

«A al. S) apresenta a seguinte redação: Atualmente, mesmo locomovendo-se sem o apoio de canadianas, o Autor ainda coxeia e tem dores.

A Recorrente pugna pela eliminação da menção de que o A coxeia. Alude, para tanto, ao relatório pericial final, onde consta que «O examinando é dextro e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.» Relatório pericial que é invocado na motivação da decisão atinente à matéria de facto, exarando-se «o Autor não está curado, ele ainda tem dores e coxeia.»

Ora, analisado tal elemento probatório, constata-se que efetivamente consta, no âmbito do exame objetivo, que «O examinando é dextro e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.» No que respeita a queixas referidas pelo examinando no item das «posturas, deslocamentos e transferências», consta «dificuldade em percorrer terrenos irregulares»; e no item «outras queixas a nível funcional» consta «manqueja quando fica a doer.» Inexiste menção de que o A apresente marcha claudicante, que coxeie na sua marcha regular.

Por via disso, a al S) dos factos provados vai alterada, passando a contemplar a seguinte redação: Atualmente, mesmo locomovendo-se sem o apoio de canadianas, o Autor tem dores.

Em face do que, conforme pretendido pela Recorrente, da al. AN) cabe retirar a menção à marcha claudicante, passando a contemplar a seguinte redação: O Autor, ao longo de todo o processo de tratamentos, ficou perturbado e ansioso, sobretudo pelo facto de não poder continuar a praticar desporto, face às dores que ainda hoje apresenta, tendo tido várias consultas de psicologia.»

     Em suma, no quadro da motivação da decisão de facto dada pela 1.ª instância acima transcrita e perante a falta de convocação de concretos meios de prova pessoal e de qualquer justificação objetiva para a respetiva audição, por parte do A./apelado, não se afigura que incumbisse, sem mais, ao tribunal a quo empreender, oficiosamente, qualquer outra indagação probatória, nos termos dos artigos 640.º, n.º 2, alínea b), e 662.º, n.º 1, do CPC, para decidir, como decidiu, alterar os pontos S) e AN) do factos dados como provados pela 1.ª instância, tendo como não provado que “o A. coxeia ou apresente marcha claudicante”, com o que também se deve ter por suprimida a parte final do enunciado constante da alínea AL), ao referir marcha claudicante, o que ainda hoje acontece.

    Termos em que improcedem, nesta parte, as razões do A./ Recorrente.


2.2. Quanto à questão do direito à indemnização pretendida pelo A.


Como já acima se deixou enunciado, a questão que, neste capítulo, se coloca é a de saber se assiste ao A. o direito a ser indemnizado pelos danos emergentes do acidente em atividade desportiva que sofreu em …/04/2014, seja a título de danos não patrimoniais ou a título diverso, a coberto do contrato de seguro desportivo celebrado entre a Interveniente, ora Recorrida, e a Associação de Futebol de …, titulado pela apólice n.º 20…1, com início em 01/07/2013 e termo em 30/06/ 2014, pelo capital garantido de € 27.500,00.

Tomando, pois, por quadro referencial o contrato de seguro desportivo obrigatório, para uma melhor compreensão da sua teleologia, convém traçar uma breve panorâmica da evolução legislativa da respetiva institucionalização no nosso ordenamento jurídico.     

Assim, alguns anos depois de o Dec.-Lei n.º 205/83, de 21-05, ter autorizado o então Ministro da Qualidade de Vida a celebrar com o Instituto de Seguros de Portugal, ou com uma companhia de seguros por este indicada, um contrato instituindo o seguro do desportista amador sem carácter de obrigatoriedade, sobreveio o Dec.-Lei n.º 162/87, de 08/04, a revogar aquele diploma e a tornar obrigatório, nos termos do seu artigo 1.º, o seguro desportivo para todas as pessoas que, como amadores, se inscrevessem nas federações ou associações desportivas para efeitos de participação desportiva, salvo nos casos de modalidades que o não justificassem. E, segundo o respetivo artigo 2.º, o seguro do desportista amador deveria ser concretizado mediante contrato a celebrar entre o Instituto Nacional do Fomento do Desporto e o Instituto de Seguros de Portugal ou entidade seguradora por este indicada. 

Seguidamente, a Lei n.º 1/90, de 13-01, designada por “Lei de Bases do Sistema Desportivo”, veio estabelecer o quadro geral do sistema desportivo, cujo artigo 16.º, sob a epígrafe seguro desportivo e segurança social, assegurava “a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório dos praticantes desportivos enquadrados na prática desportiva formal” com o objetivo de cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos, protegendo em termos especiais o praticante desportivo de alta competição (n.º 1), mas abrangendo também, outras categorias de agentes desportivos cuja atividade comportasse situações especiais de risco (n.º 2).

No desenvolvimento desse regime jurídico, foi promulgado o Dec.-Lei n.º 146/93, de 26-04, que, revogando o Dec.-Lei n.º 162/87, de 08/04, veio regular o seguro desportivo obrigatório.

No âmbito deste diploma, foi definido como objeto daquele contrato a cobertura dos “riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva, incluindo os decorrentes de transporte e viagens em qualquer parte do mundo” (art.º 1.º, n.º 2), consagrando-se a obrigatoriedade do seguro desportivo “para todos os agentes desportivos inscritos em federações dotadas de utilidade pública desportiva, nomeadamente os praticantes desportivos profissionais e não profissionais” (art.º 2.º, alínea a). Para tal efeito, foi delineado o quadro normativo do seguro de grupo, a celebrar pelas federações desportivas, aberto à adesão dos agentes desportivos nelas inscritos (artigos 3.º e 5.º).

A par disso, os artigos 7.º, 8.º e 9.º do mencionado diploma dispunham, respetivamente, sobre o seguro de praticante profissional, o seguro do praticante de alta competição e o seguro de provas desportivas.

Quanto aos riscos cobertos pelo seguro de grupo, o artigo 4.º do referido diploma dispunha que:

1 – As coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo são as seguintes:

a) – Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva;

b) – Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento.

2 – As coberturas, riscos e valores do seguro podem ser diferenciados, relativamente aos praticantes desportivos, em função da sua inserção ou não inserção no percurso da alta competição.

     A fixação dos capitais mínimos obrigatórios, nas suas várias modalidades, foi relegada para sede de portaria (artigo 12.º), o que veio a ser concretizado pelas Portarias n.º 757/93, de 26-08, e n.º 392/98, de 11-07, esta com introdução de medidas especiais de apoio aos praticantes não profissionais de alta competição.

      Assim, no que aqui interessa, a Portaria n.º 757/93 veio estabelecer, no seu número 1.º, que:

As federações dotadas de utilidade pública desportiva devem, obrigatoriamente, celebrar um seguro desportivo de grupo com os seguintes montantes mínimos de capital por praticante ou agente desportivo não profissional nelas inscritos:

Morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva – 3.000.000$. Para menores de 14 anos o capital por morte reduz-se ao valor das despesas de repatriamento e funeral, até ao limite de 300.000$;

Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento – 500.000$.    

      E o n.º 5.º da referida Portaria conferia às partes a permissão de estabelecerem livremente a introdução de franquias e o respectivo valor.    


Posteriormente, tanto a Lei n.º 30/2004, de 21-06 (Lei de Bases do Desporto) como a Lei n.º 5/2007, de 16/01 (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto), que, revogando aquela, se encontra atualmente em vigor, mantiveram, respetivamente nos seus artigos 70.º e 42.º, sem alterações de relevo, a obrigatoriedade do seguro pelos riscos inerentes à prática desportiva.

Mais precisamente, o artigo 42.º da Lei n.º 5/2007, sob a epígrafe seguros, prescreve o seguinte:

1 – É garantida a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório dos agentes desportivos inscritos nas federações desportivas, o qual, com o objectivo de cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos, protege em termos especiais o praticante desportivo de alto rendimento.

2 – Tendo em vista garantir a protecção dos praticantes não compreendidos no número anterior, é assegurada a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório para:

   a) – Infra-estruturas desportivas abertas ao público;

   b) – Provas ou manifestações desportivas.

3 – A lei define as modalidades e os riscos cobertos pelos seguros obrigatórios referidos nos números anteriores.


  Por fim, foi promulgado o Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12-01, em vigor desde 01/02/2009, o qual, revogando o Dec.-Lei n.º 146/93, de 26-04, e as Portarias n.º n.º 757/93, de 26-08, e n.º 392/98, de 11-07, estabelece o atual regime jurídico do seguro desportivo obrigatório, sob as considerações assumidas no respetivo preâmbulo, entre outras, de que:

   - “Com os seguros obrigatórios atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura.”

   - “Um sistema de seguro não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento.”         

 

     No âmbito deste diploma, destacam-se os seguintes normativos:


Artigo 2.º

Obrigatoriedade



1 – Os agentes desportivos, os praticantes de actividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público e os participantes em provas ou manifestações desportivas devem, obrigatoriamente, beneficiar de um contrato de seguro desportivo.

2 – A responsabilidade pela celebração do contrato de seguro desportivo referido no número anterior cabe às federações desportivas, às entidades que explorem infra-estruturas desportivas abertas ao público e às entidades que organizem provas ou manifestações desportivas.


Artigo 5.º

Coberturas mínimas



1 – O seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português.

2 – As coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo são as seguintes:

   a) - Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva;

b) – Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento;

(…) 


Artigo 6.º

Exclusões



As apólices de seguro desportivo não podem conter exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da actividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro.

Artigo 7.º

Agentes desportivos



Para efeitos do disposto no presente decreto-lei são agentes desportivos, nomeadamente:

   a) – Praticantes desportivos federados;

     (…)


Artigo 8.º

Seguro desportivo de grupo



1 – As federações desportivas instituem um seguro desportivo de grupo, mediante contrato celebrado com os seguradores, ao qual é obrigatória a adesão dos agentes desportivos mencionados no artigo anterior nelas inscritos.

2 – Cabe às federações desportivas a responsabilidade do pagamento do prémio de seguro de grupo aos seguradores.

3 - Ficam isentos da obrigação de aderir ao seguro desportivo de grupo os agentes desportivos que façam prova, mediante certificado emitido por um segurador, de que estão abrangidos por uma apólice que garanta um nível de cobertura igual ou superior ao mínimo legalmente exigido para o seguro desportivo.


 Artigo 16.º

Coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo



O contrato de seguro a que se refere o n.º 2 do artigo 5.º garante os seguintes montantes mínimos de capital:

a) – Morte – (euro) 25 000;

b) – Despesa de funeral – (euro) 2000;

c) – Invalidez permanente absoluta – (euro) 25 000;

d) – Invalidez permanente parcial – (euro) 25 000, ponderado pelo grau de incapacidade fixado;

e) – Despesas de tratamento e repatriamento – (euro) 4000.


Artigo 18.º

Actualizações das coberturas mínimas



As coberturas mínimas obrigatórias dos seguros são automaticamente actualizadas em Janeiro de cada ano, de acordo com o índice de preços ao consumidor verificado no ano anterior e publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, I.P.

Artigo 19.º

Franquia



1 – Relativamente às coberturas a que se referem as alíneas b) e e) do artigo 16.º (…), as partes estabelecem livremente a introdução de franquias e fixam o respectivo valor.

2 – A franquia é suportada pelo segurado. 


Artigo 20.º

Falta de seguro



As entidades que incumpram a obrigação de celebrar e manter os contratos de seguro desportivo previstos no presente decreto-lei respondem respondem, em caso de acidente decorrente da actividade desportiva, nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido contratado.


      De notar que a regulamentação respeitante às coberturas mínimas e capitais mínimos obrigatórios constante das anteriores Portarias n.º 757/93 e n.º 392/98 passou a estar integrada nos artigos 16.º e 17.º do novo diploma, respetivamente quanto ao contrato de seguro a que se refere o n.º 2 do artigo 5.º e ao seguro do praticante no regime de alto rendimento.   

      Atenta quer a data da celebração do contrato de seguro ajuizado, com início em 01/07/2013 e termo em 30/06/2014, quer a data do sinistro em causa (em 06/04/2014) é aplicável ao presente litígio o regime jurídico do contrato de seguro desportivo obrigatório regulado pelo Dec.-Lei n.º 10/ 2009, de 12-01.

     Nos termos deste diploma, o seguro desportivo obrigatório compreende as seguintes categorias de beneficiários e variantes:

a) – Os agentes desportivos, entre os quais os praticantes desportivos federados, mediante a modalidade de seguro desportivo de grupo a celebrar pelas federações desportivas com os seguradores – artigos 2.º, n.º 1, 7.º e 8.º, n.º 1; 

b) – Os praticantes de atividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público, utentes ou clientes desses serviços não incluídos na sobredita categoria dos agentes desportivos, mediante contrato de seguro celebrado pelas respetivas entidades prestadoras de tais serviços – artigos 2.º, n.º 1, e 14.º;

c) – Os participantes em provas ou manifestações desportivas abertas ao público, também não incluídos na categoria dos agentes desportivos acima mencionada, mediante contrato de seguro temporário celebrado pelas respetivas entidades promotoras ou organizadoras – artigos 2.º, n.º 1, e 15.º.     

      O referido regime não é aplicável aos riscos decorrentes da prática de atividades desportivas desenvolvidas no âmbito do desporto escolar (art.º 3.º) e tem natureza complementar relativamente ao seguro de acidentes de trabalho dos praticantes profissionais (art.º 13.º).


      No caso dos autos, estamos perante um acidente ocorrido no decurso de um jogo de futebol de matriz não profissional, integrado no Campeonato Distrital de Futebol Sénior da 1.ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de …, em que o A. sinistrado interveio como jogador …, … (pontos 1.8 a 1.10 da factualidade provada).

Sucede que o contrato de seguro em referência não foi celebrado por uma federação desportiva, nos termos previstos no artigo 8.º, n.º 1, do referido Dec.-Lei, mas sim entre a Seguradora Interveniente e a Associação de Futebol de …, como tomadora, tendo por objeto a garantia do risco de acidente resultante da prática desportiva, ou da prática de outras atividades culturais e recreativas, desenvolvida pelas pessoas seguras, entre as quais o A., desde que em representação ou sob o patrocínio do tomador do seguro, em competição ou atuação, treino ou ensaio, estágio ou preparação (pontos 1.32 e 1.33 da factualidade provada).

No entanto, segundo a alínea f) do artigo 1.º das “Condições Particulares” do contrato de seguro em apreço, acima transcrita sob o ponto 1.43, o mesmo foi celebrado como sendo “obrigatório nos termos da legislação em vigor”, tendo as respetivas coberturas sido assumidas pelos valores de capital mínimos fixados na lei.

Estando assim garantido, por essa via contratual, um nível de cobertura igual ou superior ao legalmente exigido para o seguro desportivo obrigatório, o A. estava isento da obrigação de aderir ao seguro desportivo de grupo a celebrar ou celebrado por federação desportiva, nos termos do artigo 8.º, n.º 3, do Dec.-Lei n.º 10/2009.

Pelas mesmas razões, diferentemente do que foi entendido no acórdão recorrido, o contrato de seguro ajuizado deve ser equiparado, tal como ali foi assumido pelas partes, ao contrato de seguro desportivo obrigatório, sujeito, portanto, à disciplina constante daquele diploma.


Posto isto, a questão fundamental é agora a de saber se a indemnização devida ao A. em função da cobertura de capital mínima, estabelecida para a invalidez permanente parcial, nos termos contratualmente estipulados, em consonância com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 16.º, alínea d), do Dec.-Lei n.º 10/2009, deve ser fixada tomando em conta mormente o valor dos danos não patrimoniais sofridos por aquele.

Na 1.ª instância, tomando por referência os riscos contemplados quer no artigo 4.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 146/93, de 26-04, quer no artigo 5.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 10/2009, 12/01, foi entendido o seguinte:

   «(..) tem que se entender que os danos morais estão incluídos nestas coberturas legais, porque a invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva, pode incluir danos morais. Uma determinada incapacidade não é, seguramente, exclusivamente física, a mesma tem repercussões psíquicas e, até mesmo, sociais. Por isso, a própria definição de saúde da Organização Mundial de Saúde é o «bem estar físico, psíquico e social», tudo em conjunto.

   Posto isto, não é concebível que um contrato de seguro cubra uma invalidez permanente, ainda que parcial, e exclua da cobertura os danos morais, porque essa mesma invalidez parcial pode ter, precisamente, a sua maior repercussão ao nível moral, nem tanto ao nível físico, por isso é também uma invalidez parcial.

   Para além disso, o próprio conceito de invalidez contratualmente estabelecido tem que ser interpretado de acordo com as referidas normas legais imperativas. O contrato de seguro dos autos cobre a invalidez permanente por acidente, com capital para cada pessoa segura, até € 27.500,00, e despesas de tratamento por acidente, com capital de € 7.500,00, com franquia de € 100,00, por pessoa. Mas, quando analisamos as suas exclusões, verificamos que estão excluídas quaisquer indemnizações por danos morais (art.º 2.º, n.º 1, do Capítulo II das Condições Gerais da Apólice - fls. 124) e, quanto à invalidez permanente por acidente, a mesma surge, contratualmente prevista como sendo, a situação irreversível, resultante da perda anatómica ou impotência funcional de membros ou órgãos, susceptível de constatação médica objectiva, sobrevinda em consequência de lesões corporais produzidas por um acidente coberto pelo presente contrato (art.º 2°, al. a), das Coberturas - fls. 119 e 120 ).

   Aqui se encontra um conceito de invalidez que tem de ser interpretado conforme os dois diplomas legais em referência, mais dispondo o contrato, que o capital seguro, a este título, é de € 27.500,00, por pessoa (fls. 116 e 120).

   Segundo a jurisprudência largamente dominante, as normas do art.º 4.º, n.º 1, do DL 146/93 e do art.º 5.º, n.º 2, do DL 10/2009, ao estipularem coberturas mínimas para o seguro desportivo obrigatório, integram normas imperativas, pelo que não podem ser derrogadas ou restringidas por vontade das partes. Assim, em consequência, as cláusulas contratuais do seguro, na medida em que violam normas imperativas, são nulas, por contrárias à lei, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do CC, ou são nulas nos termos do art.º 294.º do CC.

   (…)

  Assim sendo, no caso dos autos, a definição contratual sobre a invalidez permanente e respectivo tecto de cobertura, bem como a exclusão da cobertura dos danos morais têm que ser interpretadas de acordo com o disposto nos arts. 4.º, n.º 1, do DL 146/93 e do art.º 5.º, n.º 2, do DL 10/2009, sob pena de nulidade.»

Foi, pois, sobre esta base que a 1.ª instância relevou os danos não patrimoniais sofridos pelo A. em consequência do acidente, tanto no decurso da sua incapacidade temporária como na decorrência da incapacidade permanente, concluindo ser justo e adequado fixar-lhe uma compensação global no limite do capital garantido no valor de € 27.500,00, com dedução da franquia de € 100,00.


Por sua vez a Relação, divergindo desse entendimento, considerou que:   

   «(…) o contrato de seguro aqui chamado à colação consiste num contrato de acidentes pessoais. Integra-se na categoria do seguro de pessoas (cfr. arts. 175.º e ss do RJCS aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16/04), cobrindo “riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa” e que pode garantir “prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória.” Nos termos do art.º 210.º do referido diploma, “no seguro de acidentes pessoais, o segurador cobre o risco da verificação de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura, por causa súbita, externa e imprevisível”. O seguro de pessoas “é um desenvolvimento recente, tecido a partir do seguro de vida”, estando em causa “valores humanos de natureza não-patrimonial”, distinguindo-se do seguro de danos, onde é prevista “uma prestação, isto é, uma aportação patrimonial destinada a suprimir um dano”.

   É, pois, diverso do contrato de seguro de responsabilidade civil, que tem acolhimento no âmbito da disciplina do seguro de danos (cfr. arts. 123.º e ss do RJCS), em que “o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros” e garante “a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado”, atendendo-se ao disposto na lei geral para aferir o dano a atender para efeito do princípio indemnizatório, salvo convenção em contrário.” – cfr. arts. 137.º e 138.º do RJCS. Inclui-se no âmbito da disciplina do seguro de danos, que “pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais” – cfr. art.º 123.º do RJCS.

   (…)

   O regime em causa é o que decorre do DL n.º 10/2009, de 12/01, que revogou o DL n.º 146/93, de 26/04. Trata-se de um seguro que visa acautelar a responsabilidade objetiva inerente à atividade desportiva.

   (…)

   A imposição da contratação deste seguro radica na necessidade de garantir que os praticantes desportivos e outros agentes por ele abrangidos disporão de recursos financeiros para custear as despesas em que incorram com tratamentos ocasionados por lesões decorrentes do desporto ou assegurar-lhes o pagamento de um valor em caso de óbito ou invalidez permanente, almejando-se uma cobertura dos acidentes pessoais ocorridos no decurso da atividade desportiva que seja adequada aos seus riscos mas também aos encargos gerados.

   E por se tratar de um contrato de seguro de pessoas e não já de responsabilidade civil, a obrigação de prestação por parte da seguradora, verificado que seja o sinistro, não assenta na responsabilidade civil por factos ilícitos, não sendo de convocar normas e critérios que são considerados nesse âmbito, designadamente a equidade, para alcançar o quantum da quantia a atribuir à pessoa segura. E uma vez verificado o sinistro prevenido pelo contrato de seguro, a seguradora fica incumbida de entregar ao segurado uma certa atribuição de cariz patrimonial. Mesmo nos casos em que essa atribuição se traduza no pagamento de uma quantia em dinheiro, a mesma corresponde ao mero funcionamento do contrato de seguro, não adquirindo, pelo simples facto de se traduzir, para o beneficiário na supressão/minoração de um dano por si sofrido, uma natureza indemnizatória.»


Atenta, pois, a natureza assim atribuída ao contrato de seguro em causa, em vista da cobertura dum risco assente em responsabilidade objetiva associada à prática desportiva e não em responsabilidade aquiliana, concluiu a Relação que não havia lugar a obrigatoriedade de compensação de danos de natureza não patrimonial e que, por isso, não seria nula a cláusula de exclusão de pagamento de indemnização por danos dessa natureza estipulada no contrato de seguro ajuizado.

Além disso, considerou ainda a Relação que, mesmo que assim não fosse, não existiria fundamento para a condenar a seguradora na indemnização de tais danos, porquanto o artigo 20.º do regime legal em apreço determinava que são as entidades que tenham incumprido a obrigação de celebrar e manter vigentes os contratos de seguro desportivo previstos no citado decreto-lei que respondem, em caso de acidente decorrente da atividade desportiva, nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido contratado.

Daí ter a Relação decidido pela absolvição da Seguradora Interveniente na totalidade do pedido.


É neste quadro litigioso que o A. pretende a atribuição, em primeira linha, a título de danos não patrimoniais, do valor compensatório que resultou da sentença da 1.ª Instância ou, subsidiariamente, por uma indemnização dos danos sofridos ainda que segundo critério substancialmente diverso. Por sua vez, a Recorrida pugna pela confirmação da decisão da Relação.  


Vejamos.


A questão em apreço depende, antes de mais, da caracterização do próprio contrato de seguro ajuizado, na linha do que foi considerado pela Relação e, de certo modo, ignorado pela 1.ª Instância.

Como já foi dito, estamos no âmbito de um contrato de seguro desportivo de grupo em que o A. figura como beneficiário aderente, na qualidade de jogador de futebol amador, federado.

E, como também já foi referido, este contrato, embora não tenha sido celebrado por federação desportiva, foi assumido pelas partes como sendo obrigatório nos termos da legislação em vigor, o que permite, por decorrência do preceituado no artigo 8.º, n.º 1 e 3, do Dec.-Lei n.º 10/2009, equipará-lo ao contrato de seguro desportivo obrigatório, aplicando-lhe o respetivo regime legal.   


Ora, nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do mencionado diploma, trata-se de um contrato de seguro desportivo que cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva, abrangendo as coberturas mínimas de:

a) – Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva;  

b) – Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar e de repatriamento.

Assim, pelo menos quanto à primeira vertente, estamos perante um “contrato de seguro de pessoas” que, nos termos conjugados dos artigos 175.º, n.º 1, e 210.º da Lei do Contrato de Seguro (LCS), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16-04, cobre o risco da verificação de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura, por causa súbita, externa e imprevisível.

E, conforme se dispõe o n.º 2 do indicado artigo 175.º, tal contrato pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória.

 

A este propósito, Ana Brilha[1] escreve o seguinte:

«Preocupação universal das sucessivas Leis de Bases do Desporto, a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório visa cobrir os riscos a que estão sujeitos os praticantes desportivos e os demais agentes desportivos procurando garantir a existência de meios financeiros para que aqueles possam fazer face às despesas em que tenham de incorrer com tratamentos ou facultando o pagamento de um valor relativo a morte ou invalidez permanente, total ou parcial.

Sobretudo, a institucionalização do seguro desportivo procurou regulamentar de forma adequada a protecção contra acidentes pessoais no âmbito da actividade desportiva, numa lógica de adequação aos riscos próprios da actividade em causa e aos encargos gerados.

Inserindo-se no ramo não vida, o seguro desportivo aproxima-se simultaneamente da figura do seguro de acidentes pessoais e do seguro de bens, configurando-se como um misto de seguro de pessoas e de bens, porquanto visa não só cobrir danos provocados por eventos que afectem a vida, a saúde ou a integridade física do agentes desportivos, mas também visam cobrir os riscos derivados de qualquer evento que provoque danos no património do segurado.»   

      A mesma Autora[2] refere que “a contratação do seguro visa primacialmente a distribuição do risco inerente a qualquer actividade susceptível de causar dano, aproximando-a do regime da responsabilidade civil objectiva.” E quanto aos riscos derivados de qualquer evento que provoque danos no património do segurado, dá como exemplo “o caso de cobertura de despesas de tratamento e internamento do agente desportivo”[3].  


Também José Vasques[4] traça a distinção entre seguros de prestações convencionadas e seguros de prestações indemnizatórias nos seguintes moldes:

«Segundo esta classificação serão seguros de prestações indemnizatórias todos aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro e serão seguros de prestações convencionadas todos os restantes (naturalmente que, sendo clausuladas contratualmente, todas as prestações são, nesse sentido, convencionadas, pelo que o sentido que interessa ao texto é o que define as prestações convencionadas como aquelas cujo conteúdo e montante estão previamente definidos, dependendo apenas a sua realização da verificação de determinado evento):»


Sucede que o artigo 16.º do Dec.-Lei n.º 10/2009 - disposição esta não convocada pela 1.ª instância -, em termos diferentes do anteriormente fixado no n.º 1.º da Portaria n.º 757/93, estabelece para as coberturas previstas no respetivo artigo 5.º, n.º 2, os seguintes montantes mínimos de capital:

«a) – Morte – (euro) 25 000;

b) – Despesa de funeral – (euro) 2000;

c) – Invalidez permanente absoluta – (euro) 25 000;

d) – Invalidez permanente parcial – (euro) 25 000, ponderado pelo grau de incapacidade fixado;

e) – Despesas de tratamento e repatriamento – (euro) 4000.»

    Nesta conformidade, enquanto que as coberturas previstas para as despesas de funeral (alínea b) e para as despesas de tratamento e repatriamento (alínea e) apontam para o montante dessas despesas dentro dos limites ali fixados, já as coberturas por morte (alínea a) ou por invalidez permanente (alíneas c e d) encontram-se configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões, devendo ainda a invalidez permanente parcial ser ponderada pelo grau de incapacidade que for fixado (alínea d).

      Significa isto que estas últimas coberturas (por morte ou por invalidez permanente) se traduzem em obrigação de prestação convencionada independente do valor do dano efetivo e não como prestação indemnizatória propriamente dita, como no caso das referidas coberturas pelas despesas de funeral e de tratamento.


     Esta linha de entendimento foi seguida no acórdão do STJ de 08/09/ 2016, proferido no processo n.º 1311/11.5TJVNF.G1.S1[5], ainda no domínio de vigência do Dec.-Lei n.º 146/93, de 26-04, citado no acórdão recorrido, ao considerar que, na hipótese de invalidez permanente parcial, “a determinação do quantitativo da atribuição patrimonial devida à pessoa segura em função do sinistro se acha estritamente correlacionada com o grau de invalidez de que aquela ficou a padecer em consequência desse evento” sendo este “o único factor a atender”.

     E a mesma linha de entendimento foi adotada também no acórdão do STJ de 06/04/2017, proferido no processo n.º 335/10.4TTOAZ-P1.S1[6], ao concluir que não se vê “como pode ter-se por compreendida no capital por invalidez permanente, para além da estrita indemnização correspondente à percentagem da perda de capacidade aquisitiva, a indemnização por danos não patrimoniais.”

     A esse propósito, no referido aresto, é feita a seguinte observação crítica:

   «(…) a entender assim, teríamos de aceitar a incongruente solução de que a apólice apenas contemplaria a reparação de danos  não patrimoniais em casos de menor gravidade, em que a invalidez permanente fosse de um valor percentual mais baixo, pois o valor do capital disponível para tal indemnização iria diminuindo à medida que fosse subindo o grau de desvalorização funcional permanente. E chegar-se-ia ao absurdo de, no caso de uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, correspondente a uma IPP de 100%, ou mesmo no caso de um IPP de 66% - potencialmente determinativas de maiores danos em bens de ordem espiritual, atenta a maior gravidade do dano corporal e as maiores limitações físicas que coenvolvem -, a apólice não contemplar a indemnização por danos não patrimoniais por não haver já capital disponível para o efeito.»     

        

Não se ignora, no entanto, a jurisprudência que admite a reparação dos danos não patrimoniais, em caso de invalidez permanente, no âmbito do contrato de seguro desportivo obrigatório, tal como foi entendido, nomeadamente no acórdão do STJ, de 04/10/2018, proferido no processo n.º 4575/15.1 T8BRG.G1[7] (num caso de contrato de seguro relativo a atividade desportiva explorada pela tomadora de seguro nas infra-estruturas desportivas de acesso público) e no mais recente acórdão também do STJ, de 09/05/2019, proferido no processo n.º 1751/14.8TBVCD.P1.S1[8], a considerar que a alínea d) do artigo 16.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12/01, deve ser interpretada no sentido de determinar tão-só o montante máximo de capital devido pela seguradora, devendo, dentro deste limite, ser atendidos tanto os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais, considerando nulas as cláusulas que excluam tal atendimento por aplicação conjugada do artigo 6.º do Dec.-Lei n.º 10/209 e do artigo 294.º do CC.

     Porém, salvo o devido respeito, uma tal solução não se afigura compatível com a natureza do contrato de seguro desportivo obrigatório por acidentes pessoais tal como se encontra parametrizado em sede de coberturas mínimas no artigo 16.º do referido Dec.-Lei n.º 10/2009, ao prever uma prestação de capital pré-determinada, mormente para a invalidez permanente, total ou parcial, sem qualquer consideração pelo valor do dano efetivo.

     De salientar que o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12-01, tal como o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do antecedente Dec.-Lei n.º 146/93, de 26-04, estabelece a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo para o pagamento de um capital (sublinhado nosso) por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da ativi-dade desportiva, o que se afigura não equivaler, juridicamente, a pagamento de indemnização propriamente dita em função do dano efetivo ainda que limitada àquele capital.     

     Poderá discutir-se, de jure condendo, se não seria mais adequado ou justo atender ao dano efetivo como fator complementar na fixação da prestação devida, mas o certo é que este fator não foi erigido como critério legal, nem era imperioso que o fosse, tanto mais que o contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano, como se preconiza no artigo 175.º, n.º 2, da LCS.

      De resto, uma solução que se pautasse, sem mais, pelo atendimento do dano efetivo poderia levar até a que a “indemnização” por invalidez permanente ficasse aquém do valor do capital garantido, caso o montante daquele dano fosse porventura inferior a este capital.

      Acresce que atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no âmbito desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados, diferenciação essa, de cariz objetivo, que se encontra bem patente no artigo 16.º, alíneas c) e d) do Dec.-Lei n.º 10/2009.

      Não parece, por isso, que as exclusões previstas no artigo 6.º desse diploma devam ter um alcance tal que conduzam à obliteração dessa diferenciação legal.


     Em suma, a garantia do capital mínimo pela cobertura do contrato de seguro desportivo obrigatório para os casos de invalidez permanente do sinistrado, absoluta ou parcial, estabelecida nas alíneas c) e d) do artigo 16.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, de forma taxativa, com a ponderação ainda do grau de incapacidade fixado, no caso de invalidez parcial, insere-se perfeitamente no quadro do contrato de seguro de acidentes pessoais na modalidade de prestações de valor predeterminado não dependente do montante efetivo do dano, de modo a proporcionar um ressarcimento do sinistrado a forfait, seja este dano superior ou inferior àquele valor.

      Por outro lado, visando-se cobrir o risco de lesões corporais determinativas de invalidez permanente inerentes a acidente em atividades desportivas, nem sequer necessariamente associado à prática de ilícito civil no domínio da responsabilidade extracontratual, não se mostra imperioso que a prestação devida pelo segurador seja aferível pelo dano efetivo ou esteja limitada a este, segundo o princípio indemnizatório consagrado no artigo 128.º da LCS para o contrato de seguro de danos.

     Nessa conformidade, não se afigura que a “indemnização” desse modo pré-determinada nas apólices de seguro desportivo sejam, sem mais, contrárias à natureza da atividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objeto do contrato de seguro nos termos e para os efeitos do artigo 6.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12/01.

        

No caso vertente, o contrato de seguro desportivo celebrado entre a Seguradora Interveniente e a Associação de Futebol de …, titulado pela apólice n.º 20…1, tendo o A. como beneficiário aderente, garante, no caso de invalidez permanente, a cobertura mínima de € 27.500,00, por acidente, em função do grau de desvalorização sofrido pelo sinistrado, de acordo com a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, o que condiz com o critério objetivo imperativamente consagrado no artigo 16.º, alínea d), do Dec.-Lei n.º 10/2009.

Assim sendo, atendendo a que o contrato ajuizado foi assumido pelas partes como sendo obrigatório nos termos da legislação em vigor, diferentemente do decidido, neste particular, no acórdão recorrido, em face do disposto no artigo 8.º, n.º 1 e 3, do mesmo diploma, é de considerar o mesmo equiparado ao contrato de seguro de grupo desportivo obrigatório.

Nessa base, independentemente da natureza patrimonial ou não patrimonial dos danos sofridos pelo A. em consequência do acidente desportivo em causa e do reflexo, no âmbito da profissão por ele exercida, do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 8 pontos da Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil (ponto 1.27 da factualidade provada), impõe-se arbitrar uma indemnização na proporção desse grau de incapacidade sobre o valor do capital garantido, o que equivale a € 2.200,00 [€ 27.500,00 x 8%].

Torna-se, por isso, também irrelevante discutir a validade da cláusula contratual que exclui qualquer indemnização por danos morais referida no ponto 1.41 da factualidade provada.


Importa, por fim, ter presente que, nas condições particulares do contrato de seguro ajuizado, foi estipulada uma franquia de € 100,00, por acidente e por pessoa, a deduzir sobre qualquer dos limites de capital fixados.

Porém, o artigo 19.º do Dec.-Lei n.º 10/2009 só prevê que as partes estabeleçam livremente franquias, a suportar pelo segurado, quanto às coberturas a que se referem as alíneas b) e e) do respetivo artigo 16.º, ou seja, para os casos de despesas de funeral e de despesas de tratamento e repatriamento.

Ora, estando aqui em causa apenas a indemnização pela invalidez permanente parcial prevista na alínea d) do artigo 16.º daquele diploma, a sobredita estipulação contende com as normas conjugadas desse normativo e do referido artigo 19.º, tidas por imperativas, não devendo assim ser considerada a dedução daquela franquia.   


Termos em que se impõe conceder, parcialmente, a revista.

  

IV - Decisão


    Pelo exposto, acorda-se em conceder, em parte, a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, em sua substituição, decide-se julgar a ação parcialmente procedente, condenando-se a Interveniente CC - Companhia de Seguros, S.A., a pagar ao A. AA a quantia de € 2.200,00 (dois mil e duzentos euros), a título do capital devido pela invalidez permanente de 8 pontos, sofrida em consequência do acidente desportivo em causa.

As custas da ação e dos recursos são devidas pelo A. e pela Seguradora Interveniente na proporção dos respetivos decaimentos.


Lisboa, 7 de novembro de 2019


Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

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[1] Artigo doutrinário intitulado O Novo Regime do Seguro Desportivo – Verdade Inovação?, publicado na Revista Jurídica do Desporto “Desporto & Direito”, Ano VI, Janeiro/Abril 2009, pp 293 e segs.. 
[2] Artigo citado, nota 4, p. 293.
[3] Artigo citado, nota 6, p. 294.
[4] In Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, p. 47.
[5] Relatado pelo Juiz Cons. Orlando Afonso, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.ns.
[6] Relatado pelo Juiz Cons. Gonçalves Rocha, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.ns.
[7] Relatado pelo Juiz Cons. Paulo Sá, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.ns.
[8] Relatado pelo Juiz Cons. Nuno Pinto Oliveira, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.ns.