Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B2089
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: RESPONSABILIDADE
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
SEGURO OBRIGATÓRIO
SEGURO DE GRUPO
IMPOSTO
DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS
BOA FÉ
OBRIGAÇÕES DE MEIOS
CUMPRIMENTO
Nº do Documento: SJ200809100020897
Data do Acordão: 10/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. Da consideração conjunta de um contrato mediante o qual um técnico oficial de contas assume a responsabilidade pela contabilidade fiscal de determinada pessoa e da definição legal do conteúdo das funções respectivas, decorre que o técnico está obrigado a praticar os actos que, estando ao seu alcance, são necessários para que as declarações de rendimentos que assinou e entregou estejam regularmente elaboradas e apresentadas.

2. Se, para que a determinação dos rendimentos se fizesse com base na contabilidade, era legalmente exigida a apresentação prévia de declaração de opção pelo regime de contabilidade organizada, a obrigação, por parte do técnico, de praticar os actos necessários a que pudesse ser apresentada era instrumental relativamente à responsabilidade contratualmente assumida.

3. Conclusão contrária violaria a regra de que os contratos devem ser cumpridos de boa fé.

4. Violaria a mesma regra não o considerar responsável pela omissão da prática de uma formalidade legalmente exigida para que uma declaração fiscal apresentada pudesse servir de base à tributação do cliente.

5. Estando em causa uma obrigação cujo cumprimento é acessório, mas condicionante do desempenho das suas funções, está abrangida pelo contrato de seguro celebrado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e uma companhia de seguros, no âmbito do seguro imposto pelo nº 4 do artigo 52º do Decreto-Lei nº 452/99, uma eventual responsabilidade por danos patrimoniais decorrentes do respectivo incumprimento.

6. Tal responsabilidade é regulada pelas regras da responsabilidade contratual.
Decisão Texto Integral:


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e LL instauraram contra MM e COMPANHIA DE SEGUROS F..., S.A., uma acção na qual pediram que os réus fossem condenados a pagar a cada um, respectivamente, as quantias de € 3.303,86, € 1.391,52, € 1.849,50, € 1.520,26 € 2.631,10, € 5.129,28, € 1.941,35, € 4.727,68, € 1.529,68, € 1.025,56 e € 2.316,83, num total de Euros 27.366,62, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até ao efectivo pagamento.
Para o efeito, alegaram, em síntese, que tiveram que desembolsar a mais tais quantias, cada um deles, para pagamento do IRS correspondente ao ano de 2002, porque o 1º réu não apresentou, relativamente a esse ano, a declaração que permitiria ter-lhes sido aplicado o regime da contabilidade organizada, não obstante ser contratualmente responsável pelas respectivas contabilidades.
Alegaram ainda que a 2ª ré, em virtude de contrato de seguro que celebrara com a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, era responsável pelas indemnizações que pediam.
F...-Mundial, SA, contestou. Sustentou, nomeadamente, a ilegitimidade das partes e ainda que o seguro referido não abrangia danos atribuídos a falta de entrega de declarações fiscais, porque tal obrigação “não se contém no elenco das funções do artigo 6º do ECTOC”. Juntou um parecer de direito.
Os autores replicaram.
Por sentença de 21 de Junho de 2006 do Tribunal do Círculo Judicial de Vila do Conde, de fls. 572, a acção foi julgada procedente. Tendo em conta a franquia de 10% prevista no contrato de seguro, os réus foram condenados nos seguintes termos:
“- O réu MM a pagar ao autor AA, a quantia de 330,38 Euros; ao autorBB a quantia de 139,15 Euros; à autora CC a quantia de 184,95 Euros; ao autor DD a quantia de 152,02 Euros; ao autor EE a quantia de 263,11 Euros; ao autor FF a quantia de 512,92 Euros; ao autor GG a quantia de 194,13 Euros; ao autor HH a quantia de 472,76 Euros; ao autor II a quantia de 152,96 Euros; ao autor JJ a quantia de 102,55 Euros; ao autor LL a quantia de 231,68 Euros, acrescidas de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- A ré, Companhia de Seguros F...-Mundial, S.A. a pagar ao autor AA, a quantia de 2.973,48 Euros; ao autor BB a quantia de 1.252,37 Euros; à autora CC a quantia de 1.664,55 Euros; ao autor DD a quantia de 1.368,24 Euros; ao autor EE a quantia de 2.367,99 Euros; ao autor FF a quantia de 4.616,36 Euros; ao autor GG a quantia de 1.747,22 Euros; ao autor HH a quantia de 4.254,92 Euros; ao autor II a quantia de 1.376,72 Euros; ao autor JJ a quantia de 923,01 Euros; ao autor LL a quantia de 2.085,15 Euros, acrescidas de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até efectivo e integral pagamento.”

2. Inconformada, F...-Mundial, SA interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
Por acórdão de 12 de Fevereiro de 2008, a Relação negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, concluindo:
“(…) não oferece contestação que o TOC é civilmente responsável perante o seu cliente por o não ter informado do ónus de optar pelo regime de determinação do lucro tributável (determinação directa) e que tal obrigação foi prestada no exercício da actividade de TOC, tal como se encontra definida no artº 6º do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, completada pelo artigo 11º do Código Deontológica dos Técnicos Oficiais de Contas, plasmado ao abrigo do artº 3º, nº 1, alínea a) daquele Estatuto.
(…) a responsabilidade civil dos TOC está dentro do âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado entre a CTOC e a Ré F... (…)”.

3. Novamente recorreu a ré, agora para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas alegações apresentadas, formulou as seguintes conclusões:

“(1) O contrato de seguro dos autos não tem por objecto senão a responsabilidade civil profissional dos técnicos oficiais de contas (TOC) emergente do exercício das funções previstas no artigo 6° do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (ECTOC).
(2) Sendo que, ao contrário do que o tribunal ‘a quo’ afirma, nessas funções não se enquadra qualquer actividade de consultoria em matéria jurídico-fiscal, mas tão só consultadoria fiscal em sentido técnico-administrativo e contabilístico, e em termos procedimentais, designadamente, quanto aos formalismos e actuação a observar nas declarações fiscais impostas pelo desempenho contabilístico relativo ao exercício da actividade que gera os rendimentos sujeitos às obrigações dos seus clientes.
(3) Desde logo, aliás, porque a consulta jurídica está reservada aos advogados, constituindo mesmo crime de procuradoria ilícita o exercício dessa actividade por quem não seja licenciado em direito inscrito na Ordem dos Advogados (cf. a Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto).
(4) Muito menos devem os contribuintes pretender que um contrato de seguro obrigatório – que apenas abrange a responsabilidade civil profissional, aliás, extra-contratual (como nas Condições Gerais da Apólice se prescreve), emergente do exercício das funções cometidas aos técnicos oficiais de contas pelo artigo 6° do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas –, possa também servir, afinal, para cobrir os impostos que devem pagar à Administração Fiscal, no quadro dos regimes fiscais que se lhes aplicam.
(5) Nada impede um contribuinte de mandatar alguém para exercer por ele as suas faculdades jurídico-fiscais, incumbindo o mandatário de escolher os regimes fiscais que na sua situação concreta lhes proporcionarem o pagamento do menor imposto possível ao Estado, sendo certo que esse mandato não está coberto pelas garantias do seguro dos autos.
(6) De resto, sem conceder, não estão provados factos susceptíveis de constituírem um qualquer mandato entre os autores e o 1 ° réu destinado à opção por regimes fiscais.
(7) Nem mesmo estão provados factos susceptíveis de constituir uma obrigação de o mesmo réu entregar quaisquer declarações fiscais para os fins daquela opção, sendo certo, aliás, que também não é uma tal obrigação enquadrável no elenco funcional do artigo 6° do ECTOC, logo não estando abrangido pelas coberturas do seguro.
(8) Independentemente do que antecede, importa constatar que não se mostram provados factos que conduzam à conclusão de que o 1° réu violou o artº 483° do Código Civil, já que se não verificam os pressupostos da responsabilidade civil, a saber, o facto (acção ou omissão), a i1icitude, a culpa do agente, o dano e o nexo de causalidade entre facto e dano.
(9) Não há facto ilícito, porque, de acordo com a matéria de facto definitivamente assente nas instâncias, ficou provado que o 1° réu, no ano de 2002, preencheu a declaração de alterações para opção pelo regime de contabilidade organizada relativamente a todos os autores, fazendo-os subscrever tal declaração e apondo a sua vinheta de TOC.
(10) E também se provou que, em 2003, o 1° réu apresentou as declarações de rendimentos relativas a 2002 de todos os autores, no prazo legal, com os anexos respeitantes à contabilidade organizada.
(11) Por assim ter agido, o 1° réu não cometeu qualquer facto ilícito, pois que se limitou a dar seguimento ao processo de determinação do rendimento colectável para efeitos da liquidação de imposto de 2002, segundo as regras do regime de tributação de contabilidade organizada, pelo qual os contribuintes optaram nesse mesmo ano, através das respectivas declarações de alterações.
(12) A declaração de alterações, prevista nos artºs 28° e 112° do CIRS, deve ser entregue, se for caso disso, e consoante a situação fiscal do contribuinte, até ao fim de Março do ano em que este pretende alterar a forma de determinação do rendimento.
(13) A declaração de rendimentos, prevista no artº 57°, nº 1 do CIRS, deve ser anualmente apresentada, relativamente aos rendimentos auferidos no ano anterior, devendo ser acompanhada de anexos e outros documentos indicados na lei.
(14) Não havendo facto ilícito do 1° réu nunca poderá declarar-se a sua responsabilidade civil profissional, já que o regime pelo qual os contribuintes teriam optado naquele ano de 2002 fora o regime de contabilidade organizada, bem tendo andado o 1 ° réu ao apresentar essas declarações de rendimentos nesse regime, com os respectivos anexos, o que foi efectuado dentro dos prazos legais.
(15) Dos factos provados e relacionados sob os nºs 9, 10, 11, 12 e 13 resulta que a Administração Fiscal terá adoptado procedimentos que não são compatíveis com a verdade dos factos constantes dos nºs 7, 8 e 9, mas, dado que o 1° réu preencheu em 2002 a declaração de alterações de opção pelo regime de contabilidade organizada, e que, no ano seguinte, apresentou a declaração de rendimentos de acordo com as regras desse regime de tributação, não havia lugar a que a Administração Fiscal actuasse, como terá actuado, segundo a mesma matéria de facto.
(16) Porém, nada se apurou sobre se os contribuintes teriam, ou não, impugnado um tal procedimento da Administração Fiscal, sendo certo que, se o tivessem feito, teriam grande probabilidade de êxito, em face da manifesta ilegalidade de tal procedimento.
(17) Não havendo facto ilícito, também não pode verificar-se o pressuposto da responsabilidade civil, que é o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
(18) Sem conceder, da matéria de facto dada como provada não se pode retirar a verificação de danos.
(19) Não se podem considerar danos as provadas diferenças de imposto pagos pelos contribuintes a mais, quando tais diferenças não resultam do apuramento dos valores reais extraídos dos documentos de suporte da contabilidade, eventualmente interpretados por peritos, caso a interpretação e apreensão da justeza de tais valores exigissem conhecimentos especiais, que o tribunal não tivesse.
(20) Só tendo tal informação, resultante dos documentos da contabilidade dos contribuintes, é que o tribunal poderia concluir, ou não, pela verificação de verdadeiros danos, não bastando, para isso, a simples apresentação de declarações fiscais de rendimentos, desacompanhadas dos elementos de suporte.
(21) É que, no regime fiscal de contabilidade organizada, o lucro tributável do contribuinte é calculado pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do Código do IRS.
(22) A organização da contabilidade do contribuinte há-de permitir que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas a imposto possam distinguir-se dos das restantes, sendo tal possível apenas se forem seguidas regras precisas de normalização contabilística, segundo o sector de actividade.
(23) Não se apurou se a contabilidade do contribuinte estaria devidamente conforme com as declarações fiscais apresentadas, nem se estas seriam aceites pela Administração Fiscal, em face dos documentos que lhe serviram de suporte.
(24) Já que no regime de contabilidade organizada é permitido ao contribuinte deduzir despesas no apuramento da matéria colectável, não se sabendo se tais despesas seriam, ou não, aceites pela Administração Fiscal.
(25) Para poder referir-se a danos nos presentes autos, o tribunal não poderia deixar de ser tão rigoroso e exigente quanto o seria o controlo das declarações fiscais pela própria Administração Fiscal, pois não se justifica um regime de apuramento de danos mais brando do que o que seria seguido por aquela Autoridade.
(26) Não se sabendo quanto pagariam os contribuintes, não pode a factualidade descrita permitir a sua qualificação jurídica como sendo «danos», muito menos como danos emergentes de uma causa ilícita imputável ao 1 ° réu.
(27) Não havendo danos, também, por esse facto, não há responsabilidade civil.
(28) Decidindo, como decidiram, as instâncias proferiram uma decisão injusta, não conforme aos factos provados e ao direito aplicável, violando, designadamente, os artºs 6°, 51°, nº 3 e 52° do DL 452/99, de 5 de Novembro, as disposições do contrato de seguro regulado pela apólice junta aos autos, a Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, o artº 483° e seguintes e 562° e seguintes do Código Civil, bem como os artºs 28°, 57° e 112° do CIRS.”

Os recorridos contra-alegaram, pronunciando-se no sentido da manutenção do que foi decidido.

4. Encontram-se definitivamente provados os seguintes factos (transcrevem-se do acórdão recorrido):

“1. À data dos factos em discussão, e por força de contrato de seguro do ramo da responsabilidade civil, celebrado entre a 2ª ré e a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e titulado pela apólice n.° 87/42.205, a responsabilidade civil decorrente do exercício das funções profissionais dos TOCs associados àquela Câmara, encontrava-se transferida para a 2ª ré nos termos constantes das condições gerais, particulares e especiais desse contrato (…) (cfr. fls. 148 e ss.).
2. O 1.° réu é o contabilista responsável pelas contabilidades fiscais dos aqui autores há mais de dez anos contados por referência a Janeiro de 2005.
3. Tal actividade era actualmente prestada por força do contrato de trabalho celebrado a 1 de Março de 2002 entre o 1.° réu e o Centro de Gestão Agrícola do Ave, sendo que já antes da sua celebração aquele prestava serviços idênticos quer ao identificado centro, quer aos associados.
4. Todos os autores são associados do Centro de Gestão Agrícola do Ave.
5. Os autores FF e HH mantêm com o 1.° réu, um contrato de avença com o objecto de elaboração da contabilidade fiscal.
6. Por tais serviços pagam os referidos autores a mensalidade de Euros 65,00 e Euros 100,00, respectivamente.
7. Nesse ano, o 1.° réu preencheu a declaração de alterações para a opção de regime de contabilidade organizada relativamente a todos os autores, fazendo-os subscrever tal declaração e apondo a sua vinheta de TOC.
8. Em 2003 o 1.° réu apresentou as declarações de rendimentos relativas a 2002 de todos os autores, no prazo legal, com os anexos respeitantes à contabilidade organizada.
9. Agiu nos termos referidos imediatamente supra, por estar convicto de que o regime para apuramento de rendimento era, face à declaração referida no quesito 7.° (agora nº 8) vigente por três anos.
10. Após a apresentação das declarações referidas em 8.° (agora nº 9), foram os autores notificados para substituir o anexo referente à contabilidade organizada, ou seja o anexo C, pelo anexo A, relativo ao regime de contabilidade simplificado.
11. Tais notificações sucederam uma vez que não tinha sido apresentada declaração de alterações idêntica a referida no quesito 7.° (agora nº 8º).
12. Tal exigência por parte dos serviços fiscais, foi também devida, concomitantemente, ao facto de os autores não terem atingido a facturação no ano de 2001 de 30 mil contos.
13. Por força dos factos aludidos supra, o apuramento do IRS devido pelos autores foi feito segundo métodos indiciários, com base no regime fiscal da contabilidade simplificada e não com base no regime de contabilidade organizada.
14. Em consequência dos factos supra descritos os autores tiveram que pagar mais a título de IRS: - AA, Euros 3.303,86; -BB: Euros1.391,52; - DD: Euros 1.520,26; -EE: Euros 2.631,10, - FF: Euros 5.129,28; - GG: Euros 1.941,35; - HH: Euros 4.427,68; - II: Euros 1.529,68; - JJ: Euros 1.025,56; - LL: Euros 2.316,83; - Maria de Fátima: Euros 1.849,50.”

5. As questões suscitadas pela recorrente reconduzem-se, assim, a saber, em primeiro lugar, se o contrato de seguro que celebrou com a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas abrange danos como aquele que os autores invocam e, em segundo lugar, se, de qualquer forma, se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar.

6. Está provado, como se viu, que, com relação ao ano a que respeitam as declarações fiscais agora em causa, 2002, o 1º réu prestava ao Centro de Gestão Agrícola do Ave e aos seus associados a sua actividade como técnico oficial de contas, por virtude do contrato de trabalho constante de fls. 22.
Com efeito, a celebração de contrato de trabalho é uma das modalidades especialmente previstas na lei para o exercício da actividade de técnico oficial de contas (al. d) do nº 1 do artigo 7º dos Estatutos da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovados pelo Decreto-Lei nº 452/99, de 5 de Novembro).
Por esse mesmo contrato e, até à sua celebração, por virtude do que se encontra provado nos pontos 2 a 6 acima transcritos, o 1º réu, na sua qualidade de técnico oficial de contas, era o “contabilista responsável pelas contabilidades fiscais” dos autores.
Considerados expressamente como “interlocutores privilegiados com a administração fiscal” pelo preâmbulo do citado Decreto-Lei nº 452/99, aos técnicos oficiais de contas incumbe o desempenho das funções descritas em particular no nº 1 do artigo 6º do Estatuto: “a) Planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade organizada, segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis, respeitando as normas legais e os princípios contabilísticos vigentes (…), b) Assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades referidas na alínea anterior, c) Assinar, conjuntamente com o representante legal das entidades referidas na alínea a), as respectivas declarações fiscais, as demonstrações financeiras e seus anexos, fazendo prova da sua qualidade, nos termos e condições definidos pela Câmara, sem prejuízo da competência e das responsabilidades cometidas pela lei comercial e fiscal aos respectivos órgãos;”.
De acordo com a alínea a) o nº 2 do mesmo preceito, podem ainda exercer “funções de consultadoria, nas áreas da respectiva formação”.
Da consideração conjunta, por um lado, dos contratos mediante os quais o 1º réu assumiu a responsabilidade pela contabilidade fiscal dos autores e, por outro, da definição legal do conteúdo das funções de técnico oficial de contas, decorre que o mesmo réu estava contratualmente obrigado perante os autores a praticar os actos necessários (ao seu alcance, evidentemente) para que as declarações de rendimentos dos autores que assinou e entregou em 2003, relativas a 2002, fossem regularmente elaboradas e apresentadas.
Com efeito, a apresentação prévia da declaração de opção pelo regime da contabilidade organizada (cfr. artigos 28º, nº 4, b) e 112º do Código do Imposto sobre o Rendimento, com as alterações introduzidas pela Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro), nas condições em que se encontravam os autores (cfr. ponto 12 da lista de factos provados), era necessária para que a determinação dos rendimentos se fizesse com base na respectiva contabilidade.
A sua apresentação por parte do 1º réu – entenda-se: a obrigação de praticar os actos necessários a que pudesse ser apresentada, o que desde logo incluía a sua assinatura – corresponderia, portanto, ao cumprimento de uma obrigação instrumental relativamente à obrigação fundamental que assumira de “planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade” dos autores, “respeitando as normas legais (…) aplicáveis”, de se responsabilizar “pela [sua] regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal”, de “assinar, conjuntamente” as suas declarações fiscais e de lhes prestar “consultadoria”, no âmbito dessas mesmas funções.
Seria, aliás, dificilmente compatível com a regra de que os contratos devem ser cumpridos de boa fé (nº 2 do artigo 762º do Código Civil) sustentar que um técnico, que foi contratado para se responsabilizar pelas contabilidades dos autores, em obediência a imposição legal (por possuírem contabilidade organizada e por essa forma pretenderem ser colectados – cfr. artigo 3º do Decreto-Lei nº 452/99), e que, em cumprimento do contrato que assinou, apresenta e assina a declaração fiscal elaborada segundo essa opção (cfr. al. c) do nº 1 do artigo 6º do Estatuto citado), não fica também contratualmente obrigado à prática daqueles actos instrumentais.
Igualmente seria assim contrário àquela regra não o considerar responsável pela omissão da prática de uma formalidade legalmente exigida para que aquela declaração fiscal pudesse servir de base à tributação dos seus clientes.
A obrigação de praticar os actos necessários e que estão ao seu alcance para que a declaração de opção pelo regime da contabilidade organizada fosse atempadamente entregue integra, pois, o leque dos deveres contratualmente assumidos pelo 1º réu.
E, na medida em que se trata de uma obrigação cujo cumprimento é acessório – mas condicionante – do desempenho das suas funções, tem de considerar-se abrangida pelo âmbito do contrato de seguro, celebrado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e a recorrente, no âmbito da obrigatoriedade imposta pelo nº 4 do artigo 52º do Decreto-Lei nº 452/99, uma eventual responsabilidade por danos patrimoniais decorrentes do respectivo incumprimento, nos termos constantes das “condições particulares” de fls. 155, porque resultante de “actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas”.
Tal responsabilidade é regulada pelas regras da responsabilidade contratual, já que resulta de não ter sido cumprida uma obrigação contratualmente assumida.
A recorrente sustenta que o contrato de seguro “apenas abrange a responsabilidade civil profissional, aliás, extracontratual (como nas Condições Gerais da apólice se prescreve)”. A verdade, todavia, é que, segundo as “condições particulares”, o “âmbito da cobertura” do seguro “para além do que se expressa nas Condições Gerais da Apólice (…) compreende (…) as indemnizações” por danos patrimoniais causados por “técnico oficial de contas” no exercício da “actividade de Técnico Oficial de Contas”. Como se viu, essa actividade, nos termos previstos na lei – que, repete-se, para ela impõe a obrigatoriedade de subscrição de “um seguro de responsabilidade civil profissional”, no nº 4 do artigo 52º do Decreto-Lei nº 452/99 –, pode ser desenvolvida no âmbito de um contrato, como sucede no caso presente.
Resta observar que a conclusão a que se chegou não colide, nem com a verificação de que, como é evidente, é o sujeito passivo do imposto que está obrigado a praticar os actos legalmente devidos para permitir a respectiva cobrança, nomeadamente, a apresentar as declarações exigidas, nem com a afirmação de que os autores estão a alegar o incumprimento de uma obrigação que não pode estar abrangida pelas funções de técnico oficial de contas, por se traduzir na prestação de consultadoria jurídico-fiscal, logo, reservada aos advogados.
É naturalmente sobre os autores que recai a obrigação referida em primeiro lugar; a verdade, todavia, é que não está agora em causa, como é manifesto, o afastamento de tal obrigação, mas, apenas, o ressarcimento daquilo que aqueles autores tiveram que desembolsar, como ficou provado, a mais (justamente porque são responsáveis perante a Administração Fiscal).
Para além disso, não colhe a segunda observação, que, a ser verdadeira, provaria demais, impedindo os técnicos oficiais de contas de exercerem as suas funções.

7. Decorre igualmente dos factos provados que estão preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar, enumerados no artigo 798º do Código Civil, por parte do 1º réu: o não cumprimento de uma obrigação contratualmente assumida (pontos 2 a 6, 8, 10 e 11) o dano (ponto 14), o nexo de causalidade (pontos 13 e 14) e a culpa (pontos 7, 8 e 9).
Note-se, quanto a este ponto, que não pode ser considerada matéria de facto que não tenha sido alegada em 1ª instância, na contestação; e note-se, ainda, que nunca poderia o Supremo Tribunal de Justiça, fora dos limites previstos no nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil (na redacção anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto), alterar a decisão sobre a matéria de facto (por exemplo, quanto ao nexo de causalidade, do ponto de vista naturalístico ou fáctico, como consta do ponto 14, ou quanto à extensão dos danos sofridos).
Assim sendo, tal obrigação recai sobre a recorrente, por força do contrato de seguro titulado pela apólice nº 87/42.205.

8. Nestes termos, nega-se provimento à revista, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal, 10 de Outubro de 2008

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lázaro Faria
Salvador da Costa